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quinta-feira, 13 de outubro de 2011

DESFAZER

Seria um costume estranho, que os mais chegados certamente criticariam, caso soubessem. Pois não sabiam e, pela mesma razão, os mais chegados tampouco existiam. Ele não tinha por que contar, tratava-se da sua maneira particular de pertencer ao mundo. Deixando rastros quase imperceptíveis, plantando provas de sua passagem, demarcando territórios anonimamente. Era muito simples, bastava tirar um pedacinho de seu corpo e o deixar para trás. Ficaria ali para sempre, enquanto o resto seguiria seu caminho. Uma ideia linda, pura poesia. Uma lasca de unha no assoalho do táxi que foi buscá-lo no aeroporto. Pelos da perna ou do braço sob o colchão do hotel. Cera de ouvido no tampo da mesa do bar, esfregada por baixo. Cabelo no ralo do banheiro. No ralo da pia, que é mais difícil de limpar. Uma fina camada de pele inserida com cuidado no vão de uma escultura de museu. Saliva no banco da praça.

Viajava sozinho, como sempre. A vida é solitária, por mais que as pessoas se envolvam e disfarcem o fato. A vida solitária é um castigo para o qual os insatisfeitos com a própria existência nos empurram. Fazem força para dar à luz, os desgraçados. Ele sabia disso muito bem, aprendera sozinho, observando. Sabia que tinha sido posto no mundo coletivamente, mas morreria sozinho, porque morrer é uma tarefa que ninguém poderia cumprir por ele. Nenhum dos egoístas do passado, nenhum dos individualistas do presente. Os egocêntricos. Incerto dia, ele morreria num lugar qualquer sem jamais ter tocado o chão, mudado a paisagem, conduzido as rédeas da humanidade. Sem jamais ter protagonizado nada relevante ou ter assumido responsabilidades. O mundo continuaria a existir exatamente da mesma maneira que existia antes dele, e ele morreria sem jamais ter sido alguém.

Tal como as migalhas de pão do conto de fadas, ele espalhava frações de seu corpo por aí. Não para retornar mais tarde, porque ainda havia muito caminho pela frente, um caminho interminável, impossível de vencer. A estrada era maior do que ele. Incomparavelmente maior. A lasca de unha, os fios de cabelo, as células de seu corpo que iam caindo e compunham a poeira do mundo ficavam para trás com objetivo de marcar a passagem, de oficializar sua breve estada, de pontuar um capítulo para que ele pudesse, de alguma maneira, sentir-se presente, sentir-se vivo, tocar e ser tocado. Ele queria estar no maior número de lugares possível. Era um ritual próprio, sua maneira de pertencer. Não ficaria preso a si, ao seu corpo. Estaria, ao mesmo tempo, no mundo inteiro e dentro de sua consciência pessoal.

Tudo bem que ninguém o notasse. Os outros estavam preocupados demais com as próprias trajetórias para acolhê-lo em atenção. Ele preferia existir no anonimato, com total autonomia, a incomodar o cão. Bastava de latidos e perseguições, sua infância tinha experimentado o suficiente, era só fechar os olhos e lembrar, caso necessitasse.

Pois não necessitava. O caminho ia à frente, era impossível enxergar o final, tão impossível alcançá-lo com os olhos quanto com os pés. Mas a próxima curva não ficava tão longe. Era para lá que ele rumava. Sempre na direção da próxima curva.

Deixou os restos da barba recém-feita, ainda misturados à espuma, em cima da porta do banheiro. Puxou uma cadeira, subiu, ficou observando a água penetrar na folha de madeira e grudar os pelinhos ali, onde ninguém iria mexer. Mudou-se, então, para outra casa. Não havia tempo a perder. Nessa, grudou um chiclete no fundo da caixa d’água, arrancando antes um dos dentes e o enfiando na goma. Ele esvaziou a caixa cuidadosamente e só voltou a enchê-la três dias depois, quando o chiclete secara bem o suficiente para ficar firme. O rito se aperfeiçoava. A boca ainda sangrava quando a escova de dente resvalava a ferida, mas deveria estancar dentro de dois ou três dias. Foi o que aconteceu, e ele já tinha partido de lá.

O costume o acompanhou durante todo o tempo, ganhou estatuto de missão, de objetivo de vida. Sempre um sacrifício novo.

