Pesquise aqui

Mostrando postagens com marcador escrita. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador escrita. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

EM CAMPINAS OU EM CARTAGO, A UNIVERSALIDADE É UMA ABSTRAÇÃO

Na entrevista a seguir, o escritor Fábio Mariano fala sobre sua novela Habsburgo, que apresenta uma trama de relações entre o próximo e o distante.

Habsburgo (Editora Patuá, 2019), de Fábio Mariano, é uma história de relações entre humanos, como muitas. Porém, diferente da maioria, traz como panos de fundo a vida universitária e o mercado de arte. Vemos os personagens Carlos e Coca Munhoz se conhecerem quando ainda são estudantes e desenvolverem uma amizade permeada por conflitos, mal-entendidos e mútua admiração. Coca, agenciado pelo companheiro, acaba por se tornar um artista plástico de carreira internacional, e o círculo de pessoas ao seu redor deixa a trama cada vez mais complexa. 

Fábio Mariano usa recursos narrativos para acentuar isso. Desde o flashback – praticamente a história toda é contada por Carlos durante o encontro com uma amiga num café – ao anacronismo e à sobreposição de espaços – Brasil e República Tcheca se confundem, assim como épocas distintas, de modo que Chopin, Campinas, pizzas e pieroguis, entre outras referências culturais se misturam, criando a estranha sensação de que algo se deslocou no tempo e no espaço.

Presos nessa rede, os personagens buscam formas de escapar. Quando nos damos conta, fomos capturados também, e seguimos com o livro aberto até que as páginas se esgotem.

Clique aqui para acessar o livro no site da editora Patuá


1. Em Habsburgo, Campinas e Cartago são coincidentes. Ouve-se Chopin como uma espécie de hit do momento, há um sentimento de que tudo foi realocado no tempo e no espaço. Identificamos algo familiar naquilo que parece estranho, tais como hábitos estrangeiros, receitas culinárias, nomes de lugares etc. Esse recurso indica certa universalidade das relações humanas, assim como de afinidades culturais, trânsitos, atravessamentos e influências em um mundo “globalizado”? Você teve que pesquisar referências para enriquecer o livro?

Eduardo, antes de mais nada, queria agradecer pelo convite e pela leitura atenta e cuidadosa do livro, que se revela nas perguntas complexas e interessantes que você coloca. Vou começar respondendo à questão da sobreposição entre Cartago e Campinas, porque Cartago é o meu universo desde o primeiro livro, O gelo dos destroieres, e atravessa os contos esparsos que publiquei, e também o terceiro livro, Ruído branco. Meu projeto literário sempre teve a ver com a criação dessa cidade, desse universo ficcional que dialogasse com Campinas, com esse paradoxo que é uma cidade “grande do interior”, a capital frustrada, o lugar onde as coisas abrem e depois fecham, onde existem sempre a noção de um potencial não realizado, como se fosse uma maldição. Ao mesmo tempo, Campinas é uma cidade em que, se você procurar, encontra coisas muito únicas, muito particulares. Eu me lembro, quando estudava russo, de procurar gramáticas nos sebos e encontrar uma gramática do russo em espanhol. Aquilo tem uma história, sabe, alguém que era falante nativo de espanhol e estava aprendendo russo, ou que era professor de russo e tinha alunos que falavam espanhol, existe uma história única naquilo. É uma cidade com uma universidade enorme, cheia de pessoas de todos os lados que vieram parar aqui, que ficaram. Eu nasci em São Paulo e vim para cá, e cresci sempre cercado de pessoas que não eram daqui; nesse sentido é mesmo uma cidade, um entrecruzamento de rotas onde as pessoas vão ficando. Por isso, em parte, Cartago é atravessada por pessoas de diferentes lugares – porque essas pessoas fundam restaurantes, abrem lojas, se empregam no serviço público, a vida inteira eu estive rodeado dessas pessoas, que vinham de outro lugar. Quanto às referências, acho que é importante dizer que esse livro nasce de uma pesquisa muito específica sobre as relações entre professor e aluno e, ao mesmo tempo, sobre o gênero novela. Antes de escrevê-lo, eu cursei uma disciplina na universidade que era justamente sobre a relação professor-aluno na literatura, e aquilo me marcou. Coincidência ou não, vários dos autores eram nascidos no antigo império austro-húngaro, o império dos Habsburgo. Eu sou fascinado por esse império justamente por ele ter sido, numa época de nacionalismos extremados, um império multinacional. Essa diversidade faz com que os pontos de vista diferentes que existem ali sejam muito enriquecedores. Acho que é o Eric Hobsbawm que fala (mas posso estar enganado nessa referência) que Sarajevo abre e fecha o século XX, e o estouro da primeira guerra mundial, ali, é de fato o fim de muita coisa, e isso me fascinava e fascina ainda. Então, ao mesmo tempo em que existiu uma pesquisa muito grande sobre o império, e aí sobre as filiações, as diferentes nacionalidades que o compunham e os diferentes interesses que o envolviam, todos eles pincelados no livro, há um interesse meu de longa data pelas produções culturais dele que é anterior. Eu escrevi o livro quase todo à mão, no primeiro rascunho, ouvindo o quarteto de cordas do Janácek “Sonata a Kreutzer”, que eu tinha ouvido ao vivo num espaço cultural aqui de Campinas uns anos antes e que tinha me deixado obcecado. Então, nesse sentido específico das referências culturais, eu não pesquisei diretamente para o livro – elas foram se encaixando naturalmente, em função de uma pesquisa anterior e mais extensa sobre o império dos Habsburgo.

