Pesquise aqui

sábado, 23 de novembro de 2013

VOCABULÁRIO DA RESISTÊNCIA

O governo chinês vasculha a internet atrás de informações compartilhadas por seus opositores. Para evitar a censura, os ativistas empregam termos que soam de maneira similar e até mesmo inventam uma espécie de "vocabulário da resistência", revisto a todo instante dadas as descobertas que lhe tiram o efeito.

"Com frequência usam homófonos, quer dizer, palavras que soam (quase) iguais. O exemplo mais famoso disso provavelmente é o 'cavalo de lama da grama' ['grass mud horse' em inglês], que se tornou uma espécie de mascote virtual entre os blogueiros que criticam o regime. O truque está no fato de que, em chinês, 'cavalo de lama da grama' soa quase exatamente como 'foda a sua mãe' ou 'foda a sua pátria-mãe' – coisa que seria censurada não apenas com base na obscenidade. Depois, há também os 'caranguejos de rio' ['river crabs']; este é um codinome para os censores do Estado, porque a palavra soa quase exatamente igual a 'harmonioso' ou 'harmonizar' – a descrição oficial da censura. Ai Weiwei, ao saber que seu estúdio de Xangai iria ser demolido, no segundo semestre de 2010, organizou um 'banquete de caranguejo de rio'. Foi uma clara estocada nos censores, da mesma maneira que o são as charges mostrando cavalos de lama da grama (representados por alpacas) vitoriosos em batalhas contra os caranguejos de rio."1

Aqui tem alguns exemplos de como termos cotidianos se tornam subversivos:

http://chinadigitaltimes.net/space/Grass-Mud_Horse_Lexicon

1JANSER, Daniela. Ai Weiwei como blogueiro e artista de internet. In: STAHEL, Urs (curadoria). Ai Weiwei – Interlacing. São Paulo: Museu da Imagem e do Som, 2013.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

CAMADAS DE UM TRABALHO ARTÍSTICO

Tinha ido à Pinacoteca de São Paulo por ocasião de uma palestra, se me lembro bem. Havia um horário a cumprir, e eu chegara trinta minutos antes. Decidi circular. Uma espécie de túnel cruzava o Octógono de um lado até o outro. Para quem não conhece, trata-se de um átrio localizado no centro do edifício, cuja forma geométrica lhe rendeu o nome. É costume que projetos especiais o ocupem (intervenções, esculturas de grande dimensão, performances etc.), ao invés de exposições convencionais. Dessa vez, havia um túnel branco, feito de madeira. De tempos em tempos, ouvia-se um estrondo, uma espécie de baque seco e potente, refletindo-se nas paredes ao redor. Fiquei curioso. Dei a volta até encontrar a entrada. O túnel se afundava em escuridão; não podia ver nada além de cinco ou seis metros à frente. O som, ali, era bem mais impactante. A identificação dizia "Um homem entre quatro paredes, de Alexandre Estrela". Entrei.

Um homem entre quatro paredes, de Alexandre Estrela. Vista interna da instalação.

Percorri toda a extensão no escuro, com cautela, tentando não esbarrar em nada nem ninguém. Segundo o artista, o objetivo do canal era executar uma "compressão prévia do sujeito". O volume do som crescia, enquanto o intervalo entre as batidas ficava mais curto. No fim, quando os olhos se acostumaram, me encontrei numa sala toda pintada de preto, com uma gigantesca imagem projetada numa das paredes e diversas pessoas acomodadas em pé ou no chão para observá-la. Descobri um espaço livre ao lado do subwoofer (caixa de som grave) que produzia aqueles estrondos e fazia tudo ao redor vibrar. No vídeo, apenas um pedaço de pele humana – uma fotografia, com enquadramento tão invasivo que mostrava os pelos, os poros e cinco pintas dispostas de modo matemático, formando esquinas de um quadrado mais um ponto no meio, bem centralizado.

Planta baixa do projeto de instalação
A foto se movia: emergia do centro até ocupar a tela inteira, sobrepondo a si mesma repetidas vezes. A cada sobreposição, uma pancada sonora; um incômodo evidente e cada vez mais veloz. Experiência angustiante, sem dúvida; algo claustrofóbica também. O som tomava conta do corpo, fazendo-o vibrar, ainda que sem vontade, sem querer se entregar à experiência. A imagem chamava atenção para as vibrações na pele, para o reflexo daquelas sensações no restante do organismo, para o andamento do coração em descompasso com o ambiente. Um conflito se impunha, e o resultado era a instabilidade, o desequilíbrio, a subserviência do sujeito em relação ao sistema dominante. Com a aceleração da imagem e do som, a angústia crescia. Eu queria sair da sala a todo custo, ao mesmo tempo em que precisava saber como aquilo acabaria.

Quando o ritmo das pulsações se aproximou do insuportável, tudo terminou de repente. O vídeo sumiu, o subwoofer silenciou. Fiquei no escuro. Tive a sensação ser empurrado para longe de mim; também certo alívio e solidão. Permaneci mais alguns minutos sentado, incorporando a experiência. Aos poucos, as pessoas deixavam a sala, caminhando pelo túnel na direção da luz. Segui junto com elas.

Na mesma semana, falei sobre a instalação com os alunos do curso de Terapia Ocupacional, na USP. Estudávamos os tecidos constitutivos do corpo, suas relações com o mundo, as camadas da pele, a reverberação, o pulso vital, percepção e sentimento, vivências disruptivas. Era possível pensar isso tudo por intermédio da experiência estética proposta na Pinacoteca.

