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quinta-feira, 22 de outubro de 2015

O MÉTODO DESVIANTE

Algumas teses impertinentes sobre o que não fazer num curso de filosofia

Texto de Jeanne Marie Gagnebin, professora de filosofia na PUC/SP e de teoria literária na Unicamp.

Como uma boa e velha professora de filosofia, prefiro cercear o assunto, amplo demais, por caminhos negativos, desvios e atalhos que não parecem levar a lugar algum. Digo “professora de filosofia”, porque meu território de atuação é, primeiramente, a sala de aula e a dinâmica com os estudantes, com todas as vantagens e todas as restrições que o ensino universitário no Brasil traz consigo. E digo também uma “velha” professora de filosofia porque posso me permitir, hoje, nesse momento de minha carreira acadêmica, algumas provocações que não vão (pelo menos, assim o espero!) colocar em questão nem meu contrato nem meu emprego. Imagino que os jovens colegas, com ou sem vaga ainda, não ousariam pensar de tal maneira, pelo menos explicitamente, porque têm que assegurar primeiro seu lugar no sol. Ofereço a eles um pequeno descanso na sombra.

Primeira regra para o reto ensino, em particular, o reto ensino da filosofia: não temer os desvios, não temer a errância. Os programas e “cronogramas” somente servem de esboços utópicos do percurso de uma problemática. Não esquecer que o tempo é múltiplo: não é somente “chronos” (uma concepção linear que induz falsamente a uma aparência de causalidade), mas é também “aiôn” (esse tempo ligado ao eterno, que, confesso, ainda não consegui entender...) e, sobretudo, “kairos”, tempo oportuno, da ocasião que se pega ou se deixa, do não previsto e do decisivo. Quando algo acontece na aula, quando algo pode ser, subitamente, uma verdadeira questão (para todos: estudantes e professor, não só para este último), aí vale a pena demorar, parar, dar um tempo, descrever o impasse e, talvez, perceber que algo está começando a ser vislumbrado, algo que ainda não tinha sido pensado (não por ninguém na tradição filosófica inteira, isso é abstrato, mas por ninguém dos participantes concretos agora e aqui na aula), algo novo e, portanto, que não sabemos ainda como nomear.

Segunda regra para o reto ensino, já cheio de desvios: não ter medo de “perder tempo”, não querer ganhar tempo, mas reaprender a paciência. Essa atitude é naturalmente muito diferente, imagino, num ensino dito técnico, no qual os estudantes devem aprender várias técnicas, justamente, vários “conteúdos”, ensino essencial para o bom funcionamento de várias profissões. Mas, no ensino da filosofia (e talvez de mais disciplinas se ousarmos pensar melhor), paciência e lentidão são virtudes do pensar e, igualmente, táticas modestas, mas efetivas, de resistência à pressa produtivista do sistema capitalista-mercantil-concorrencial etc. etc. (esqueci de dizer que a velha professora tinha 20 anos em 1968). Lyotard disse isso lindamente: “Si l’un des principaux critères de la réalité et du réalisme est de gagner du temps, ce qui est, me semble-t-il, le cas aujourd’hui, alors le cours de philosophie n’est pas conforme à la réalité d’aujourd’hui. Nos difficultés de professeurs de philosophie tiennent essentiellement à l’exigence de la patience. Qu’on doive supporter de ne pas progresser (de façon calculable, apparente), de ne faire que commencer toujours, cela est contraire aux valeurs ambiantes de prospective, de développement, de ciblage, de performance, de vitesse, de contrat, d’exécution, de jouissance”(1) (« Le Postmoderne Expliqué aux Enfants », Galilée, 1986, Paris, pp. 158/159).

Terceira regra desviante: não querer ser “atual”, estar na moda, up to date, mas assumir o anacronismo produtivo, uma não-conformidade ao tempo (Unzeitgemässheit, dizia Nietzsche), não correr atrás das novidades (mercadorias intelectuais ou não), mas perceber o surgimento do devir no passado antigo ou no presente balbuciante, hesitante, ainda indefinido e indefinível. Deixar que essa hesitação possa desabrochar. Não procurar por normas e imperativos, mesmo na desorientação angustiante, mas conseguir dizer, de maneira diferenciada, as dúvidas. (Caro leitor, você já percebeu a quantos imperativos somos submetidos, somente andando 10 km na cidade ou lendo uma revista? O tempo do imperativo é o da propaganda).

Resistir, portanto à tentação do professor e do “intelectual” em geral de ter de encontrar uma saída, uma solução, uma lei, uma verdade, um programa de partido ou não. Agüentar a angústia. Adorno dizia que essa dimensão era uma dimensão de resistência não só ao sistema dominante do mundo administrado, mas também aos sonhos de dominação do pensamento. Não querer colocar uma ordem necessária onde há primeiro, desordem, não confundir “taxinomia”, arranjo em várias gavetas com pensamento -pois pensar é, antes de mais nada, duvidar, criar caminhos, perder-se na floresta e procurar por outro caminho, talvez inventar um atalho.

Quarta regra de método desviante (“Método é desvio”, dizia um velho mestre quase chinês, Walter Benjamin): não se levar tão a sério assim, só porque estudou latim e grego ou fez doutorado na Alemanha ou consegue entender Heidegger. Mais radicalmente: não levar demais a sério as “opiniões” pessoais, em particular as suas. São, no melhor dos casos, somente a ocasião de ir além delas, do reino dito encantado das “idéias” e “crenças” subjetivas. Não cair na ilusão liberal de que a liberdade se esconde nas escolhas individuais, arbitrárias e/ou manipuladas. Se há algo que a reflexão filosófica pode realmente ajudar a pensar é a necessidade de ultrapassar, de ir além -isto é de “transcender”- os pequenos narcisismos individuais para vislumbrar “o vasto oceano da Beleza” (dizia o velho Platão), o Reino do Espírito, dizia outro velho senhor idealista, hoje talvez digamos o “enigma do Real” ou, então, as linhas de fuga e os acontecimentos.

Essa dimensão “objetiva” (não em oposição ao “sujeito”, mas levando em questão a materialidade e a historicidade das “coisas” que nos resistem e nos atraem) do pensamento justifica a exigência, imprescindível, da diferenciação conceitual, isto é, do esforço e da ascese (askesis, ou exercício, em grego) conceituais: não se trata de malabarismos intelectuais complicados, mas de tentativas sempre reiteradas de compreender o “real” sem violentá-lo. Esse esforço, essa “paciência do conceito”, vai, de novo, contra a pressa reinante, e também contra os “achismos” tão prezados na imprensa e na televisão, nos meios ditos de “comunicação”. Também resiste à ilusão de que o debate de idéias, como se diz, seja um enfrentamento de dois ou mais oradores brilhantes (ou não) que tentam, cada um, fazer prevalecer sua opinião sobre a opinião do outro.

A ascese conceitual também implica o aprendizado de um certo despojamento da vontade individual e concorrencial de auto-produção perpétua em detrimento dos outros. Não se trata de ser melhor que os outros, mas de estar atento às possibilidades de transformação da realidade, portanto, de não passar ao lado dela, de compreendê-la melhor, na sua possível mutabilidade. Isso implica, aliás, que, muitas vezes, não sei, não posso dizer nada que ajude, portanto também ouso calar-me, não cedo à tentação de falar sobre tudo e qualquer coisa.

Conclusão: não se dobrar aos imperativos mercantis-intelectuais da “produção” de “papers” e da contagem de pontos nos inúmeros “curricula” e relatórios administrativos-acadêmicos: se tiver que contar “pontos”, conte para que lhe deixem em paz, mas não confunda isso com trabalho intelectual ou mesmo espiritual. Já que temos o privilégio de lecionar filosofia, isto é, uma coisa de cuja utilidade sempre se duvidou, vamos aproveitar esse grande privilégio (de classe, de profissão, de tempo livre) e solapar alguns imperativos ditos categóricos e racionais: contra a pressa, a produtividade, a concorrência, a previsibilidade, a especialização custe o que custar, as certezas e as imposições. Podemos exercer, treinar, mesmo numa sala de aula, sim, pequenas táticas de solapamento, exercícios de invenção séria e alegre, exercícios de paciência, de lentidão, de gratuidade, de atenção, de angústia assumida, de dúvida, enfim, exercícios de solidariedade e de resistência.

Publicado originalmente na revista Trópico em 3 de dezembro de 2006.

(1) “Se um dos principais critérios da realidade e do realismo é ganhar tempo, o que é, me parece, o caso hoje em dia, então o curso de filosofia não se ajusta à realidade de hoje. Nossa dificuldade de professores de filosofia concerne essencialmente à exigência de ser paciente. Que se deva suportar não progredir (de maneira calculável, aparente), ter que começar sempre, isso é contrário aos valores dominantes de prospectiva, de desenvolvimento, de alvo, de performance, de velocidade, de contrato, de execução, de gozo.” (tradução da Redação)

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

INUNDAÇÃO

Jovem triste num trem (1911), Marcel Duchamp
arrastado
o menininho
agarrado pela mão
no último instante, o derradeiro
frágil braço lançado entre
forças e fluxos
a mãe, lutando
contra o turbilhão
de gente

Passa gente de todo lugar. Venham, gentes. Vão, gentes. A casa é de vocês, fiquem à vontade. Indivíduos, sujeitos, gêneros, pessoas de toda cara e idade, de todos jeitos e suspeitos. Só de passagem. Afagam o celular com esse carinho próprio de nossos dias, esse amor maquinal, cheio de jogos e aplicativos. Leem um livro e eu estico olhos curiosos para saber qual é. Muitas vezes me surpreendo. Ulysses, você!, aqui?, no metrô?! Moby Dick? David Copperfield!, que saudade, rapaz, apareça quando quiser. Atenção, senhores passageiros, a companhia alerta para risco de tijolada iminente. São as iminências da poética, a Bienal deu a dica uns anos atrás.

Observo e as pessoas não param, os retratos ficam borrados, desfigurados, futuristas. Um movimento incessante, pêndulo de Foucault, para lá e para cá, para aqui e acolá. Narrativas enviesadas que só acontecem nos cruzamentos, transculturalmente, sem começo, meio e fim. Apenas errância e acertância. Uma estação de baldeação, um desvio no caminho. Um ponto de fuga? Que nada! Não tem por onde, não há escapatória. Há somente saída. Muitas saídas. Todas dão no mesmo lugar. O nível das ruas, a superfície plana da humanidade, mil platôs.

