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segunda-feira, 10 de outubro de 2011

ÁGUA MOLE, PEDRA DURA

Era para ser uma pintura rápida, um esboço a óleo sobre tela que, nas palavras do retratado, levaria uma ou duas horas para ser concluído. Alberto Giacometti e James Lord eram amigos, e aquilo tinha como propósito apenas a diversão de ambos. Um disse que queria, o outro respondeu que faria e pronto, estavam combinados. Só que a persistência do artista para obter um resultado satisfatório – entre suas tormentas existenciais e ameaças de abandono do projeto – levou o modelo a posar durante catorze dias não-consecutivos. Isso mesmo, catorze sessões de duas a quatro horas cada! Esse processo criativo foi registrado pelo escritor num divertido diário, que, além de revelar detalhes sobre a obra de Giacometti e sobre sua concepção de arte, também nos leva a pensar em nossas próprias vidas, em como reagimos às adversidades, na relevância de nossos planos e no que, afinal, nos faz felizes.

E tem mais: durante esse tempo todo, o artista pintou apenas a cabeça do amigo. Pintou e repintou, pintou e repintou, concentrando-se somente nela. Considerava a tarefa impossível, mas continuava tentando. Ao fim de cada sessão, os dois olhavam a tela e notavam certo avanço, mas no dia seguinte o pintor apagava tudo e recomeçava do zero. “Estou destruindo você”, dizia. James Lord se angustiava. Com o tempo, porém, aprendeu a dar de ombros e assentir: “É você quem manda”. Seu respeito pelas escolhas do mestre beirava à devoção. Em troca, Alberto lhe ensinou que cada passo adiante é sempre uma luta contra as próprias crenças, e que a superação depende também de muita cessão, além da tradicional força de vontade.

Em setembro de 1964, dinheiro e fama já não eram problemas para ele. Suas obras podiam ser vistas mundo afora e agradavam tanto o público quanto a crítica. O artista já tinha até mesmo conquistado o Grande Prêmio de Escultura da Bienal de Veneza, o mais importante de sua carreira. Ainda assim, persistia na empreitada, blasfemava que não entendia nada daquilo, que deveria desistir de uma vez por todas, pois jamais conseguiria fazer alguma coisa bem feita. As glórias do passado não iludiam seus olhos nem transbordavam sua autoconfiança. Todo dia era um novo dia, e isso ficou evidente durante a pintura do retrato. Seu temperamento exagerado pedia toda a paciência de James Lord. No entanto, ao ler o diário, publicado propositadamente sob o ambíguo título de Um retrato de Giacometti, ele chega a ser hilariante.

Pois bem, qual é a relação disso tudo com a nossa busca por felicidade? No livro A arte da vida, o filósofo Zygmunt Bauman afirma que a vida é uma obra de arte e que “devemos, tal como qualquer outro tipo de artista, estabelecer desafios que são difíceis de confrontar diretamente; devemos escolher alvos que estão muito além de nosso alcance, e padrões de excelência que, de modo perturbador, parecem permanecer teimosamente muito acima de nossa capacidade de harmonizar com o que quer que estejamos ou possamos estar fazendo. Precisamos tentar o impossível”.

Alberto Giacometti parece ter sido a encarnação perfeita dessa proposta. Em um momento de desânimo, chegou a prometer os milhões de sua poupança a alguém que pintasse “aquela maldita cabeça” por ele.

“Tenho certeza de que, por essa quantia, muitos o fariam”, comentou o modelo na ocasião, ao que o artista prontamente retrucou: “Não fariam à minha maneira”. Não se tratava apenas de uma saída irônica. Ele realmente assumia a tarefa como um desafio pessoal e precisava cumpri-la a qualquer preço. A razão da sua arte consistia em representar o mundo da maneira como ele se mostrava a seus olhos, e só com muito suor conseguia executá-la – o dinheiro não lhe valia de nada.

No citado livro, Bauman faz uma comparação interessante entre renda e felicidade, mostrando que, após serem atendidas as exigências básicas para se viver com dignidade, o nível de felicidade continua estagnado, mesmo que a renda se multiplique exponencialmente. Em outras palavras, o crescimento econômico só influencia a felicidade das pessoas até certo ponto.

