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quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

CERTO INCÔMODO, UMA IMPLICAÇÃO

Em seus últimos anos de vida, o escritor argentino Julio Cortázar revisitou a própria obra, organizando-a em “três etapas muito bem definidas”, como disse. A primeira delas recebeu a alcunha de estética, a segunda seria a metafísica e a terceira foi chamada de histórica. Já expressei aqui minha admiração por seus livros e, embora não tenha lido todos, conheço-os o suficiente para compreender essa classificação e para discordar de um argumento seu a respeito da própria trajetória, que, como vemos, vai da estética à política.

América Latina (1977), de Anna Bella Geiger

“Vivi meus primeiros anos de leitor e de escritor numa fase na qual o literário era fundamentalmente ler os melhores livros a que tivéssemos acesso e escrever com os olhos fixos, em alguns casos, nos modelos ilustres e, em outros, num ideal de perfeição estilística”, Cortázar explica em uma das aulas oferecidas durante sua curta temporada na Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos. Ao comentar sua juventude em Buenos Aires, aponta para o seu raso conhecimento de mundo à época, basicamente restrito à realidade burguesa portenha. A distância que o separava de uma consciência sociopolítica mais profunda se refletia em personagens postos a serviço do fantástico: “o que realmente me importava”, disse ele, “era o mecanismo do conto, seus elementos finalmente estéticos, sua conjunção literária com tudo o que pode haver de belo, de maravilhoso e de positivo”.

Essa relação me parece um tanto problemática, assim como a diversos críticos que notaram, por exemplo, uma alusão à repressão argentina já no primeiro conto do primeiro livro de Cortázar – A casa tomada, na coletânea intitulada Bestiário. Mas faz sentido se considerarmos que, de fato, a estrutura daqueles textos está toda trabalhando para a irrupção de um fantástico. Voltaremos a isso adiante. Por ora, quero pontuar apenas que o escritor trata a estética num sentido restrito, que hoje se vê mais expandido e imiscuído numa ideia também ampliada de política.

O divisor de águas entre essa etapa da trajetória de Cortázar e a seguinte seria o conto O perseguidor, que compõe o livro As armas secretas. O exílio em Paris o levara a se “interessar cada vez mais pelos mecanismos psicológicos, os dramas de vida, de amor, de morte, o destino”.

O perseguidor é um mergulho às cegas na realidade de um músico de jazz negro, doente e viciado, que vive num descompasso em relação à previsível classe média compradora de seus discos. O autor esmiúça os conflitos do personagem por meio do embate com as expectativas do amigo – um crítico de música –, que narra a história segundo a sua perspectiva e consciente de que jamais chegará à intimidade do saxofonista, sobre o qual, ironicamente, até mesmo escreveu um livro.

Essa fase dita metafísica atinge o auge com o romance O jogo da amarelinha, após o qual sua obra começa a tomar uma forma mais engajada, por assim dizer. Ao se perceber além do contexto argentino, Cortázar assume a literatura como uma obrigação cívica: “eu tinha de investir nos termos e na condição de latino-americano, com tudo o que trazia de responsabilidade e dever, tinha de inseri-la também no trabalho literário. Por isso acho que posso usar o nome ‘etapa histórica’, ou seja, ingresso na história, para descrever essa última baliza em meu caminho de escritor”.

Eis que a literatura se revela para ele uma forma de participar dos processos históricos que “concernem a cada um em seu país”. Trata-se de um mecanismo não apenas estético ou psicológico, mas também – e em primeiro lugar – de atuação política. Como o próprio autor explica, “no decorrer das últimas três décadas, a literatura de tipo exclusivamente individual, essa literatura pela arte e pela literatura cedeu terreno a uma nova geração de escritores muito mais implicada nos processos de combate, de luta, de discussão, de crise de seu próprio povo e dos povos em conjunto”.