Saia não, fique um tanto mais. Para que essa correria? Vamos operar com velocidade reduzida e maior tempo de parada. Problema? Nenhum. Precisa ter? Precisa não. É uma experiência, vamos provar ritmo diferente, deixar para outro dia o arroz com feijão, e mais outro, e mais outro. Desse prato eu já comi demais, deu moleza. Venha provar do coletivo, essa iguaria popular, cultura local que gringo deseja com água na boca.

Veja lá quem vem na nossa direção. Conhece? Vejo todo dia mas não conheço não. Devemos ter coisas em comum, porém compartilhamos somente o caminho. Caminhamos juntos e separados, lentos e apressados, cada um na sua mas com alguma coisa em comum. Free, distraídos. A distração é por segurança. Tá olhando o quê? Nunca viu? Olha, não se ache demais, especial aqui só o assento mesmo, aqueles de cor diferente em que todo mundo planeja descansar o traseiro, ainda que poucos detenham o privilégio. Lição de democracia. Aprende aí e não reclama. Eu chamo o segurança, tá pensando o quê?

As filas andam, às vezes se trançam, dá a maior confusão. Acelera, freia, acerta o passo, acerta o calo, recolhe o pé, deixa passar quem tá com pressa, eu tô, eu também, sai pra lá, folgado!, tira esse cotovelo daqui, empurra não, bota essa mochila pra frente, diminui a música que eu não gosto dessa pouca vergonha. Tem quem se ache no direito, mas aqui ninguém é mais direito nem mais esquerdo, sem exceção, estamos juntos no mesmo barco. No mesmo trem, se você me entende. Quando um desequilibra, um monte vai pro chão. Que não é chão, se você me entende. É assoalho. Coisa fina.

Não entende, não faz mal. A vida é assim. Claro, você não vê? Essas estações são a síntese da convivência social, bicho. Tem conflito de classes, propaganda, exploração de desabastados, indiferença. Eu disse desabastadados, com A! Abestado tá no Congresso. Aqui tem gente vendendo bala, chiclete, chocolate invalível, doçura de origem duvidosa, papelzinho xerocado. Ajuda, por favor, eu podia estar roubando, eu podia estar matando, eu podia estar transferindo a sua ligação, mas eu estou é ganhando a vida, com licença, com licença, questão de sobrevivença.

Ai, madame, bobeia com esse celular novinho não, custa o olho da cara, com um desses eu teria até onde morar por seis meses, se não chover. Olha ali, o sujeito lendo em voz alta, pregando como se todo mundo se interessasse. Essa história eu já sei como acaba! O final parece feliz mas não é. Não importa o céu se o inferno ainda existe, isso não é salvação, é só a enganação nossa de todo dia. Nos dai hoje um pouquinho de paz, por favor!, pare de martelar nossas cabeças, anda, deixe cada um com seu próprio livro ou jornal, cada um que acredite na verdade que quiser.

Bom mesmo é encarar as diferenças com indiferenciação, olha que palavrona bonita! Já basta de gente controlando a minha liberdade. Vou pitacar na vida alheia? Tenho mais o que fazer!

Ai, se tem coisa que me incomoda é ficar parado no túnel. Perda de tempo... Algum objeto na linha, só pode ser. Um braço, uma perna, indigente. Passa por cima que eu tô com pressa! Passa por cima do respeito! Digo, do sujeito! Infeliz. Tá com pressa vai de táxi, vai pra Cuba, vai no jatinho do Neymar, vai na Ferrari do Neymar! E para onde vai com essa urgência toda? Vou pagar os meus impostos, sou um cidadão de bem, gente de família! Ah, taí ostentando ignorança, truculença, verborragia!? Só pra chegar primeiro? Gente sem coração...

Aperta não que a malmita abre, não é gurmê. Crise? Conheço não. Dólar? Aquele do 44b? Corrupção eu uso pra pescar robalo. Livre-arbítrio? Claro que sei!, moreninho, apitou a final do Brasileirão, idos de 1990. Tava comprado. Péra aí, tá livre de novo? Esse país não tem solução. É o fim da picada!

Será que o metrô chega lá? Um dia ainda desço na estação final, ahh, vocês vão ver. Só para poder voltar sentado. Que alívio! Passear de barco nesse mar de gente, nessa represa transbordante! Isso é que é vida! Mas hoje não, hoje não dá, tô atrasado. Dá licença que desço aqui, falei demais, dá licença, moço, segura a porta, por favor, obrigado. Desculpa aí por atrasar a viagem de vocês. E de todos os outros trens.



O vídeo acima foi gravado na estação República do metrô de São Paulo.
Conheça mais do trabalho artístico de Adam Magyar.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

PENSAMENTO PERDIDO

já não se sabe
o que atravessa
a cabeça arremata o
pensamento perdido
atirado de longe
sem cara nem coração
sai nos jornais
comentário assassino
sem experiência viva
nem pulso de coragem
tomado de assalto
feito bala de fuzil
vitimando inocentes
pelo prazer algoz
pela justiça falha
insegurança
atravessa a carne se
aloja no cerne
do suspeito
veias abertas da América
marginal de cor, de raça
perseguida, impedida
graças adeus

domingo, 13 de setembro de 2015

ASSOVIO

resistência poética
quase espiritual
ao som maquinal
da cidade
dominante

sábado, 12 de setembro de 2015

O ABSTRATO E O CONCRETO

Amarelo, vermelho, azul (1925), de Wassily Kandinsky

Li qualquer coisa sobre um pintor abstrato. Fiquei a imaginar uma mancha, talvez algumas formas sem nome nem identidade, apanhadas ao acaso, que se apresentariam como pintor, olá, muito prazer, sou artista, percebe meu propósito? Meu significado? Esse pintor abstrato andaria por aí, fazendo arte.

Agora quero ler qualquer coisa sobre um pintor concreto.

(para Wassily Kandinsky)

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

resistir a Darwin
acolher fragilidades, aprender
com elas convidar ao mundo
deixar as portas abertas
a quem quiser participar
fendas, fissuras, intervenções
onde os fracos não têm vez
fazê-los visíveis, olhar por eles
inventar lugares onde tenham
potência corporal
existência, liberdade
involuir para ser sutil
menos super-homem, menos moralismo
menos reis e suas leis
menos direitos enrijecidos
mais gentileza, por favor
mais poesia, ainda que dura
seja poesia

terça-feira, 8 de setembro de 2015

TODOS ÍNDIOS

Foto de Eduardo Viveiros de Castro

Isto aqui trata daquilo que somos e do que pretendemos ser, disse Danilo Santos de Miranda na cerimônia de abertura da exposição. Somos índios. Quer queira, quer não. Todos aqueles que nos chamamos todos, somos todos os índios. Então, por que é tão estranho? Houve uma performance que simulava um ritual de tribo, eu estava ali no meio dos atores, eles cantando e dançando, eu estava ali e achava tudo muito estranho, ao mesmo tempo em que achava estranho esse próprio estranhamento, tinha vergonha dele. Por que a cultura indígena é pouco familiar a nós, que somos índios – desde o berço – sem saber? Por que não identificamos seus meios nem apreendemos seus sentidos? Por que não somos capazes de enxergar nossas raízes, soterradas ainda vivas por toneladas de ordem e progresso, toneladas de preconceitos e desrespeito?

Se a voz não partir de dentro do peito, é melhor que nada fale. Não pode haver voz que fale "sobre" os índios. Que sujeito é esse que se põe de fora, que se põe acima e quer determiná-los? Os índios são isso ou são aquilo. Não. Ou os índios somos, ou é prudente calar a própria voz, calar essa arma que já disparou as ignorâncias mais violentas. Falar a respeito dos índios, mesmo sem conhecê-los, mesmo que o único índio já visto seja aquele da cartilha escolar, da letra "i", já é falar sobre nós, sobre esse sujeito que fala, sobre seu passado, seu presente e seu futuro. Sobre o que somos e o que pretendemos ser.

Entretanto o que o índio deseja é poder permanecer diferente de nós, explica Eduardo Viveiros de Castro, antropólogo autor das fotos expostas no Sesc Ipiranga, em São Paulo. Essa igualdade diferente, antes de ser um paradoxo dos tempos atuais, é um dos problemas mais delicados que criamos para nós mesmos ao longo de séculos de massacres velados. É um problema de identificação cultural pautado na invisibilidade das vítimas e, pior, é questão de sobrevivência. Dos índios? Sim, de todos nós.

Chegamos a um ponto em que não parece haver solução. O que existe é somente a oportunidade de pendurar uma rede digna onde o corpo ferido do índio possa repousar. Onde nosso corpo, quem sabe, possa curar as feridas e aprender com as cicatrizes, caso sobreviva. Corpo, quer dizer, "conjunto de maneiras ou modos de ser que constituem um habitus", segundo o antropólogo-fotógrafo. Corpo individual, corpo coletivo, corpo sociocultural. É a partir do corpo – e somente dele – que se dá nossa relação com o mundo. Variações do corpo selvagem, conforme o título da mencionada exposição.

Foto de Eduardo Viveiros de Castro


O que pode ser feito é tocar o nosso sagrado com penas e sementes. Pintar nossa pele de urucum. Dar ritmo de chocalho à correria da metrópole. Incorporar a sensibilidade abandonada, vesti-la com pele de onça. Algo que os curadores Veronica Stigger e Eduardo Sterzi conseguiram propor com ética e sutileza. Pois não cabe idealizar o índio, não cabe idealizar a cultura nem a natureza, isso não faria o menor sentido; mas cabe muito bem provocar estranhamento, um estranhamento que denuncia nosso ponto de vista, que questiona nossas crenças, porque é somente assim que o índio em nosso sangue ouvirá o chamado e emergirá, esse índio que corre pela escuridão do nosso contemporâneo.