2. A história aborda certos aspectos da produção, da circulação e do comércio de arte, e assim ajuda a desmistificar um tema que ainda hoje carrega certa aura. Você tem familiaridade com o assunto? De onde vem esse interesse e o que o levou a incluí-lo em Habsburgo?

A origem desse livro é um conto fracassado. O Coca Munhoz aparece, pela primeira vez, em O gelo dos destroieres, numa cena que é contada de um ponto de vista que não é o dele (é como se o conto fosse o negativo fotográfico dessa novela). E desde então eu tentava escrever um conto sobre o Coca, que teve uns quatro rascunhos, mas que não dava certo. Foi na disciplina que mencionei, sobre a relação professor-aluno, que a coisa se encaixou na minha cabeça; foi ali que eu achei uma forma. Ainda assim, eu escrevi quatro começos diferentes, em terceira pessoa primeiro, depois em primeira com o Coca, até achar finalmente a voz do Carlos. Porque isso para mim era importante – não falar desse mundo da arte com a propriedade de quem o viveu. Escolher o Carlos como narrador coloca a distância do espectador; por mais que seja um crítico, ele nunca consegue de fato adentrar o processo de criação. Eu pessoalmente não conheço nada do comércio de arte, então também é algo que fui indagando e pesquisando, mas não pelos detalhes, e sim para poder ambientar essa história. Eu queria trabalhar com um artista plástico porque, na verdade, é a arte mais distante de mim, e é uma das minhas grandes frustrações. Eu já tentei, e eu não consigo desenhar, pintar, esculpir, nada; não consigo ter a mínima habilidade em nada disso. Então, o processo criativo, que para mim na literatura é muito claro, na música faz sentido, já que eu toco instrumentos e já compus, mas nas artes visuais é um mistério total. Se você não domina a técnica, como é que você faz para saber as suas potencialidades de criação, as suas possibilidades, o que você consegue dizer e fazer? Então, a escolha do Carlos como narrador e o fato de ela ter destravado essa história tem a ver com conseguir achar um ponto de vista para falar que não fosse de um profundo conhecedor. Agora, quanto à dinâmica do mercado, a questão do assédio, os segredos, as informações privilegiadas, para mim isso é a marca de qualquer mercado, e esse glamour que recobre é uma máscara que, de fato, mistifica. Isso acaba dando uma espécie de validação, de salvo-conduto, para que pessoas reconhecidas como “gênios” tenham licença para ter comportamentos abusivos, violentos, destrutivos, o que é um absurdo. Por isso, também, eu quis explorar um pouco as ramificações desses comportamentos, os impactos, as marcas que não passam.

3. O mesmo vale para o ambiente universitário, tanto em relação ao ensino quando às pesquisas científicas. Sei que você tem uma afinidade particular com isso. De que maneira sua experiência pessoal atravessou o enredo do livro?

Uma das maneiras de entender esse livro, para mim, é uma grande homenagem à universidade onde me formei, a Unicamp, uma universidade que representa tudo o que eu quero e valorizo no ensino superior – um ensino público, gratuito, de qualidade e que se torne cada vez mais democrático e acessível. Algo que está em risco no Brasil há um bom tempo, e que temos que lutar para manter. De certa maneira, a vida do Carlos é tão atrelada a dois polos, o Coca e a universidade, que ele só narra isso. É como se nada mais existisse na vida dele – família, antecedentes, nada. É como se tudo começasse e terminasse na universidade. A Unicamp mudou a minha vida, e eu sou completamente ligado a ela – hoje, inclusive, profissionalmente, já que sou professor num dos colégios técnicos dela e faço o doutorado lá. Mas acho que, mais que tudo, o que eu procurei recriar ali foi o sentimento de estar na universidade, de atravessá-la, porque esse sentimento é algo que não encontrei na literatura brasileira ainda. A descrição das paisagens do distrito universitário e da própria universidade não é gratuita – ela é, também, uma representação e um diálogo com o que aconteceu com a Unicamp e o distrito da cidade onde ela fica, Barão Geraldo, entre 2007 e 2017, que eram minhas datas de referência naquele momento, e das descrições e histórias de um pouco antes. Mas na ficção a gente cria, transforma, faz alquimia com as referências, e há ali também pitadas de outros campi que eu conheci: a Unesp de Franca, a USP Pinheiros, a Uni Duisburg-Essen, onde estudei na Alemanha, e a Universidade do Mississippi, nos EUA. É engraçado que a relação com o livro é invertida – hoje, meu doutorado é sobre o academic novel americano, os romances que se passam na universidade e têm como personagens principais os docentes. Quando escrevi Habsburgo, eu ainda não fazia esse doutorado; em certo sentido, foi o livro que me levou ao doutorado e à pesquisa que faço hoje. O livro atravessou a minha experiência depois de minha experiência ter atravessado o livro. 