Cortázar expressou essas ideias no início dos anos 1980. Seu olhar aguçado para a produção contemporânea vislumbrou o que viria a constituir uma realidade do que hoje lemos, discutimos e premiamos, tanto em âmbito nacional quanto internacional. Seria uma questão inédita? Se lembrarmos das tragédias gregas, de Dante, Zola ou Mário de Andrade, veremos que não. Todavia, o que é próprio de Cortázar foi a tomada de consciência de seu papel de agente político por meio de literatura. Esse é o ponto que me parece contraditório na organização que faz da própria obra: a estética não deveria ser uma etapa anterior à política, que no caso ele associa à realidade histórica – ambas estão interlaçadas ao ponto de serem indiscerníveis e, por conta disso, sua atuação se dá por meio da escrita literária.

Tal impossibilidade de discernimento também pode ser vista no sentido inverso: toda ação política se dará por meio de uma elaboração na linguagem que, no limite, será uma criação estética. Essa noção talvez não estivesse clara para Cortázar, mas com ela podemos retomar sua obra hoje e perceber algo deveras político naquilo que para ele possuía zero engajamento, como em A casa tomada.

É vital que a arte dê lugar a vozes emudecidas e a existências ocultadas na realidade comum. Para isso ela não precisa ser declaradamente engajada, como alguns exemplos que vez ou outra esterilizam discursos de resistência e menosprezam o potencial contestatório da criação ao confundi-la com panfletagem. Ainda que a primeira literatura de Cortázar não tenha a consciência de seus últimos escritos, já havia implicado nela um autor incomodado com o seu tempo e a sua realidade. Já estava constituída, portanto, uma política, que se transformou e persistiu até o seu ponto final.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

ENTREVISTA: COMO EU ESCREVO (PARTE 2)

Há pouco mais de um ano, José Nunes me convidou para falar sobre meu processo criativo, entre outros assuntos relacionados ao ofício.

Seu projeto, intitulado Como eu escrevo, tem agora um desdobramento: novas perguntas com o objetivo de compartilhar ideias e contribuir com os desafios de quem se põe a lidar com as palavras.

Deixo abaixo a segunda rodada de perguntas que respondi, publicadas originalmente junto com as anteriores na página do projeto: comoeuescrevo.com/eduardo-a-a-almeida

Ficou com curiosidade de ler os livros que menciono? Clique nos títulos para saber mais: Testemunho ocular (contos) e Diante dos meus olhos (romance).

Foto: Edi Rocha

11. Ao dar início a um novo projeto, você planeja tudo antes ou apenas deixa fluir? Qual o mais difícil, escrever a primeira ou a última frase?

Normalmente o projeto se forma a partir do que estou escrevendo, não é premeditado. Experimento formatos sem grandes pretensões, anoto ideias, escrevo alguns parágrafos. Um dia olho para aquele amontoado de coisas e percebo uma linha condutora, um interesse em comum, talvez. Foi o caso do Testemunho ocular, livro publicado em 2018 pela Lamparina Luminosa: eu tinha alguns contos e percebi que havia em todos eles uma inquietação de natureza similar. Comecei a retomar textos antigos, engavetados, e aquela inquietação também aparecia neles de uma maneira ou de outra sem que eu tivesse me dado conta disso até então. O conceito do livro surgiu daí. Para dar a forma que pretendia, acabei por editar alguns textos, escrever outros e criar um projeto editorial. Não gosto de pensar em meus livros como meras coletâneas; é preciso haver uma amarração, um conceito, um ponto central que possibilite outras camadas interpretativas.

O caso do Diante dos meus olhos, publicado no fim de 2019 pela Reformatório, não foi muito diferente. Comecei por tomar notas de um sonho, ainda de madrugada, porque eu não podia voltar a dormir e correr o risco de esquecê-lo. Na manhã seguinte, ainda sem saber bem a razão, percebi que a ideia tinha um potencial a ser explorado. Escrevi um pouco mais, o texto foi criando corpo, passou de uma cena curta a um conto longo. E não parava, era incontrolável. Segui nesse ritmo por bastante tempo, até ter em mãos um pequeno romance. Ele foi publicado dez anos depois do primeiro esboço.