No geral, continuamos acreditando que comprar nos deixa mais felizes. Bauman alerta para o perigo de se cair no conto do publicitário, que sempre apresenta uma nova etapa nessa busca. Prolongando o caminho, nunca atingimos o fim. E, durante a jornada, acabamos nos esquecendo de coisas mais importantes, que o dinheiro não compra.

Uma delas é o desafio que se impõe a cada dia e nos obriga a superar obstáculos para realizarmos um bom trabalho, digno de orgulho próprio, exatamente como fazia Giacometti. Trata-se de uma satisfação cada vez mais rara. Confrontando-se com problemas que pareciam insolúveis, ele reinventava a si e a sua arte. Possivelmente foi essa incessante busca que o fez, além de um talento mundialmente reconhecido, um homem feliz. A persistência, como sugere o ditado, leva à realização. O diário de James Lord é testemunha disso e, por que não?, serve de manual para uma vida melhor, em que tanto a arte quanto a felicidade estão ao alcance de todos.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

ALGUNS SÃO ARTISTAS, INDEPENDENTEMENTE DA ÁREA EM QUE ATUAM



Ó MORTE, Ó MORTE
SÁBIO DOM DE DEUS.
DE TI VÊM AS GRAÇAS DO MUNDO
ATÉ O AMOR.
E AGORA AQUI, ONDE NÃO HÁ
                                       RETORNO 
COM OLHOS VAZIOS OLHAMOS
AS NUVENS, O MAR, AS SELVAS
SEM MAIS MISTÉRIOS.

Dino Buzzati, em Poema em Quadrinhos

domingo, 2 de outubro de 2011

A SE CONSIDERAR

Outro dia, me perguntaram por que tento sempre destacar um ponto positivo nas obras que critico, mesmo naquelas que não me agradam. Ora, acho muito triste quem não encontra algo interessante em livros, músicas, filmes, quadros, danças, esculturas... enfim, na criação artística em geral. Acho, inclusive, que nesses casos o problema não está na obra, mas no crítico. Nada é 100% bom ou 100% ruim, nem a arte nem os homens; o que existe são pontos de vista. O que um odeia, outro pode amar. Quem está errado? Ninguém. O papel da crítica é propor uma leitura, fundamentar reflexões a respeito, instigar o leitor a experimentar – muito se engana quem acredita que o crítico deve falar mal, e só. Penso justamente o contrário. Falar mal é fácil demais. Existe, porém, sempre um ponto positivo, e para revelá-lo é necessário antes vencer a própria mesquinhez. Se você não consegue vê-lo, talvez seja hora de deixar a produção alheia de lado e criticar os seus sentimentos pessoais.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

A PALAVRA AO LEITOR

"(...) O texto literário é um texto que também dá voz ao leitor. Quando escrevo, por exemplo: 'A casa é bonita', coloco um ponto final. Quando você lê para uma criança 'A casa é bonita', para ela pode significar a que tem pai e mãe. Para outra criança, 'casa bonita' é a que tem comida. Para outra, a que tem colchão. Eu não sei o que é casa bonita, quem sabe é o leitor. A importância para mim da literatura é acreditar que o cidadão possui a palavra. O texto literário dá a palavra ao leitor. O texto literário convida o leitor a se dizer diante dele. Isso é o que há de mais importante para mim na literatura."

Bartolomeu Campos de Queirós, no projeto Paiol Literário, promovido pelo jornal Rascunho

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

POESIA HOJE E SEMPRE

Poemas adquirem um novo significado a cada dia, e outros significados de acordo com as pessoas que os leem. Por isso, encontrar o poema certo no dia certo é um privilégio.

Quando William Blake me disse que, se somos amados, não sofremos, poderia ter parecido uma bobagem sentimentalista. Poderia, se ele não tivesse dito isso na hora certa.

Foi o que o poema abaixo significou para mim, e significou muito. Talvez ele diga algo diferente a você, ou talvez não diga nada.

Talvez o problema seja o poema, mas eu acredito que, se isso acontecer, o errado é o dia. O segredo é continuar tentando.


