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quinta-feira, 10 de julho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (11)

Não tenho condições de esmiuçar o grande amor da minha vida porque ele não cabe aqui; eu teria que escrever um romance, talvez uma trilogia, como está na moda. Nem mesmo assim... a literatura não daria conta, é muita responsabilidade. Além do mais, o amor é nosso, tem a nossa cara, o nosso jeito; duvido que interesse aos leitores.

Posso compartilhar apenas uma lembrança, que no fim das contas resume bem o casamento. Uma cena. Assim:

Eu quero sanduíche, Juliana quer sopa. Inclusive, ela quer que eu tome sua sopa também. Levo meia hora persuadindo-a de que podemos muito bem jantar juntos com ela tomando a sopa e eu comendo o sanduíche. Gera um atrito mas ela concorda. Preparamos os pratos, sentamos para jantar. E ela come o meu sanduíche.

Rimos. Tomo a sopa, que estava gostosa, até.

Passamos então a planejar o cardápio do dia seguinte.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (10)

Já amei mulher casada. Sim, já. Para melhor ou para pior, acredito que ela me amou também, e ficou esperando um movimento meu para reviver o universo em seu estado de caos. Não seria um ato fugidio, ou ato falho, isso nunca me interessou; seria aposta das grandes, daquelas que põem tudo em risco. Acredite, milhares de possibilidades passam pela cabeça de quem ama nessas condições. Porém as cartadas nem sempre são decididas ali, na cabeça, e algumas daquelas possibilidades por vezes se tornam fato.

Eu estava solteiro na época, sem namorada nem nada. E achava inconcebível não poder amá-la porque um dia, num passado não tão distante, Giovana decidiu se comprometer por toda a vida. Não fazia sentido. Era tão jovem! Tão jovem quanto eu. E, no limite, restava a nós somente uma parcela da vida para sermos felizes.

Sabe, a traição é sempre questão de egoísmo. Não é um moralista que fala, ok? Penso isso friamente. Pode ser que a mudança compense, afinal; não dá para estabelecer uma regra. Mesmo assim, quando a jogada dá certo e os envolvidos ficam bem, ainda me parece egoísmo. Por causa do desejo de romper uma relação somente para iniciar outra. Porque essa outra seria supostamente melhor. Pura tentação. Uma cilada que pode terminar mal. Enfim, é amor. E amor não tem mesmo fundamento, de nada adianta querer justificá-lo.

Fato é que hoje o casado sou eu. Só quando me comprometi é que pude entender o poder do rito. Não foi antes, não foi quando achei que convinha casar. Foi na hora do sim. Compreendi que não se trata de abrir mão de outros amores. Mas, sim, de me dedicar inteiramente ao meu; aquele que provou valer a pena.

Ainda, uma aposta. Que beco sem saída!

Veja bem, sem arrependimentos, continuo a amar mulher casada. A minha.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (9)

Já tentei amar com objetivo de esquecer outro amor. Foi patético; óbvio que não deu certo. Porque não se anula um amor com outro, assim como não se divide o amor em dois. Amor apenas soma. Se o resultado não confere, sinal de que algo na equação está errado – convém rever os elementos.

Insisti durante um tempo. Pouco, na verdade. Para minha sorte, Júlia percebeu e não se deixou enganar. Foi mais esperta, pois eu nem sabia que a enganava. Aliás, enganava a mim, a ela e a meu outro amor, o verdadeiro.

Nossa relação, na qual eu depositava uma quantia incontável de esperança, ingênuo que fui, rompeu de uma hora para a outra, tamanha a sua inconsistência. Desandou. Até nisso eu me enganava.

Investi meu espírito na ciência do amor, por mais incompatíveis que fossem, a princípio. Jamais consegui explicar a razão. De algum modo, acredito que ela compreendeu. Não precisou da lógica, apenas do sentimento. Achei-a forte, decidida. Foi gentil comigo. E desapareceu.

Fiquei livre para me dedicar ao amor primeiro, aquele que eu tentava esquecer sem sucesso, que originou toda a discórdia. Também ele não deu certo, coisa que eu sabia desde o início. Repassei cada uma das suas questões, revisei os dados, adicionei pontos positivos, subtraí pontos negativos, contei demais com conjuntos vazios. Procurava uma resposta esclarecedora. A solução era sempre igual. Tratava-se de um amor impossível.

domingo, 29 de junho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (8)

A primeira vez que chorei por amor foi aos dezoito anos. Foi também a primeira vez que amei de verdade. Porque existem amores e amores; isso eu fui descobrindo com o tempo. Não que os outros sejam falsos – é que o amor verdadeiro tem algo de especial. Difícil defini-lo. Só que a gente sabe quando é.

Esse amor veio misturado com uma vontade de descoberta, uma paixão à primeira vista, uma situação delicada e uma amizade insustentável. Aconteceu logo que ingressei na faculdade. E quatro anos conflituosos se seguiram. Posso afirmar que a disciplina mais complexa de toda a graduação foi amar. Quando finalmente aprendia a lição, era mais uma vez posto à prova, e custava muito a me recuperar. Ainda hoje acho que o tema é uma irregularidade em meu currículo. Jamais irei dominá-lo. Jamais ficarei à vontade com ele.

Como obra do destino, conheci meu amor no primeiro dia de aulas. Não é bonito? Melhor dizendo: eu a vi no primeiro dia; a gente só se conheceria mais tarde. Estava sentada num banco, entre as árvores, solitária. Um fichário aberto sobre o colo, concentrada na leitura. Nunca esqueci a cena. Cheguei a questioná-la numa oportunidade, ela não se lembrava. Deve ter ficado ali por um instante só; instante que tomei para mim.

O destino continuou a me seduzir. Ao perceber que estávamos na mesma turma, tive certeza de que Inês seria o amor de minha vida. Essas certezas que a gente tem... põem todo o resto em questão. Não demoramos a conversar. Nem a descobrir uma ligação muito forte.