Freud dizia que estranho é o quase familiar, quase comum e reconhecível, que de algum modo não se encaixa na normalidade e por isso nos inquieta, por vezes até apavora. Próximo ao mesmo tempo em que longínquo. Esse estranho tem o poder de nos arrancar do conforto apático do dia a dia e nos levar a outro plano de realidade. Uma experiência transformadora, uma potência que, com sorte, vai nos fazer questionar a normalidade da situação. Não podemos continuar a achar "normal" o índio ser massacrado. Não podemos aceitar que suas terras sejam arrancadas à força. Não podemos achar normal que o índio continue sem voz política, invisível, impedido. Nós comemos alimentos indígenas, caminhamos por ruas indígenas, falamos com suas palavras, curamos enfermidades com suas ervas e ritos. Somos todos nativos do Brasil. Não é normal, nem jamais poderá ser, carregar um índio morto no peito, nem deixar que seu sangue morto corra pelos rios do nosso corpo selvagem. Já basta de civilização.

Foto de Eduardo Viveiros de Castro

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

ORELHA QUE TIREI DA MALA



Olha que coisa linda, a amiga Mariana Teixeira está lançando O que tirei da mala, seu segundo livro de poemas (o primeiro se chama Inversos Paralelos). Perguntou se eu escreveria uma breve apresentação para sair na orelha. É lógico que escrevi, com o maior prazer. Ficou assim:  

cenas breves
na rua, no bar, na cama
só ela nota, Mariana
anota!
faz disso aí
a poesia que já é
só não sabia
incessante
num fluxo
pega no ar
no ato
leveza passarinha
conta, recita, sussurra, desabafa
uns versos sobre a vida
chegam muito bem, no mínimo
não fazem mal a ninguém
infindáveis histórias do universo
uma página por vez
na correria o homem fica
em seu tempo
a poesia vai além

Assim este livro se apresenta, uma página por vez, retiradas da bagagem que Mariana Teixeira acumulou pelos percalços da vida. Se o fardo está pesado, ela faz dele poesia, que bate asas e flana mundo afora até encontrar você, leitor de sorte.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

SÓ MAIS DEZ MINUTINHOS

diz a lenda
a voz das ruas
o gigante acordou
retorcendo-se
desejando
que fosse apenas um
pesadelo
de uma ilusão
recobrou-se e não
entendeu
nada sabia,
inocente
o gigante acordou
suando frio bebeu
um copo d’água
aliviou-se, tirou um peso
desrazão
dormiu novamente
um pouquinho mais, por favor
piedade de nós
até despertar
o smartphone

domingo, 16 de agosto de 2015

UM MUSEU INCOMODA MUITA GENTE

No último final de semana prolongado que tivemos, fui com minha esposa visitar familiares em Marília. Pela enésima vez tentei conhecer o museu de paleontologia, que em tese possui fósseis e registros científicos da região. Como sempre, não consegui; ele estava fechado. Não abre aos finais de semana e, descobrimos dessa vez, nem mesmo em dias úteis da "emenda" de feriados.

Estávamos com meu sobrinho de quatro anos, que foi ao zoológico de São Paulo meia dúzia de vezes para ver reproduções gigantes de dinossauros numa exposição que ficou longo tempo em cartaz. Ele é apaixonado pelos bichanos pré-históricos. Até quando, não sabemos dizer, e o museu público de Marília não tem incentivado esse seu interesse. Será que ninguém cogitou abri-lo aos finais de semana, quando chegam pessoas de fora, e compensar esses dias numa segunda e terça, se for necessário?



A revista Piauí nº 105, de junho passado, publicou um texto em que crítico de arte Hal Foster provoca: afinal, museu para quê? Seu incômodo tem fundamento. Embora se refira às imensas instituições que têm surgido na Europa e nos Estados Unidos, acho possível estender a pergunta ao tímido museu de paleontologia de Marília e a quaisquer outros do Brasil: será que eles conseguem dialogar com a sociedade, sustentando esse formato tradicionalista? Será que conseguem oferecer a possibilidade de alguma experiência transformadora ao invés de entretenimento raso e fotos para redes sociais?

Foster não é o único nem o primeiro a pensar nisso – esse problema é constante em instituições culturais do mundo inteiro, e debatido amplamente sem que se obtenha soluções muito interessantes. Trata-se de uma questão-chave para quem administra museus hoje em dia.

A última grande renovação dos museus de arte ocorreu quase um século atrás, quando foram concebidos prédios herméticos, utópicos e supostamente neutros para acolher a produção modernista, com o propósito de isolá-la da vida exterior. Ficaram conhecidos como "cubos brancos" porque, na prática, eram exatamente isso: paredes brancas sem janelas, tudo limpo e silencioso, como templos onde se podia admirar a criação dos "gênios" da arte. Se a ideia já não condiz com o contemporâneo, tampouco encontramos outra que dê conta das novas demandas, embora haja boas experiências, claro.

O consenso até agora afirma que não pode haver consenso. Não existe fórmula de sucesso. Pelo contrário: entende-se que as instituições devem ser diferentes umas das outras e também de si próprias, adequando-se com frequência aos novos desafios.

Não sou profundo conhecedor do assunto, e talvez esse olhar distanciado permita ver as coisas por outro ângulo: em resposta à provocação de Foster, suponho que o museu contemporâneo não deva ser exatamente um museu. Ele deseja ser outra coisa. Em vez de "Instituição Cultural" (com maiúsculas), um espaço de experiências. Um local que possibilite encontros ao invés de forçar interações. Cuja vontade é ativar o sensível em vez de lotar galerias com pessoas, informações e números. Que deixe arte à disposição, porém antes se pergunte: qual é o interesse dos visitantes? De que maneira a arte poderia participar da vida deles? Como criar diálogo em vez de impor conhecimento goela abaixo, por meio de autoridades e autoritarismos? Qual é a melhor forma, aqui, nesta situação específica, para manter vivo e pulsante certo campo ampliado de cultura? E como fazer acolá?

Passeando por Marília, vi uma série de galpões (aparentemente) abandonados às margens da linha do trem. Lindos. Deu vontade de instalar ali centros de convivência que incentivem encontros e experiências estéticas, que envolvam os cidadãos e cultivem o interesse por descobertas. Onde tivesse um palco para bandas da cidade ensaiarem, onde grupos de teatro pudessem se desenvolver. Um salão silencioso para oficinas literárias e círculos de livro. Um ginásio de esportes. Ciclovias. Cozinha coletiva. Biblioteca e brinquedoteca. Pomar, gramado para piquenique, ateliê para pintar e bordar. Espaço expositivo. Café. Enfim, um ponto de encontro de jovens e adultos, ricos e pobres, indivíduos e famílias, verdadeiramente aberto às práticas comunitárias. Tive vontade de implementar algo assim antes que façam shopping center no lugar. Convenhamos, estruturas do tipo são investimento pequeno (para um país que se dá ao luxo de construir estádios de futebol "padrão Fifa") e são capazes de acolher pessoas sempre carentes por atividades que as coloquem em contato com si próprias e com as demais. Vejam o SESC Pompeia e o CCSP, por exemplo, e como eles mobilizam a cidade de São Paulo.

Instituições culturais que permanecem a alimentar preconceitos em relação aos seus frequentadores, acreditando que a sua "função" é "educá-los", que os olha de cima para baixo e os determina, tendem a ir do cubo branco ao elefante branco. Reformulando a questão inicial: quem precisa delas?

O próprio Hal Foster conta, logo na introdução do livro O retorno do real, a ocasião em que visitava uma mostra de arte contemporânea na companhia de um amigo e sua família. Enquanto conversavam, a filhinha do amigo brincava entre vigas de madeira que compunham um dos trabalhos expostos. "Ali estávamos nós, um crítico e um artista bem informados sobre arte contemporânea, tomando aula de uma criança de seis anos de idade, cuja prática deixava nossa teoria muito para trás".

Se não abrirem as portas da mente, os museus jamais testemunharão qualquer brincadeira reveladora sobre o futuro, seja deles próprios ou do público. E restarão esquecidos como os fósseis que guardam. Por sua vez, as instituições culturais que insistem em modelos de consumo de informação e que resumem cultura a mero entretenimento e espetáculo não têm potencial para transformar nada nem ninguém. No fim das contas, não servem para muita coisa.

sábado, 15 de agosto de 2015

Comedores de batatas (1885), de Vincent Van Gogh

"a vida está no lugar
em que você
serve a sopa
sob o círculo de luz."

Fora do tempo, David Grossman

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

“A imprensa é uma vasta boca aberta que tem de ser periodicamente alimentada – um vaso de enorme capacidade que tem de ser preenchido. É como um trem regular que sai numa hora marcada, mas que só pode sair se todos os lugares estiverem ocupados. Os lugares são muitos, o trem é consideravelmente longo, e daí a fabricação de bonecos para as estações em que não há passageiros suficientes. Um manequim é colocado no assento vazio, onde passa por uma figura real até o final da jornada. Parece-se bastante com um passageiro, e você só percebe que ele não o é quando nota que não fala nem se move. O guarda vai até ele quando o trem para, limpa as cinzas de sua face de madeira e muda a posição de seu cotovelo, de modo que sirva para uma nova viagem. (…) O espírito arisco pode se perguntar, sem resposta à mão, qual a função na vida de um homem dessa periodicidade de platitude e irrelevância? Tal espírito vai se perguntar como a idade de um homem sobrevive a isso e, sobretudo, o que é mais importante, como a literatura resiste a isso (…). Os sinais da catástrofe, no caso, suponho que não serão tão sutis que não possam ser apontados – a falência da distinção, a falência do estilo, a falência do conhecimento, a falência da reflexão.”

Henry James, Crítica (mais de um século atrás!)