4. A história de Habsburgo parte da amizade do protagonista Carlos e de seu amigo artista Coca Munhoz, que se conhecem durante a graduação, e segue até o momento em que ambos têm carreiras consolidadas. Ao longo desse tempo, novos personagens aparecem e deixam tudo mais complicado. São abordados temas como as relações entre professor e aluno, amizades que se desfazem, jogo de interesses, assédios de vários tipos, contatos internacionais, passado e presente, vivos e mortos, enfim, apresenta-se uma circularidade da qual não se escapa e que aponta para algo maior, como a própria história da humanidade, que de alguma maneira jamais deixa de se repetir. Você tinha essa pretensão ao escrever o livro?

Com certeza. Se por um lado é um livro que tenta recriar um ambiente específico e um sentimento específico dentro de determinadas estruturas, pensar a partir da universidade e da trajetória de uma carreira docente, ele é também um livro que aponta, sempre, para algo que extrapola aquele ambiente. A gente costuma se referir a essas questões como universais, mas elas só acontecem dentro de determinadas configurações, o universal é sempre uma abstração. As amizades só acontecem dentro de uma certa configuração – a universidade, o bairro, a rua, as cartas, as redes sociais, e isso muda, cria especificidades, possibilidades diferentes. Mas para mim essas estruturas serviam justamente para que eu pudesse explorar questões, para que eu pudesse olhar para a humanidade. O título e a sinopse do livro não combinam muito – mas os detalhes todos do livro apontam para o título, e para um momento específico, para o fim do império dos Habsburgo, o momento de crise, o momento no qual as contradições dentro daquela panela de pressão que o era território austro-húngaro explodiram. Ali, não foi só um império que se desfez, foi uma configuração do mundo. Então, o que eu queria era explorar essas complexidades, não numa chave alegórica, mas de diálogo mesmo com as referências, uma espécie de montagem entre o livro e suas referências para provocar o leitor a fazer uma aproximação que chega a parecer um convite indevido, mas que teima, insiste, reaparece. Esses temas, a fundo, são a espinha dorsal do livro, o que não é dizer que o enredo é menos importante, porque é o enredo que permite a relação entre todos os temas, mas é um pouco como o André Malraux fala sobre o Faulkner: parece que ele cria primeiro as situações para depois imaginar os personagens nelas. Eu tinha esses temas todos em mim, mas precisava de um enredo e de uma voz, até que encontrei o Carlos.

5. A novela Habsburgo é seu segundo livro (o primeiro foi O gelo dos destroieres, de contos, publicado em 2018). Depois você publicou Ruído branco, também de contos, em 2021. Todos os três pela editora Patuá. Está trabalhando em novos projetos atualmente? O que vem por aí?

A história do Ruído branco é curiosa. Ele foi publicado numa parceria entre a Patuá e a Ofícios Terrestres, editora independente aqui de Campinas, do Gabriel Morais Medeiros, que é um baita poeta e um amigo de muitos e muitos anos. O livro foi contemplado pelo ProAC de 2019, e era para ter saído em 2020; ele até saiu, mas o projeto envolvia uma turnê de lançamentos pelo interior de São Paulo, e mais várias ações que tiveram que ser remanejadas por conta da pandemia. Acho que eu não consegui escrever sobre como a pandemia afetou o cotidiano de um personagem em parte porque ela afetou o meu projeto literário daquele momento – e aí, é estranho, mas de uma certa forma acho que a minha energia para pensar a relação pandemia-literatura ficou confinada nessa reconfiguração do projeto. E quem me apontou uma saída para isso foi justamente o Gabriel, quando me ofereceu a possibilidade de traduzir um poeta alemão chamado Paul Boldt. Saiu uma plaquete no ano passado, com quatro poemas, que integrou a coleção de plaquetes da Ofícios Terrestres, e em breve (estamos calculando para setembro ou outubro) deve sair a versão que tem 21 dos 84 poemas deixados pelo Boldt (é a primeira tradução dele no Brasil, eu espero que outros tradutores e estudiosos se interessem e mergulhem, traduzam, retraduzam!). Além disso, tenho um projeto de contos para o ano que vem, um projeto que vai se materializar e que é uma parceria com outros dois escritores que admiro muito. E eu ainda tenho outros projetos que vão avançando, mas a passos mais lentos; a verdade é que eu comecei a escrever os contos de O gelo dos destroieres lá em 2012, como um estudo para o ambiente e possíveis personagens de um romance. E o caderno de anotações para esse romance se desdobrou, se transformou em outros projetos, mas o núcleo dele também continua ativo. O que posso dizer com certeza é que, seja em que formato for, Cartago vai continuar sendo o cenário da minha ficção. E que vêm mais histórias de Cartago por aí!

terça-feira, 19 de outubro de 2021

ESCRITOS SOBRESCRITOS

Página 47 do DOCUMENTO PT/AMLSB/RJA/01/018, Arquivo Municipal de Lisboa


Meu ofício é escrever. Seja na ficção, na poesia, na comunicação, na revisão, na pesquisa, na edição, na crítica, nas aulas, no acompanhamento de projetos alheios, enfim, escrevendo é como me sustento e me expresso. É pela escrita, especialmente, que me coloco no mundo. Tenho com ela uma obrigação, uma companhia, por vezes certa desconfiança, em outras, uma paixão permeada por realizações, conflitos e frustrações. E mais. Meu ofício me convida para conversas, que rendem anotações a seu respeito, quase sempre perdidas em cadernos e folhas avulsas. Revendo-as, senti o desejo de compartilhar algumas, que você lê a seguir. Elas não concordam entre si nem pretendem estabelecer verdade incontestável; na realidade, com frequência são incompatíveis e precisam ser acolhidas com parcimônia. Seja como for, espero que tragam alguma inquietação a leitores e escritores, assim como trazem para mim.