Túnel no Octógono da Pinacoteca do Estado de SP.
Vista externa da instalação.
Meses depois, adquiri um livreto de entrevista, em que Alexandre Estrela comenta a obra. Meu entendimento a respeito dela se ampliou de maneira considerável. Pois aquilo que eu pensava serem pintas eram, na realidade, uma tatuagem comum entre presidiários portugueses. Os cinco pontos representavam o sujeito encarcerado; um homem entre quatro paredes. A instalação fora montada pela primeira vez em exposição promovida por uma companhia de seguros, batizada de Putting fear in its place (Colocando o medo em seu devido lugar). A entrevista envereda por ilusão de ótica, hospital do câncer, geometria, carga simbólica de tatuagens e seus limites como manifestação artística, divergências culturais, sistema carcerário, repetição serial como método de trabalho, realidade e veracidade, passividade do público do cinema, técnica e tecnologia, linguagem, marca e afetação, indústria do medo, entre outros assuntos. Tudo isso vinha à tona por conta de uma criação artística, cujas camadas de significado foram sendo dissecadas, aprofundando-se na direção de um núcleo – "centro conceitual e perceptivo", que perdura independentemente da montagem realizada, nas palavras de Alexandre. Uma "base de leitura", quer dizer, uma essência que se preserva qualquer que seja a roupagem empírica a envolvendo.

Levei meses até descobrir essa dimensão do trabalho, e tenho certeza de que é possível ampliá-lo ainda mais. Vale lembrar que estamos falando de uma só instalação. Tamanha a força de certas pesquisas contemporâneas.

Curiosamente, num curso sobre arte e filosofia que se realiza agora na mesma Pinacoteca, dois senhores na plateia, em dias distintos, revelaram-se encantados com as produções artísticas atuais. Os relatos foram similares: ambos descobriram a arte contemporânea somente com a chegada da aposentadoria, estavam impressionados com o seu potencial de conhecimento, crítica e reflexão, ao mesmo tempo em que frustrados por terem sido apresentados tão recentemente. Por que ninguém falou de arte contemporânea antes? Por que não se trata disso nas escolas? Por que tão pouca divulgação e tanta leviandade da mídia?

Faço minhas as palavras dos colegas.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

THE BOOK IS ON

Alguns números para refletir:

O brasileiro lê, em média, 1 livro por ano.
O alemão lê 25.

68% dos brasileiros são analfabetos funcionais.
7% são analfabetos completos.

Se entendeu os dados acima, você faz parte dos 25% restantes da população.

Uma editora com quem trabalhei disse que jamais teve problemas com roubos de carga. Nem um sequer. Afinal, se já é difícil vender livros de maneira lícita, imagine no comércio informal ou no mercado negro.

Por experiência própria, sei que boa parte dos usuários de internet, frequentadores de redes sociais, profissionais gabaritados de empresas riquíssimas, sim, boa parte deles sequer consegue se fazer entender. Não sabe escrever e-mails, conjugar verbos, ligar uma ideia na outra.

Ao contrário de muitos românticos, eu não acredito que livros mudarão o mundo. Nem acho que livros são mais importantes do que cinema ou TV. Ou qualquer outro meio de comunicação. Existem livros de todos os gêneros, bons e ruins. Assim como existem filmes e programação de todos os níveis.

O mercado de livros tem se expandido no Brasil. Mas o que as pessoas estão lendo? E o que estão fazendo com essas leituras?

Escolas transformam o mundo, sem dúvida. Professores transformam o mundo. Dedicação transforma o mundo. Boa vontade...

Penso que uma sociedade decente se constrói com vontade política e olhar crítico. Se, no caso do Brasil, isso não vem dos livros, será que vem de outros lugares?

No meu caso, e se é preciso apostar em alguma coisa, prefiro continuar com os livros.

Façam suas escolhas.

domingo, 10 de novembro de 2013

À RUA O QUE É DA RUA!

Uma amiga compartilhou este relato no Facebook. 

O autor comenta as intervenções urbanas que testemunhou no Minhocão, na cidade de São Paulo. Para quem não conhece, trata-se de um viaduto bizarro, que transformou a rua numa espécie de submundo, fez o comércio ao redor falir, transportou os carros para as janelas dos apartamentos, dividiu o bairro entre ricos de um lado e pobres do outro, além de resultar em teto para pessoas em situação de rua.

O texto fala de intervenções urbanas, ocupações artísticas, políticas culturais, do que fazer, das maneiras de fazer, de a quem pertence a cidade, das questões éticas... É bem interessante, forte, atual. Vale uma reflexão. Ou mais.

Copiei e colei tudo na íntegra, exceto por alguns detalhes de formatação. Desconheço o autor, e acredito que a foto também tenha sido feita por ele. Se alguém souber seu nome, ficarei feliz por citá-lo.

Enfim, achei que este é um bom assunto para o momento. Cá está:




À RUA O QUE É DA RUA!!!

Nos últimos dias o espaço do Minhocão, no centro da cidade de de São Paulo, tem sido destaque na grande mídia por causa de intervenções que atualmente ocuparam visualmente as pilastras do lugar. A cobertura é sempre tendenciosa, é bom colocar o outro lado da história. Se inicialmente foi projetado para ser um local de passagem o Minhocão, foi aos poucos, e cada vez com mais intensidade, sendo ocupado por pessoas e formas de intervenção marginalizadas pela sociedade e pelo poder público, como moradores de rua, graffiteiros e pichadores. Muito tempo já passou desde que esse processo de ocupação do minhocão começou a acontecer. Muitos moradores de rua já foram enxotados de lá como bichos e voltaram, muitos graffiteiros e pichadores já foram presos ou esculachados pela polícia por pintar seus pilares e voltaram e também muitos artistas plásticos presentes nas galerias já intervieram neste espaço, mas na maioria das vezes respeitando quem já ocupava o local. Trata-se claramente de uma disputa política, entre a cidade que queremos e a cidade que o poder público tenta impor para nós.