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

DE COR

Escultura que compõe o trabalho Vazio cérebro, de Nelson Felix

se a cor branca é
uma junção de todas
as outras, para ser
branco é preciso ser negro
amarelo, vermelho, pardo
azul-tição
mesmo assim há branco
sem graça, sem cor
sem jeito, que quer
destaque na multidão.
há branco que não se enxerga

sábado, 18 de julho de 2015

TUDO BEM

Tempo branco (1959), de Pablo Palazuelo
toda vez que a toco
que troco de lugar
encho de café,
de baldes de água fria

da boca à mesa
trabalho, repouso depois
de cabeça para baixo
no escorredor

provoco fissuras
mínimas, que sejam
invisíveis, insensíveis
por toda a sua conjetura

da superfície à estrutura
breves rompimentos
na cerâmica do dia
que não cicatriza, nunca
volta atrás

só aumento
a duras penas
sustentando-a
como se nada tivesse
acontecido

um gole a mais,
outro a menos
dia a dia
momentos, momentos

chega o que basta
leve toque de pluma
para romper a casca
desde a fundação

ela se estilhaça
seja o que for
que se faça

como saber, desgraça?
pior viver sem
provar os amores
nem arder dissabores

tudo bem?
tudo bem.

a pergunta terrível,
a resposta impassível,
impossível!

restam fragmentos, cacos
na palma da mão
lapsos da experiência única
vivida repetidas vezes
a dois, a dez, a mil

segunda-feira, 6 de julho de 2015

QUE EXPERIÊNCIA NOS RESTA?

Ler um texto como O narrador, que Walter Benjamin escreveu quase 80 anos atrás, em 1936, e perceber com espanto sua atualidade sugere algo sobre aquilo que poderíamos chamar de contemporâneo, no sentido de que condiz e é pertinente às questões que agora nos atravessam. Em primeiro lugar, sugere que o contemporâneo não se refere ao tempo cronológico, portanto não segue a linha do progresso – em vez de Benjamin poderíamos citar autores de séculos antes que parecem ter escrito especialmente para nós. Em segundo lugar, diríamos que o contemporâneo não é pleno: não conseguiríamos distinguir uma totalidade nem na apreensão sensível do tempo nem no senso comum sobre a experiência da vida; não existe comportamento padrão em nossas sociedades, mas lampejos que sugerem mudanças de atitude em meio ao previsível, lugares que privilegiam o dissenso em meio ao conforto da tradição pré-estabelecida. São pontos que brilham por um instante e logo se apagam; um surge aqui, outro responde acolá, como um grupo de vaga-lumes à noite, que vemos em sua singularidade tanto quanto na efemeridade.

O contemporâneo se constituiria, entre outras coisas, de reminiscências: passados retomados pela memória; resíduos, restos, fragmentos postos em conexão numa nova estrutura; lembranças imprecisas ou indecisas que evocam imagens borradas. Seria como um vulto: que passa sem se revelar por inteiro – restaria do contemporâneo mais uma sensação daquilo que ele manifesta do que um conceito propriamente formulado, aceito e contestável segundo os métodos da crítica conservadora.

Como as narrativas sobrevivem nos tempos atuais? Se na época de Benjamin já se notava certa precariedade dessa forma de compartilhamento de experiências, hoje em dia as perspectivas não são melhores. Conforme o filósofo escreveu, "cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação".

Enquanto a informação só tem relevância quando é fresca, a sabedoria da experiência, tecida na forma de narrativas, compartilhada geração após geração, não tem prazo de validade. Seu valor independe do tempo e por conta desse alargamento não determinado ela é mais contemporânea nossa do que o preço do dólar ou o próximo capítulo da novela.

Jorge Larrosa Bondía certa vez explicou que é preciso separar o saber da experiência e a posse de informações. Porque, ao contrário do que acontece por aí e somente diz respeito aos outros, a experiência é o que nos acontece, o que nos toca. Em suas palavras: "O sujeito da informação sabe muitas coisas, passa seu tempo buscando informação, o que mais preocupa é não ter bastante informação; cada vez sabe mais, cada vez está melhor informado, porém, com essa obsessão pela informação (...), o que consegue é que nada lhe aconteça".

Por que nada nos acontece? Por que nada mais ganha a gravidade da experiência digna de ser narrada, que nos toca e transforma, além de ser passada adiante ao longo dos séculos, tal como nas mitologias que sobreviveram desde os tempos mais remotos? Talvez porque não tenhamos, justamente, tempo: na correria em que vivemos, não encontramos um instante sequer para dispor à possibilidade de irromperem experiências. Ou melhor: não arranjamos tempo para nos colocar à disposição do mundo. E as verdadeiras experiências só acontecem a quem está aberto.

Benjamin acreditava que esse processo "exige um estado de distensão que se torna cada vez mais raro". Para ele, tal distensão se encontraria no tédio.

Almoço na relva (1863), Édouard Manet

Tenho quase certeza de que, se eu perguntar quem se sente entediado, boa parte das pessoas responderá que sim; nos sentimos entediados com a rotina puxada, o cansaço, a falta de perspectivas, descobertas e desafios. Mas não é a esse tédio que o filósofo se refere. Estamos mesmo esgotados, porém continuamos mergulhados no excesso de informação e de tarefas. Esse excesso afasta o tédio proposto por Benjamin, que seria obtido pelo desligamento da máquina produtiva, pelo "dolce far niente" dos italianos, quer dizer, a doçura do não fazer nada, de abrir terreno para que o inusitado germine.

Para Bondía, "a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço".

Houve um tempo em que se buscava nas drogas uma espécie de interrupção, que na realidade era uma dilatação de sentidos contra a dureza da razão moral, com objetivo de experimentar outra relação com o mundo. Até mesmo isso foi desaparecendo durante o século XX, e hoje as drogas acabam usadas no sentido oposto, de anestesia, como meio de escapar das experiências da vida. Uma fuga no lugar da descoberta, embora na prática a coisa não seja tão diferente assim. Acontece que nem mesmo o estímulo dos sentidos consegue se sustentar por muito tempo, talvez por conta da sua artificialidade. Há uma frase no romance Demian, de Hermann Hesse, que sintetiza bem essa ideia: “As pessoas que vivem todo o dia nas tabernas já perderam por completo essa exaltação. Tudo se transforma num hábito”. Pois nos acostumamos até mesmo com o excesso de novidades, e logo ele próprio assume o status de banalidade.

Acredito mais no gesto de interrupção que se revela uma atitude estético-política. Sensível. Profunda, complexa e necessária. Um gesto singelo de resistência crítica à velocidade, à informação em demasia que nos provoca a falsa sensação de pertencimento ao mundo, à tecnologia que afasta a possibilidade de que as coisas nos toquem diretamente, ao trabalho mecânico, produtivista e inconseqüente, ao consumismo exacerbado de produtos, serviços e verdades; resistência a tudo isso que de alguma maneira preenche nosso cotidiano como se o completasse, e que nos configura como máquinas ligadas incessantemente no modo automático. Não precisa ser uma grande força contrária, é preferível até que seja um gesto frágil, que transforma e que também se transforma durante o processo. O que nos resta fazer? Resistir poeticamente, sim. Não porque aquelas coisas não sejam importantes, mas porque não podem ser absolutas.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

É, NEM

“Até gosto de Humanas”, disse um cara atrás de mim, na escada rolante do metrô, “mas não gosto desse negócio de abraçar árvores”. Ele conversava com uma amiga, e pelo jeito ambos planejavam prestar o vestibular. Fiquei tentado a perguntar se ele não confundia Humanas com algum ramo pervertido da Botânica. Fiz bem em me manter calado. Porque logo na sequência ele emendou: “Gosto também de Biologia. Mas eu não quero saber de cuidar dos animais. Quero botá-los na mesa e picá-los todinhos”.

domingo, 28 de junho de 2015

MAIS EDUCAÇÃO, MENOS ARMAS

Resolvi trazer um ponto de vista diferente sobre o que Bene Barbosa escreveu no Correio Popular de 24 de junho passado. Talvez porque eu tenha me identificado com o que ele chama de “desarmamentistas, profetas do caos”, nessa sua lógica paradoxal. Ao contrário de Bene, não sou especialista em segurança pública, e mesmo assim não é difícil mostrar outras perspectivas sobre o assunto. Afinal, aquela sua opinião acaba restrita a uma única maneira de pensar, tanto que não se sustenta se considerarmos:

1) O objetivo final da arma de fogo é provocar tragédias (guerras, mortes, ataques, violências de diversos gêneros). Ela não é fabricada para evitá-las e, ainda que alguém as empunhe com esse propósito, só poderá fazê-lo por meio de tragédia similar a qual combate. Porque é assim que as armas de fogo funcionam. Elas sustentam a própria lógica da violência.

2) Bene afirma que, quando os seguranças de shopping center passaram a portar armas, os assaltos deixaram de existir. Se seguirmos o mesmo raciocínio, nunca deveria ter ocorrido assalto a bancos ou carros-fortes, uma vez que seus seguranças sempre estiveram armados. Sabemos que isso é absurdo. E sabemos que um ambiente armado necessariamente implica maior risco potencial do que um ambiente livre de armas. Em outras palavras, o risco de consumidores tomarem um tiro no shopping é maior quando o número de balas e armas naquele ambiente aumenta. Se o tiro é disparado ou não, isso não depende somente de os seguranças apresentarem maior ameaça aos bandidos. A análise de um contexto como esse é muito mais complexa do que o fato de os seguranças estarem ou não armados. É difícil aceitar um argumento tão reducionista.

3) Acharia até engraçado, se não fosse lamentável, alguém chamar de “profetas do caos” aqueles que desejam viver num mundo sem armas. Quem seriam os armamentistas, então? Profetas da ordem? Ora, a ordem mantida pela ameaça é sempre impositiva, repressiva, violenta. Vide as ações do Estado Islâmico e dos soldados norte-americanos. Vide todas as ditaduras estabelecidas mundo afora. Vide nosso próprio dia a dia, a realidade dos morros brasileiros, a realidade das nossas ruas etc. Cada um deles impõe sua ideia de ordem à sua própria maneira.

4) Bene parece ter uma visão distorcida sobre educação. Pois, ao citar um segurança de shopping com quem conversou – e fazer questão de explicitar a pronúncia errada do sujeito (como forma de menosprezá-lo?) –, ele defende o argumento de que “os bandos de moleques que gostavam de fazer arruaça” deixaram de agir assim porque ficaram mais educados. Não, claro que não. Eles ficaram acuados porque os seguranças apresentaram maior poder. Isso não é educação, é coerção. Enquanto desconhecemos limites da educação, sabemos que a coerção sobrevive somente até que um poder maior se apresente. Em suma, acho impossível concordar com seu argumento final, de que armas nas mãos certas significariam mais educação.

Este é o texto que originou o meu. Clique na imagem para ampliá-la.