Houve uma casa da qual ele gostou mais, sentiu vontade de se estabelecer e isso não podia acontecer, não poderia se deixar seduzir. Era uma casa confortável, com roseiras plantadas junto ao muro da frente e crisântemos no quintal dos fundos. Havia touceiras grandes de crisântemos, eram bonitos e repousantes. Ele estava cansado da caminhada, cansado de mudar e mudar novamente, de carregar todos os seus pertences em duas malas de mão, de aprender novas línguas, de se adequar forçosamente a outros costumes, perdendo sempre. Cansado de tratar com o entorno, de dar tanto de si... em troca de quê, mesmo? Hesitou por um instante, surgiram dúvidas. Isso não podia acontecer. Ainda restava muito caminho pela frente; o cansaço e os vícios não poderiam vencê-lo. Ser derrotado por um motivo tão reles, jamais.

Ele deixou um dedo naquela casa, como forma de gratidão. Achava que o lugar merecia um dedo, talvez mais. Enfim, tinha sido um dedo útil, deveria bastar.

Dali em diante, começou a prestar mais atenção aos imóveis alugados. O dedo que faltava serviria para lembrá-lo de não cometer o mesmo erro duas vezes. As casas ou os apartamentos não podiam ter atrativos que ofuscassem sua missão. Daria preferência a hotéis sempre que possível. Ele também não poderia ser tentado por ruas, praças, campos, praias, estradas ou poltronas – adorava poltronas, em especial aquelas que cedem ao peso do corpo cansado e reclinam para trás. Só que não podia se deixar ludibriar por móveis ou imóveis ou paisagens banais, por mais idílicos que fossem. Precisava continuar indo em frente, sempre em frente, superar os vícios e evitar ao máximo dispêndios irreversíveis.

Anos depois, não lhe restavam muitos dedos para contar. Com o avanço da idade, ficava difícil não se envolver emocionalmente com um lugar e estabelecer raízes. Precisava podá-las, arrancá-las da terra quando começavam a brotar, e isso lhe doía.

Teve que apelar para uma orelha quando encontrou a praia dos seus sonhos, um paraíso bonito e tranquilo, de águas quentes e vastidão deserta. Decepou-a com um velho canivete de bolso e a enterrou com carinho na areia, perto de um amontoado de pedras que ia até o mar. Queria aquela praia para si, estar nela por toda a eternidade. Queria espalhar-se inteiro por ali.

Levantou o rosto com um sorriso triste. O sangue escorria pelo pescoço e pingava no peito, misturando-se ao suor. Fazia tanto calor, o sol estava tão a pino que ele não percebia nem o sangue nem a dor. As gotas caíam na areia como chuva. Ele tinha notado isso antes, porém, o lugar era perfeito demais para que deixasse ali apenas suor e sangue, tal como outros também poderiam fazer.

Levantou o rosto essa última vez, respirou profundamente, deixou que a paisagem o invadisse por todos os cantos, inflando-o com força de vontade. Então, virou as costas e partiu sem olhar para trás.

Um dos pés ficaria numa acolhedora cidade interiorana, dessas em que dá vontade de chegar e não sair mais. A patela ficou no campo, perto dali, numa plantação amarela que, com o vento abafado movimentando a vista, lembrava pinturas de Van Gogh. A omoplata, difícil de tirar, ficou no alto do edifício mais alto, porque ela parecia uma asa e, naquele momento, tudo o que ele queria era saber voar.

Sua vida se sucedeu assim, pé ante pé, até que precisou arrastá-la com os cotovelos, depois com os ombros, depois com o movimento dos músculos do abdômen. Quanto mais avançava, mais feliz ficava, mais satisfeito por conhecer e se espalhar no infinito. A cada metro vencido, ele ficava maior, ficava mais completo; ainda que continuasse incógnito. Apesar de seus feitos, apesar de estar ao mesmo tempo em tantos lugares diferentes, de ter conquistado tudo aquilo, ele continuava ignorado. Pois bem, os outros não importavam. Na vida, tinha sido sempre ele e o mundo, e agora que a morte se aproximava, deveria continuar assim.

Quando nada mais lhe restava, cavou um buraco fundo, tão fundo que não pertencia oficialmente a lugar nenhum, a cultura nenhuma, a governo nenhum, a nenhuma forma de vida ou instituição que pudesse reivindicar o conteúdo. Depositou ali seu coração, tal como uma semente de amor no centro do mundo, de modo que pertencesse ao tudo e ao nada consecutivamente. Queria brotar, crescer e se espalhar o máximo possível com raízes, galhos, frutos e sementes. Queria transformar o ar. Multiplicar-se. Aquele seria seu lugar definitivo, embora um lugar definitivo fosse o que menos desejasse.