Nas ultimas duas semanas uma boa parte das intervenções presentes nos pilares do Elevado foram substituídas por uma série de fotos gigantes de moradores da região. Para isso TODAS as intervenções presentes nestes pilares foram cobertas com tinta cinza. Coincidência, ou não, também pude reparar que os moradores de rua também não estão mais lá. No fim de semana passado estava passando pela região com a Magê e encontramos um grupo de pessoas colando as fotos e registrando o momento. Decidimos fazer alguns questionamentos para entender o que estava rolando. Estavam presentes a artista, algumas pessoas ligadas ao projeto e algumas pessoas que me pareceram pessoas contratadas para colar as fotos e pintar as pilastras de cinza. Depois de algum tempo pedimos para conversar com a artista e as coisas se esclareceram. Descobrimos que se tratava de um projeto em parceria com o SESC e com a Prefeitura, para ocupar a região, e que ela havia sido convidada para expor suas fotos no local. Perguntamos se ela sabia que aquele espaço já estava ocupado. E que esta ocupação era fruto de diversos anos de disputa entre várias pessoas e a prefeitura, tais como graffiteiros, pichadores e artistas plásticos que desejavam realizar intervenções públicas. Questionamos também se ela sabia que entre as pessoas que realizam suas intervenções nas rua de São Paulo existe uma forma de proceder em que se respeita as intervenções realizadas anteriormente nos muros, não colocando seu trabalho por cima delas, e que este proceder era fundamental para que o espaço visual da rua fosse ocupado de forma democrática, pois só assim seria possível que o trabalho de graffiteiros, pichadores e artistas plásticos mais consagrados e experientes coexistisse com os de pessoas que estão se iniciando neste mundo da intervenção urbana, sem depender de seleção prévia ou curadoria de ninguém, e muito menos dos projetos políticos da prefeitura.

A artista nos respondeu que sabia das formas de proceder da rua mas que, apesar de saber disso, o convite feito pelo SESC para fazer essa intervenção era “A SUA CHANCE”. Disse que não teve escolha, e que por causa disso tinha pedido autorização para pintar os trabalhos de 2 dos graffiteiros que ocupavam o espaço (tinha pelo menos uns 20 ou 30 graffiteiros com trabalhos nos pilares apagados). Ela nos disse também que seu trabalho era político porque questionava o uso daquele espaço e porque dava destaque para a imagem de moradores da região, principalmente moradores de rua.

Algumas reflexões sobre isso:

– Essa intervenção no Minhocão desrespeitou não só os graffiteiros, pichadores e artistas que tinham ocupado o espaço das pilastras do Minhocão, desrespeitou também todos os outros que de alguma forma lutaram por anos para ocupar este espaço. Para além disso atropelou também a história e o registro das formas de interação de uma série de outras pessoas que convivem neste espaço e que também marcam de forma ativa estas pilastras. A Prefeitura e o SESC estão dizendo que a população não tem condições de contar sua própria história, que ela só tem valor quando registrada por um terceiro, no caso a fotógrafa.

– O espaço do Minhocão sempre foi ocupado e teve vida, diferentemente do que a cobertura da mídia tenta demonstrar. Se está vida é marginalizada e incomoda os autoproclamados cidadãos de bem já é outra história. A solução do problema não está em varrer os moradores de rua para longe dos olhares dessas pessoas, muito menos em tentar cobrir de cinza as frases cores e nomes que aparecem nos muros, pois essas são vozes também fazem parte da vida urbana, e não se calarão.

– Vemos mais uma vez aqui a ideia capitalista da oportunidade individual atropelando a ação coletiva. A ideia de que esta é a minha chance e eu não tenho escolha mostra isso. SEMPRE TEMOS ESCOLHA.

– O trabalho da artista é sim político, aliás, nada contra a ideia de colar fotos gigantes de moradores da região na rua, mas tudo contra a forma como isso foi feito. Se tivesse sido feito de forma independente e respeitando as intervenções anteriores seria algo bem interessante. Mas feito de forma institucionalizada e aliada à prefeitura e sua dita política de “revitalização” do espaço a obra muda sim de característica. Para mim deixa de contestar a ordem vigente para reproduzi-la. Não sei se a artista tem dimensão de tudo isso (me pareceu que não), mas espero que ela descubra de que lado ela está sambando.

– Por ultimo, é bem interessante como a intervenção feita sobre uma das fotos teve repercussão e incomodou a grande mídia. Teve jornal que embaçou a foto na parte da frase escrita para que não se pudesse ler, teve outro que colocou uma bola vermelha em cima dela censurando-a explicitamente. E teve outros que disseram que ali não havia nada...só vandalismo e rabiscos feitos por gente sem inteligência com a intenção de estragar a obra da fotógrafa que tinha dado vida no Minhocão. Se alguns fazem jornalismo manipulador e baseado em preconceitos que os impedem de ler imagens e pesquisar a história, pelo menos recente de um lugar, e se acham inteligentes é preciso rever essa ideia de inteligência.

A RUA ESTÁ VIVA SIM! SEMPRE ESTEVE! E SEMPRE ESTARÁ!!! À RUA O QUE É DA RUA!!!

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

SOBRE LITERATURA E POLÍTICA

"Não gosto de literatura engajada. A doutrina faz parte da atividade missionária, religiosa, e um escritor deve inventar um pequeno mundo, um microcosmo com dramas e tragédias humanos, sem mensagens ideológicas ou receitas para uma vida feliz. As grandes obras falam do tempo, que é social, político, cultural. Pensar já é um ato político. O sentido da História é importante para a construção de um romance. Mas é na história particular e na trajetória de um personagem que aparecem os dramas humanos e o verdadeiro sentido da História. Numa obra de ficção, as relações de poder, os conflitos e perturbações morais estão estreitamente vinculados e devem fazer parte da subjetividade dos personagens que participam do enredo."

Milton Hatoum
Revista OCAS nº 91
Setembro/Outubro de 2013

sábado, 19 de outubro de 2013

DENTRO E FORA DA 30X BIENAL

A história oficial jamais dá conta de todos os seus personagens, ainda que reivindique para si o título de "absoluta". A mostra em cartaz no parque Ibirapuera, que reúne protagonistas das 30 edições da Bienal de SP, está sendo criticada por aqueles que ficaram de fora. Claro, é natural que alguns não participem, dados os limites da proposta. Mas qual é o critério? Quais são as questões ética envolvidas? Para a artista Maria Bonomi, a instituição se curvou ao mercado, conforme denúncia divulgada no vídeo abaixo. Alguém discorda?