Não bastassem esses argumentos, compartilho ainda uma inquietação que me atravessa. Pois a conclusão lógica para todos esses meus pontos seria: vamos proibir o porte de armas. Porém eu não posso defender a proibição de algo como solução. Entendo que proibir é sempre uma forma de exercer violência, ainda que “cidadãos de bem” a façam com “a melhor das intenções”, conforme alguns discursos falsamente moralistas que observamos com frequência em relatos de confrontos. O mesmo vale para suprimir direitos que os cidadãos têm de agir conforme suas crenças, dentro de um limite socialmente saudável, com vontade libertária, respeito pelo outro e conduta ética. Direto de fazer suas escolhas e assumir as consequências. Talvez seja esse o único ponto em que concordo com as propostas da ONG presidida por Bene. Conforme li no site do Movimento Viva Brasil, “Não defendemos de que a população deva se armar indistintamente, mas tomamos por inaceitável que lhe seja retirado o direito de escolha em o fazer ou não”.

Entre o sim e o não, eu acredito, acima de tudo, no investimento em educação. Acredito que uma sociedade culta, capaz de refletir por si mesma e também de aceitar suas diferenças não recorreria às armas. E quem acredita em educação não aposta em armas de fogo. Simplesmente porque, em essência, as duas coisas são diametralmente opostas. Uma deseja a emancipação, a outra propõe a morte.

Não quero armas nas mãos de “pessoas certas”, até porque é o fato de estarem armadas que costuma dar razão às pessoas que as portam. Quero, sim, uma sociedade sem armas. Que não se exponha aos riscos desse porte.

Bene considera excelente um artigo do major norte-americano L. Caudill, intitulado “A arma é civilização”. Admito que sim, infelizmente. A nossa civilização acolhe violências de muitos tipos. Então, de alguma maneira, arma e civilização compartilham características que as aproximam. Só não podemos confundir, nesse caso, civilização com civilidade. Porque a arma pode ter alguma relação com o modo como a civilização se constitui. Mas portar armas jamais será uma atitude de civilidade.

domingo, 21 de junho de 2015

PALAVREADO SOBRE A LÍNGUA

Achei graça quando vi Inês Books falar sobre A desumanização, romance de Valter Hugo Mãe que ainda não li. Foi num vídeo de Youtube, numa das experiências de leitura que ela compartilha com o mundo a partir de Portugal, onde vive. Inês conta que a história se passa na Islândia, e que a presença da ilha é tão forte quanto a de outras personagens, a ponto de considerar ela própria uma espécie de protagonista. A ilha influencia o comportamento de seus habitantes e o desenrolar da narrativa, portanto o autor teria conseguido dar vida àquela porção de terra isolada no oceano, a qual sobrevive em meio ao antagonismo do gelo glacial e o fogo dos vulcões. Para Inês, é como se a lava pulsasse sob o chão, temperamental; como se corresse nas entranhas do lugar, provocando a sensação de que "a qualquer momento a ilha se vai a zangar e vai deitar tudo cá pra fora".

Foi essa sua expressão, em particular, que me fez sorrir. Acho divertido o que chamamos popularmente de "sotaque lusitano", e que a meu ver está além de uma sonorização diversa: é mesmo uma dobra na língua, uma espécie de marca territorial que se abre a outro campo de exploração. Um convite para desvendar um novo mundo. Quer dizer, o "português de Portugal" não seria somente questão de entonação, mas uma maneira própria de cuidar das palavras, constituir frases, construir sentidos, pronunciar e se expressar pelo verbo.

Admito que desconheço a teoria, e o que escrevo aqui diz mais respeito ao sentimento de ler e ouvir os portugueses do que a um estudo linguístico ou algo similar. Esse sentimento sugere que os portugueses utilizam a língua de maneira diferente de nós, brasileiros, seja nosso sotaque paulista, carioca, baiano ou gaúcho. Empregam palavras incomuns, expressões locais, contorções ou desvios, estruturas de diálogo que obedecem a outra lógica. Mais que isso: exploram demais sentidos das palavras que usamos corriqueiramente por aqui, e acho linda essa ampliação do campo semântico, que revela certa elasticidade da nossa língua comum.

Ao ler e ouvir o português de além-mar, sinto como se os territórios da língua se alargassem, como se cada termo operasse mais potência. A ponto de, em muitas ocasiões, a comunicação ser ininteligível: ainda que reconheça as palavras, não consigo acessar o significado maior do enunciado; ouço eles conversarem porém não apreendo com exatidão o que é dito, como se ouvisse mesmo uma língua estrangeira. Resta me aproximar aos poucos, com cautela e disposição, deixando que sons e letras indiquem um caminho.

Não me entenda mal: defendo que o português seja um só; abomino a ideia de segregar nossa língua, chamando-a de "brasileirês" ou qualquer bobagem do gênero. O que eu mais gostaria de ver são livros publicados em Portugal e nos outros países lusófonos circulando livremente por aqui, sem amarras jurídicas, mercadológicas e políticas, nem adaptações lexicais – todos só teríamos a ganhar com isso, tanto autores e leitores quanto a própria literatura e, claro, a língua portuguesa em si.

Daí a estupidez de ignorar as variações do português com um acordo ortográfico internacional, como se a norma fizesse a língua e não o contrário. Acentuação, hifenização, trema... que sejam diferentes como costumavam ser em cada canto destas terras! Não são as regras que aproximam as "línguas portuguesas", mas o incentivo à leitura e às trocas culturais; o acesso, o conhecimento e o respeito pelas diferenças; a livre circulação das publicações; a oportunidade de emergir o comum por meio do dissenso – em vez deste consenso artificial.

Admiro a resistência do jornal Rascunho, dedicado à literatura, por publicar mensalmente suas edições sem obedecer ao tal acordo ortográfico de 1990, embora pareçam ter abdicado dessa atitude há pouco tempo, não sei por qual motivo. Assim como admiro também José Saramago, que, se não me engano, não admitia a adaptação de seus livros para o "português brasileiro", sendo todos eles publicados aqui exatamente como em Portugal. Pois acredito que é pela possibilidade de exercer diferença que a língua amplia seus limites; é por causa disso que permanece viva e pulsante. Pode assim – se Inês me permite parodiar sua simpática expressão – a qualquer instante se enraivecer e irromper em verborragias sobre nossas ilhotas particulares.

sábado, 23 de maio de 2015

OCUPAR A CIDADE


No último século observamos um movimento de abertura no mundo. Que, apesar das exceções, coincide com aberturas culturais, econômicas, de fronteiras etc. Os territórios que habitamos se ampliaram: desde nossa casa, nossa rua, nossa cidade até nosso país, nossa língua, nosso continente, nossa galáxia. Não precisamos estar presentes fisicamente para que os lugares nos pertençam ou para que nós pertençamos a eles. Quase no mesmo instante em que as coisas acontecem alhures nós ficamos sabendo aqui: vitórias no esporte, transações comerciais, acidentes de trânsito, desavenças amorosas, conflitos militares e assim por diante. Assistimos a tudo pela internet, no conforto de nossas poltronas. Podemos nunca ter ido a Nova York ou Paris, mas algo que lá acontece também nos afeta.

Ao mesmo tempo em que nos abrimos para esse viver global nós realizamos um movimento contrário: corremos para casa quando anoitece, circulamos em carros blindados, instalamos cercas elétricas e câmeras de vigilância, restringimos nossos grupos sociais a padrões – moralmente, cruelmente, preconceituosamente – estabelecidos (ricos, brancos, machos, jovens, europeus).

O paradoxo é curioso. Quer dizer, o senso comum entende que abrir-se implica maior exposição, seja a boas experiências ou a ameaças diversas. Mas o que talvez passe despercebido é que fechar-se resulta apenas nas ameaças, ou seja, é ainda pior, ainda mais perigoso, ainda mais neurótico.

No livro Tempos líquidos, o sociólogo Zygmunt Bauman propõe uma perspectiva interessante a respeito das nossas atitudes. Para ele, a exposição advinda dessa abertura provoca a sensação de falta de segurança, e, querendo nos sentir mais protegidos, abrimos mão de liberdade.

Abstrato demais? Não é, basta olhar a popularização dos condomínios fechados, que isolam apartamentos ou casas dos perigos da cidade grande; basta olhar o recente projeto de lei francês que concede ao governo o direito de vigiar – leia "espionar" – qualquer cidadão sem necessidade de autorização judicial.

Em vez de construir condições para que a liberdade exista, o governo e também o povo promovem um policiamento generalizado. O que não é exclusividade da França – penso, entre tantos exemplos que poderia dar, na violência com que o Estado do Paraná tratou seus professores, num ato político movido a ignorância e incompetência. Penso também na máxima malufista da "ROTA na rua", repetida a torto e a direito como solução contra o crime – que, no limite, significa o mesmo que "estupra mas não mata", outra das suas propostas políticas. Com exceção de que a ROTA mata. E mata muito.

Enfim, se a proteção não é provida pela polícia nem pelos políticos, se eles não dão conta de garantir a liberdade e preferem a heteronomia à população, o que podemos fazer? Uma das respostas possíveis é simples, embora a solução exija um belo esforço coletivo: precisamos ocupar a cidade.

Sabemos que os vazios não permanecem assim por muito tempo, há sempre quem reivindique poder sobre eles. Em outras palavras, toda vez que nos recolhemos em nossos bunkers, toda vez que preferimos nossos carros, abandonamos o espaço do entorno, que acaba tomado pela violência.

Bauman explica que "a vida social se altera quando as pessoas vivem atrás de muros, contratam seguranças, dirigem veículos blindados, portam porretes e revólveres, e frequentam aulas de artes marciais. O problema é que essas atividades reafirmam e ajudam a produzir o senso de desordem que nossas ações buscam evitar. Os medos nos estimulam a assumir uma ação defensiva. Quando isso ocorre, a ação defensiva confere proximidade e tangibilidade ao medo".

O medo da livre circulação leva à baixa autoestima. A sensação generalizada de impotência nos empurra pouco a pouco para o abismo. O estado social se torna cada vez mais policial e prisional. O combate às ameaças é feito com guerra – a fórmula estúpida da tal "guerra ao terror". As grandes corporações lucram um absurdo com nossos medos de inimigos fantasmas, ou seja, nossa fragilidade as fortalece no poder. Ficamos reféns do excesso de informação. Consumimos altas doses de opiniões fabricadas porque não temos tempo para refletir e construir as nossas próprias – não temos tempo a perder porque "tempo é dinheiro".