Mas eu era lento. Inexperiente. Inseguro. E ela carregava um pretenso caso desde o colégio, que germinou nas brechas que deixei. Nas minhas falhas. Quando me dei conta, éramos amigos muito próximos, de um jeito como nunca tinha experimentado, e ela namorava outro, talvez enquanto aguardava minha tomada de decisão. Pode ser fantasia minha, claro. Mesmo assim, sei que não era amor que a unia ao namorado. Ao menos não naquele início. Era uma aposta às cegas.

Simplifico a relação, falando desse jeito. É muito difícil resumir quatro anos tão intensos, tão cheio de altos e baixos. Tampouco acredito ser necessário. Minha falta de iniciativa era inocente demais, e acabei culpando o bom caráter por não deixar com que abrisse meu coração a uma amiga comprometida. Eu não queria lhe provocar transtornos, então optei por guardar todos para mim. Não achava justo. Por uma questão moral, talvez. Acho que foi essa a desculpa que encontrei para aceitar a situação. Ou para tentar superá-la.

A ligação que tínhamos pendeu para o meu lado. Ela me tratava com frieza para conter meus ânimos acalorados. Sonhei, sofri. Amadureci.

Lembro que aprendi a tocar Beija Flor, do Cazuza, porque era sua música favorita. Passei a gostar da música também. Forcei encontros, deixei-a constrangida, exigia o que ela não podia dar, exagerava na dose de proximidade. A demasia foi um problema. Porque o amor transbordou. Amei-a intensamente sem poder avançar um limite tênue – e opressor. O excesso acabou por desgastar o amor.

Chorei a primeira de diversas vezes, como se chorar esvaziasse a reserva de lágrimas. Descobri que o amor pode ser tão grave quanto delicado; as duas coisas ao mesmo tempo. Ele atravessa tormentas mas falece num sopro de vaidade. Numa atitude não assumida. Numa hesitação. Num ímpeto não correspondido. Basta uma palavra errada e sua solidez se esfacela.

No meu caso, não houve palavra alguma, esse foi o problema. O que restava para ser dito, o que não estava subentendido, já não tinha vitalidade. A angústia, insuportável; ergueu uma barreira entre nós. Nem a amizade podia vencê-la. Carregamos o fardo até a colação de grau. Depois não tivemos como manter contato. Exceto, talvez, em parcas tentativas de fulminar algo tão mal resolvido. Um email, uma lembrança.

Encontrei-a uma vez mais, alguns anos depois. Foi um encontro necessário. Somente para saber se pudemos superar a nós mesmos. Foi um encontro divertido. Que logo esqueci.

Nem todo amor verdadeiro dá frutos. Assim como nem toda certeza sobrevive ao tempo. É preciso aceitar isso. Nada é absoluto. Aliás, o amor não precisa disso para existir. Nós é que impomos tamanha ingratidão a ele. O amor não precisa de condição. Precisa, sim, ser incondicional.

Este deveria ser um dos meus relatos mais comoventes, dado o que significou em minha vida, porém não dou conta dele agora nem consigo descrevê-lo conforme gostaria, sem soar brega. Era para ser o relato mais sincero também. Mas está cheio de linhas duvidosas, caminhos discutíveis, pontos de vista não correspondentes aos fatos. Uma trama maliciosa. Ainda que buscasse somente um final feliz.

Acontece que os finais felizes são os mais manipulados. Os mais distantes da vida comum. Porque nenhum amor acaba bem. Não tem como acabar e continuar bem. Ao contrário, é a felicidade que dura enquanto houver amor.

Quando o fim traz a sensação de bem estar, estou certo de que é porque o amor já não existia. Ao menos não o amor verdadeiro.

sábado, 28 de junho de 2014

Iasnaia Poliana, esposa de Leon Tolstói, passava a limpo o que o marido produzia diariamente. Diz a lenda que era a única capaz de decifrar sua caligrafia. Copiou o imenso romance Guerra e Paz sete vezes, já que o escritor tinha compulsão por revisões e retrabalhos. O processo se estendeu por cinco anos. Ao ponto de seu editor escrever: "Só Deus sabe o que o senhor está fazendo. Se continuar assim, vamos recompor e corrigir eternamente. Qualquer um pode lhe dizer que metade das mudanças que o senhor faz são desnecessárias. No entanto, elas causam uma diferença apreciável nos custos da composição tipográfica. Eu pedi ao tipógrafo que lhe mande uma conta separada, só das correções. Pelo amor de Deus, pare de rabiscar".

quarta-feira, 25 de junho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (7)

Houve amores – poucos, admito – que dispensei. Amores que não podia corresponder. Aprendi com eles. Inclusive, acredito que aprendi a ser mais amoroso quando não correspondia a alguém que me amava. Aprendi também a lidar melhor com a situação contrária, quando eu propunha o amor e nada obtinha em contrapartida – isso sim aconteceu um punhado de vezes, diga-se de passagem.

O primeiro desses amores veio de uma amiga e me pegou de surpresa. Eu jamais a imaginara naquelas condições, e quando descobri já me amava – ou queria amar – havia tempos. Ela 'gostava' de mim, como costumávamos dizer. E eu meio que gostava também, só que não do mesmo jeito. Aliás, não sei se gostava, fosse do jeito que fosse.

Não foi por maldade, entenda bem. Eu somente não conseguia vê-la assim. Nunca disse nada diretamente, foram os amigos em comum que intermediaram a conversa toda. A amizade se transformou, claro. E não durou muito tempo mais. Amar tem suas dádivas e seus pesares. Sem rancor, entretanto. Hoje, sou grato pelo que Ângela me ensinou. Espero que me tenha do mesmo modo.