Em meio a esses processos mais "espontâneos", por assim dizer, o difícil não escrever a primeira nem a última frase, mas identificá-las para que, entre elas, exista um projeto literário.

12. Como você organiza sua semana de trabalho? Você prefere ter vários projetos acontecendo ao mesmo tempo?

Eu não diria que prefiro assim, mas vários projetos acontecem ao mesmo tempo, é uma maluquice. Tenho trabalhado em tempo integral num escritório, escrevendo textos para outras pessoas e empresas. Também atuo como revisor e preparador de textos. Minhas criações pessoais muitas vezes são resolvidas na hora do almoço, no metrô, nos minutos em que minha filha dorme e eu consigo permanecer acordado, nas brechas dos finais de semana, entre os compromissos familiares e os afazeres de casa. Tenho escrito pouca literatura de ficção. Inclusive porque uma série de outras tarefas me convocam a todo instante, requisitando prioridade: as atividades do coletivo Discórdia (encontros, feiras, rodas de leitura e debate, cursos etc.) e do GEPPS - Grupo de Experimentações Poéticas e Políticas do Sensível, minha coluna no jornal Correio Popular, aulas, oficinas, pareceres, palestras, compromissos da academia (ainda tenho para resolver várias reminiscências do doutorado, que defendi em 2018). A literatura de ficção vai forçando espaço em meio a esse entulho todo, é uma sobrevivente. Fico muito agradecido por ela não desistir de mim. Mas, para ser mais concreto, organizo minha semana anotando as tarefas e compromissos numa agendinha de bolso, de papel mesmo. A meta é chegar até a página seguinte, de preferência ileso.

13. O que motiva você como escritor? Você lembra do momento em que decidiu se dedicar à escrita?

Não é que eu tenha de uma hora para outra decidido me dedicar à escrita, quer dizer, isso jamais ocorreu de forma tão dramática. Mas eu me lembro da primeira vez em que me assumi escritor, e nem faz tanto tempo assim. Foi há uns cinco ou seis anos, durante um curso sobre práticas artísticas comunitárias no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, em São Paulo. Eu deveria me apresentar para a turma e disse: meu nome é Eduardo, sou escritor. Uma amiga estava junto e, quando a aula terminou, veio falar comigo. Escritor é? Que vitória! Eu ainda gaguejava um tanto. Escrevia profissionalmente há mais ou menos quinze anos, mas até então me intitulava publicitário, redator, pesquisador. Nessa ocasião, eu tinha deixado a publicidade de lado, precisava assumir um "eu" que de fato me desse orgulho. Ainda assim demorei para dizer "escritor" em bom tom. Houve um dia, eu estava num cartório fazendo sabe-se lá o que, e o atendente preenchia um formulário. Ele perguntou: profissão? E eu disse. Ele tirou os olhos do papel e quis saber: é sério? Balancei a cabeça, afirmando que sim. Esse sujeito virou para os colegas e falou bem alto: gente, tem um escritor aqui! Foi bizarro, ninguém deu a mínima, mas o atendente estava animado. Imagino que tivesse os escritores em boa conta. Talvez seja esse o tipo de coisa que me motiva: produzir algum estranhamento no banal. Como dizia Michel Foucault, os textos são formas de inscrição no mundo. São meios de existência. Escrevo por muitos motivos, alguns ainda indiscerníveis, mas com certeza uma motivação é produzir essa inscrição que inquieta, que abre uma fenda na normalidade e chama atenção para algo que sempre esteve ali, mas nunca foi olhado por aquele ângulo. Escritores me motivam, artistas visuais, o teatro, filósofos, entre vários outros agentes do conhecimento que me provocam a pensar diferente, profanar verdades, manter a curiosidade viva.