Não havia mais o que fazer, acreditava ser a hora derradeira. Jamais saberia quanto da missão tinha cumprido, se tinha andado o suficiente para se afastar do início e se aproximar do fim com dignidade. Jamais saberia se tinha valido a pena, se tinha conseguido escrever suas linhas, colaborar com a história, transformar um pouco o curso das coisas, acrescentar seu toque pessoal ao entorno, sugerir seu gosto, mesmo que fosse imperceptível ao sentimento alheio. Jamais saberia em que locais do mundo se encontrava. Nunca se sabe. Tudo o que ele queria era pertencer, de uma maneira ou de outra. Pois bem, tinha chegado a algum lugar. Se era para ser assim, então, que fosse.

Mal sabia que a história não termina, que não tem começo, meio ou fim. Naquela nova cavidade, construída com tanta fé, seu coração continuou pulsando. Continuou batendo forte, mesmo quando sua alma foi dali para outro lugar qualquer.

*A imagem que ilustra o conto chama-se Mesa Surrealista (1933), de Alberto Giacometti

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

"A arte se diferencia do pensamento puro porque é material, e das coisas ordinárias porque é pensamento."

Waldemar Cordeiro, O objeto (1956)

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

ÁGUA MOLE, PEDRA DURA

Era para ser uma pintura rápida, um esboço a óleo sobre tela que, nas palavras do retratado, levaria uma ou duas horas para ser concluído. Alberto Giacometti e James Lord eram amigos, e aquilo tinha como propósito apenas a diversão de ambos. Um disse que queria, o outro respondeu que faria e pronto, estavam combinados. Só que a persistência do artista para obter um resultado satisfatório – entre suas tormentas existenciais e ameaças de abandono do projeto – levou o modelo a posar durante catorze dias não-consecutivos. Isso mesmo, catorze sessões de duas a quatro horas cada! Esse processo criativo foi registrado pelo escritor num divertido diário, que, além de revelar detalhes sobre a obra de Giacometti e sobre sua concepção de arte, também nos leva a pensar em nossas próprias vidas, em como reagimos às adversidades, na relevância de nossos planos e no que, afinal, nos faz felizes.

E tem mais: durante esse tempo todo, o artista pintou apenas a cabeça do amigo. Pintou e repintou, pintou e repintou, concentrando-se somente nela. Considerava a tarefa impossível, mas continuava tentando. Ao fim de cada sessão, os dois olhavam a tela e notavam certo avanço, mas no dia seguinte o pintor apagava tudo e recomeçava do zero. “Estou destruindo você”, dizia. James Lord se angustiava. Com o tempo, porém, aprendeu a dar de ombros e assentir: “É você quem manda”. Seu respeito pelas escolhas do mestre beirava à devoção. Em troca, Alberto lhe ensinou que cada passo adiante é sempre uma luta contra as próprias crenças, e que a superação depende também de muita cessão, além da tradicional força de vontade.

Em setembro de 1964, dinheiro e fama já não eram problemas para ele. Suas obras podiam ser vistas mundo afora e agradavam tanto o público quanto a crítica. O artista já tinha até mesmo conquistado o Grande Prêmio de Escultura da Bienal de Veneza, o mais importante de sua carreira. Ainda assim, persistia na empreitada, blasfemava que não entendia nada daquilo, que deveria desistir de uma vez por todas, pois jamais conseguiria fazer alguma coisa bem feita. As glórias do passado não iludiam seus olhos nem transbordavam sua autoconfiança. Todo dia era um novo dia, e isso ficou evidente durante a pintura do retrato. Seu temperamento exagerado pedia toda a paciência de James Lord. No entanto, ao ler o diário, publicado propositadamente sob o ambíguo título de Um retrato de Giacometti, ele chega a ser hilariante.

Pois bem, qual é a relação disso tudo com a nossa busca por felicidade? No livro A arte da vida, o filósofo Zygmunt Bauman afirma que a vida é uma obra de arte e que “devemos, tal como qualquer outro tipo de artista, estabelecer desafios que são difíceis de confrontar diretamente; devemos escolher alvos que estão muito além de nosso alcance, e padrões de excelência que, de modo perturbador, parecem permanecer teimosamente muito acima de nossa capacidade de harmonizar com o que quer que estejamos ou possamos estar fazendo. Precisamos tentar o impossível”.

Alberto Giacometti parece ter sido a encarnação perfeita dessa proposta. Em um momento de desânimo, chegou a prometer os milhões de sua poupança a alguém que pintasse “aquela maldita cabeça” por ele.