***

Existe um abismo entre as palavras e as coisas. Escrever é atirar-se nele, não como forma de suicidar-se, pelo contrário: é levar às últimas consequências a tentativa de sobreviver.

***

O que diferencia um texto da “arte literária” de outro qualquer é que ele sempre tratará do próprio ato de escrever, por mais que se apresente dissimulado na forma de temas, narrativas, versos, personagens.

***

Para ser um escritor bem-sucedido é preciso se interessar pelas pessoas, pelas coisas, pela língua; tanto quanto pelas relações, jogos de força e diferenças que atravessam isso tudo. É preciso ter curiosidade e abertura ao que é estranho. Escrever é elaborar esse profundo interesse pelo outro.

***

A boa escrita jamais é a mera expressão do ego. Ela só se realiza quando o escritor se abandona, inclusive ao falar de si mesmo.

***

Ser influenciado pela obra de outrem não pode significar uma receptividade passiva; não se trata de simulação. Melhor é deixar que ela e a sua própria obra colidam, reflitam e se transformem. É uma ação poderosa e, em geral, perturbadora.

***

É sempre o livro que escolhe o seu leitor – o contrário é uma ilusão.

***

Hoje, e talvez desde sempre, não saber ler imagens é o mais grave tipo de analfabetismo.

***

Uma artista me afirmou certa vez que pintar é escrever. Referia-se não apenas ao aspecto narrativo da imagem pintada, mas ao que apresenta também de linguagem, de estrutura, da sua relação com as palavras que a interpretam, com o que ela dá a ver e como é vista. Essa artista não disse que pintar é “como” escrever, não sugeriu uma compatibilidade. “Pintar é escrever”. A pintura é um escrito – embora não necessariamente um texto, claro. Poderíamos responder que escrever é pintar? Que a escritura é também pintura? Uma composição de cores, sensações, espessuras, forças, temporalidades, sugestões, camadas, visualidades, imaginários, ilusões?

***

Poesia é a capacidade de tornar visíveis as singularidades onde a princípio vemos apenas lugares-comuns.

***

Ao mesmo tempo em que um escrito realiza uma memória, dando a ela a materialidade das palavras, torna-a ainda mais distante, impessoal, autônoma, como um construto, uma invenção, uma obra fictícia da qual o autor já não é o sujeito que a viveu e que sobre ela tem ainda algum controle. Tomamos notas para lembrar; escrevemos para esquecer.


***

Como sombras deslocadas do objeto que as produz, personagens são o autor do livro projetado, espelhado, ampliado, negativado, reduzido, distorcido, ou seja, modificado segundo as necessidades da narrativa. Autor e obra são como formas similares e não coincidentes. São e não são. Assim.

***

Um escritor precisa ter muito claras as questões que mobilizam sua escrita. O que não significa respondê-las, mas enunciá-las. Somente assim saberá se de fato acredita nelas e se exerce seu ofício com sinceridade. Essa é a única verdade que importa quando falamos em escrever.

***

A cada palavra do escritor, a obra pode viver ou morrer. É preciso compreender a responsabilidade implicada nesse gesto toda vez que acrescentar, excluir, modificar palavras num texto. Ao mesmo tempo, somente é possível escrever deixando-as livres para escolherem a si mesmas, sem o controle muitas vezes autoritário do autor. Escrever é manejar esse paradoxo.

***

O real motivo do texto é a sua escrita. Qualquer outro produz resultados duvidosos, quando não desastrosos.

***

O texto deseja existir por sua conta e risco. Nossa tarefa é tornar essa existência possível. E basta.

***

A palavra é sempre um aprisionamento, ela encerra no significado a dimensão maior e mais complexa da vida. Na medida em que cria fissuras no entendimento, subjuga o óbvio, reinventa usos, a poesia tenta escapar dessa limitação. Tentativa deveras frustrada.

***

Um texto que não perturba certa ordem preestabelecida não merece ser escrito. Não há escritura real senão em afrontamento.


*Publicado originalmente no jornal Correio Popular.

terça-feira, 25 de maio de 2021

UM ANIMAL QUE FALA (E ÀS VEZES OUVE)

Veja mais sobre o livro no site da editora Moinhos

Quais são os limites da linguagem humana? Ainda é possível acessar a animalidade que nos habita? Quanto conhecemos sobre os animais e como a escrita de ficção pode contribuir nisso? O escritor e crítico Fernando Sousa Andrade me convidou para falar sobre O belo e a besta, livro composto por pequenos contos, poemas e ilustrações. Reproduzo a seguir essa ótima conversa, publicada originalmente no site Literatura & Fechadura.