14. Que dificuldades você encontrou para desenvolver um estilo próprio? Algum autor influenciou você mais do que outros?

Não me sinto muito à vontade com a ideia de ter um estilo próprio. Tenho, sim, interesses que vão se destacando pela recorrência. O maior deles talvez seja a questão da visualidade, já que o mundo que existe para cada um de nós quase sempre se resume naquilo que vemos, que se põe diante dos nossos olhos. E ele é tão ficcional quanto qualquer outro: são convenções, contextos culturais, perspectivas sociopolíticas etc. que produzem entendimentos sobre o mundo, no limite, inventados. A realidade é simplesmente imaginada. Daí eu acreditar que algumas imagens inusitadas, operando num sentido de deseducação do olhar, têm força estética e política capaz de produzir deslocamentos e sugerir outros pontos de vista. São capazes de dar a ver o que sempre esteve ali e até então não podíamos encarar. Isso não é um estilo propriamente dito. Na realidade, isso só acontece por meio de muitos atravessamentos, diferenciações, vertigens. Alguns escritores me ajudaram a trilhar esse caminho, sem dúvida. Mais do eles, foram livros específicos que me marcaram. O som e a fúria, de William Faulkner. O estrangeiro, de Albert Camus. A espuma dos dias, de Boris Vian. Bestiário, As armas secretas e Histórias de cronópios e de famas, do Cortázar. As cidades invisíveis, do Calvino. Na colônia penal, de Franz Kafka. Os contos de Murilo Rubião. Para fugir dos clássicos, cito ainda Pássaros na boca, de Samanta Schweblin. Um útero é do tamanho de um punho, de Angélica Freitas. Li há pouco o Sobre os ossos dos mortos, de Olga Tokarczuk, recém-Nobel de Literatura, e de fato é incrível, eu gostaria de escrever um pouco como ela, com toda aquela empatia, profundidade psicológica e riqueza de detalhes. E não foram apenas esses autores e livros, claro. Além de outros ficcionistas há todos aqueles da filosofia, das artes, da estética. Eu poderia continuar por muitas linhas.

15. Você poderia recomendar três livros aos seus leitores, destacando o que mais gosta em cada um deles?

As cidades invisíveis, de Italo Calvino, é um dos livros mais lindos que já li. Existe nele tanta poesia que transborda em aspectos sociais, políticos, afetivos. É daquelas leituras imprescindíveis. Sempre que o retomo é com um prazer singular, como se lesse um texto sagrado, capaz de falar por meio de simbologias com qualquer pessoa em qualquer lugar e em qualquer época.

O som e a fúria, de William Faulkner, foi um livro que me exigiu um grande esforço, e assim conquistou um lugar muito especial em minha bibliografia. Ele tem inúmeras camadas, preciosidades, lições de literatura. Mas o destaque fica com a capacidade de o autor "outrar-se", como costumo dizer na tentativa de explicar essa maneira como ele escreve numa espécie de devir outro (retardado, pobre, mulher, negro etc.). É sem dúvida uma obra de mestre.

Fiquei tentado a recomendar outro daqueles clássicos que citei na resposta anterior, mas acho importante lermos contemporâneos nossos que apresentam problemáticas urgentes. Nesse quesito, todos precisamos ler os poemas de Um útero é do tamanho de um punho, da Angélica Freitas, que usa um humor perspicaz para criar versos arrebatadores sobre feminilidade, condição da mulher, intolerância, entre vários outras questões. Seu livro é uma lindeza, impossível parar de ler e de, com ele, repensar toda essa realidade que construímos.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