Site oficial da mostra: 30 vezes Bienal

sábado, 12 de outubro de 2013

SER DE ESQUERDA

Sempre achei inconveniente a classificação de governo esquerdista ou direitista, sendo um voltado para o social e outro para o capital, conforme aprendi na escola. Comunistas e capitalistas de verdade existem apenas em filmes hollywoodianos ou livros de geopolítica. Talvez ainda em cartilhas, que ninguém segue à risca. Porque, na prática, não é bem assim; dogmas não se aplicam, maniqueísmos idem... Existem nuances. Ambas as utopias, com suas propostas extremistas, estão em desalinho com a realidade contemporânea, tampouco dão conta da sua complexidade. Ideais estáticos, rígidos, não operam em sociedades moventes, ambíguas, em transformação constante e veloz. No mundo inteiro, de modo geral, estabelecem-se governos de centro: centrados em si mesmos, nos interesses imediatos, seja o reconhecimento econômico internacional para atrair investimentos, seja uma tentativa de se livrar das ameaças para assim permanecerem no poder. Centros que em raras ocasiões se distanciam na direção da periferia social ou intelectual, e quando isso ocorre o percurso já é, desde o princípio, digno de suspeita.

 


Isso é evidente no Brasil, com nossa imensa variedade de partidos políticos que, na prática, são igualmente previsíveis: doutrinários, conservadores, patriarcais. Quer dizer, é possível diferenciar ideologias bem estruturadas, questionadoras e incompatíveis que justifiquem tantas chapas? É possível discerni-las? Veja bem, a questão não é o número, mas os motivos que levam a ele. Os partidos têm quais objetivos, quais planos de governo, quais propostas de trabalho? Ninguém sabe. Porém, existe uma infinidade de interesses pessoais postos em jogo, além de uma dança de cadeiras mais ou menos ensaiada que sustenta a mediocridade do sistema.

Por sua vez, um significado possível para o termo "esquerda" ganha força em consequência desse território esgotado estabelecido pela tal democracia como a temos hoje. Um certo tipo de pensamento e de posicionamento político em formação, que se manifesta por sua inexatidão e assim deve prosseguir. Foi ao assistir a um fragmento de entrevista com Gilles Deleuze que pude compreender melhor esse "esquerdismo", que nada tem a ver com aquele "direcionamento ao social" arrastado pela tradição. "Ser de esquerda", explica o filósofo, "é começar pela ponta e perceber que esses problemas devem ser resolvidos, pois estão mais próximos do que nossos problemas pessoais. Ser de esquerda é ser ou devir minoria".

A que ponta ele se refere? Àquela mais distante, que parece não nos dizer respeito. À fome na África, às ditaduras islâmicas, às imposições norte-americanas, às calotas polares – de lá para cá, da ponta em direção a nós; esse seria o trajeto, a estratégia de atuação. A lógica se inverte; de longe deveríamos caminhar até o nosso redor imediato e, enfim, o conhecido centro de onde costumam partir os interesses públicos.

Para Deleuze, ser de esquerda é um fenômeno da percepção. Trata-se de uma maneira de apreender o mundo, as relações sociais, as vontades políticas, as atitudes. "Ser", afinal, é um verbo de ação, não uma determinação. As pessoas só "são" sendo. Em outras palavras, o que as constitui é a sua postura diante da vida, os atos que protagonizam; não uma programação precedente.

A esquerda está condenada à oposição. O que não significa ser o tempo inteiro contra a situação vigente, porque atacar por atacar é um egocentrismo inconsequente e ingênuo. Ser oposição está relacionado com fazer prevalecer o direito à crítica, ainda que nem sempre a alternativa seja mais indicada. Revisar as instituições e, se for o caso, propor melhorias. Experimentar outros pontos de vista, procurar novos caminhos, explorar possibilidades não consideradas até então. Dar voz às minorias. Aproximar-se delas. Deixar-se afetar.

Não tem nada a ver com o governo. Nem pode. Jamais existirá governo de esquerda. Quando a esquerda toma o poder, seu oposicionismo se esfacela. Ilude-se o povo que pretende vê-la dominar, de modo que seus desejos sejam atendidos. Isso é impossível. O governo estará centrado em si, independentemente da sua origem, pois é assim que o sistema global funciona.

É um paradoxo. Porque, se o povo se une, o esquerdismo se transfere para outra causa. Trata-se de uma instância fluida. A esquerda é a minoria, a resistência, a oposição por excelência. Não pode jamais ser estática ou instituída: é uma situação momentânea, relativa, que abrange um sujeito para logo o abandonar e se dedicar a uma nova questão. Um papel social. Não deve desejar o poder, mas derrubar as maiorias que se impõem. Jamais se torna padrão, pelo contrário: posiciona-se fora dele, combate-o, provoca-o até que se desfaça. Inconformada com qualquer que seja a situação, deslocada em relação a ela, querendo sempre repensá-la, querendo sempre renová-la.

Se a situação se dedica a algo, a esquerda exigirá que se volte a outro, irá procurar esse outro onde quer que esteja, por menor que seja, porque ele existe e necessita de espaço para se expressar; ele depende da esquerda para ser ouvido. Quando se estabelece, a esquerda o mantém sob vigilância e passa a procurar outro outro, o além outro, o novo outro, a exceção. Assim, pelo movimento contrário, promove um equilíbrio imprescindível.

Quando a maioria ganhar força, a esquerda estará distante, junto da minoria. Porque "a maioria nunca é ninguém", diz Deleuze, "mas um padrão vazio em que muitas pessoas se reconhecem. (...) A minoria é todo mundo". Nelson Rodrigues completaria com sua célebre afirmação: "Toda unanimidade é burra".