Parece urgente a necessidade de realizar um gesto de interrupção nesse assombroso declínio da "experiência autêntica", conforme Walter Benjamin já alertava cerca de 80 anos atrás. Um gesto poético e político de interrupção, que seja: reatar vínculos sociais e ocupar a cidade. Conversar, concordar ou discordar, refletir e construir pensamentos coletivamente só para poder desconstruí-los depois – em vez de apenas reproduzir o que se ouve por aí. Pedalar, criar grupos com interesses culturais comuns, produzir algo engrandecedor (em outro sentido que não o financeiro). Organizar hortas comunitárias, fazer manutenção no parque mais próximo, oferecer oficinas na escola pública do bairro, usar transporte público, visitar bibliotecas, universidades e museus públicos da cidade. Exigir melhores condições para aquilo que é de interesse de todos – e não somente da sua família! Abandonar o racionalismo perverso e deixar-se levar pelo sensível. Tocar violão na praça, ler poesia em voz alta, frequentar cinema de rua, andar a pé. Porque ocupar também significa cuidar – tomar posse em vez de exercer poder. Ocupar a cidade é o primeiro passo para melhorá-la, transformando ausências em espaços de convivência. Porque num planeta ao mesmo tempo "globalizado" e fragmentado não temos condições de transformar o todo senão começando por nosso próprio eu e seu arredor.

Peço desculpas por escrever tamanhas obviedades, mas elas parecem tão necessárias!

segunda-feira, 18 de maio de 2015

POÉTICA

Sem título, Nelson Felix

tempo e espaço
vazio e cheio
leve e pesado
localização e perda
círculo e quadrado
força e delicadeza
poética

domingo, 17 de maio de 2015

O QUE FAZER COM ESSA INFORMAÇÃO?

"A informação não é experiência. E mais, a informação não deixa lugar para a experiência, ela é quase o contrário da experiência, quase uma antiexperiência. Por isso a ênfase contemporânea na informação, em estar informados, e toda a retórica destinada a constituir-nos como sujeitos informantes e informados; a informação não faz outra coisa que cancelar nossas possibilidades de experiência. O sujeito da informação sabe muitas coisas, passa seu tempo buscando informação, o que mais o preocupa é não ter bastante informação; cada vez sabe mais, cada vez está melhor informado, porém, com essa obsessão pela informação e pelo saber (mas saber não no sentido de “sabedoria”, mas no sentido de “estar informado”), o que consegue é que nada lhe aconteça. A primeira coisa que gostaria de dizer sobre a experiência é que é necessário separá-la da informação. E o que gostaria de dizer sobre o saber de experiência é que é necessário separá-lo de saber coisas, tal como se sabe quando se tem informação sobre as coisas, quando se está informado. É a língua mesma que nos dá essa possibilidade."

Jorge Larrosa Bondía
Texto completo aqui [é ótimo, leia!]: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n19/n19a02.pdf

sábado, 16 de maio de 2015

Poder
contraPoder
poder contra
poder Poder
Contra

como poder-
íamos revolucionar
– transformar, que seja
liberdade e respeito –
sem dar outra volta
nessas reviravoltas?

Volta
reviraVolta
volta revira
volta Volta
Revira

sexta-feira, 15 de maio de 2015

CÁTEDRA MICHEL FOUCAULT E A FILOSOFIA DO PRESENTE

A igreja católica, por intermédio do cardeal Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo e grão-chanceler da PUC, está conduzindo o veto à formação de um grupo de pesquisa inédito no Brasil: a Cátedra Michel Foucault. A PUC seria a única instituição fora da França a ter acesso a arquivos do filósofo, cuja obra é rica e relevante para muitas áreas de pensamento. O material seria doado numa parceria que começou em 2011, com intermediação do Consulado Geral da França em São Paulo e outras nove universidades estrangeiras.

A justificativa, embora feita com meias palavras, é preconceituosa e homofóbica: a Igreja Católica tem um conflito de interesses porque Foucault era homossexual. Pois é. Além do preconceito, o veto fere um dos fundamentos da universidade, que é a liberdade de pensamento.

Se quiser se juntar às diversas universidades do mundo que defendem a formação da Cátedra, assine a petição aqui (é também uma maneira de se posicionar a favor da educação e da pesquisa no Brasil, ao contrário do que os recentes cortes de verbas públicas para universidades e cacetadas em professores têm sugerido): http://foucault.lrdsign.com/

Mais informações aqui: PUC entra com recurso contra veto da igreja à cátedra Foucault

sexta-feira, 1 de maio de 2015

UNIVERSO SUBENTENDIDO

a Verdade é
de fato algo
perigoso
      – em absoluto! –
exatamente como
seria se fosse
outra?

existiriam demais verdades
pulverizadas num ar de dúvida?
      – claro! ou melhor: obscuro! –

creio em teses, perspectivas, possibilidades
ficciono, para ser sincero
tenho fé
nas tentativas frustradas
      – abertas, disponíveis –
que nada concluem
em definitivo

há camadas sob a superfície
      – das coisas, dos homens –
germinando contra a razão
esclarecida
      – o mundo superior seria
      somente justificativa
      para nossa inferiorização –

desejo habitar as profundezas
do ser sem dono nem dogma
sem violência contra
talvez
      – sequer isso pode ser
      verdade, enfim –

quinta-feira, 23 de abril de 2015

traição das imagens,
realidade infiel
profanação da verdade,
significação

verdade e significação,
mudança, transformação
as palavras e as coisas,
ficção

mundo das imagens
versus mundo imaginado,
além do horizonte
Sua representação

dilema da representação na arte,
imagem e semelhança
a Verdade em que se crê
acima de todas as coisas

sobretudo cair em si
sentido, sentimento
absolvição

quarta-feira, 22 de abril de 2015

OLHOS DE LITERATURA

A literatura possibilita que vozes dissonantes existam – é o lugar próprio da democracia. Inclusive vozes que causam furor ou lágrimas, vozes menores que chocam e provocam desconfortos de todo tipo, que perturbam a ordem, contradizendo certa maneira de pensar do leitor, por vezes violentando sua moral. Vozes que desconstroem a linguagem, invertem preceitos e depõem contra o sagrado/instituído. É um recurso que se tem para expressar ideias e sentimentos sem que eles sejam atribuídos a um sujeito-escritor, quer dizer, sem que este seja responsabilizado pelo que a voz do texto diz ou, enfim, pela maneira como foi compreendida – ao menos seria assim a situação ideal, que vamos considerar aqui.

L'oeil cacodylate (1921), Francis Picabia
Se alguém tem qualquer controle sobre essa voz, por mínimo que seja, é o autor. Entretanto o autor nada mais é que uma conveniência, uma entidade tão inventada quanto a ficção que lhe é atribuída – uma função momentânea, como dizia Michel Foucault. O autor não é o escritor, é no máximo uma faceta dele. Por sua vez, o escritor seria o operário das letras.

O que acontece quando o leitor confunde o escritor com a voz do texto? Uma tragédia, que desfaz o jogo e acaba com a fantasia da literatura, acaba com a potência ficcional da arte de onde advêm emoções e transformações. Se o leitor está menos interessado nas histórias do que na possível relação que elas têm com a “realidade” ou com a vida do escritor, a experiência literária se deturpa: ele deseja que o sujeito determine a obra – quando esta deveria bastar em si mesma. O escritor fica exposto, sua profissão se torna perigosa – o jogo acaba em horror (Charlie Hebdo, Salman Rushdie, Ai Weiwei etc.).

Se a literatura ofende, como o leitor pode se defender? Com o gesto mais singelo, que é também de incrível força política: ele abandona o livro. Porque é do leitor a opção de ouvir a voz do texto; se preferir ignorá-la, ela não incomodará. É bonito porque é respeitoso com a obra e com os demais leitores, além de mais eficaz – se quisermos pensar nestes termos – do que a censura, a perseguição do escritor, o recolhimento e a queima de livros em praça pública etc. Por sua vez, se quiser contra-atacar, o leitor ofendido pode usar as mesmas armas e criar a sua própria literatura (#ficaadica). Isso vale desde as ações destruidoras do Estado Islâmico às críticas moralistas aos 50 Tons de Cinza.

* * *

Correm um risco todos que lêem pouca ou nenhuma literatura: deixar-se levar pelos maniqueísmos, pelas doutrinas/fundamentalismos que cegam, pela burrice da maioria, pela razão exacerbada, pelo ponto de vista que se crê único e absoluto.

Ora, quem lê literatura não necessariamente escreve melhor ou consegue expressar suas ideias de maneira mais clara, conforme prevê o senso comum. Pode acontecer que obtenha certo domínio da técnica, se houver interesse profundo, mas não é regra. Assim como comer não nos faz necessariamente melhores cozinheiros ou ouvir musica não significa que faremos lindas composições. A literatura, quando explora limites da linguagem, pode até mesmo atrapalhar quem busca nela normatização e método.

Porém existe algo que o contato com a literatura pode oferecer, talvez de maneira tão peculiar que no geral não o encontramos em outro tipo de leitura: a experiência sensível que nos arranca do automatismo cotidiano.

Não quero dizer que todos os leitores de literatura desenvolvam o senso estético, mas é quase sempre entre eles que encontraremos quem pondera melhor, quem tem maior facilidade para ouvir e se abrir a novas experiências, quem acolhe o outro e suas perspectivas, quem possui sensibilidade aguçada para capturar certos aspectos obscuros do mundo real. O mesmo vale para as outras artes – sei que é absurdo tratá-las de modo tão genérico, mas é o como posso fazer agora. Elas despertam sentidos e nos convidam a pensar por outros meios além da lógica. Convidam-nos também a cometer menos atrocidades em nome da Verdade.