“Tenho certeza de que, por essa quantia, muitos o fariam”, comentou o modelo na ocasião, ao que o artista prontamente retrucou: “Não fariam à minha maneira”. Não se tratava apenas de uma saída irônica. Ele realmente assumia a tarefa como um desafio pessoal e precisava cumpri-la a qualquer preço. A razão da sua arte consistia em representar o mundo da maneira como ele se mostrava a seus olhos, e só com muito suor conseguia executá-la – o dinheiro não lhe valia de nada.

No citado livro, Bauman faz uma comparação interessante entre renda e felicidade, mostrando que, após serem atendidas as exigências básicas para se viver com dignidade, o nível de felicidade continua estagnado, mesmo que a renda se multiplique exponencialmente. Em outras palavras, o crescimento econômico só influencia a felicidade das pessoas até certo ponto.

No geral, continuamos acreditando que comprar nos deixa mais felizes. Bauman alerta para o perigo de se cair no conto do publicitário, que sempre apresenta uma nova etapa nessa busca. Prolongando o caminho, nunca atingimos o fim. E, durante a jornada, acabamos nos esquecendo de coisas mais importantes, que o dinheiro não compra.

Uma delas é o desafio que se impõe a cada dia e nos obriga a superar obstáculos para realizarmos um bom trabalho, digno de orgulho próprio, exatamente como fazia Giacometti. Trata-se de uma satisfação cada vez mais rara. Confrontando-se com problemas que pareciam insolúveis, ele reinventava a si e a sua arte. Possivelmente foi essa incessante busca que o fez, além de um talento mundialmente reconhecido, um homem feliz. A persistência, como sugere o ditado, leva à realização. O diário de James Lord é testemunha disso e, por que não?, serve de manual para uma vida melhor, em que tanto a arte quanto a felicidade estão ao alcance de todos.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

ALGUNS SÃO ARTISTAS, INDEPENDENTEMENTE DA ÁREA EM QUE ATUAM



Ó MORTE, Ó MORTE
SÁBIO DOM DE DEUS.
DE TI VÊM AS GRAÇAS DO MUNDO
ATÉ O AMOR.
E AGORA AQUI, ONDE NÃO HÁ
                                       RETORNO 
COM OLHOS VAZIOS OLHAMOS
AS NUVENS, O MAR, AS SELVAS
SEM MAIS MISTÉRIOS.

Dino Buzzati, em Poema em Quadrinhos

domingo, 2 de outubro de 2011

A SE CONSIDERAR

Outro dia, me perguntaram por que tento sempre destacar um ponto positivo nas obras que critico, mesmo naquelas que não me agradam. Ora, acho muito triste quem não encontra algo interessante em livros, músicas, filmes, quadros, danças, esculturas... enfim, na criação artística em geral. Acho, inclusive, que nesses casos o problema não está na obra, mas no crítico. Nada é 100% bom ou 100% ruim, nem a arte nem os homens; o que existe são pontos de vista. O que um odeia, outro pode amar. Quem está errado? Ninguém. O papel da crítica é propor uma leitura, fundamentar reflexões a respeito, instigar o leitor a experimentar – muito se engana quem acredita que o crítico deve falar mal, e só. Penso justamente o contrário. Falar mal é fácil demais. Existe, porém, sempre um ponto positivo, e para revelá-lo é necessário antes vencer a própria mesquinhez. Se você não consegue vê-lo, talvez seja hora de deixar a produção alheia de lado e criticar os seus sentimentos pessoais.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

A PALAVRA AO LEITOR

"(...) O texto literário é um texto que também dá voz ao leitor. Quando escrevo, por exemplo: 'A casa é bonita', coloco um ponto final. Quando você lê para uma criança 'A casa é bonita', para ela pode significar a que tem pai e mãe. Para outra criança, 'casa bonita' é a que tem comida. Para outra, a que tem colchão. Eu não sei o que é casa bonita, quem sabe é o leitor. A importância para mim da literatura é acreditar que o cidadão possui a palavra. O texto literário dá a palavra ao leitor. O texto literário convida o leitor a se dizer diante dele. Isso é o que há de mais importante para mim na literatura."

Bartolomeu Campos de Queirós, no projeto Paiol Literário, promovido pelo jornal Rascunho

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

POESIA HOJE E SEMPRE

Poemas adquirem um novo significado a cada dia, e outros significados de acordo com as pessoas que os leem. Por isso, encontrar o poema certo no dia certo é um privilégio.