LITERATURA E IMAGENS: DESEDUCAÇÕES

Um texto requer imaginação tanto para ser escrito quanto para ser lido. E o que significa “imaginar” senão dar forma imagética a ideias e sentimentos? Daí não ser absurdo dizer que uma obra literária também se faz por imagens, algumas descritas com minúcia, outras apenas sugeridas, que o leitor complementa à sua maneira. Essa capacidade de sugestão e abertura é sem dúvida uma qualidade da escrita, na medida em que confere ao leitor alguma liberdade de criação. Ainda que duas pessoas leiam o mesmo romance, por exemplo, cada uma o imaginará a seu modo, e isso vale para personagens, ambiente, situações etc. Ao ponto em que algumas imagens sejam mais marcantes em nossa memória do que o texto propriamente dito. Lembro-me de cenas muito especiais dos livros que li sem ter certeza de como e com quais palavras foram escritas. O comandante sendo morto pela própria máquina de sacrifício em Na colônia penal, de Franz Kafka. O estupro no Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago. Os soldados bebendo vodca sob a radioatividade em Vozes de Tchernóbil, de Svetlana Aleksiévitch. A lista seguiria até o fim do artigo. Tenho certeza de que cada leitor também pode fazer a sua sem dificuldades.

Esse debate remonta à máxima “ut pictura poesis”, de Horácio, no século 1 a.C. “Tal como a pintura, assim é a poesia”, com o que ele propunha a equivalência – ou correspondência e similitude – entre essas artes. O poeta se referia à possibilidade de se representar e reconhecer o real na poesia do mesmo modo como os pintores faziam, ainda que esse real fosse imaginário como o escudo de Aquiles (na Ilíada) ou o drama de Laocoonte e seus filhos (na Eneida). A questão não é recente, portanto.

Podemos levar em conta ainda a inserção literal de imagens no livro, que em sua maioria obedece a três modos de relação, por vezes difíceis de discernir:

Narrativas visuais: aquelas em que o texto, quando aparece, serve apenas de suporte às imagens, as quais contam a história por si mesmas.

Ilustração: aqui o peso se inverte, pois é o texto o principal narrador, e as imagens apenas conferem uma camada de visualidade a esta ou àquela cena. A própria capa do livro muitas vezes ilustra a história que guarda.

Histórias em quadrinhos (ou similares): embora possam ser semelhantes às narrativas visuais ou às ilustrações, a maior força dessa relação entre imagem e texto está nos casos em que ambos narram a história e se apoiam mutuamente, sendo impossível retirar um dos elementos sem que o sentido pretendido se desconstrua.

Com isso chegamos a uma última relação, que tem instigado minhas investigações mais recentes. Ela vale tanto para imagens inseridas de forma literal quanto para as sugeridas pelas palavras. Refiro-me às obras em que imagem e texto não se complementam, simplesmente, mas se atritam, como se sustentassem um desajuste imprescindível para a apreciação estética da obra. Uma inquietação em vez do conforto que quase sempre advém da capacidade de visualizar com clareza a cena descrita pelo autor.

Essa relação entre imagem e texto é comum em obras surrealistas e fantásticas, que mais explicitamente ferem o senso comum e disparam certo inusitado. Desde o Peixe solúvel, título do livro de André Breton, ao coelhinho Teleco, de Murilo Rubião, que se transforma em outros animais ao longo de sua convivência com o humano narrador da história. Cito ainda o conto Simulacros, de Julio Cortázar, em que uma família entediada decide construir um patíbulo, entre outros instrumentos de tortura e morte, em seu jardim, apenas com propósito de passar o tempo, o que instaura uma verdadeira celeuma na vizinhança.



Com as pequenas experiências chamadas de Isso não é literatura, no coletivo Discórdia, buscamos explorar formatos inusitados capazes de apresentar narrativas fora do livro. Meu primeiro projeto ali foi um poeminha estampado num filtro de café, que se refere à característica da pele de controlar fluxos entre o corpo e o mundo exterior.