Se os livros de ficção não lhe interessam, se você não tem tempo para eles, entretanto existe uma vontade sua de enxergar além da superfície do mundo – se você entende que há camadas ocultas sob a simples aparência e quer tentar acessá-las –, sugiro que então leia os jornais, assista aos programas da televisão, ouça as notícias do rádio, envolva-se com a publicidade, com as conversas de boteco e até mesmo com as bulas de remédio como se isso tudo fosse literatura. Se conseguir mudar seu ponto de vista e entrever com desconfiança o que há de ficcional na realidade, se conseguir ler o dia a dia com olhos ávidos por literatura, se não tomar por verdade absoluta tudo o que lhe é oferecido, se não apenas absorver e replicar essas verdades, certa potência literária será ativada. Se a voz da literatura nos ensina algo seria, justamente, não ignorar o aspecto ficcional das coisas, das pessoas e dos ocorridos. Os horrores do dogma se afastarão um passo, o que é uma conquista satisfatória nos tempos atuais.

terça-feira, 21 de abril de 2015

CARRO-CHEFE

Ramon Casas and Pere Romeu on a Tandem (1897), Ramon Casas i Carbó

– Não é lindo?
– Parece que sim. Parece bonito.
– Sim, sim. Verdade!
– Mas também parece pequeno.
– Acha mesmo? Cabem quatro pessoas aí, até cinco, se apertar.
– Cabe um cavalo?
– Um cavalo? Não, acho improvável…
– Então não serve para nada, esse seu carro. Eu só sei andar a cavalo.
– Mas o carro substitui o cavalo. Você não precisará mais dele!
– Não, não, está errado. Pode destruir essa engenhoca, não gostei, não quero.

(…)

– Não é linda?
– Parece que sim. Parece bonita.
– Sim, sim. Verdade!
– Mas também parece cansativo.
– Acha mesmo? É saudável, é agradável.
– Cabe um carro?
– Um carro? Não, acho improvável…
– Então não serve para nada, essa sua bicicleta. Eu só sei andar de carro.
– Mas a bicicleta substitui o carro. Você não precisará mais dele.
– Não, não, está errado. Pode destruir essa engenhoca, não gostei, não quero.

terça-feira, 14 de abril de 2015

DESDE CIMA E DESDE FORA

“A América Latina é difícil de compreender, principalmente quando se olha de fora e de cima. As coisas que se entende de verdade, as coisas que podemos entender com a razão e sentir com o coração, são as coisas que a gente é capaz de olhar de dentro e de baixo. Se a gente olhar de cima, com a típica arrogância dos nossos professores de democracia dos Estados Unidos ou da Europa, e se além de olhar de cima a gente olhar de fora, não entende nada. Por um motivo muito importante: a nossa região é provavelmente a mais diversa de todas, é a pátria das diversidades humanas. Isso que para mim é uma virtude, visto de cima e de fora é um grave defeito, porque se não cabe naquele modelo, acredita-se que aqui não existe democracia. E a prova de que há é que aqui se misturam e brigam todas as cores, os cheios e as dores do mundo.” Eduardo Galeano

sábado, 4 de abril de 2015

ISTO NÃO É. NADA É, AFINAL

A traição das imagens (1928-9), René Magritte


Mas o que é isto?
Um cachimbo.
Não, cachimbo é como o chamamos.
Um objeto com forma de cachimbo?
A forma é também o homem que dá. Não é a essência disto. Não é o “isto” propriamente dito.
Um feito? Produto do ato? Uma solução?
Fazer é sim um ato, proveniente da vontade ou da necessidade. Não é bem disso que se trata.
Resta o quê, então? A imagem?
Feche os olhos.
Continuo a ver o cachimbo!
Imagine uma pintura. Uma obra de arte.
É uma pintura? O cachimbo é uma pintura, essa é a sua dedução?
Não. Cachimbo é o que resta. E, no caso, não resta nada, somente o homem que enxerga o cachimbo ou a pintura. Sempre ele.
Então o cachimbo não é nada. Sequer existe.
Eu não disse isso. Talvez o cachimbo seja o homem em si.


“A semelhança se identifica com o ato essencial do pensamento: o de assemelhar-se, tornando-se aquilo que o mundo lhe oferece e restituindo aquilo que lhe é oferecido ao mistério, sem o qual não haveria nenhuma possibilidade de mundo nem de pensamento.”
René Magritte, L’art de La ressemblance, 1967

Os dois mistérios (1966), René Magritte

"Isto não é um cachimbo, mas o desenho de um cachimbo", "Isto não é um cachimbo, mas uma frase dizendo que é um cachimbo", "a frase: 'Isto não é um cachimbo' não é um cachimbo"; "na frase: 'Isto não é um cachimbo', isto não é um cachimbo: este quadro, esta frase escrita, este desenho de um cachimbo, tudo isto não é um cachimbo".
Michel Foucault, Isto não é um cachimbo

quarta-feira, 1 de abril de 2015

VENHA CÁ, LENDÁRIO

lá se vai março
que fica abril
não sei dizer

um se arrasta, natural
outro voa

lá se vai
para o bem ou para maio
perto de mim

junho por adeus,
quando passo pelo tempo
ele acena e me deseja

boa viagem, aproveite agosto
diga setembro
ou não

diga
que mandei abraço
outubro que sinto saudade
do que há devir
novembro

dezembro já sei, janeiro
faça chuva ou faça sol,
faça falta

nada muda mesmo
o infinito ano continua
fevereiro sempre igual
um novo

sábado, 28 de março de 2015

PERCEBER O TEMPO COMO OCEANO


Ao invés de imaginá-lo como um rio, cujo curso é linear, como se houvesse uma só linha do tempo. Como se houvesse hierarquia, de cima das montanhas às baixas planícies; os tempos áureos cruzando o agora, correndo na direção do futuro. Como se o tempo mais puro tivesse ficado para trás e não pudesse ser alcançado novamente, provocando saudades eternas. Não, o tempo como oceano é diferente. Não corre numa única direção – ele é um acúmulo de temporalidades diversas, um múltiplo indeterminado de correntes marítimas que flui em todas as direções e se transforma conforme a época. Correntes frias e quentes, fortes e fracas, vivas e mortas, rasas e profundas, claras, turvas, obscuras. Consecutivas. Coexistentes.

Fatos que na linha do tempo parecem distantes são sentidos muito próximos; acontecimentos recentes, por sua vez, parecem ocorridos numa outra era. O passado não passou, não ficou abandonado lá atrás, ele extrapola seu próprio tempo e está sempre disponível. Olho para o oceano infinito e vejo nele a memória do mundo, a sua história e o seu devir, tudo se realizando agora. Autores antigos são amigos que revisito constantemente e que parecem me dedicar os seus escritos. Artistas de outras épocas são onipresentes, por vezes se confundem com os nascidos hoje.

O tempo é todo nível do mar, a mesma altura em qualquer borda do mundo. O nível compartilhado, porto de onde todos partem. Se ele sobe, a humanidade sobe junta; se desce, todos nós descemos, sem exceção. Dependendo da maré, de forças exteriores, o tempo transborda para cima de nós. Afogamos em nosso próprio tempo, em sua demasia. Por vezes se dá o contrário: experimentamos o esgotamento do tempo, que se recolhe e nos obriga a persegui-lo, a desejá-lo e sobretudo a correr em sua direção.


Ilhas a princípio isoladas possuem um comum: estão atravessadas por esse tempo-oceano. Podem endossar ou não a conexão, podem usufruir dela, renegá-la ou simplesmente ignorá-la, entretanto ela permanece como potência do tempo, como um elo perdido.

É possível nadar através do tempo, assumindo o risco que acompanha o gesto. É possível navegar no tempo, em sua superfície calma ou intempestiva. Se acreditamos navegar por nossa própria conta, é somente por ingenuidade, que se faz arrogante. Acreditamos navegar livremente quando, enfim, estamos o tempo inteiro sendo sustentados. Basta um breve colapso para naufragar, desaparecer, deixar de existir, jamais ter existido na história. Basta uma guinada incerta para apagar-se.

Navegar no tempo implica desenhar um mapa. Trajetos dispostos numa carta náutica, projeto que se faz durante o percurso, cartografia de uma experiência. Viver o tempo, compor o tempo, inventar o mundo. Cruzar essas linhas com as de outros, desenhando mapas discordantes onde é permitido se perder sem medo nem razão. Fazê-lo mesmo sem permissão. Transgredir as rotas estabelecidas. Descobrir territórios no além-mar, escrever a epopeia do seu próprio existir. Fazer de fatos poesia, fazer versos das calmarias, tantos versos delas quanto das provações.

Tempo é criação, é de onde a vida surge. Invenção dos homens, só para nós ele faz algum sentido, quando faz. Sua superfície é quente, luminosa, acolhedora. É também leve e agitada. Já as profundezas são hibernais, obscuras, desconhecidas. São densas e lentas. Conseguimos mergulhar no tempo, lutar contra as forças que teimam em nos manter no conforto do sempre. Mergulhamos até o limite que os corpos suportam. Nossa carne é o que nos determina – rompemos a superfície do tempo sem conseguir ultrapassar a nossa própria. Até onde/quando o fôlego nos levará? Com a visão turva, observo os peixes nadarem com sua desenvoltura e quero saber: que relação natural é essa que mantêm com o tempo? Que tranquilidade é essa?



Que tempos são estes? São muitos tempos e relações temporais se realizando neste exato instante, que de exato não tem absolutamente nada. Quero nadar, entretanto corro. Contra o tempo, a favor, não sei. Quando tento flutuar afundo. Quero agarrar o agora porém ele escorre por entre meus dedos, fugidio; toca meu corpo inteiro sem se fixar ou se deixar possuir. Quem é dono do próprio tempo? Quando percebo, o presente já é passado; ele se esvai. Tempos líquidos, diria Bauman. Literalmente? Não. Prefiro dizer "literariamente". O tempo ficcionado, como sempre foi. Mas não o cronológico, na lógica absurda da máquina que supõe medir o tempo – o relógio mede somente a nós mesmos, os nossos mecanismos sociais. Ele é construído na medida do homem. Sua fantasia controladora, seus jogos de poder e dominação.

Que seja cronossensível, subjetivo, de acordo com a percepção de cada pessoa. Conforme os dias que voam, as horas que se arrastam, que desobedecem a ordem dos ponteiros e embaralham o calendário. Um oceano cheio de vida que, quando menos se espera, traz à superfície uma nova descoberta advinda daquele desconhecido imemorial, que está ao mesmo tempo tão longe e perto de nós.