1. Ao entrar num parque, temos regiões, seções, placas, sinalizações para os caminhos. Quais são eles em O Belo e a besta?
O livro propõe esse passeio por uma espécie de jardim zoológico. Mas várias lógicas se invertem, inclusive a do percurso pré-determinado. Os caminhos, as regiões do mapa, as sinalizações estão todas colocadas para o visitante se perder e, com sorte, vivenciar uma experiência diferente do espetáculo convencional. Por meio dessa errância, meu desejo era que o leitor perdesse inclusive algumas noções da própria humanidade e pudesse se reencontrar com certa animalidade sua. Assim, tentei criar meios de desfazer a ideia do “eu aqui e um outro acolá” que temos no zoológico, de modo que o leitor pudesse estranhar a si mesmo, talvez encontrar algum outro ser dentro desse “eu”. Isso feito com humor, às vezes bom, outras vezes nem tanto, num “zooilógico”.

2. Na sua escrita, o poder da sugestão é muito grande. Como foi esmiuçar ideias sobre animalidade sem, no entanto, fechar qualquer tipo de conclusão ou desfecho?
Eu tentei desconstruir algumas ideias pré-concebidas que vão sendo embutidas em nós desde pequenos, que nos formam e nos conformam a respeito da animalidade. São ideias sobre a personalidade de animais, por exemplo, como dizer que a cobra é traiçoeira, a raposa é esperta, a coruja é sábia etc. Boa parte delas estão postas desde as antigas fábulas gregas, de milênios atrás. Há outras ideias mais recentes, com a de o cachorro ser amigo do homem enquanto o aedes aegypti é inimigo, a natureza ser algo exterior a nós, enfim, essas concepções que só falam sobre nós mesmos e sobre como projetamos nossa humanidade nos outros animais. Fui tateando isso, tentando me libertar no sentido conceitual e na linguagem, que também pré-determina os nossos entendimentos. Na medida em que o leitor consegue escapar também, os significados ficam suspensos e, assim, o desfecho permanece aberto.

3. A linguagem parece andar no meio desta coexistência entre bichos e gentes. Temos frases que você coleta na loja de souvenires do parque que já estão no senso comum da vida cotidiana. Você acha que linguagem entre bichos e humanos é tão normativa a ponto de criar uma genealogia da vida em comum, aqui pensando nos animais domésticos? Disserte um pouco.
A linguagem muitas vezes é entendida como o grande abismo entre humanos e outros animais. O que parece libertário nessa capacidade de falar é, em certa medida, uma prisão. Quer dizer, não são aqueles animais que se encontraram limitados a um mundo sem a linguagem falada dos humanos; nós é que acabamos por determinar a maior parte da nossa experiência aos signos linguísticos, às redes de sentido semântico, àquilo que pode ser racionalizado e verbalizado. O mundo é muito maior e mais complexo do que isso; uma grande dimensão da vida simplesmente não cabe em palavras. Contudo, raras vezes nos permitimos escapar dos limites do discurso e vivenciar algo que os outros animais têm a todo instante, pois somos educados a permanecer sãos e salvos nesse terreno da comunicação, da lógica, do pensamento esclarecido. Esse é um ponto que aparece sugerido em alguns textos de O belo e a besta, não como tese, mas como provocação, como piada. Outro ponto é a loja de suvenires do parque, que você mencionou. Ali estão colecionadas uma série de expressões que mostram como os animais fazem parte da nossa língua: pé de cabra, espírito de porco, bico do corvo, conversa para boi dormir, bode expiatório etc. Foi divertido lembrar delas, que por sua vez mostram a complexidade do português, rico em associações e imaginários, capaz de ir muito além do sentido imediato. Temos aí uma espécie de paradoxo que me interessava manter e atiçar, em vez de propor qualquer resolução.

4. Por que os animais se prestam também ao palavrão, ao efeito pejorativo de valor? De onde vem esta relação entre bichos e seu valor para uma ação humana?
Os animais do livro dizem palavrões porque são personagens inventados por um humano que deseja falar com outros humanos. No fim, são sempre criações feitas à nossa imagem e semelhança, e por mais desconstruídas que se queira, elas ainda estão a escancarar nossa incapacidade de acessar grande parte da animalidade que habita em nós. Essa incapacidade, creio, também podemos chamar de humanidade. Sem querer que humanidade seja pior ou melhor do que animalidade. Ambas coexistem à sua maneira. E hoje me parece que a humanidade é mesmo uma pequena parcela de tudo o que nossa animalidade pode vir a ser.

Gostou? Encomende agora mesmo seu exemplar de O BELO E A BESTA no site da Editora Moinhos. Clique aqui.

quinta-feira, 15 de abril de 2021

O CAMINHAR NA HISTÓRIA DA ARTE RUMO A PAULO NAZARETH: ALGUNS PONTOS DE PARADA E OBSERVAÇÃO



Em 2019, tive o prazer de apresentar mais uma pesquisa no Seminário de Estética e Crítica de Arte provido pelo Grupo de Estudos em Estética Contemporânea da USP. 

Falei sobre a caminhada como prática artística, com destaque para uma performance do artista Paulo Nazareth (em especial no que dialoga com a história da arte e com transformações do olhar, identidade latino-americana e condição de estrangeiro na atualidade). 