Aqui já não se trata de ilustrar ou de elucidar nada, mas de tensionar os limites semânticos e sugerir diferentes possibilidades interpretativas. Como se alargássemos o significado imediato com um rolo de macarrão. Ao longo da vida somos educados a aceitar algumas relações entre texto e imagem como legítimas, as quais vão se acumulando como clichês da compreensão. O clichê é muito amável com o leitor, que não precisa de grande esforço para entender; tudo na narrativa já está dado da maneira como ele conhece e reconhece. As conexões são as mesmas, os limites de significação e de abertura ao diferente permanecem intocados; o leitor apenas lê uma vez mais o que se acostumou a ler. Mas a apreciação estética de uma obra literária – e artística em geral – vai além. Ela opera numa deseducação desse olhar domesticado, levando-o a entrever outras formas de vida, trazendo à tona o que se faz invisível no cotidiano, fazendo-nos estranhar o banal. São imagens que rompem a ordem do dia, arejam palavras, pegam as expectativas com a calças na mão. Todavia, aí existe também um paradoxo: tais imagens deseducam o olhar ao mesmo tempo em que nos ensinam a ver por outra perspectiva. Tudo bem, pois ainda assim ampliam, em complexidade, a visão de mundo.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

ENTREVISTA

O escritor Fernando Sousa Andrade me convidou para uma linda entrevista sobre meu romance Diante dos meus olhos (Editora Reformatório, 2019). Ela acaba de ser publicada na revista portuguesa InComunidade. Você também pode ler aqui:


Diante dos meus olhos tem tantas camadas, como pinceladas de tinta sobre um plano branco, e elas parecem que se mexem, sugerindo nuances novas e paletas policromáticas. Você levou três anos para fazer uma primeira versão, é isso? Como era seu trabalho de escrita ou reescrita durante esse tempo? É um romance em que o leitor imerge na história completamente. Como foi lapidá-lo?

Preciso dizer que você fez uma leitura muito especial do meu livro, que transparece na qualidade das perguntas. Fico lisonjeado e agradecido. Diante dos meus olhos foi sendo criado mais ou menos como você descreveu sua sensação de lê-lo: com pinceladas. Começou com um conto de quatro páginas, escrito na madrugada, logo que despertei de um sonho. Ali estavam esboçados o que viria a ser a vila militar onde a trama se passa e um ou dois personagens. Essa história continuou viva, pedindo para ser contada, e aos poucos desenvolvi o enredo. O conto curto passou a ser um conto longo, que depois ganhou corpo de romance. Cresceu demais, sofreu cortes; ao todo foram onze versões do livro realizadas durante uma década. Apesar disso, o enredo não teve mudanças drásticas, foi apenas se adensando no que diz respeito à psicologia dos personagens e aos pormenores da viagem que realizam. Com o processo pude conhecer melhor aquelas pessoas, o que me interessava na história, quais conflitos se apresentavam, qual deveria ser a linguagem e a forma mais adequadas para a narração. Eu queria obter essas nuances que não se deixam enrijecer nem capturar; que fossem complexas, ambíguas, paradoxais como o ser humano é e precisa ser compreendido — para além dos rótulos, das caixinhas, dos maniqueísmos etc. Parece que deu certo, pois outros leitores também me devolveram impressões semelhantes às suas, dizendo que ora sentiam apreço pelo pai e pelo filho, ora tinham raiva. Ainda assim eu não sabia bem o que tinha em mãos, muito menos o que fazer com o texto. Só tive coragem de buscar vias de publicá-lo quando ganhou menções honrosas no Programa Nascente USP 2015 e no Prêmio Sesc de Literatura em 2016, vários anos após o primeiro rascunho. Em 2019, o projeto foi selecionado num edital de publicação de livros promovido pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Só então pôde chegar aos leitores.

2) Seu romance parece conter muitas pulsões que se veem na prática psicanalítica. O próprio enredo lida com projeções, relações entre o real e a fantasia, medos, luto. O narrador é carregado de afeto pelo pai, mas há sentidos ambivalentes no seu “narrar o pai”. A relação dos personagens parece colocar o romance numa espécie de suspensão, pois narrar é lembrar, mesmo que você escreva a partir do branco total (do esquecimento). E seu romance é tão alusivo à memória! Fale um pouco disso.