O LÍRIO
A modesta Rosa exibe espinhos agora:
A humilde Ovelha pôs seu chifre pra fora:
Enquanto o branco Lírio goza feliz o Amor,
Espinhos e chifres não lhe tiram o alvor.

THE LILY
The modest Rose puts forth a thorn:
The humble Sheep, a threating horn:
While the Lily white, shall in Love delight,
Nor a thorn nor a threat stain her beauty bright.

sábado, 10 de setembro de 2011

TODOS QUEREM SER EUROPA/EUA E RUMAM PARA LÁ?

Chamamos a nós mesmos de subdesenvolvidos, de terceiro mundo, de periferia do mundo. Aceitamos os termos sem procurar entender o que eles significam, se é que significam algo verdadeiramente relevante. Afinal, existe um modelo de civilização a seguir? Em que ela é melhor do que a nossa? Para onde a cultura brasileira ruma? O poeta e crítico mexicano Octavio Paz me fez pensar nisso um instante.

"O artigo subdesenvolvido pertence à linguagem anêmica e castrada das Nações Unidas. (...) O vocábulo não tem nenhum significado preciso nos campos da antropologia e da história: não é um termo científico, mas um termo burocrático. (...) Sob o amparo da sua ambiguidade, deslizam-se duas pseudoideias, duas superstições igualmente nefastas: a primeira é dar como estabelecido que só existe uma civilização ou que as diferentes civilizações podem ser reduzidas a um modelo único, a civilização ocidental moderna; a outra é acreditar que a mudança das sociedades e culturas são lineares, progressivas, e que, em consequência, podem ser medidas."

Octavio Paz, em Os filhos do barro (1974)

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

A morte chega sorrateiramente;
ela engana, desvia do alvo,
muda de ideia, não avisa,
age sem pensar.
Às vezes, morrer parece ser,
simplesmente,
questão de sorte
ou azar.

(inspirado no conto Em um outro país, de Ernest Hemingway)

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

“O que oferecerás a Morte, quando
ela bater à tua porta?
Vou oferecer à minha hóspede a taça
cheia de minha vida. Não deixarei que ela
vá embora de mãos vazias.
Colocarei diante dela a suave colheita
de todos os meus dias de outono e de todas
as minhas noites de verão. No fim dos meus
dias, quando ela bater à minha porta, vou
entregar-lhe tudo o que ganhei e tudo o que
recolhi com o árduo trabalho da minha vida.”

Rabindranath Tagore, em Gitanjali

terça-feira, 6 de setembro de 2011

ARTE NO LIXO



Lixo Extraordinário, documentário que concorreu ao Oscar deste ano, mostra como a arte pode envolver e transformar pessoas. É emocionante, mesmo para quem não se liga muito no assunto.

Trata-se de uma espécie de making of de um projeto artístico de Vik Muniz, em que fica evidente a complexidade da sua criação. Por trás das fotos exibidas em museus e galerias de todo o mundo existe uma vontade muito grande de fazê-las acontecer, uma equipe de especialistas e um longo tempo de execução.

Vi o filme no sábado passado, durante evento da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Na sequência, houve duas leituras críticas, acompanhadas de um debate aberto com a plateia. Os convidados para a mesa foram o jornalista Manuel da Costa Pinto e o psicanalista Plinio Montagna.

A conversa foi ótima, mas o filme foi melhor ainda, principalmente pelas questões que nos propõe. Por essas e por muitas outras, acho que você também precisa assistir.

Site oficial: LixoExtraordinário.net




sábado, 3 de setembro de 2011

BEM DIANTE DOS OLHOS

Perto do meu trabalho havia uma casa antiga, daquelas com hall de entrada envidraçado que dava para a rua – uma das poucas construções do tipo que conseguira sobreviver aos prédios espelhados e às franquias de estacionamento. Um casal de velhinhos passava as tardes ali, cada um em sua cadeira de balanço, fizesse chuva ou sol. Eles observavam, simplesmente. Sempre que eu cruzava o local, virava o rosto para conferir e lá estavam os dois, observando o movimento. A cena continha um lirismo particular. Agora, ao terminar a leitura do conto A janela de esquina do meu primo, ela me voltou à lembrança. Já explico por quê.