O texto decorrente agora pode ser lido neste belo livro recém-publicado, disponível online gratuitamente, que você acessa clicando aqui >> Anais do IV Seminário de Estética e Crítica de Arte da USP: Políticas da Recepção

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

CRIATIVIDADE EMBOTADA

Possivelmente assim como você, estou em casa com esposa e filha desde o início de março, onde vida familiar e profissional nunca estiveram tão misturadas, indiscerníveis até. É sem dúvida um privilégio se comparado a quem precisa sair, expondo a própria saúde e a de seus próximos. Há também outros aspectos positivos. Por exemplo, acompanho cada momento desse terceiro ano de minha menina. Fico a imaginar quanto teria perdido se continuássemos na rotina anterior, em que ela passava dez horas por dia na escola. Os pontos negativos, claro, são inúmeros, nem caberia elencá-los aqui. Todavia, um deles me chamou a atenção recentemente, e pude discuti-lo com amigos escritores e artistas que vivem situação semelhante à minha, quando concluí que existe mesmo uma constante: ao longo da quarentena, o contato com aquele pulso mais criativo, tão típico do ser humano, foi sendo minado até quase desaparecer. Aconteceu devagar, um pouquinho por semana, de modo que não consigo identificar um ponto exato de ruptura, apesar de ser assim que me sinto agora, apartado dele por completo.

Foto de Julia Joppien em Unsplash (detalhe)

De início, tentei elaborar a nova condição imposta pelo vírus, e como os tempos mais alargados já não cabiam, optei por trabalhar com poemas breves. Havia neles o engenho da palavra e, mais importante, uma reapresentação da vida, perturbada com as mudanças que eu observava ao redor. Tais poemas foram escasseando. Não porque me faltavam palavras, mas porque faltava vida.

Pode soar paradoxal, em especial se levarmos em conta que certa inércia das primeiras semanas foi logo preenchida com mais e mais trabalho, ao ponto em que jamais produzi tanto, profissionalmente falando, como neste último mês de novembro. As horas estiveram todas ocupadas, como se não houvesse sequer alguns minutos de respiro. Porém tais realizações não foram além de um modelo automático, dedicado a quem contrata meus serviços de redação. Talvez você se pergunte: é possível escrever sem criatividade? Sim e não, eu diria. Neste caso, basta um apuro técnico com as palavras, como se eu escrevesse com um jogo de peças de montar. O que não é suficiente para escrever literatura, não basta para desenvolver ensaios críticos, coisas que muito me interessam. Talvez você sinta o mesmo em relação à sua área de atuação e seus interesses particulares.

E por que não basta? Porque falta vida. Foi assim que me dei conta de como eram importantes as quase duas horas por dia no transporte público, o horário preservado para o almoço, as pausas para o café. Tanto quanto os passeios de fim de semana no parque, nos centros de cultura, em restaurantes e até mesmo no comércio. O encontro com conhecidos e desconhecidos. Como bem disse uma amiga, visitar uma exposição no museu é muito mais do que estar frente a frente com obras de arte. Vemos pessoas ali e nos percursos de ida e volta, ouvimos uma música, somos atravessados por trechos de conversas, sustos e deleites. O corpo se põe em movimento, sentimos os cheiros da rua, somos tocados pelo sol e pelas sombras. Carros pedem passagem, pássaros nos dão cantadas, desviamos olhares e trajetórias. Reagimos de improviso o tempo inteiro. Estamos abertos ao espontâneo.

É a essa vida que eu me referia, acusando a sua falta. É dela que advém a intensidade criativa capaz de se converter em poesia. É da natureza desse dia a dia social e político se apresentar como uma verdadeira experiência estética a quem se permite. O fato de não poder mais vivenciá-lo leva a um automatismo psíquico e, com certeza, a um comportamento produtivo, porém sem vitalidade. No limite, sinto-me como que morto; um morto-vivo, digamos.

Aquela dificuldade de separar minimamente o pessoal e o profissional tem provocado sentimentos controversos, como a alegria de estar junto de quem amo e a culpa por não realizar algo prazeroso, como pesquisar, por exemplo. Se algum tempo se abre na rotina de trabalho obrigatório, não consigo pegar um livro e apreciá-lo, sabendo que minha filha espera companhia para brincar. Quero estar com ela o máximo possível, ao mesmo tempo em que me pego torcendo pela sua hora de soneca. Quando saio em fins de semana para fazer algum exercício, pedalando, penso que devo retornar o quanto antes.

Claro que a força criativa às vezes encontra falhas no casco e vaza. Acontece de eu despertar de madrugada para escrever alguma coisa que me convoca. Comecei também a fazer pães, de maneira que não me sinto tão culpado com o tempo que demandam, pois todos na casa usufruímos deles. Encontro aí alguma energia para manter o pulso. Mas sinto que mesmo essas atividades começam a vestir o uniforme fabril.

Dizem que 2020 ficará marcado como o ano da doença, enquanto 2021 será o ano da cura. Sem dúvida são narrativas factíveis, ainda que leve um bom tempo até sermos vacinados, ao que tudo indica. Outra amiga manifestou a necessidade de um rito de passagem, como o próprio réveillon, que simboliza o encerramento de um ciclo e o início de outro. De minha parte, sinto que ele não terá esse poder; ainda teremos muito 2020 no ano que vem.

“Vai dar certo no final”, seja lá o que isso signifique, assim como a ideia de um “novo normal” em que a sociedade será mais compreensiva e solidária são visões generalistas, ou seja, não servem para muita coisa, exceto nos ludibriar. Infelizmente, não estou em condições de ir muito além na elaboração de futuros possíveis.