Ser de esquerda é tornar-se crítico, olhar com desconfiança, resistir às forças primárias. Não com objetivo de destruir, movido por puro preciosismo. Mas para refletir, provocar rupturas, abrir fendas, incentivar melhorias e não deixar que um ser sucumba por pressões impostas, por maiorias sufocantes, pelas normas gerais confortadas no poder. Ser de esquerda é uma possibilidade de existência condizente com o agora. É estar deslocado em relação à ordem. Tanto da política partidária, administrativa, quanto das políticas que nos afetam no dia a dia, que constituímos e sustentamos. A política própria da vida em sociedade.

[transcrevi aqui a entrevista com Deleuze disponibilizada no vídeo acima: A esquerda de Deleuze]

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

ASPECTOS DA ESTRUTURAÇÃO DO SELF DE LYGIA CLARK: PERSPECTIVAS CRÍTICAS

Clique na imagem para ampliá-la
Estou superfeliz com este convite da FAAP: vou apresentar um resumo de minha pesquisa de mestrado durante o VII Seminário de Pesquisa em História da Arte. O tema: Estruturação do Self, proposição artístico-terapêutica desenvolvida pela artista Lygia Clark no Brasil entre 1978 e 1988.

O evento oferece diversas outras palestras bem legais. Para assistir, precisa se inscrever aqui: faap.br/pos

sábado, 5 de outubro de 2013

SIGNIFICADO POÉTICO

gosto
das palavras
imprevisíveis
que aguardam
na linha
debaixo

e mudam
o sentido das coisas

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

EXCESSIVAMENTE NADA

Na companhia de objetos #2, 2008, de Flávia Junqueira
Faço um monte de nada. Tenho feito um monte de nada desde... sei lá. Quer dizer, faço coisas, um monte de coisas, excessos – ler, andar, comer, espreguiçar, trabalhar, checar e-mails compulsivamente – que resultam em nada, um monte de nada. Até que, um dia qualquer, resultam em alguma – outra – coisa e me trazem a sensação de que fiz muito. A sensação do muito dura pouco. Retorno ao nada. Que me conduz ao lugar algum. Ao tempo oco. Ao reverso do mundo. Ao buraco negro. Um grande buraco no espaço que atrai tudo ao seu redor para transformar tudo em nada. Outrora. Outra hora. Mais. Para nada.

Saiba mais sobre: Flávia Junqueira.

domingo, 15 de setembro de 2013

A CONDENAÇÃO LÓGICA

"Aquilo que o condenado, em silêncio, compreende finalmente, na sua última hora, é o sentido da linguagem. Os homens, poder-se-ia dizer, vivem a sua existência de seres falantes sem entenderem o sentido da linguagem; mas para cada um deles trata-se de uma sexta hora na qual até o mais estúpido vê a razão abrir-se. Naturalmente, não se trata da compreensão de um sentido lógico, que também poderia ser lido com os olhos; trata-se de um sentido mais profundo, que não pode ser decifrado a não ser através das feridas, e que só é atribuível à linguagem enquanto punição (é por isso que o domínio da lógica é o do juízo: de fato, o juízo lógico é uma sentença, uma condenação). Compreender esse sentido e medir a culpa própria é um trabalho difícil; e só depois de concluído esse trabalho se pode dizer que foi feita justiça."

Giorgio Agamben
Ideia da Prosa

HOJE, NO TREM:

1.
– A senhora viu ou sonhou?
– Eu vi. Só não sei se eu estava dormindo ou acordada.

2.
– Você está desconectada.
– Em que sentido?

3.
– Se eles querem ou não Jesus, o problema é deles. Se eles querem ou não servir o senhor, o problema é deles.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

INVERSOS PARALELOS

Quando Mariana Teixeira me convidou para escrever o release do seu primeiro livro "solo", fiquei tão feliz quanto ensimesmado. Porque, se já é difícil escrever sobre o trabalho de outra pessoa, fica pior ainda quando se trata de uma amiga. Só que o livro é bom, muito bom, a começar pelo título. Repleto de poesia em todos os sentidos. Eu fui escrevendo, escrevendo, até que tinha em mãos um texto mais extenso do que o necessário. Acabei por fazer uma versão resumida, que foi utilizada na divulgação oficial. E resolvi postar aqui a versão completa, assim você pode ter uma ideia da literatura que aquelas páginas têm a oferecer.


Inversos Paralelos. O mundo às avessas. Todos os mundos; os mundos de cada um. Correndo lado a lado, ignorando-se mutuamente num universo particular – um pacto silencioso –, até que se cruzam, impactam, embatem, empatam. Caem na real.

Clique na imagem para ampliá-la.
Sem grandes utopias, o primeiro livro de Mariana Teixeira não romantiza o mundo, apenas o deseja menos estúpido, mais gentil, menos racional, mais acolhedor, menos partilhado, mais compartilhado; mais e/ou menos humano.

São versos cotidianos, feitos de pão na chapa, falta de tempo, (des)encontros, lembranças, sofás, andanças, paisagens urbanas, lágrimas, sinas e signos, resistências, rimas, tv, manchetes de jornal, coisas. Da vida. Quebra-cabeça rejuntado por certo incômodo errante, porém preciso e necessário, de quem observa sem saber direito o que está errado; suspeita de quem percebe, no vai e vem, as pecinhas fora do lugar. De quem não se deixa ludibriar pela amortização permissiva do dia a dia: o "deixa pra lá" que consente. Andar oscilante, insatisfeito, de quem enfrenta a realidade com as armas que tem à mão: uma lata de cerveja, um rinosoro, um celular tijolinho pré-pago, um arrepio de amor – talvez de frio –, cartão de crédito, café com leite para dar coragem. Condições do ser e do não ser. Questão delicada.

Em versos e prosas, a autora evoca cenas entrevistas nas ruas, onde procura a poesia das esquinas, a literatura dos botecos, as rimas sugestivas perdidas na primeira ou na segunda gaveta do criado-mudo, entre calmantes para dormir, estimulantes para trabalhar e um livro do Machado para fazer alguma coisa valer a pena, afinal.