[REPENSANDO] ARTE FAZ PARTE

Este blog é um caderno de exercícios. Um apanhado de relatos. Um acúmulo de notas esparsas. Uma reunião de esboços sem relação aparente. Uma coleção de textos já publicados. Ineditismos e imediatismos também. Uma experiência. Um acaso. Uma ficção. Uma obrigação não formalizada, talvez um método de produção e organização. Homenagem e citação. Trama. Uma viagem. Um lugar para habitar. Um meio de existir no mundo. Uma vontade. Uma despretensão. Uma veia literária. Um ponto de encontro. Uma reunião de pensamentos. Uma linha de errância. Um objeto/objetivo sem finalidade. Um ensaio. Uma passagem. Uma brecha. Um mundo paralelo. Uma ambiguidade, com certeza. Um alter ego. Uma perspectiva. Várias. Uma provocação, pode ser. Uma abertura à discussão. Uma bagunça sem pé nem cabeça, lugar onde se perder. Limiar. Entrame. Ausência. Um cuidado, uma curadoria; uma cuidadoria. Um sinal de vida. Uma força. Um contratempo. Arte, por que não?

segunda-feira, 23 de junho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (6)

Patrícia foi mais uma admiração do que propriamente um amor; contudo não acho estranho citá-la aqui. Frequentamos os mesmos lugares durante anos. Sei que ela me admirava também, ainda que não tenhamos trocado mais do que meia hora de papo. Era gordinha e divertida, estava sempre sorrindo. Seu bom astral contagiava. Ficou um tempo sumida. Voltou esquelética, indiferente, nem parecia a mesma pessoa. Vieram dizer que estava anoréxica. Mas por quê? Que bobagem é essa?

Deixei de frequentar aqueles lugares. Isso faz anos. Não tive mais notícias dela. Procurei-a diversas vezes depois, nas redes sociais de que participei, sem jamais encontrá-la. Seu sobrenome era bastante incomum, não deveria ser tão difícil. Também não tive coragem de perguntar aos poucos conhecidos que compartilhávamos, e com quem não tinha tanta intimidade assim. Receio que a doença a matou. Seria uma perda lastimável. Fico triste por imaginar isso, e me dou conta de que falo dela com verbos no passado. Pretérito imperfeito.

Eu gostaria que Patrícia estivesse bem. De verdade. É tudo o que me resta.

sábado, 21 de junho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (5)

Ainda no colégio, tive uma paixonite por uma garota que, se muito, foi amiga minha durante um período breve. A história se resumiria a isso caso eu não tivesse descoberto – anos mais tarde e meses após o ocorrido – que ela falecera num acidente de carro. Tinha o quê?, dezoito, dezenove anos? Foi ela que fez da morte algo factível. Quer dizer, que me apresentou a possibilidade de morte para jovens da minha idade e, no limite, para mim mesmo. Até então, morrer era uma verdade distante. Não pertencia à minha realidade.

O namorado dirigia. Pegaram um caminhão de frente na estrada. Disseram que foi ultrapassagem em local proibido. Para ser sincero, nunca quis saber se foi mesmo. Não queria explicação. Pensei em culpar o namorado, já pensei em culpá-la por namorá-lo, só que isso não leva a nada, exceto a mais arrependimento por nunca ter levado a cabo minha vontade e, com sorte, modificado sua trajetória. Bom, talvez não dependesse de mim. Éramos crianças. E essa culpa só vem acompanhada de remorso. Ninguém precisa dela.

Ainda hoje sinto que Ingrid está viva. De vez em quando, com intervalos de tempo sempre mais longos, me percebo lembrando dela, do seu perfil esguio, sua postura ereta de bailarina. Aos poucos, sua imagem vai desaparecendo. Era uma garota bonita, embora sorrisse pouco. Sempre lhe desejei um futuro próspero. Eu queria vê-la dançar, coisa que fazia tão bem. Dançar num palco grandioso. E ver a plateia aplaudi-la de pé.

Sim, penso nela de vez em quando. É como se estivesse dançando por aí, em algum teatro da cidade. Um lugar próximo de mim. Como se a notícia não tivesse passado de um mal entendido. Como se não houvesse nada com que se preocupar. Bastaria isso. Um desencontro. Um desencontro de informações. Um encontro, talvez. Bastaria.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (4)

É curioso falar de sonho porque traz à tona outro amor breve da minha adolescência; amor fugaz e inseguro como eu era na época. Falo de uma amiga num grupo de amigos em que os amores e as desilusões se revezavam. Amávamos e nos desamávamos tanto que o grupo se desfez assim que chegamos à faculdade, e cada um seguiu seu próprio rumo sem remorso ou coisa do tipo.

Mas eu falava de sonho. Foi mais um pesadelo, na verdade, que me acordou com uma sensação esquisita. Eu estava na cobertura de um prédio muito alto; tão alto que só enxergava as luzes da cidade à distância lá embaixo. As ruas eram como rugosidades num tapete. Até o sol estava baixo, deixando tudo numa atmosfera crepuscular. Não havia outros prédios como aquele, talvez sequer houvesse prédios naquela cidade que se esticava além do limite dos meus olhos. O que havia era gente. Muita gente comigo, no topo da torre, e eu não conhecia ninguém, eram tão estranhos quanto o contexto. Estavam todos em pânico e eu não sabia o motivo, mas também ficava em pânico por causa deles. Eu também tinha medo. Do quê? Lembro de olhar para baixo e ver fumaça. O prédio pegava fogo e nós estávamos refugiados no topo sem ter como ir mais para cima. Esperávamos socorro num lugar que o socorro jamais alcançaria. Estávamos no limite entre o céu e a terra.

Reclinado no parapeito, vi outro prédio igualzinho àquele em que eu me encontrava. Tão alto quanto. Não sei se já estava ali ou se apareceu de repente. Então não era apenas um, mas dois prédios maiores do que a humanidade; duas torres isoladas do mundo, da realidade profana das ruas.

O prédio vizinho também tinha fogo, eu podia ver um buraco enorme bem no meio dele, por onde saíam labaredas e uma espessa coluna de fumaça.

No sonho, eu conseguia ver mais um monte de gente na cobertura do prédio vizinho, na mesma situação desoladora. Apesar da distância, eu podia ver Paloma, uma das amigas do grupo do colégio, sozinha no meio daquela gente toda, tal como eu. Tentei gritar, ela não ouviu. Uma, duas vezes. Não deu para fazer mais nada.

Logo em seguida o chão cedeu sob meus pés e eu caí com ele; uma queda interminável. Passavam pessoas, blocos de concreto, estilhaços de vidro, fogo. Tudo voava em torno de mim enquanto caíamos. As pessoas gritavam; eu permanecia impassível, com enorme frio na barriga enquanto o prédio se desmanchava. Uma cena dantesca. Ainda sinto frio na barriga só de pensar.