A memória é o tema principal do livro. E ela vem carregada de contradições entre as histórias de vida dos personagens, em especial a memória do filho, que narra o pai segundo o seu ponto de vista, a sua experiência, as suas angústias em relação a ele. O pai não tem direito de resposta; os papeis se invertem e ele acaba por se tornar uma espécie de criatura do filho. No fim das contas, não é assim que fazemos a história da humanidade, com os filhos narrando os pais, ou melhor, com as pessoas de hoje falando daquelas que já se foram? Mas há um paradoxo aí: fomos criados, educados, influenciados por nossos antepassados, que assim, por meio de nós, também conduzem a narrativa. No fundo, as questões que se colocavam para mim ao longo da escrita diziam respeito a como criamos essa realidade, que parece tão concreta, embora não seja mais do que uma invenção dentro de um contexto cultural. Os personagens tensionam esse fio, uma vez que a história se faz de memórias, e as memórias deles são elaborações de acontecimentos recentes ou muito antigos coexistindo meio misturados, indiscerníveis, que lutam para ter razão. A psicanálise atravessou o processo de criação do livro mais de uma vez. Tive meu primeiro contato com ela enquanto fazia as pesquisas para o mestrado em Estética e História da Arte, que coincidiram com a escrita de uma das versões iniciais do Diante dos meus olhos. Eu me debruçava sobre a Estruturação do self, trabalho derradeiro da artista brasileira Lygia Clark, ao qual ela dedicou seus últimos dez anos de vida e que se propunha como uma espécie de intervenção poético-terapêutica, por assim dizer. É um trabalho complexo, criado numa ambiguidade entre a arte e a clínica. Para me aproximar dele precisei conhecer um pouco da teoria psicanalítica, que é encantadora. Não parei mais. Li um tanto de Freud, Jung, Winnicott. Algo de Melanie Klein também, na medida em que a pesquisa requisitava. Em 2014 dei início ao doutorado, e por mais que relutasse tive que encarar alguns temas de Lacan, que me ajudaram a pensar essa relação entre real e ficção. Embora o livro não tenha um viés psicanalítico proposital, imaginei que essas aproximações logo surgiriam.

3) (Des)importar-se com a figura do pai, sua ação perene na vida, seu apego às imagens de uma infância na vila militar me fazem pensar como somos ainda uma projeção de quando fomos meninos, no caso do pai e filho. E como se no filho houvesse essas libações do corpo guardado e projetado à adultice. Isso é muito difícil de ser trabalhado no personagem-narrador?

O filho quer se diferenciar do pai para encontrar a si mesmo. Essa é uma questão-chave da existência humana, que tentamos explicar das maneiras mais diversas, entre elas a psicanalítica. Mas em um momento importante do romance o filho se dá conta de que, por mais que drene o sangue do pai de suas veias, seu corpo produzirá mais daquele mesmo sangue. Quer dizer, é uma desconexão impossível. Não importa o seu esforço em negá-lo e se afastar, o pai permanecerá seu ponto de referência; eles ainda estarão em relação. Eu queria que esse paradoxo e essa ambiguidade ajudassem a vermos as relações humanas de maneira mais complexa, mutante, impossível de determinar. Ao mesmo tempo acompanho meus amigos de infância envelhecendo e ficando cada vez mais parecidos com seus pais, os quais conheci com a idade que temos hoje. Essas histórias similares às do livro se contam a todo instante ao meu redor. Imagino que o leitor tenha aí um ponto em comum com o que se passa no Diante dos meus olhos.

4) A cena da velha na janela com a panela de pressão me chamou muito a atenção. O filho fica sozinho e há toda uma projeção cinematográfica sem o contato do pai, que se ausenta. Fale um pouco dessa cena.