Dores de cabeça de quem não sossega e pega o problema para si. Um tapa na cara, algumas sabedorias populares, afetos e desafetos, apontamentos e desapontamentos; risos e esperanças também, por que não? Todos os – muitos – lados da moeda. Tudo o que se vive num único dia, se tiver sorte, se estiver disposto a botar os pezinhos descalços na realidade dura. Sonhos e jovialidades entremeados pela vontade decidida de colocar os pingos nos is (somente pontos, sem coraçõezinhos). Vontade de consertar "o que não tem conserto; nem com fé nem com jeito; nem com pé nem com peito".

Cutucões, despropósitos, obsessões, politicagens, instantes fotográficos nem sempre fotogênicos, sarcasmos, diferenças, realidades surreais, relativismos. Porque, veja bem... A natureza tenta sobreviver no mundo dos homens, enquanto os homens falecem em sua própria natureza, sozinhos. Os paralelos se invertem.

O que Mariana Teixeira quer contar "vai além do conto. Vai além dos dias, das noites. Do sapato molhado e dos espirros vazios. Dos passeios sozinha pelo centro. Da companhia do gato preto".

Há quem cruze com um gato desses e faça o sinal da cruz. Por sua vez, Mariana Teixeira agarra o gato, abraça, faz dele um filho. Cruzes!

Ela agarra o que há de promissor no cotidiano, intimidado pelos (des)prazeres que correm soltos por aí, sufocado por eles. Assim, desmistifica atitudes e pensamentos mundanos que só têm a prejudicar a vida. Sua e a do gato. Nossa também.

Lançamento:
2 de outubro, das 18h30 às 21h30, na Livraria da Vila.
Rua Fradique Coutinho, 915 – Vila Madalena – São Paulo/SP.

Conheça também o blog da autora: Correndo com os Dedos

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

AFETIVAR

outrar-se:
     fazer-se outro
     sempre num
     devir-a-ser.

trocar-se:
     realizar trocas
     entre
     o dentro e o fora
     sem saber direito
     qual é qual.

encontrar-se:
     poroso, permeável
     disposto
     ao atravessamento;
     engendrar a potência
     de si.

criar-se:
     a todo instante
     de novo
     e novo;
          conforme
     disforme
          enorme.

conscientizar-se:
     pelo corpo
     – em fluxos –
     por causa dele.
          fazer efeito
          pelo afeto:
          afetivar.

expandir-se:
     na direção do mundo
     inteiro
     aberto
     a implicações
     na direção contrária.

transbordar-se:
     num im-pulso.

diferenciar-se:
     sempre
     em formação.

sábado, 7 de setembro de 2013

CORPOS CONTEMPORÂNEOS: ANOTAÇÕES DE AULA


Quem estava ali era um corpo cansado. Tinha acordado mais cedo do que o costume, engolira qualquer coisa no café por receio de se atrasar. Enfrentara uma hora e quinze minutos de trânsito. Respondera e-mails no escritório e preparara a tarefa dos assistentes. Dirigira mais uma vez, agora até a universidade. Combinara rapidamente o programa do dia com a docente responsável. Às 10h30, a aula se iniciava, e foi assim que me apresentei à turma de Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina da USP, com a qual tenho colaborado neste semestre. Um corpo cansado, agitado, ansioso com o trabalho que iniciava, curioso para conhecer os alunos, cheio de atribuições mas com vontade de assumir outras, de participar de tudo, do possível e do impossível, por mais insano que seja.

Um a um, fomos descrevendo nosso "estado de alma", fazendo-nos conhecer e aproveitando para pensar sobre a carga depositada naquele misto indissociável de corpo e mente. Sentimentos, razões, dores musculares, sono, tensão, frio, curiosidade, timidez, empolgação, estresse, apreensão, expectativas, preguiça, cansaço. Sempre o cansaço, presente na fala de todos.

Não é de surpreender. Somos demandados e superativados no contemporâneo por um sistema de produção que remonta a Revolução Industrial, no século XVIII, e que hoje em dia opera de maneira peculiar. Estamos sempre apressados, buscando o além dos limites, exauridos por excesso de informação, horas extras, trajetos longínquos, atuação nos mundos reais e virtuais, conexões várias que transformam as noções de privacidade e põem a nu as experiências mais íntimas, expondo-as, quase sempre as banalizando. Homens de execução, não de reflexão.

Isso desemboca na ansiedade, que cada um vive à sua maneira e em seu grau, e que se resume no ato de colocar-se à frente de onde deveria estar – ou seja, de antecipar questões futuras para vivê-las no presente, quando nada pode ser feito para resolvê-las.

Estávamos todos cansados antes mesmo de iniciar os estudos. O contemporâneo já se manifestava em nossos corpos sem que nós o percebêssemos. Uma das propostas da disciplina de Práticas Corporais é, por isso mesmo, tomar consciência desses sentimentos e preparar os terapeutas para acolher, cuidar e transformar outros sujeitos afetados pelas pressões da vida.


Ora, onde está a sensibilidade nos dias de hoje? Para Giorgio Agamben, "uma estranha pobreza de descrições fenomenológicas contrasta com a abundância de análises conceptuais do nosso tempo. É um fato curioso que seja ainda um punhado de obras filosóficas e literárias escritas entre 1915 e 1930 a constituir a chave da sensibilidade da época; que a última descrição convincente do nosso estado de alma e dos nossos sentimentos remonte, em suma, a mais de 50 anos".

Este trecho foi publicado originalmente em 1985 e permanece atual. O contemporâneo, vivido como um sistema em processo, portanto sem forma definitiva, acaba por impossibilitar a apreensão exata dos novos tempos.

Nas pesquisas de Terapia Ocupacional, percebo alguns caminhos para esse estado de alma, que pela sensibilização do corpo levam a camadas profundas da existência. Por isso, escreve Flávia Liberman, "faz-se necessário um olhar que investigue o visível e o invisível, o perceptível e aquilo que ainda não despontou como expressão, ou seja, o corpo como um atravessamento de histórias, intensidades, afetos, formas que se desmancham e se configuram permanentemente, sempre no devir".