Lembro também de olhar para o lado e ver o prédio vizinho repetir os movimentos do meu, como um mergulho sincronizado em direção ao inferno. Acho que foi ao vê-lo que compreendi o que acontecia comigo.

Por algum milagre, eu sobrevivia. Caminhava pelos escombros, branco de pó, respirando fuligem em meio a uma escuridão de pedras, ferro retorcido e objetos quebrados. Procurava Paloma. Por algum milagre eu a encontrava. Estava meio inerte, meio soterrada. Completamente atordoada. Eu a resgatava. E o pesadelo terminava.

Acordei com uma sensação esquisita, como disse. Ignorei-a por uns dias, esperando passar. Não aconteceu. Eu sabia que não passaria. Alguma coisa me dava esse pressentimento Chamei então Paloma num canto, expliquei que só contaria o sonho porque ela estava nele e eu não sabia direito o que significava. Fiz isso num tom muito sério. Até demais para um adolescente. Ela ouviu sem dar a menor bola. Me devolveu a mesma mistura de tristeza e receio que se oferece a um lunático. Voltei para casa angustiado. Era tudo o que podia fazer.

Cerca de três meses depois, um ataque terrorista derrubou as Torres Gêmeas de Nova York. Vi os prédios queimarem e desabarem na TV. Fiquei em choque. Nunca mais esqueci a sensação. Nunca deixei de senti-la quando o assunto retornava.

Lembro-me de ir até Paloma e descarregar nela toda a minha aflição. Não disse que aconteceria? Eu sabia. Avisei você. Eu sabia que se realizaria.

Não fui grosso, apenas um pouco afetado. Falei baixo para ninguém ouvir. De qualquer maneira, nenhum colega prestava atenção em outra coisa que não o noticiário.

Paloma também ficou assustada. Não sei o que pensava. Não voltou a falar comigo, embora tenhamos estudado juntos durante o resto do ano. Eu não queria falar tampouco. Sequer na formatura nos cumprimentamos.

Jamais soube se ela contou a história para outra pessoa. Eu a guardei todinha para mim. Até agora.

terça-feira, 17 de junho de 2014

UM PONTO ALÉM DO CONTO

Uma coisa aparentemente chata muito me fascina: a trajetória da Estética no século XX. Trajetória conturbada, que começa com a ingenuidade das vanguardas europeias e sua crença na transformação do mundo por meio da arte, no sentido de "melhorá-lo". Fosse pela negação da beleza clássica, fosse pela pesquisa das formas, das impressões da natureza no homem ou das expressões da natureza humana. Essa ingenuidade acabou dilacerada pelas guerras, quando descobrimos os horrores de que nossa própria natureza é capaz. Tanto que, ao término do primeiro conflito mundial, apareceram as manifestações dadaístas: provocadoras, absurdas, de certo modo até violentas. Estavam em desalinho com os valores clássicos e também com os revolucionários; sem chão, sem esperança, perdidas nas brumas da desilusão. Porque a "missão" do Modernismo falhara – seus esforços foram subjugados. Não havia salvação moral para quem matava sem piedade. Muito menos salvação por meio da arte.

O pouco que restou daquela vontade transformadora sobreviveu menos de duas décadas, sucumbindo de vez nos campos de concentração, nos bombardeios maciços e nas frentes de batalha da segunda grande guerra. "É isto um homem?", pergunta Primo Levi no título do livro em que relata sua passagem por Auschwitz, de onde só era possível sair por um lugar: a chaminé.

Aqueles traumas, entre tantos outros, interromperam o que havia de criativo e jovial na humanidade. Isso nunca pôde ser retomado.

Quando o artista pop Roy Lichtenstein anuncia, na década de 1960, que a arte "não transforma, apenas forma", ele revela outra concepção de Estética, então em voga. Não se acreditava mais no potencial transformador da arte, mas no construtivo, no sentido de que ela poderia erigir numa nova realidade. Estamos falando dos Estados Unidos pós-guerra, da sua chamada Era de Ouro; país vitorioso, pleno de dinheiro e oportunidades, que desde aquela época fabricava cultura em enormes corporações e a exportava para o mundo inteiro. Nós, brasileiros, compramos toneladas do estilo de vida americano. Sonhamos o American Dream. Trouxemos para cá seus automóveis, fizemos estradas para eles transitarem; construímos Brasília inspirados na razão matemática, nas técnicas de engenharia recém-desenvolvidas, na ordem como método de obter progresso. O trabalho estético, por sua vez, afastou-se da natureza do homem e se direcionou à forma plástica; o espiritual na arte perdeu espaço para superfícies modulares, minimalismos e equilíbrio visual pela repetição de padrões.

Alegra-me saber que, no contemporâneo, esse ideal não se sustenta mais. Filósofos e artistas dedicados a compreender nossos modos de existência não acreditam em transformação ou formação pela arte, mas em desformação. Quer dizer, trabalham o esfacelamento dessas estruturas sólidas que foram sedimentando ao longo do século XX, multiplicando-as em singularidades infinitas. Estrutura familiar, social, governamental, militar, religiosa; hierarquias de todo o tipo, cânones, verdades absolutas que, sacralizadas como estão, já não servem mais, ou seja, não condizem com o nosso dia a dia. Pertencem a outro plano. E, dada sua incompatibilidade com a vida contemporânea, precisam ser revistas, reinventadas, desfeitas, profanadas; reorganizadas para voltarem a operar, se ainda forem pertinentes. Destituir as instituições. Deixar a rigidez mais elástica. Manipular o intocável conforme melhor convier.

Há resistência, entretanto. Embrutecimento. Teimosia. Inclusive nas vontades de mudança. Porque muitas vezes essas vontades apenas retomam procedimentos obsoletos e dão outra volta às mesmas reviravoltas. Quando, na realidade, o que se deseja é sair do circuito; linhas de fuga, trajetos de errância em vez do conforto das certezas.