Trata-se da narrativa derradeira do alemão E. T. A. Hoffmann, publicada entre abril e maio de 1822, dois meses antes de seu falecimento, aos 46 anos, vitimado por uma doença degenerativa muito semelhante a do protagonista, que o impedia de andar e escrever.

Sem dúvida, o teor autobiográfico do texto é irrefutável. Merece destaque, entretanto, o relato que faz da vida social metropolitana daquela Berlim em plena transformação.

O personagem que dá título ao conto, escritor de certo renome, então condenado a passar os dias observando a vida acontecer através da janela de seu apartamento, tenta ensinar ao primo como enxergar a modernidade que se apresenta logo adiante, na feira livre do outro lado da rua.

O frenesi, o efêmero, o senso de civilidade, o comércio, os tipos urbanos, a burguesia em ascensão, as relações sociais e a nítida diferença entre classes – tudo isso aparece no conto de Hoffmann. Talvez o autor tenha sido o primeiro a explorar tais temas com tamanho afinco, embora a façanha ficasse mais conhecida com Edgar Allan Poe (O homem da multidão, 1840) e Charles Baudelaire (O pintor da vida moderna, 1863).

"Falta-lhe a disposição mais elementar para poder seguir os passos de seu primo digno e paralítico, ou seja, um olho! Um olho que realmente enxergue! Aquela feira do mercado não lhe oferece senão a visão de um colorido e alucinante amontoado de gente se movendo num afã insignificante. Há, há! Ao contrário de você, meu amigo, vejo desenrolar-se um cenário variado da vida burguesa e meu espírito (...) inventa um esboço após o outro, cujos contornos mostram-se com frequência impregnados de malícia." 
 
Ilustração de Daniel Bueno para edição da Cosac&Naify

Com uma luneta em mãos, o escritor paralítico consegue se aproximar da multidão que se acotovela na praça, caminhar entre as pessoas e as observar uma a uma, em detalhes. Munido de olhos atentos e muita imaginação, passa a preencher as lacunas proporcionadas por esses breves encontros, inventando premissas e desenlaces, modificando a realidade por meio da ficção, recriando o mundo como lhe parece mais conveniente.

É um artifício que permite ao autor desenvolver os mais diversos assuntos, incluindo alguns bastante proféticos. Hoffmann denuncia, por exemplo, o preconceito com estrangeiros e a repulsa que a miscigenação de culturas provoca nos mais ingênuos, que desejam manter a identidade local intacta. Antecede, portanto, em quase dois séculos os anseios da globalização e as diferentes fobias sociais que, infelizmente, ainda constatamos nas cidades de hoje.

Há também o anonimato e o conflito paradoxal de se misturar à massa sem perder a individualidade, questões-chave do modernismo europeu. Observando pela janela o mundo em transformação, os atores do conto nos introduzem uma problemática que renderia reflexões por, no mínimo, mais cem anos.

"Essa janela é meu consolo, aqui a vida alegre ressurgiu para mim e eu me sinto reconciliado com o movimento incessante que me proporciona. Venha, primo, dê uma olhada para fora!"

O apartamento ocupado por Hoffmann ficava acima da taverna Lutter & Wegner, que ele tanto frequentou

Terminada a leitura, lembrei imediatamente do casal de velhinhos lá de perto do trabalho, que ficava a observar a vida acontecendo através do vidro do alpendre. Não sei o que houve com eles. Passei um dia e não estavam lá, nem no outro, nem no seguinte. A casa acumulou poeira, a janela embaçou, as cadeiras de balanço desapareceram. Então, numa tarde como outra qualquer, um trator colocou tudo abaixo. No lugar, montaram um fast food especializado em yakisoba.

Há diversos prédios comerciais nas proximidades, o restaurante vive lotado. Eu mesmo almoço lá de vez em quando, naqueles dias de pressa em que tenho muito a escrever e prazo curto para terminar. O conto de Hoffmann me fez perceber que, mergulhado nessa realidade alucinante, fico impedido de ver – e de compreender – o que acontece ao meu redor. Na maior parte do tempo, minha vida é uma reação instintiva aos constantes estímulos externos. E só.