Sensibilizar é uma estratégia de descoberta e conscientização sobre nossas atitudes, sobre os papéis que exercemos no dia a dia e que, de certo modo, confluem para as realidades compartilhadas. "Pensar, viver e refletir sobre como as pessoas se relacionam e expressam, através de seus corpos, os encontros com outros corpos, com outros mundos", diz a terapeuta.

Nesse sentido, arte e clínica estão mais próximos do que se imagina, e ambos se agenciam no âmbito da vida comum. Porque se trata de criar corpos para o enfrentamento, para os embates cotidianos, para superar ou contornar os excessos, a ansiedade, o cansaço, o esgotamento etc. Um trabalho da Estética, localizado na fronteira entre o sentimento e o pensamento. Corpos atuando numa realidade de estrutura ficcional, inventados para certos desafios e reinventados a cada nova demanda. Que se apresentam como dispositivos – quer dizer, dispostos em relação com o outro, abertos ao entorno, à disposição das implicações contemporâneas. Postos no mundo ao mesmo tempo em que constituem o próprio mundo.


*As imagens acima foram emprestadas da tese de doutorado de Flávia Liberman, à qual você tem acesso aqui: Delicadas Coreografias: Instantâneos de uma Terapia Ocupacional

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

PAI

Passei a infância
ouvindo
"Meu filho estude
mas estude muito
para não ter que trabalhar
aos sábados".

Tanto estudei
– até pós fiz –
que hoje trabalho
diariamente
aos sábados e domingos
e feriados inclusive.

Quer saber?
A meu filho direi
"Se quiser ser alguém
na vida trabalhe
mas trabalhe muito".

Porque se decidir estudar
jamais compreenderá
exatamente
quem no duro
você é.

sábado, 17 de agosto de 2013

Com-Tempo 
     [percebe?]

Contém
Contrai
Compõe
Convive
Compensa
Confabula
Conversa
Confirma
Confunde


Sem-Tempo
     [sente?]

Entende
Ente
Mente
Rente
Fluente
Atente
Enfrente

Sem saber
Exatamente

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

PINTURAS, PENSAMENTOS

Folhas e flores se espalhavam pela superfície inteira. Era uma cerejeira enorme, rica em detalhes, fiquei bastante tempo observando-a. Um trabalho de nanquim e cores sobre papel, disposto na Pinacoteca do Estado de São Paulo na exposição intitulada Seis Séculos de Pintura Chinesa. De perto, era possível observar os traços do lápis, depois preenchidos com pigmentos coloridos. Um projeto que exigiu semanas, talvez meses, para ser executado. Um bom exemplo da dita sabedoria – e paciência – oriental. Estava claro que, desde o início, o artista tinha consciência do que desejava pintar. É possível que tenha copiado, por observação, alguma planta de seu jardim. Seja como for, ele sabia o que fazer. Dedicou-se, colocou seu talento à prova e obteve, ao fim, uma imagem aproximada daquela suposta a princípio. A obra estava pronta. Um ou dois séculos depois, pendurada na parede do museu, contava sua história para mim.

Chamou-me a atenção porque, naqueles dias, eu estava trabalhando nos textos da mostra Dissolução, de Felipe Góes, inaugurada há pouco no Centro Municipal de Educação Adamastor, em Guarulhos/SP. Para a ocasião, optamos por tratar, justamente, do seu processo criativo, que é bem diverso do observado no retrato da cerejeira. Porque Felipe não parte de uma ideia pré-concebida que deseja traduzir em pintura. Quer dizer, quando se coloca diante da tela em branco, ele não sabe o que vai pintar. Seu pensamento se manifesta por meio do gesto, faz-se e se desfaz a todo instante entre as pinceladas. Sua interioridade se materializa – anseios, arrependimentos, ilusões, satisfações, desapontamentos, alegrias etc. ganham forma com a tinta, ficam implicados na matéria pictórica.

A tela acumula um complexo registro de intenções, das quais temos apenas uma leve suspeita. Indícios das linhas de força, das manchas de expressão e das camadas de sentimento que passam a habitá-la durante o trabalho. Camadas que se sobrepõem e se escondem dos nossos olhos, embora continuem presentes. Horizontes que não conseguimos apreender, ao menos não com exatidão; eles se estendem por trás dos morros, para além dos mares e dos acúmulos de cor... ao infinito. Sempre um novo horizonte após o outro.

Quando uma pintura dessas está terminada? Ao contrário do que vimos com o artista chinês, que podia dar seu projeto por cumprido assim que tivesse diante de si a imagem da planta conforme a previra, a pintura de Felipe Góes é um fluxo de pensamento. A cada instante é uma nova criação. Portanto, aquela forma "final" que se apresenta a nós é, dos embates vividos, somente uma etapa que o artista decidiu preservar.

Pintura 147, de Felipe Góes

No vernissage, alguns amigos observaram que os trabalhos não são assinados. Fiquei pensando se não seria mais uma sugestão do seu suposto "inacabamento".

Não sei. Por ora, só posso dizer que, enquanto selecionava as telas para a exposição, vi a fotografia de uma que evidenciava muito bem o conceito de "pensamento em processo" que queríamos desenvolver. Ela mostrava uma cerca de madeira separando o primeiro plano de uma imensa paisagem difusa, como se um forte nevoeiro impedisse as figuras de se revelarem. Eu quis exibi-la na mesma hora. Até Felipe contar, com certa frustração, que a pintura já não existia, ao menos não daquela forma – após a foto, ele continuou a trabalhar e acabou por "estragá-la".

Foi nesse momento que o título Dissolução me pareceu perfeito para a mostra. Pois, na concepção de um pensamento, muitos outros se fragmentam, diluem, deixam de existir – estão sempre sujeitos a transfigurações positivas ou negativas. Toda verdade é frágil.

Quem se coloca diante da cerejeira chinesa, na Pinacoteca, pode admirar o apuro técnico do artista, deixar-se sensibilizar por sua delicadeza e ler a história acumulada ao longo dos séculos. Por outro lado, quem se coloca diante de uma tela de Felipe Góes é convidado, a partir dela, a criar suas próprias imagens, a inventar histórias e a dar continuidade àquele pensamento em constante devir.