Exemplo dessa resistência está no filme Malévola [se você não viu, talvez seja melhor interromper a leitura para não ter o final revelado]. Quando o vilão morre, o mal é extirpado e os heróis viverão felizes para sempre – conforme protocolo da Disney –; a princesa é coroada e o povo se reclina a seus pés. Povo que não era povo. Reino que não era reino. Quem se lembra do início da história? Quando os seres mágicos viviam felizes e saltitantes, antes da chegada do homem, que os corrompeu e os infligiu os horrores da sua estrutura sociopolítica. Até então, as fadas e seus amigos viviam com harmonia, pois ninguém era mais privilegiado. Depois, conheceram a ambição, a tentadora ascensão social, a possibilidade da dominação do outro.

No dito "final feliz", os produtores optaram por recriar o conflito principal – o jogo de poder – que provocou todo o drama, envelopando-o de "sonho de princesa". Os personagens não precisavam de governantes, porém os aceitaram, mesmo sabendo que renderiam futuras crises. No geral, é o que costumamos fazer em nossas vidas: permanecer atados ao círculo vicioso que se critica, opõe e autoalimenta.

Perguntaram se gostei do filme. Essa revisão inteira passou pela minha cabeça e a resposta foi negativa, claro. Não gostei. Achei uma pena que não reinventaram a fábula de modo que fizesse sentido no contemporâneo: que provocasse deslocamentos, ruídos; que correspondesse às questões mais urgentes.

A Estética segue seu rumo pelos caminhos mais imprecisos. Enquanto o filme encalhou num daqueles pontos retrógrados em que os blockbusters adoram se firmar.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (3)

Tive muitos amores quando criança, naquele período mágico de descoberta do mundo. A cada nova descoberta um novo amor. É fácil apaixonar-se quando se é inocente. Depois fica tudo mais complexo, mais difícil. Inclusive amar.

O amor de que me lembro agora ficou retido na segunda ou terceira série do primário. Menina branquinha, de olhos levemente puxados e cabelo curto. Linda. Todo amor é lindo enquanto dura.

Não me lembro de ter falado com ela sobre minhas intenções. Claro que não; nem mesmo eu sabia quais eram. Lembro-me apenas de ter relatado um sonho:

Ela, uma espécie meio robótica, com rodinhas nos pés, braços estendidos à frente do corpo, mãos prontas para agarrar e não soltar jamais. Eu, vítima acuada, assustada. Com medo de amar.

Havia uma sirene em sua cabeça, isso foi marcante. Aliás, sirene não, era uma luz giroscópica; uma só, igual nos filmes dos anos 1980, nos carros de detetive à paisana que, de uma hora para outra, entravam em missão e tinham uma luz alaranjada acoplada ao capô.

As rodinhas nos pés davam à Karina ritmo constante, e naquela velocidade baixa, angustiante, ela vinha atrás de mim, chegando cada vez mais perto; não importava o quanto eu corria ela se aproximava mais e mais. A perseguição se dava numa escuridão infinita, sem paredes nem pessoas. Apenas o desconhecido para além de nós dois. Apenas solidão. Eu corria, suava, em pânico. Ela vinha atrás, incansável, impassível. Até que despertei.

Não sei dizer qual foi a reação dela ao sonho. Hoje eu jamais o contaria, por mais que sonhar seja meigo. Ainda que o bizarro seja afeito ao mundo dos sonhos, nem todos o aceitam. Comigo seria diferente? Não sei... seja como for, Karina se foi, e o sonho permaneceu por décadas.

Eu tinha um carrinho de pilhas na época, uma viatura policial futurista. Era azul, e quando batia ficava todo amassado. Pois bastava apertar um botão e a lataria retomava a forma original. Eu adorava. Lembrando dele agora, acho que desvendei a associação feita pelo meu inconsciente enquanto eu dormia. Incrível como nunca tinha me dado conta.

Não saberia dizer se gostava mais do carrinho ou de Karina. Essas coisas não se mediam assim, na época.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

quinta-feira, 12 de junho de 2014

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Da série "O que não é?"

42ª questão:
O QUE NÃO É RESISTÊNCIA?

terça-feira, 10 de junho de 2014

Da série "O que não é?"

41ª questão:
O QUE NÃO É DISSIDÊNCIA?

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Da série "O que não é?"

40ª questão:
O QUE NÃO É VALOR?

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (2)

O primeiro amor de que lembro remonta à minha pré-história; a pré-escola, antes mesmo de apreender a ideia de amor. Mocinha sorridente, dividia comigo o balanço do parquinho, na hora do recreio. Nosso caso ia e vinha sem sair do lugar. Ela nunca percebeu. Eu jamais quis que alguém soubesse. Diziam, meus amiguinhos, que o pai dela era dono do açougue, e cortaria fora a graça de quem se engraçasse com Fabiana. Eu tinha pavor de perder a graça, claro. Meus amiguinhos riam. Mais ligeiros, estavam preocupados com proteger outros interesses. Quando entendi a piada, meu primeiro amor estava distante; distante demais para o tamanho da minha precoce liberdade. Talvez no outro período, talvez na escola ao lado, talvez no quarteirão de cima. Enfim, longe de toda possibilidade de germinar; além de qualquer ilusão em meu remoto deserto de experiências.

domingo, 8 de junho de 2014

Da série "O que não é?"

39ª questão:
O QUE NÃO É ENTRETENIMENTO?
ser
no limite
da incerteza

estar
no fundo
do infinito

mergulhar
no exato
do mundo

deixar
para trás
a indiferença

na superfície
flutuante
do ser

sábado, 7 de junho de 2014

Da série "O que não é?"

38ª questão:
O QUE NÃO É CURA?

COINCIDENTE

o passado
aqui
e agora

o futuro
já – não muito –
adiante

tudo junto e misturado
– com-temporâneo –
num embrulho
só;

pacote inconsistente
dado de presente

sexta-feira, 6 de junho de 2014

"A resistência não se dá de forma frontal, unilateral, nem age na negatividade ou na reação tardia. A resistência é um modo de ser. É uma forma/força de estar imerso no movimento, é perceber-se como acontecimento corporal ativo, é a única possibilidade de tornar-se ação criativa de arte. A resistência é a dobra do ser. E essa dobra é a insistência na diferença, no outro, na produção de singularidades múltiplas."