Não quero, contudo, parecer pessimista. Sigo o ritmo que me cabe agora, tentando de uma maneira ou de outra um descompasso, um desvio, um tropeção, que seja. Que me permita cair no mundo outra vez e me conectar com a vitalidade criativa de maneira mais intensa do que a favorecida pela fibra ótica. Se posso desejar algo neste fim de ano é que eu consiga reinventá-lo pela arte. A qual, tenho certeza, me aguarda tão ávida quanto aguardo por ela.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

[live] LANCEI UM LIVRO. E AGORA?

Participo desse bate-papo sobre publicação e divulgação de livros, que será transmitido ao vivo pelo Facebook da plataforma Vida de Escritor. Clique no link e acompanhe!

 

segunda-feira, 13 de julho de 2020

A LEITURA COMO DESREGRAMENTO DE SENTIDOS

Há livros que me causam uma sensação de abstinência quando deixo de lê-los. Ainda é um mistério por que acontece com alguns e não com outros. Resta essa espécie de nostalgia de uma experiência de vida fictícia, uma vontade de voltar ao que nunca vivi de fato, mas que vivenciei de alguma maneira por intermédio de palavras e imagens. 

Penso se ler poderia mesmo desestabilizar o continuum da vida comum e levar a uma “iluminação profana” – para usar a expressão de Walter Benjamin – por meio dessa embriaguez não alcoólica, quer dizer, sem o uso de outras drogas senão o próprio livro, com o delírio sugerido pelo cheiro de tinta em papel. Uma suspensão de certa ordem que nos abre para outra; pensamento que irrompe de um jogo e remonta toda uma cadeia de significações já formada e banalizada.

Abrir as páginas de um livro de prosa ficcional implica abrir a mim mesmo e me dispor a encarnar um personagem outro; a possessão da sua existência imaginária, dos seus sentimentos contornados pela sintaxe. Viver inclusive uma alteridade radical, como a produzida por William Faulkner na primeira parte de O som e a fúria, em que adentramos a lógica torta de um deficiente intelectual, ou a de Meu tio o Iauaretê, de Guimarães Rosa, em sua estranha animalidade.

A experiência é exigente porque requer desativar mecanismos pessoais já muito aprimorados para inventar outro funcionamento. Acaso se consiga decorrerá o horror ou o prazer da ebriedade estética, por assim dizê-la; esse desregramento dos sentidos que expande a percepção para além das fronteiras do senso-comum.

Há pouco li O museu do silêncio, romance escrito pela japonesa Yoko Ogawa em que um museólogo é chamado a um vilarejo para lidar com uma coleção de objetos especiais. Enquanto se avizinha à nova situação, passeia pelos arredores e nos envolve num enredo inquietante e ao mesmo tempo aconchegante, do qual é difícil sair ileso. Cada vez mais implicado no projeto do futuro museu que está organizando, esse personagem transborda a própria margem e dá a ela nova forma; entre os copos de uísque, enamora-se por uma menina, aproxima-se da natureza com o uso do microscópio e se afasta da própria história familiar. Com ele, passo também a operar segundo outra modulação. As regras se desestabilizam, afrouxam, confundem os sentidos e me levam a uma vida não vivida na realidade, mas na ilusão, da qual ainda assim podemos falar, traduzir em imagens, descrever e interpretar; não menos real, portanto.

Sabemos que a criação da perspectiva na representação visual depende de um ponto de fuga; uma formulação matemática para que se possa escapar da banalidade da vida e adentrar um contexto ilusório disposto na realidade. Puro artifício a enganar os olhos, que veem profundidade num plano preenchido de pigmentos coloridos. E na representação literária, seria muito diferente?

Bacchus (1596-1597), de Michelangelo Merisi, dito Caravaggio
Traço aqui mais um ponto de fuga em busca de nova perspectiva: Caravaggio pintou um famoso Baco, composto por um misto de juventude, quimera e podridão, que olha para fora do quadro, desatento. Tudo ao seu redor parece organizado à perfeição. Ao observarmos a pintura, em seu universo ilusório, vemos a mera banalidade de todos nós. Interessa-me, contudo, saber o que ele vê através da superfície pictórica, com seu olhar desviante e suas bochechas rosadas que denunciam um abandono de si. Aquele Baco é um leitor do nosso mundo; o deus que deixa o sagrado perpétuo para habitar a realidade profana. Quem somos diante da sua imortalidade? Uma existência finita, da qual pouco se preserva. Precisamos desaparecer suficientemente bem para que exista o movimento da vida e os momentos de suspensão que denominamos história.

Cansado, não posso controlar o sono e durmo com O museu do silêncio nas mãos. As páginas do livro aberto fazem as vezes de um portal por onde afluxos de sentimentos vêm e vão. Imagens. Palavras. Afetos. Tomo o mesmo trem que leva o museólogo à vila no interior do Japão; o trem que ele jamais pegará de volta. Parte de mim permanece com ele naquele lugar incrustrado nas montanhas e florestas. Parte de mim observa à distância a coleção de objetos que pretende rememorar cada vida extinta naquela comunidade. Outra parte não será vista novamente; esta última talvez seja a única verdadeiramente liberta.

sábado, 6 de junho de 2020

TOMAR DISTÂNCIA PARA DESCONHECER MELHOR

Carta ao pai (2015), de Élida Tessler

Para desgosto de meus pais, quando criança eu adorava desmontar objetos, sendo a caixa de ferramentas um dos meus brinquedos favoritos. Dos carrinhos de plástico aos rádios de pilha, do sifão do lavabo à base do liquidificador, tudo se reduzia às suas menores peças. Eu também misturava produtos de limpeza e às vezes ateava fogo numa coisa ou outra para ver o que acontecia. Tinha um profundo interesse pela estrutura desses objetos, aliado à curiosidade de saber como se transformariam quando submetidos a condições inusitadas. Hoje sei que fiz isso tudo movido também por outra vontade: a de estranhar aqueles objetos que me eram tão banais, dispostos no meu dia a dia como se estivessem ali desde sempre e para sempre. Desparafusando tampas, removendo fios, forçando lacres e depois remontando tudo numa nova composição disfuncional.