Nesta nossa época automatizante, em que passamos o dia inteiro executando trabalhos sem tempo excedente para refletir, em que esgotamos todas as energias numa produção quase sempre burocrática, é bom saber que a pintura contemporânea dá margem ao pensamento. Mais do que relaxar diante das belezas naturais ou artísticas, vale a pena ser provocado, arrancado da zona de conforto e instigado a recriar o mundo da maneira como acreditamos que ele deve ser.


Saiba mais sobre a mostra Dissolução aqui.

domingo, 11 de agosto de 2013

FOI VOCÊ? ENTÃO QUEM FOI?

Inserções em Circuitos Ideológicos: Quem Matou Herzog? (1970), de Cildo Meireles

Algumas obras de arte permanecem atuais durante longos períodos. Outras retornam do esquecimento com uma força assombrosa, talvez porque se conectam com alguma inquietação do momento.

Conforme disse Marcel Duchamp numa palestra de 1957, "[o artista] terá que esperar pelo veredito do público para que a sua declaração assuma um valor social e para que, finalmente, a posteridade o inclua entre as figuras primordiais da História da Arte" (em O ato criador).

Ainda que não seja sua intenção, Giorgio Agamben completa muito bem essa ideia quando afirma que "é da nossa capacidade (...) ser contemporâneo não apenas do nosso século e do 'agora', mas também das suas figuras nos textos e nos documentos do passado" (em O que é o contemporâneo?, 2008).

Afinal, não se trata de cronologia, mas de uma maneira de perceber e tocar a vida - o contemporâneo, portanto, é da ordem do discurso.

O que há de contemporâneo nas Inserções em Circuitos Ideológicos, de Cildo Meireles? Em outras palavras, que questões aquelas propostas continuam a provocar? O que ainda há de relevante nelas em relação aos acontecimentos de agora?

Para mim, poderíamos substituir "Herzog" por "Amarildo" ou "Marcelo Pesseghini", entre tantos outros nomes, a maior parte deles desconhecidos do grande público. E a pergunta continuaria a soar e ressoar.

Até quando?

Você encontra mais informações sobre Cildo Meireles no site do Itaú Cultural.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

O FIM DA REVISTA BRAVO!

Cheguei em casa ontem e encontrei uma carta dizendo que a revista BRAVO! será extinta a partir de setembro deste ano. Era a confirmação de diversos boatos que li aqui e ali. Achei uma pena. Não que a BRAVO! fosse imprescindível, mas porque era uma das poucas revistas de grande circulação que lidavam com o tema das artes e da cultura em geral.

Um tempo atrás, o editor revelou que eles estavam vendendo mais de 30 mil revistas por mês, salvo engano, e que isso os deixava muito satisfeitos. Chegaram até a baixar o preço de capa, lapso que logo foi corrigido. Não se faz uma barbaridade dessas no sistema capitalista, especialmente quando não há concorrência apertando o cerco.

Fiquei desapontado porque o número de leitores não interessa mais à editora Abril, e porque o motivo da extinção sequer considera a relevância do assunto nesse Brasil tão carente e tão mambembe.


Fiquei desapontado com a falta de consciência cultural da nova diretoria da Abril, embora tal ignorância não me espante. Afinal, não basta alimentar os leitores com futilidades facilmente digestíveis. Para continuar a ter leitores no longo prazo é necessário formá-los. Parece que a editora se abstém dessa função e prefere focar os investimentos nos títulos que vendem mais. São conselhos da consultoria contratada. Consultoria que talvez entenda de negócios, mas que passa longe de outras questões mais profundas e menos imediatistas.

Aliás, investimento não, trata-se de mera aplicação. Porque investimento pressupõe estruturação, enquanto que a única questão visada agora é o lucro.

Será que, mesmo com retorno financeiro abaixo do esperado, não valia a pena manter no portfólio uma revista sobre cultura? Ou, ainda: dinheiro é tudo, mesmo numa empresa tão antiga e sólida como a Abril?

Não sei dizer. Isso tampouco cabe a mim. Só me parece que responsabilidade social vai muito além de reciclar papel e contratar pessoas com deficiência física, entre outras dessas coisas que as empresas fazem porque são obrigadas ou porque querem parecer "mocinhas" ao invés de bandidas.

Abandona-se a BRAVO!; deixa-se de abordar em larga escala – por ora – determinados assuntos que continuarão a existir por si mesmos, manifestados no povo e no mundo.

A carta era muito clara: a editora abre mão de uma revista que tratava a cultura de maneira mais abrangente para privilegiar um portfólio enxuto e comercializável.

Naquela tentativa de introduzir a arte entre leitores não necessariamente interessados nela, a BRAVO! parecia querer diminuir a distância sócio-cultural que tanto aflige o Brasil. Parecia resistir à distância, mesmo com todos os empecilhos implicados no processo. Eu admirava isso. Gostava de ler cada edição de cabo a rabo, tanto que a assinava.

A carta também dizia que a revista não era mais necessária, pois conteúdo similar já se encontra disponível em outros títulos da editora. Não faço ideia de quais sejam esses títulos. Nem acho que qualquer outra revista remanescente substitui a BRAVO! Os assuntos tratados por ela ficam órfãos, ao menos dentro da Abril.

No meu ponto de vista, o mercado editorial agora possui ótimas publicações especializadas de um lado – o jornal Rascunho, por exemplo – e terríveis publicações banalizadas do outro. No meio, restou um vazio imenso (do qual nem mesmo a BRAVO! dava conta, embora fosse uma opção, sem dúvida). Espero que logo surjam novas publicações para ajudar a preenchê-lo.

Por fim, uma resposta direta para Fernando Costa, diretor de assinaturas da Abril: agradeço a oferta de meia dúzia de edições de VEJA em troca das revistas BRAVO! que eu já havia pagado e que não irei receber em casa. Agradeço a oferta, mas não a aceito. Já me basta de más notícias numa carta tão breve.