Ericson Pires
As produções de artes atuais
(em Ensaios Fundamentais: Artes Plásticas – editora Beco do Azougue)

terça-feira, 3 de junho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (1)

Lembro como se fosse hoje daquela menina magrela do colégio. Tinha se tornado um mulherão, enquanto eu continuava com jeito de adolescente. Dei a ela uma carona, estiquei a viagem querendo saber mais. Fazia o quê?, quatro ou cinco anos que a gente não se via? Talvez nem tanto, não lembro bem. Acho que permaneci no mesmo colégio, e ela foi cursar um técnico. Disse que namorava, trabalhava, essas coisas que só fui descobrir mais tarde. Eu ia pra faculdade e dirigia o carro de minha mão no outro meio período, para cima e para baixo, e só.

Foi assim também nosso papo, cheio de altos e baixos. Estranho. Ela com receio da carona – estava na cara que eu a desviava do caminho; eu curioso, cheio de expectativa – ela ficava muito bem naquele uniforme.

Disse que estava resolvida. O namorado era do interior, filho de gente bem de vida, eu soube depois. Queria transferir para lá seu emprego de professora da prefeitura, pré-escola. Dava aula para criancinhas, adorava. Imaginei a cena repetidas vezes, sem acreditar na veracidade dela. Seu sonho era casar, fazer uns filhos e viver com a família longe da loucura da capital.

Achei um absurdo, mas não disse nada. Como uma garota de vinte anos sonha assim? Eu queria enrolar a faculdade, sem pressa, mochilar seis meses pela Europa, ficar rico e fazer qualquer coisa legal durante o resto da vida, quando desse vontade, caso desse vontade. Ela queria filhos e uma casinha no interior. Só isso. E tinha certeza.

Uns tempos depois, descobri que o tal namorado era gente muito rica. Mais velho, talvez uns dez anos, filho de fazendeiro, devia ser algo assim. Não vi filhos nem casinha, vi fotos do Mediterrâneo. Estados Unidos também. Caribe, acho. Ela postou no Facebook. Eu virava noites num estágio cujo 'salário' não pagava transporte nem alimentação. Morava com meus pais. Tinha vinte e cinco, vinte e seis anos, se me lembro direito. Ela viajava o mundo às custas do maridão. Tirava fotografia com taça de champanhe. Grécia, Itália, Turquia. Tudo de barco. O cara tinha jeito de cafajeste, desses que têm esquema com polícia. Careca, um porre. Ela continuava linda, mais linda ainda sem o uniforme de tactel. Só que, não sei... perdeu o encanto. Acompanhei as fotos durante uns meses. Depois a deletei dos meus amigos.

(DES)FORMAÇÃO CONTEMPORÂNEA

Masterpiece (1962), de R. Lichtenstein

Roy Lichtenstein acreditava, nos anos 1960, que a arte não deveria transformar nada, no sentido de "mudar o mundo", conforme o ideal modernista que sucumbiu nas guerras mundiais. Isso não seria "função" da arte, se é que ela pode ter finalidade além de si própria. Para ele, a arte não transformava, apenas formava.

Hoje não cabe afirmar o mesmo. Essa espécie de vontade construtiva se esgotou. Nem transformação nem formação; o interessante, no contemporâneo, é a desformação. O desvio. O dissenso. A errância. A transversalidade. A transgressão. A profanação. A possibilidade de experimentar, por meio da obra – seja ela do tipo que for –, a experiência em si. O ato. O gesto. Experimentar a vida, a proximidade da vida com a arte que por vezes as torna indiscerníveis.

Desconstruir conceitos, desfazer estruturas tradicionais, esfacelar verdades absolutas. Revelar possibilidades. Inventar atitudes pertinentes às demandas de agora. Estabelecer diálogos. Colocar novas formas em operação. Sem razão ou brutalidade, sem informação ou conformismo.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

SP PRETO E BRANCO

Fotografia de Carlos Moreira, publicada pelas Edições Sesc em livro que leva o nome do autor
e reproduzida na revista do Sesc de maio de 2014

terça-feira, 20 de maio de 2014

ROMANCE SINCERO

Se eu escrevesse um romance sincero, começaria com uma frase lida em Formas de voltar para casa, de Alejandro Zambra (p. 60): "Este romance devia ser escrito por outra pessoa. Eu gostaria de lê-lo".

Com isso, isentaria a mim próprio – ou ao menos mostraria intenção de me isentar – de tudo aquilo que o autor dissesse. Não quero participar das ocorrências, não quero ser cúmplice de meus algozes.

É sobre isso que gostaria de escrever, sobre um romance que não deveria ser escrito – ou melhor, sobre um romance que não deveria ter sido escrito por mim.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

ANTES DE ATIRAR UMA OPINIÃO CONVÉM SABER:

Rero [trabalho exposto na Caixa Cultural de SP]