Lembrei do simpático casal de velhinhos que ficava a observar o frenesi cotidiano através da janela e, inspirado pelo conto recém-lido, passei a me perguntar que tipo de futuro eles enxergavam ali.

domingo, 28 de agosto de 2011

LOGO ALI, DO OUTRO LADO DA RUA

Devo ter levado uns dois ou três minutos até levantar da cadeira e ir lá olhar, na janela do escritório. Eu estava concentrado na leitura do jornal e foi a repetição daquilo que me chamou a atenção, não o barulho em si. Tem feito tanto barulho nessa cidade que aprendi a ignorá-lo. E também a tosse, cada vez pior, não me deixava prestar atenção em nada. Mas aquela pancada inicial e a subsequente chuva de vidro, a pancada e a chuva, de novo e de novo... era isso que me parecia, até eu ir lá olhar.

Tinha um trator no quarteirão de trás, demolindo uma casa antiga. Moro no alto de uma ladeira, no topo do morro, então dava para ver bem. Ele primeiro erguia a pá escavadeira, assim, meio de lado, depois corrigia a posição e descia com força no telhado da casa. Com força, veja bem, não com velocidade. Era até bastante lento, daquele jeito bronco e desengonçado dos tratores. E as telhas iam todas ao chão, um monte de telhas por vez, provocando aquele barulho de vidro.

O muro de pedras da casa tinha agora um buraco com a largura exata do trator. Ele passou por ali, derrubou o muro com um encontrão só, com as esteiras laterais, aquelas de tanque de guerra, vencendo o obstáculo facilmente. Não há como impedir o progresso, mesmo. Depois da capital e do centro, são os bairros mais afastados que começam a crescer para cima. Ninguém precisava anunciar nada; para mim, estava muito claro que iam subir um prédio ali.

Quando me aproximei da janela, ainda com o jornal na mão, a nuvem de poeira já havia tomado quase tudo. Só de ver aquilo já me veio uma nova crise de tosse, que passou logo. Apoiei no umbral. O trator espantara de vez meu sossego. Eu estava tentando ler as notícias do dia anterior com aquilo tudo acontecendo bem na minha frente, e acabei indeciso sobre o que seria mais interessante. Era uma questão de circunstância. A circunstância e tudo o que ela sugere de eterno.

Era uma casa antiga, bem posicionada no centro de um terrenão, com quintal e até umas árvores ao redor. Deveria estar ali há uns cinquenta anos, talvez sessenta. Sim, com certeza, foi uma das primeiras desse lugar, veio antes mesmo de mim. Uma casa bonita, de construção sólida, feita para durar. No mínimo dois anos de construção, tijolo por tijolo... essas coisas demoravam para ser feitas direito. E agora vinha o trator e derrubava tudo com uma facilidade assombrosa, nem aí para o passado. Com movimentos laterais, assim, o braço da escavadeira punha abaixo um pilar em seguida do outro. Paf... paf... paf... Mais e mais telhas caíam, aos montes, mais barulho de pratos se quebrando, de louça se espalhando pelo ladrilho da cozinha quando a gente, meio distraído, deixa escorregar. A mão cheia de espuma, na beira da pia, a água vertendo e os cacos correndo pelos cantos, fugindo dos olhos.

Nuvens e nuvens de pó, cada vez mais densas. Quando elas esconderam o trator inteiro pela primeira vez, dei uma olhada ao redor. Eu moro no alto, então consigo vigiar o bairro bastante bem. Aguardando do lado de fora do muro de pedra, havia uns cinco ou seis homens vestidos com uniforme laranja. Eles provavelmente iam limpar o terreno depois que a demolição fosse concluída. Por isso, de vez em quando, davam uma espiada pelo buraco que o trator deixou. Eu via também um rapaz de terno, talvez o arquiteto ou algum manda-chuva da construtora, que gesticulava enquanto falava com eles. O barulho ali devia ser insuportável.