Quando William Blake me disse que, se somos amados, não sofremos, poderia ter parecido uma bobagem sentimentalista. Poderia, se ele não tivesse dito isso na hora certa.

Foi o que o poema abaixo significou para mim, e significou muito. Talvez ele diga algo diferente a você, ou talvez não diga nada.

Talvez o problema seja o poema, mas eu acredito que, se isso acontecer, o errado é o dia. O segredo é continuar tentando.


O LÍRIO
A modesta Rosa exibe espinhos agora:
A humilde Ovelha pôs seu chifre pra fora:
Enquanto o branco Lírio goza feliz o Amor,
Espinhos e chifres não lhe tiram o alvor.

THE LILY
The modest Rose puts forth a thorn:
The humble Sheep, a threating horn:
While the Lily white, shall in Love delight,
Nor a thorn nor a threat stain her beauty bright.

sábado, 10 de setembro de 2011

TODOS QUEREM SER EUROPA/EUA E RUMAM PARA LÁ?

Chamamos a nós mesmos de subdesenvolvidos, de terceiro mundo, de periferia do mundo. Aceitamos os termos sem procurar entender o que eles significam, se é que significam algo verdadeiramente relevante. Afinal, existe um modelo de civilização a seguir? Em que ela é melhor do que a nossa? Para onde a cultura brasileira ruma? O poeta e crítico mexicano Octavio Paz me fez pensar nisso um instante.

"O artigo subdesenvolvido pertence à linguagem anêmica e castrada das Nações Unidas. (...) O vocábulo não tem nenhum significado preciso nos campos da antropologia e da história: não é um termo científico, mas um termo burocrático. (...) Sob o amparo da sua ambiguidade, deslizam-se duas pseudoideias, duas superstições igualmente nefastas: a primeira é dar como estabelecido que só existe uma civilização ou que as diferentes civilizações podem ser reduzidas a um modelo único, a civilização ocidental moderna; a outra é acreditar que a mudança das sociedades e culturas são lineares, progressivas, e que, em consequência, podem ser medidas."

Octavio Paz, em Os filhos do barro (1974)

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

A morte chega sorrateiramente;
ela engana, desvia do alvo,
muda de ideia, não avisa,
age sem pensar.
Às vezes, morrer parece ser,
simplesmente,
questão de sorte
ou azar.

(inspirado no conto Em um outro país, de Ernest Hemingway)

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

“O que oferecerás a Morte, quando
ela bater à tua porta?
Vou oferecer à minha hóspede a taça
cheia de minha vida. Não deixarei que ela
vá embora de mãos vazias.
Colocarei diante dela a suave colheita
de todos os meus dias de outono e de todas
as minhas noites de verão. No fim dos meus
dias, quando ela bater à minha porta, vou
entregar-lhe tudo o que ganhei e tudo o que
recolhi com o árduo trabalho da minha vida.”

Rabindranath Tagore, em Gitanjali

terça-feira, 6 de setembro de 2011

ARTE NO LIXO



Lixo Extraordinário, documentário que concorreu ao Oscar deste ano, mostra como a arte pode envolver e transformar pessoas. É emocionante, mesmo para quem não se liga muito no assunto.

Trata-se de uma espécie de making of de um projeto artístico de Vik Muniz, em que fica evidente a complexidade da sua criação. Por trás das fotos exibidas em museus e galerias de todo o mundo existe uma vontade muito grande de fazê-las acontecer, uma equipe de especialistas e um longo tempo de execução.

Vi o filme no sábado passado, durante evento da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Na sequência, houve duas leituras críticas, acompanhadas de um debate aberto com a plateia. Os convidados para a mesa foram o jornalista Manuel da Costa Pinto e o psicanalista Plinio Montagna.

A conversa foi ótima, mas o filme foi melhor ainda, principalmente pelas questões que nos propõe. Por essas e por muitas outras, acho que você também precisa assistir.

Site oficial: LixoExtraordinário.net




sábado, 3 de setembro de 2011

BEM DIANTE DOS OLHOS

Perto do meu trabalho havia uma casa antiga, daquelas com hall de entrada envidraçado que dava para a rua – uma das poucas construções do tipo que conseguira sobreviver aos prédios espelhados e às franquias de estacionamento. Um casal de velhinhos passava as tardes ali, cada um em sua cadeira de balanço, fizesse chuva ou sol. Eles observavam, simplesmente. Sempre que eu cruzava o local, virava o rosto para conferir e lá estavam os dois, observando o movimento. A cena continha um lirismo particular. Agora, ao terminar a leitura do conto A janela de esquina do meu primo, ela me voltou à lembrança. Já explico por quê.