Comecei a pensar neste texto há meses. Sinto como se fosse ontem.

[Para Maria Gabriela Llansol.]

*Imagens: trabalhos diversos de Sandra Cinto.

sexta-feira, 13 de março de 2015

Composição suprematista: branco sobre branco (1918), Kazimir Malevich

quem dera,
nenhuma imagem faria
o texto só
isto, letras e palavras
soltas numa folha
a voar

escrever
o que não deixa ser
(d)escrito

domingo, 8 de março de 2015

"Minha mulher".
A expressão me desagrada, admito.
"Minha" mulher. Minha por quê? Desde quando? Como pode?
Estar junto não significa possuir. A relação é muito maior, mais complexa e mais bonita.
Sou feminista, admito. Gosto de mulher livre, dona do próprio nariz. Que vem até mim por vontade própria. Que sabe o que deseja e não hesita.
Que vem a mim não porque me pertence, e sim porque gosta. Porque quer compartilhar experiências, amar e ser amada. Que está disposta a viver em parceria - em vez de estar "à disposição".
Mulher como você. Bonita, inteligente, cheia de si. Que não é minha, não, de jeito nenhum. É mulher que escolheu viver ao meu lado. E isso muito me honra.
Por essas e outras, desejo um feliz dia das mulheres a você. Não porque é minha ou porque é mulher como as outras. Um dia muito feliz, é isso o que eu mais lhe desejo, porque você é unica e porque você merece.

sábado, 7 de março de 2015

A BUSCA DO SIGNIFICADO IMPOSSÍVEL

Senecio (1922), Paul Klee

A dimensão do mar
A verossimilhança da sombra
A altura da vontade mor

A temperatura da paixão
A resistência da fé
A dureza da escolha
A solidez da promessa

A arte do esquecimento
A força do espírito
A exatidão da carne
As razões da crítica
A apreensão do tempo
A captura do instante
O encerramento da palavra-chave

A violência predominante
O princípio do preconceito
A brutalidade da maioria
A declaração da guerra
A rua sem saída
O destino da humanidade
O sabor da derrota

O mapa do além
O real, a realidade, o horizonte
O limite da fantasia
A verdade irrefutável
Absolutamente
O ser

[para Roland Barthes]

domingo, 1 de março de 2015

NOTAS SOBRE UM PIANO

Banner que acompanha o piano.
Clique na imagem para ampliá-la
Eu quis escrever este texto no mês passado, assim que vi a recepção incrível do projeto Piano no Metrô, em São Paulo. Um projeto bastante simples: botaram um piano na estação e uma placa convidando os usuários a tocar. Desde então, não importa a hora, não importa o dia, toda vez que passo ali ouço alguém tocando, desde curiosos tendo o primeiro contato com o instrumento até músicos talentosos complementando a apresentação com canto lírico, desde o jazz mais complexo ao mais tímido dó-ré-mi-fá fá-fá. Passo todo dia pelo piano. Diversas vezes parei com intuito de ouvir a música até o final. Vi dezenas de pessoas se acumularem ao redor, vi pianistas serem ovacionados em plena hora do rush. E pensei algumas coisas a partir disso:

1) Vivemos um vazio. Não é que vivemos no vazio, pelo contrário: vivemos um vazio de experiências no excesso da metrópole, neste conturbado cotidiano de horários rígidos, informações desencontradas, imagens, consumo, whatsapp, imagens, imagens, baboseiras, bobagens, violência, impessoalidade, banalização, imagens, desafeto. O que falta para preencher o vazio? Existência, claro. Falta experiência de vida, experiência estética e política; ser, estar, ouvir, participar, compartilhar. Então o sujeito se depara com um piano no metrô e começa a tocar. Outro acha bonito, aproxima-se. A mulher, atrasada para o compromisso, reconhece a música e canta baixinho. Antes do fim, são quinze, vinte desconhecidos cantando juntos, batendo palmas no ritmo, preenchendo um pouquinho do vazio alheio.
      (A 28ª Bienal de SP: Em Vivo Contato, à época criticada como "bienal do vazio", volta à memória, revela potencial e pertinência, dando sequência à 27ª: Como Viver Junto. Não é lindo?)

2) Vão quebrar o piano, esse povo sem educação. Pois não quebraram. Não depredaram, não fizeram arruaça. E o piano vai completar dois meses. Vândalo não ouve música, é a conclusão mais fácil, que farão você apoiar, e não poderia ser mais enganosa. Os mesmos usuários do transporte público que cantam ao piano são os que quebram trens e plataformas. Somos os mesmo sujeitos, somos iguais; nem eu nem você: nós. Diferenciar-nos não leva a nada, exceto a mais violência. O que "resolve" a questão é andar de metrô, ocupar os espaços públicos, participar do dia a dia da cidade. É preciso mais piano e menos lotação, mais qualidade e menos tarifa, mais respeito e menos acusação, mais vontade política e menos pilantragem. É preciso que os cidadãos gostem do transporte público, que experimentem e cuidem da cidade. Convidá-los a fazer parte em vez de fazer vítimas. As ciclovias e corredores de ônibus seguem o mesmo caminho. Um dia você vai usá-los. E vai gostar.

3) Um responsável quis barrar o projeto, disso você pode ter certeza. Existe sempre quem duvida que um insetinho pode emitir luz própria. Talvez tenha sido você, que num primeiro momento achou bobagem, achou que não daria certo, que a prioridade seria outra. Afinal, somos todos responsáveis, não é necessário o cargo. Seja quem for essa pessoa, tenho um recado: bem feito. Seja por ter perdido o páreo, seja por ter cedido ou apoiado, bem feito, deu certo, foi uma experiência válida. Ninguém precisou construir estádios de futebol ou desviar bilhões de reais. Bastou um piano para irromper uma experiência coletiva positiva. O show fica por conta dos participantes, cidadãos, vândalos, pode nos chamar do que quiser, obrigado.

4) Ultimamente, à noite, tenho visto gente se reunir em volta do piano, botar as mãos ao alto e cantar música religiosa, transformando a estação numa espécie de culto, usando a oportunidade da experiência estética para pregação ideológica. Muita gente, mesmo. Fazem isso apesar do aviso de que "o projeto Piano no Metrô não tem finalidade política, religiosa ou esotérico-mística e não pode ser utilizado para a prática de cerimônias religiosas ou atividades afins". Ainda não sei o que pensar, já debati o assunto sem chegar a um acordo (liberdade de expressão, respeito ao espaço do outro, apossamento, segregação, profanação da música sacra, e se fosse Bach, poderia tocar?). Deixo aqui somente a constatação, além da suspeita de que logo isso vai se tornar um problema (aliás, o aviso sempre esteve ali ou foi incluído depois?).

5) O piano no metrô é um vaga-lume, cujo brilho resiste ao excesso de esclarecimento que ofusca sua tentativa de sobrevivência. "Desapareceram mesmo os vaga-lumes?", pergunta Georges Didi-Huberman. "Desapareceram todos? Emitem ainda – mas de onde? – seus maravilhosos sinais intermitentes? Procuram-se ainda em algum lugar, falam-se, amam-se apesar de tudo, apesar do todo da máquina, apesar da escuridão da noite, apesar dos projetores ferozes? (...) Eles desapareceram de sua vista porque o espectador fica no seu lugar que não é mais o melhor lugar para vê-los. (...) Há sem dúvida motivos para ser pessimista, contudo é tão mais necessário abrir os olhos na noite, se deslocar sem descanso, voltar a procurar os vaga-lumes". Caminhamos pela cidade sem os notar, esses pequenos lampejos de beleza. Assim eles desaparecem para nós.

Eu quis escrever um mês atrás, mas foi bom esperar o projeto se desenvolver. Agora posso afirmar que a melhor realização do metrô de São Paulo, nos últimos anos, foi colocar o piano na estação República (parece que há outro na Luz). Poderia ter sido a construção de 50 estações, mas foi o piano. E mesmo que houvesse as 50 estações, mesmo que tivessem sido construídas sem corrupção, eu ainda gostaria mais do piano. Porque a ampliação da rede é obrigação do governo. Já o piano é um toque de sensibilidade na vida de quem habita aquele vazio superlotado tão carente de afeto.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Escultura de Tomie Ohtake
  basta ser humano
  basta, ser humano
  basta ser, humano
  basta ser humano,

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

JUÍZO, AFINAL

Giudizio Universale, de Beato Angelico (Museo di S. Marco, Firenze)
“Acredite-me, as religiões enganam-se, a partir do momento em que pregam a moral e fulminam mandamentos. Não é necessário existir Deus para criar a culpabilidade, nem para castigar. Para isso, bastam os nosso semelhantes, ajudados por nós mesmos. O senhor falava-me do Juízo Final. Permita-me que ria disso respeitosamente. Posso esperá-lo com tranquilidade: conheci o que há de pior, que é o julgamento dos homens. Para eles, não há circunstâncias atenuantes, mesmo a boa intenção é tida como crime. Ouviu ao menos falar da cela de escarros que um povo criou recentemente para provar que era o maior do mundo? É uma caixa de alvenaria, em que o prisioneiro fica de pé, mas sem poder se mexer. A sólida porta que o encerra em sua concha de cimento chega apenas até a altura do queixo. Vê-se, pois, unicamente o seu rosto no qual todo guarda que passa escarra à vontade. O prisioneiro, espremido na cela, não se pode limpar, ainda que lhe seja permitido, é bem verdade, fechar os olhos. Pois bem, isto, meu caro, é uma invenção dos homens. Não precisaram de Deus para criar esta obra-prima.

E então? Então, a única utilidade de Deus seria garantir a inocência, mas eu vejo a religião antes de tudo como uma grande empresa de lavanderia, o que aliás ela foi, mas por breve tempo, precisamente durante três anos, e não se chamava religião. Desde então, falta sabão, andamos com o nariz sujo e nos assoamos mutuamente. Todos culpados, todos castigados, escarremo-nos, e pronto: já para o desconforto. É ver quem escarra primeiro, eis tudo. Vou contar-lhe um grande segredo, meu caro. Não espere pelo Juízo Final. Ele se realiza todos os dias.”

A queda 
Albert Camus