Foi curioso. Percebi também que eu não era o único vizinho a observar a movimentação. No conjunto logo ao lado da obra, num desses prédios baixinhos, de três andares, cabeças se colocavam para fora da janela. Eu não conhecia ninguém dali, e a posição não ajudava muito, eles precisavam se esticar ao máximo e imaginar o resto. Não dava mesmo. Uns pedestres que passavam pela rua também ficaram olhando. E, por fim, havia a dona Cleide. Essa sim, na laje do sobrado localizado bem na frente da casa, tinha até se debruçado na mureta, com o cachorro se agitando ao lado. Olhos atentos e orelhas em riste. Aquele cachorro imenso e bobo, como era mesmo o nome dele? Chocolate, Bombom... sei lá, um nome de doce. Dona Cleide tinha uma visão boa dali, estava quase num camarote. Devia estar pensando no inferno que iam fazer da sua vida, por causa do barulho, da poeira e dos assovios dos pedreiros. Ela está com uma filha bem na idade, sabe como é. Em compensação, ia ter assunto durante meses.

Eu via tudo isso acontecer na janela do escritório. Mesmo assim, passada a surpresa inicial, resolvi deixar aquela história para lá. Era uma cena peculiar, verdade, porém muito repetitiva. Não gosto dessas coisas. A casa ruindo, depois sumindo de vez... Vi quando a escavadeira acertou a caixa d'água lá no alto, quebrando a casca fina de amianto como se fosse casca de ovo. Ela estava seca, nada vazou de dentro. Foi estranho. Fina, frágil, um corpo sem alma. Ficou só o esqueleto. Aquilo me incomodava. Não sei explicar por que, mas a destruição é sempre incômoda para quem já passou dos sessenta, sessenta e seis. Ainda mais assim, ao vivo e a cores. As novidades se aproximam como quem não quer nada, pedem licença e nos empurram um pouquinho mais para longe.

A tosse não me deixava em paz. Tosse seca. Depois de outra crise, daquelas de tirar o fôlego, levei o jornal de volta para a escrivaninhatrator, bem ali, no outro lado da rua, abrindo um novo buraco na terra, pondo fim a uma coisa para outra nascer no lugar. Tudo no seu devido tempo, fosse ele qual fosse.

Durou mais dez minutos, no máximo. Digamos que, num total de quinze, a casa foi inteirinha posta abaixo. Uma casa grande, de estrutura sólida, dessas feitas para durar. Quinze minutos, não mais do que isso. Foi o quanto ela resistiu.

No momento em que percebi que a demolição terminara, larguei o jornal de uma vez por todas e voltei à janela para averiguar o estrago. Cheguei a tempo de ver dona Cleide se levantar e deixar seu posto na mureta, com o cachorro correndo em círculos ao seu redor, todo contente, abanando o rabo sem entender nada. Não havia mais cabeças esticadas nas janelas do condomínio ao lado, elas devem ter desistido bem antes, dada a posição pouco privilegiada. Os pedestres também tinham retomado o rumo e os peões de laranja agora escalavam com dificuldade os montes de entulho feitos pelo trator, averiguando o entorno. Teriam que limpar tudo aquilo. Daria um trabalhão, mas uma parte permaneceria soterrada ali para sempre, tenho certeza.

Dois caminhões-caçamba encostaram na calçada, um atrás do outro. O terreno era largo o bastante para acolhê-los com tranquilidade. Um ótimo terreno, como disse.

A poeira mal havia abaixado e já dava para ver várias montanhas de entulho. O trator foi deixado no alto de uma delas, imponente, para observar a região recém-conquistada. O rapaz de terno, que eu supunha ser o arquiteto ou o dono da construtora, estava ao lado dele, com uma mão apoiada na esteira e a outra na cintura. Também observava, quieto, com um sorriso no rosto. Havia muita coisa para fazer ali, muitos planos para aquele lugar. Era impressionante! A poeira mal havia assentado, os escombros da antiga casa ainda tinham que ser recolhidos. Ia dar um trabalhão, com certeza. Ia levar tempo. Que coisa. Do alto, eu via lascas de porta, tijolos com argamassa e tinta grudados, telhas quebradas, o perfilado todo retorcido. Eu via as pedras do muro, os pilares tombados, o antigo dono chegando do trabalho, as crianças correndo no quintal, trepando nas árvores. Via a rede balançando lentamente depois do almoço do domingo, a limonada servida geladinha nas tardes abafadas de verão. Via a bola bater na parede e voltar no pé do garotinho, que cresceu e começou a namorar escondido. Eu via montanhas de entulho sob entulho, via tudo isso bastante bem. Tudo aquilo ali, na minha frente, agonizando.