Trata-se da narrativa derradeira do alemão E. T. A. Hoffmann, publicada entre abril e maio de 1822, dois meses antes de seu falecimento, aos 46 anos, vitimado por uma doença degenerativa muito semelhante a do protagonista, que o impedia de andar e escrever.

Sem dúvida, o teor autobiográfico do texto é irrefutável. Merece destaque, entretanto, o relato que faz da vida social metropolitana daquela Berlim em plena transformação.

O personagem que dá título ao conto, escritor de certo renome, então condenado a passar os dias observando a vida acontecer através da janela de seu apartamento, tenta ensinar ao primo como enxergar a modernidade que se apresenta logo adiante, na feira livre do outro lado da rua.

O frenesi, o efêmero, o senso de civilidade, o comércio, os tipos urbanos, a burguesia em ascensão, as relações sociais e a nítida diferença entre classes – tudo isso aparece no conto de Hoffmann. Talvez o autor tenha sido o primeiro a explorar tais temas com tamanho afinco, embora a façanha ficasse mais conhecida com Edgar Allan Poe (O homem da multidão, 1840) e Charles Baudelaire (O pintor da vida moderna, 1863).

"Falta-lhe a disposição mais elementar para poder seguir os passos de seu primo digno e paralítico, ou seja, um olho! Um olho que realmente enxergue! Aquela feira do mercado não lhe oferece senão a visão de um colorido e alucinante amontoado de gente se movendo num afã insignificante. Há, há! Ao contrário de você, meu amigo, vejo desenrolar-se um cenário variado da vida burguesa e meu espírito (...) inventa um esboço após o outro, cujos contornos mostram-se com frequência impregnados de malícia." 
 
Ilustração de Daniel Bueno para edição da Cosac&Naify

Com uma luneta em mãos, o escritor paralítico consegue se aproximar da multidão que se acotovela na praça, caminhar entre as pessoas e as observar uma a uma, em detalhes. Munido de olhos atentos e muita imaginação, passa a preencher as lacunas proporcionadas por esses breves encontros, inventando premissas e desenlaces, modificando a realidade por meio da ficção, recriando o mundo como lhe parece mais conveniente.

É um artifício que permite ao autor desenvolver os mais diversos assuntos, incluindo alguns bastante proféticos. Hoffmann denuncia, por exemplo, o preconceito com estrangeiros e a repulsa que a miscigenação de culturas provoca nos mais ingênuos, que desejam manter a identidade local intacta. Antecede, portanto, em quase dois séculos os anseios da globalização e as diferentes fobias sociais que, infelizmente, ainda constatamos nas cidades de hoje.

Há também o anonimato e o conflito paradoxal de se misturar à massa sem perder a individualidade, questões-chave do modernismo europeu. Observando pela janela o mundo em transformação, os atores do conto nos introduzem uma problemática que renderia reflexões por, no mínimo, mais cem anos.

"Essa janela é meu consolo, aqui a vida alegre ressurgiu para mim e eu me sinto reconciliado com o movimento incessante que me proporciona. Venha, primo, dê uma olhada para fora!"

O apartamento ocupado por Hoffmann ficava acima da taverna Lutter & Wegner, que ele tanto frequentou

Terminada a leitura, lembrei imediatamente do casal de velhinhos lá de perto do trabalho, que ficava a observar a vida acontecendo através do vidro do alpendre. Não sei o que houve com eles. Passei um dia e não estavam lá, nem no outro, nem no seguinte. A casa acumulou poeira, a janela embaçou, as cadeiras de balanço desapareceram. Então, numa tarde como outra qualquer, um trator colocou tudo abaixo. No lugar, montaram um fast food especializado em yakisoba.

Há diversos prédios comerciais nas proximidades, o restaurante vive lotado. Eu mesmo almoço lá de vez em quando, naqueles dias de pressa em que tenho muito a escrever e prazo curto para terminar. O conto de Hoffmann me fez perceber que, mergulhado nessa realidade alucinante, fico impedido de ver – e de compreender – o que acontece ao meu redor. Na maior parte do tempo, minha vida é uma reação instintiva aos constantes estímulos externos. E só.

Lembrei do simpático casal de velhinhos que ficava a observar o frenesi cotidiano através da janela e, inspirado pelo conto recém-lido, passei a me perguntar que tipo de futuro eles enxergavam ali.