Essa foi uma das primeiras cenas que imaginei, embora esteja mais perto do final do livro. Para mim, ela é uma espécie de contraponto à aparição anterior da velha — na janela da escola –, como se o público na plateia do teatro atravessasse o palco e chegasse às coxias. Na história da arte, até a irrupção do Modernismo, dizia-se que as pinturas são janelas para o mundo, ou seja, através delas é possível conhecer paisagens, objetos, gestos etc. No livro, a meu ver, essa cena que você mencionou sintetiza todo o embate entre real e ilusão vivenciado pelo personagem. É quando o problema se apresenta de fato, pois até então vinha apenas se sugerindo. E é o problema que ele carregará adiante. A panela de pressão marca essa ideia de tempo, e seus vapores tornam o ambiente nebuloso; mas apesar dessas evidências ela ainda é um mistério também para mim. Gostaria de saber o que está cozinhando, o que vai amolecendo em seu interior, desfazendo-se, talvez.

5) Eu tive certa visualização do seu romance com um filme chamado o Show de Truman. Passou pela sua cabeça esse filme enquanto estava escrevendo?

Esse filme foi bem marcante quando era mais jovem. Ajudou-me a pôr em crise meus afazeres de redator publicitário, que mal tinham se iniciado. Não me lembro de ter pensado nele, especificamente, enquanto escrevia o Diante dos meus olhos, mas sem dúvida a aproximação é plausível. Show de Truman também fala de desconstruir uma ilusão ao dar-se conta de que a realidade é criada como os cenários de um estúdio de cinema, embora naquele caso se trate de um espetáculo. Lembro-me de que, no filme, o personagem habita um reality show levado ao limite: o mundo acompanha cada etapa de sua vida, vivida desde o nascimento numa cidade cenográfica onde todos são atores. No final, quando percebe essa sua condição, ele abandona o espetáculo e se lança “no mundo real”. O que fico me perguntando, e isso sim tem a ver com meu livro, é: que mundo é este? Tem mesmo algo de real? Como se pode confiar?

6) Se fosse dar esse seu romance a alguém próximo e pedir um texto com comentários, quem você escolheria?

Tive o privilégio de receber algumas cartas de amigos que leram o livro e quiseram me escrever, algumas muito bonitas, escritas à mão, repletas de afeto. Uma delas me foi dada pela artista e terapeuta ocupacional Gisele D. Asanuma, que levou o livro para uma viagem e, enquanto lia, escreveu sobre as relações que estabelecia com os arredores, com as situações que encontrava pelo caminho, com reminiscências do passado, como se fosse se perdendo por aí com a ajuda desse mapa que escrevi justamente com esse propósito. Não sei se pediria a alguém para escrever sobre suas impressões de leitura porque um livro pode acessar lugares muito sensíveis, e o pedido talvez se tornasse invasivo. Mas sem dúvida um dos maiores prazeres em escrever é poder ouvir, depois, como cada leitor se deixou afetar pelo que leu. Essa troca é uma experiência incrível, que mexe bastante comigo, porque marca um momento em que o livro deixa de ser meu e ganha vida.

7) Diante dos meus olhos tem uma relação muito imagética com o cinema. A quem você entregaria seu livro para uma filmagem?

Eu tenho acompanhado pouco o cinema, o que é uma pena. Imagino que muitos diretores compartilhem comigo das mesmas questões sobre realidade e ilusão, uma vez que boa parte delas provém da força das imagens. Já tive oportunidade de ouvir Wim Wenders falar sobre o tema, acredito que o livro poderia interessá-lo, mas com certeza há outros cineastas talentosos que saberiam lidar com as indagações apresentadas ali a respeito do olhar, das memórias, das narrativas. Acredito também que, quando o livro muda de linguagem, torna-se uma nova obra, e tenho mais curiosidade para saber em que o transformariam do que desejo de controlar essa transformação. Prefiro que o cineasta trabalhe como preferir em seu campo de criação. O meu continua a ser a literatura.

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