O rapaz de terno, olhando mais de perto, possivelmente via mais. Tinha olhos mais vivos do que os meus, olhos que viam além. Era diferente. Ele devia enxergar, inclusive, o novo prédio começando a ser erguido.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

QUEM SOU EU, AFINAL?

Quando Rodrigo de Moraes, editor assistente do Caderno C, perguntou se eu não teria uma foto minha para estampar esta coluna, desencadeou, sem querer, uma série de pensamentos existencialistas que culminaram na batidíssima questão: quem sou eu, afinal?

Exagero? Ora, um pouco de exagero nunca é demais, e a verdade é que eu não sou muito afeito a exibir o rosto por aí, preferindo sempre me ocultar atrás do codinome Edu Almeida. Por quê? Para ser sincero, não sei. "O que sou e o que escrevo são uma coisa só. Todas as minhas ideias e todos os meus esforços, eis o que sou.", disse C. G. Jung certa vez, e eu sempre levei a sério os pensamentos daquele simpático velhinho suíço, tanto que essa sua frase consta em meu blog desde que o criei. Além do mais, acho que nunca confiei no modo como a imagem lida com o conteúdo, principalmente quando ela precisa sustentar o enorme peso de uma identidade. Não basta, percebe? A imagem reduz tudo a um instante, um ponto de vista, uma gama de cores. Não precisa nem se tratar de uma pessoa, pode ser uma paisagem mesmo, daquelas que você fotografou na sua última viagem de férias – a imagem, no máximo, sugere a sensação do lugar; jamais será o lugar propriamente dito, visto e experimentado.

Convenhamos, nosso comportamento está intimamente atrelado à visão, então é natural que a imagem fale mais alto. Veja só o grau de confiança que uma testemunha ocular recebe, no caso de um crime, por exemplo, enquanto uma testemunha olfativa viraria motivo de piada. Só que os olhos também se enganam. O mesmo vale para os nossos preconceitos. De repente, alguém não vai com a minha cara e deixa de ler a coluna só por causa da foto. Uma imagem, mil palavras, sabe como é... Acontece direto comigo. Se não gosto de um sujeito à primeira vista, ele precisará de muita lábia para me convencer do contrário, ainda mais porque acredito cegamente em meu sexto sentido.

No caso do jornal, havia também uma questão prática: que foto usar? Essa é muito antiga, naquela estou despenteado, naquela estou acompanhado, esta outra tem fundo difícil de recortar, tem sorriso torto, olho fechado... que lástima! Sem contar que eu adoro tirar fotografias e, na maioria das vezes munido de câmera, acabo não aparecendo em nenhuma. Enquanto isso, milhões de anônimos entulham seus perfis de redes sociais com todo o tipo de retrato, sem vergonha de serem felizes. É mesmo um desprendimento admirável.

Vão dizer que é frescura, mas sou publicitário, sei que o poder da imagem é comprometedor. Ele resume você a uma falsa realidade: um instante específico, um olhar perdido, um estilo de roupa, uma luz, um peso e uma altura que, como tudo na vida, estão sempre em mutação. Quer dizer, a imagem é necessariamente uma ilusão. Não se pode confiar nela.

Já fui vítima desse poder e tentei ludibriá-lo. Comecei a escrever cedo, jovem o bastante para que não me atribuíssem o devido crédito. Então, eu deixava a barba crescer, para disfarçar, vestia roupas sóbrias, tentava parecer mais velho manipulando a imagem que faziam de mim. Funcionava – ou, pelo menos, eu achava que sim. No escritório, era a mesma coisa: eu tinha subordinados com mais tempo de carreira e, na época, acreditava que hierarquia era determinada pela data de nascimento. Não revelava a idade de jeito nenhum, deixava o povo confabular. Coisas da juventude, não há como ocultá-las.