Quem é? De onde veio? O que faz? Como faz? O que deseja? Como gostaria que fosse? Para onde vai? Como se sente? Do que precisa? Do que gosta? O que tem? Como obteve? O que falta? Como se chama? Como é chamado? Como se vê? Como os outros o veem? Como pensa que é visto? Como compartilha? Por que é assim? Como se define sua situação? Quais preconceitos estão implícitos nisso? Essa definição serve para alguma coisa? O que está em volta? Onde vive? Que território habita? Que coisas possui? Que coisas o possuem? Qual é o sentimento? Quem está junto? Quem se afasta? Quem não veio? Quem já se foi? De quem sente saudade? Como pode? O que pode e o que não pode? Por que não pode? O que pode mas não consegue? O que não pode mas se dá um jeitinho? Quem é [você] que olha? Por qual ponto de vista / perspectiva? Qual é a relação que se estabelece? Que ideias já vieram formadas antes do encontro? Quais delas permaneceram? Quais ideias se desfizeram? Quais processos estão em operação? O que está dado? O que está implícito? O que foi soterrado? Que corpo é esse? Que gesto produz? Como se expressa? Escreve, pinta, canta, dança? Como se coloca no mundo? Em que situação se impõe? Que situação é imposta a ele? Quando é ignorado? Qual é a sua cor? Qual é o seu cheiro? Como é tocá-lo, qual é a sensação? Como se sente quando tocado? Que vontade surge quando está por perto? Do que lhe faz lembrar? O que sente quando se distancia? Onde está sua força? Onde está o seu olhar? O que pensa do mundo? Como administra a vida? Em que lugar dorme? Em que lugar acorda? Com quem? O que comeu ontem? O que bebeu? De que alimentos gosta mais? Tem mãe, pai, filhos, irmãos, animais de estimação, família de qualquer gênero, raça, cor, imaginação? Qual é o seu bicho favorito? Com o que sonha? Quais são os seus medos? Como se imagina daqui a dez anos? Já dirigiu um carro? Já andou de moto? Avião? Navio? Já pescou? Pratica esporte? Torce para algum time? Como foi parar ali? Vive do quê? Trabalha? Qual é o seu talento? Para que coisa não leva o menor jeito? Tem apelido? Conta bancária? Sabe cozinhar? Toma conta de alguém? Alguém cuida dele? Como se sustenta? O que aprendeu? Frequenta ou frequentou escola? Quais assuntos mais interessam? O que gostaria de saber? É bom de matemática? Português? Geografia? Filosofia? Para que lado fica o seu norte? Quais são as suas condições? O que pensa quando vê as estrelas? Qual é a sua cor favorita? Gosta mais de calor ou de frio? Conhece o mar? Sabe nadar? Visitou o zoológico? Sabe andar de bicicleta? Patins? Cavalo? Qual é a sobremesa preferida? E prato salgado? Aliás, prefere salgado ou doce? Sorvete de massa ou picolé? Gosta de ler? Qual foi o livro mais marcante? Vai ao cinema? Drama, comédia, ação ou suspense? Documentário? Com que frequência? Qual é o seu melhor amigo? Como se sente em dias nublados? Quando foi ao médico pela última vez? Dentista? Sente-se bem? Alguma queixa? Conhece os parques da cidade? Os museus? Qual é o seu favorito? Gosta de algum artista em particular? Cantor? Frequenta teatro? Já assistiu a uma peça de Shakespeare? Gosta de música? De que tipo? Qual canção arranca suspiros toda vez que se ouve no rádio? Qual banda ainda quer ver ao vivo? Qual foi a última vez que viu uma? Qual foi a mais legal? Dança sozinho ou em par? Em grupo, talvez? Sabe o que é amor? Ama? É amado? Foi amado? Faz amor? Qual foi a última vez? Que tipo de amor? Gosta de flores? Quais? Gostaria de enviar algum recado, tem algo a manifestar? Tem vontade de quê? Como se veste? Já usou gravata borboleta? Tem religião? Acredita em Deus ou coisa similar? Qual? Como? Por quê? Acredita em vida após a morte? Gostaria de ser cremado ou enterrado? Doará órgãos? Já tomou banho em banheira? E banho de rio? Para onde vai quando quer se esconder, pode dizer? Ou quando vai descansar? Para onde gostaria de ir? Onde costuma passear? Que cidades gostaria de visitar? Qual celebridade gostaria de conhecer pessoalmente? Mesmo? Por quê? O que diria na ocasião? Sabe contar piadas? Qual é a sua lembrança mais feliz? Qual é a mais triste – fique à vontade para não responder, se preferir. Está à espera de quê ou de quem? Já infringiu alguma Lei? Acredita em ética? Já arrancou um dente do siso? Qual é a cor dos olhos? Dos cabelos? São lisos ou crespos? Admira alguém? Algum ídolo? Por quê? Gostaria de ser mais feliz? Já morou fora do país? Em outra cidade? Outro bairro? Gostaria de experimentar? Onde? Está apaixonado? Cadê a poesia? Como o seu sensível se manifesta? Qual é o aspecto político? Por sinal, o que pensa da política? Como participa? Como se sente na sociedade? Pertencente? Quais são os encontros e as conexões? Tem algo a propor? Algo de que reclamar? O que produz? O que se perde? O que resta? O que gostaria de dizer, de livre e espontânea vontade? O que prefere deixar subentendido? O que não pode ser dito?

[para ajudar na construção de um pensamento crítico]

sábado, 17 de maio de 2014

DEVIR = INVOLUIR

Não há passado nem presente nem futuro.
Agora não há ideia de história. Não há História.
Não há hierarquia. Somente historietas, contos, causos.

Devir diz repeito a desfazer.
Escapar dos excessos. Das finalidades. Da objetivação.
Esfacelar as exigências do sistema de produção.
Resistir, transpassar, refratar.

Há potência da suspensão de sentido.
Uma vontade muito grande de acolhê-la.
Acolher essa potência, esvaziar o mundo.
Aceitar e respeitar seus buracos.
As fendas, as lacunas.

Provocar curto-circuitos. Desvios. Errâncias.
Vagar por linhas erráticas, linhas de fuga.
Rastrear o campo. Suspender o tempo.
Silenciar.

*Palavras apropriadas de Peter Pál Pelbart. Que se apropriou das palavras de Fernand Deligny. Que se apropriou das palavras de quem não precisava delas para existir.

quarta-feira, 30 de abril de 2014

O AMOR É UMA CONSTRUÇÃO

Na imaturidade do amor, imaginava situações de perigo, querendo ser herói, querendo que a bravura conquistasse a mulher amada. Como nos filmes de Hollywood ou nos romances de cavalaria. Todo homem já quis ser herói. Todo homem sonhou que, num ato de bravura, conquistaria a frágil dama em perigo, sua princesinha trancafiada na torre. E algo me diz que toda mulher também já quis ser princesa. Coisa de criança que às vezes persiste a vida inteira. [Fantasia?] Como se a mulher viesse até nós por conta de um mal que a aflige. Como se precisasse de nós. No fundo é um pensamento machista. Mas na superfície é só ingenuidade mesmo. O heroísmo do dia a dia é muito diferente. Ele existe de maneira tão sutil que nem sempre se faz notar.

Quando conheci você não havia King Kong, prédio em chamas, floresta sem fim. Nenhum risco iminente a meu favor. A fantasia se assumiu como realidade e me enganou. Fiquei inerte, sem saber como agir. Não tinha sido instruído a lidar com os desafios do cotidiano. As fábulas não eram tão literalmente banais. Nós trabalhávamos juntos. E só.