Certa vez, logo que saímos de uma exposição de Mira Schendel no MAM-SP, pedi aos estudantes de graduação que eu acompanhava para descreverem o que tinham visto. Nenhum foi capaz de se ater à elaboração mais fundamental: trabalhos de arte em sua maioria feitos com tinta e papel, dispostos em sequência cronológica nas paredes, as molduras todas na mesma altura média, poucas cores destacadas na brancura do museu etc. Eles logo saltavam às impressões que a exposição lhes provocara e às supostas intenções da artista. Apesar da minha insistência, parecia impossível limitarem-se à descrição formal sem significá-la.

Em oficinas de escrita, costumo propor um exercício: os participantes devem eleger um objeto comum de sua rotina e descrevê-lo como se nunca o tivessem visto. Isso que parece simples revela-se um transtorno. Em primeiro lugar porque, com o tempo, perdemos o hábito de apreciar as formas, os mecanismos, a complexidade, enfim, desses objetos com os quais lidamos invariavelmente. Em segundo lugar porque é automático irmos direto às experiências que nos proporcionam, quer dizer, ao seu uso, assim como às memórias a eles associadas. Objetos pessoais têm uma função e uma história; acontece que por vezes elas ocupam todo o lugar da sua existência. Essa proximidade prejudica nossa aptidão de vê-los como eram antes de terem se tornado familiares.

Na última vez em que fizemos o tal exercício, um dos presentes escolheu descrever um mapa. Foi engraçado porque o título já anunciava algo como: o mapa em cima da mesa. Quer dizer, o objeto já estava nomeado e sua condição, estabelecida, independentemente de todo o esforço que viesse na sequência do texto para apreciá-lo.

O mapa é um dos objetos mais complicados de descrever como se jamais o tivéssemos visto porque, em si, resume-se a cores e traços no papel. A representação que nos propõe exige um tanto de educação para ser decodificada. Somente assim sabemos, por exemplo, que o azul remete às águas; o verde, à floresta; o laranja, a certa topografia; a escala, ao tamanho real; além das direções, longitudes e latitudes, rotas, fronteiras geopolíticas etc. Sem compreendermos toda essa legendagem, o mapa é um desenho abstrato.

Se recusarmos essa intimidade imediata que nos faz perceber o mundo no mapa e tomarmos distância para desconhecê-lo; se negarmos nosso condicionamento e abrirmos sua imagem, desmontarmos seus dispositivos, talvez possamos nos tornar um pouco estrangeiros nesse mapa e questionar por que a Europa é o norte, por que muitas fronteiras na África são linhas retas, por que é tão difícil localizar países como Irã ou Vietnã, enquanto temos um imaginário tão detalhado de Nova York, entre outros inúmeros exemplos. Experimentar, portanto, um estranhamento que é também como uma expatriação, pois nos destitui de um território doméstico e de uma língua mãe.

A descrição, que implica distanciamento, interrupção, desmontagem e remontagem, deixa ver também um segundo ponto: o de que esses objetos todos ao nosso redor mantêm algo irreconhecível, que permanecerá desconhecido apesar de nossas tentativas para esclarecê-lo. Estranhá-los, ou seja, romper com sua aparente imobilidade e com essa familiaridade das relações já estabelecidas, é bem o contrário: conhecer obscurecendo. Tal como acontece quando a racionalidade ocidental, de herança iluminista, tenta lidar com conceitos orientais como wabi-sabi ou ma, que não se reduzem a uma definição e, no limite, são mesmo impossíveis de dizer; é necessário abandonar a linguagem para vivenciá-los em outros registros do sentido. O que nos leva ainda a um terceiro ponto do exercício: o de que escrever jamais será o mesmo que a aparência visual nem substituirá a coisa em si.

Para se consolarem por minha reinação incontrolável, que eventualmente trazia prejuízos de diversas espécies, inclusive financeiros, meus pais ora suspiravam que “ao menos” assim eu me tornaria cientista, ora diziam “inventor”. É verdade que trago ainda aquele ímpeto comigo. Apenas com ele posso inventar meu caminho nas artes e na vida, do mesmo modo como prossigo com minhas investigações nas ciências humanas.

No que diz respeito ao conhecimento, temos atualmente dois partidos muito em voga e não excludentes: aquele que aposta mais em armas do que na educação e outro que, por completa ignorância de como a humanidade é complexa, acredita que bastaria investir nas ciências exatas e biológicas. Todavia há questionamentos que só ganham forma em lugares menos precisos, talvez até menos dizíveis e, não obstante, vitais para o conhecimento de nós mesmos.