Não se trata de mania pessoal. Em regra, as pessoas não gostam de aparentar, digamos assim, o "grau de experiência". Tenho amigos e amigas lindos que se acham decrépitos só porque já passaram dos trinta. Ou dos quarenta. Ou dos cinquenta, que seja. Uma pena.

Outro dia, uma dessas amigas fez um ensaio fotográfico para guardar como recordação – ou "para a posteridade", como gosto de pensar. Teve direito a cabelo, maquiagem, figurino e photoshop. Me diverti à beça com os elogios decorrentes: "Nossa, as fotos ficaram lindas. Nem parece você!" Ela estava entusiasmadíssima, preferi não polemizar. Mas achei um paradoxo absurdo alguém ficar linda na foto justamente porque deixou de parecer consigo mesma. É assim que a história da humanidade vai sendo escrita.

Eu ri, na ocasião, e depois sofri do mesmo mal. Na falta de alternativas, resolvi improvisar um retrato novo para esta coluna e, devido ao resultado pouco animador, pedi a um amigo que fizesse leves retoques. Apagar uma espinha, corrigir olheiras, ajeitar uns fios de cabelo que saíram do lugar bem na hora do clique. Coisinhas assim, fugazes. Ele foi lá e, pelo bem da amizade, me recompôs. Portanto, se você quiser saber como sou, de verdade, direi que pareço com o cara aí do alto, só que mais real.

Meu próprio pai, que nunca foi disso, teve que renovar o RG e, quando viu a foto tirada lá, na hora H, ficou desconsolado. Aquele senhor grisalho, de óculos, era velho demais para ele. Calúnia! Cancelou o RG, fez a foto em outro lugar e voltou no dia seguinte rejuvenescido.

Isso me lembrou mais um caso, que conto agora para terminar de vez com o papo furado. Está mais para uma lenda do rock, não sei até que ponto é verdade, mas dizem que Neil Young, depois de gravar um primeiro disco muito bom e assinar contrato para outro, acabou processado pela gravadora porque, no segundo, já não se parecia mais com o Neil Young original. É mole? Sei lá quem ganhou o páreo... Como é que se comprova a própria autenticidade?

Pois bem, eu continuo mesmo acreditando no bom e velho Jung. Sou o que escrevo, muito mais do que aparento, e vou ser um novo eu a cada frase, a cada pensamento, a cada inspiração, mesmo que a foto da coluna permaneça a mesma. Se ela não agradar, peço que coloque o polegar em cima e ignore. Para saber de verdade quem eu sou, continue a me acompanhar aqui, mensalmente. Aos pouquinhos, vou revelando interesses, trocando ideias, puxando papo. Entre o ser e o nada, vamos, juntos, descobrindo nossas verdades mais profundas.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Qual a importância da literatura na vida cotidiana das pessoas?

"Esta pergunta poderia abranger a noite inteira de conversa, porque seria algo relacionado com a filosofia da arte. Para que serve a arte? A literatura, assim como a arte, é uma forma de conhecimento, de perceber o mundo e de expressar essa percepção. Nesse sentido, toda arte teria uma utilidade. Mas não acho que o critério da utilidade deva ser usado em relação à arte. Arte não deve ser vista de uma maneira tão pragmática, tão imediatista. Não se pode negar que a literatura contribui para a maturação e evolução da língua, para a expressividade dessa língua, para a utilização dessa língua, inclusive para a comunicação científica, porque as linguagens se entrelaçam. E como qualquer arte, a literatura é uma forma importante de conhecimento, de ver o mundo e de expressar o mundo através da linguagem. Acho que quem se expõe a um estímulo intelectual, emocional, artístico, está dando a si mesmo uma chance de expansão da sua sensibilidade, da sua humanidade. Se nós nos limitássemos a comer e procriar, tudo seria muito pobre."

O escritor João Ubaldo Ribeiro, num bate-papo do Paiol Literário (projeto promovido pelo jornal Rascunho em parceria com a Fundação Cultural de Curitiba, o Sesi Paraná e a Fiep). Leia a entrevista completa aqui: www.rascunho.com.br