Se o desafio não era salvá-la da torre, qual seria? Como eu poderia ser herói? Precisava descobrir as suas fantasias. Torná-las realidade. Pois todos se permitem ficcionar, ainda que nem sempre se deem conta.

Suas fantasias diziam respeito a conquistar independência, sucesso profissional, constituir família. Você não queria – não precisava – de um príncipe encantado, mas de um companheiro de carne e osso. Talvez nem soubesse que era assim. Fez a bravura ganhar outro significado. A coragem se mostrar nas questões mais simples. Era um desafio maior do que eu imaginava. Topei porque acreditava no desconhecido, naquilo ainda por se fazer. Você também topou. Nós.

* * *

Em nossa relação, nunca vi motivo para deixar de ser o que sou. O que fui. Seria fácil chegar aqui e dizer que mudei, aprendi, tomei outro rumo depois que lhe conheci. Aconteceu, admito. Foi bom. Mas eu mudei sem que existisse tal cobrança. No geral, não existiu. De nenhum dos lados.

O que sempre me fez apostar nessa relação é que um respeita o outro e o outro respeita o um do jeito que somos. Já lhe disse uma porção de vezes. Quase nos confundimos sem desperdiçarmos nossa individualidade. Discordamos quase sempre de quase tudo. Somos nem iguais nem diferentes.

Poder discordar e ainda assim sustentar a relação é muito bonito. E muito difícil. Só dá certo porque não queremos que o outro mude pelo um – ou às vezes até queremos, humanos que somos, porém não exigimos. A vontade de um não pode ser condição.

Nas entrelinhas desse acordo silencioso, as coisas foram se transformando a seu bel-prazer. Acontecendo. A relação foi se reformulando. Porque o amor não é uma solidez, uma entidade inerte, superior a todas as outras. Isso é fantasia. Enquanto o amor é uma construção. Não está pronto nunca; ele se faz no dia a dia. Não pertence a nós; ele depende de nós. Existe por nossa causa, por tudo o que fazemos; através de nós, dentro e fora, numa troca incessante.

Mudei muito nesses últimos anos. Não porque você exigiu, mas por sua causa, em sua causa, para fazer você feliz. Para me adaptar àquilo que inventávamos, num improviso só. Por vontade nossa. Misturei-me às suas fantasias, fiz de algumas delas minhas também. Seus planos começaram a me constituir. E as minhas ficções tinham você no elenco. O espetáculo já não poderia se realizar sem a sua companhia.

Juntos aprendemos que o amor não precede. Primeiro vem um desejo, uma disposição. Depois vem a dedicação, o esforço, a mão na massa. E assim o amor cresce todo dia. A gente mistura, sova, espera crescer, sova de novo, põe no forno, sente o prazer de fazê-lo, o aroma, o sabor. Usufruímos do amor.

Não tem nada a ver com cavalo branco, predestinação, metade da laranja, vestido de noiva. Isso tudo é ingenuidade. Faz parte de uma fantasia instituída distante do afeto, do sentimento e da vontade de construção. A bravura do amor está no dia a dia, no esforço para estar junto, tomar café da manhã; está nos emoticons de celular, na preocupação, nas compras de supermercado, nas surpresas, nas conversas sérias e nas levianas, nos desabafos, risos e saudades. No silêncio confortável. Em sustentar tensões e tesões. Está no abraço acolhedor, no beijo de boa noite, na presença. Concessões e consentimentos. Habitar e ser habitado. Movimentação entrosada. Nessas pequenas coisas que vamos construindo cotidianamente. Porque a gente quer. Porque optamos por fazer assim. Porque você me ama e eu sei. Porque eu amo você.

* * *

Eduardo A. A. Almeida e Juliana L. Andrucioli se casaram no último 26 de abril. Este texto é dedicado a todos os casais que tomaram a mesma decisão. Simplesmente porque acreditam que vale a pena.

sábado, 26 de abril de 2014

Da série "O que não é?"

37ª questão:
O QUE NÃO É ENVOLVIMENTO?

sexta-feira, 25 de abril de 2014

quarta-feira, 23 de abril de 2014

HIPOCRISIA MIDIÁTICA

O sujeito atira para matar, as câmeras mostram tudo ao vivo, e os jornais, revistas, rádios etc. o chamam de 'suspeito'. Criminoso não, bandido não, é suspeito. Ao mesmo tempo em que alguém vai para uma manifestação qualquer, quebra uma coisa qualquer e, mesmo sem saber de quem se trata e de por que quebrou, a mídia o chama de vândalo. Acho esse comportamento muito suspeito.

domingo, 20 de abril de 2014

sábado, 19 de abril de 2014

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Da série "O que não é?"

 33ª questão:
O QUE NÃO É APRENDIZADO?

quinta-feira, 17 de abril de 2014

quarta-feira, 16 de abril de 2014

TUDO QUE PENSO

tenho vontade de escrever
tudo que penso
e essa impossibilidade
angustia

por quê?
a fim de quê?

é uma vontade boba
pois tudo que penso
está cá registrado
nalgum lugar
todinho meu

lugar aberto
a quem quiser
visitar,
revisitar

na porta, a poética
dos livros de ouro
recebe os chegados,
marca a passagem

onde público e privado
se misturam
em gentilezas
literalmente
faladas,
pensadas,
compartilhadas

ainda assim escrevo
minhas vontades
a fim de quê
não sei

não saber
é bom também
escrever, impreciso
Da série "O que não é?"

31ª questão:
O QUE NÃO É CRÍTICA?

terça-feira, 15 de abril de 2014

segunda-feira, 14 de abril de 2014

domingo, 13 de abril de 2014

sábado, 12 de abril de 2014

Da série "O que não é?"

27ª questão:
O QUE NÃO É CORRUPÇÃO?

sexta-feira, 11 de abril de 2014

quarta-feira, 9 de abril de 2014

A constante possibilidade de violência já é uma violência em si.

domingo, 6 de abril de 2014

sábado, 5 de abril de 2014

sexta-feira, 4 de abril de 2014

quinta-feira, 3 de abril de 2014