Pesquise aqui

Mostrando postagens com marcador literatura. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador literatura. Mostrar todas as postagens

quarta-feira, 28 de junho de 2023

O CONTO (OU CRÔNICA) ESTÁ NOS OLHOS DE QUEM LÊ

Mulher com chapéu (1905), de Henri Matisse

Qual a diferença entre conto e crônica? A pergunta invariavelmente retorna. Desta vez, aconteceu durante minhas aulas na pós-graduação em escrita criativa.

Quem deu o exemplo foi a mesma aluna que perguntou: certa noite, tomada por uma insônia brava, ela desceu diversas vezes a escada do sobrado onde mora para beber água na cozinha, ao ponto em que começou a criar inimizade com o próprio cachorro. Quando, enfim, o sono veio, ela precisou se levantar outras tantas vezes para não molhar a cama.

Isso seria enredo para conto ou crônica? É verdade que esta última quase sempre traz as características da sinopse acima: leveza, bom humor, acontecimentos banais que sugerem alguma reflexão. Mas por que não poderíamos também escrever um conto com isso? E mais: em que um texto seria diferente do outro?

Foi Mário de Andrade que, meio sem paciência, afirmou que conto é o que o autor chamar de conto, e ponto final. E a crônica, seguiria a mesma fórmula rabugenta?

Na discussão em sala, ocorreu-me que a diferença talvez esteja menos na forma do texto e mais na relação que o leitor cria com ele. Se ambos são narrativas ficcionais, a expectativa de quem lê aponta para lados opostos.

Explico: ao lermos uma crônica, tendemos a acreditar que o caso narrado aconteceu de verdade. Que o sujeito da história não é mero personagem, mas o autor em si. Que nada se cria, tudo se copia – ou se imita da realidade, no caso. Como se o autor da crônica quase não escrevesse, apenas transcrevesse.

Nada mais ilusório. Se você já escreveu uma crônica – ou qualquer outra narrativa, cá entre nós –, sabe bem que tudo é invenção. O ponto de partida pode ter algum fundamento na realidade, mas ele logo se transforma em palavras, perspectivas, enfoques que separam o que será contado e o que permanecerá não dito. Torna-se outra coisa, ganha outra existência.

Um texto ficcional é um texto, e assim deve ser apreciado. Isso me faz lembrar de uma anedota sobre Henri Matisse. Conta-se que, durante exposição no Salão de Outono, em Paris, uma pessoa desdenhou da obra Mulher com chapéu, alegando que não existia mulher com nariz amarelo. A retratada não estaria bem pintada, portanto; pois não condizia com a realidade. O pintor teria respondido que aquilo não era uma mulher, mas um quadro.

Um leitor assíduo de crônicas pode se decepcionar ao descobrir que o que lê nas horinhas de descuido é fruto de criação – e nós não vamos acabar com a felicidade dele, combinado? Aquilo tem sabor de verdade, mas esse sabor é idêntico ao ficcional. Porque, convenhamos, trata-se de um texto; um retrato verbal, artístico; não a realidade em si. São palavras dispostas uma ao lado da outra com o objetivo de proporcionar uma experiência estética.

Lembrei-me também de uma ideia que Umberto Eco desenvolve na quarta das seis conferências oferecidas em 1993 em Harvard, todas elas reunidas e publicadas no Brasil sob o título de Seis passeios pelos bosques da ficção. Ele explica ali que a norma básica para se lidar com uma obra literária é o leitor aceitar o “acordo ficcional”. Quer dizer, o leitor precisa assumir que está lendo uma história imaginária, mas nem por isso pensar que o escritor está contando mentiras.

Recorto aqui um trechinho: “Quando entramos no bosque da ficção, temos de […] estar dispostos a aceitar, por exemplo, que lobo fala; mas, quando o lobo come Chapeuzinho Vermelho, pensamos que ela morreu (e essa convicção é vital para o extraordinário prazer que o leitor experimenta com sua ressurreição). […] A obra ficcional nos encerra nas fronteiras de seu mundo e, de uma forma ou de outra, nos faz levá-lo a sério”.

A crônica abusa desse princípio, fazendo o leitor acreditar que seu mundo fictício se confunde com a realidade nossa de cada dia. Quando, na prática, as escolhas do escritor visam fazer o texto ter coerência interna e, assim, cumprir sua missão. Sem necessariamente assumir qualquer compromisso com a verdade. A estrutura narrativa está toda lá, com seus elementos fundamentais: personagem, tempo, espaço, enredo, linguagem, narrador. Caso a verdade fosse primordial, a crônica rumaria para os lados do ensaio, que é uma forma de não ficção.

Aliás, naquela mesma conferência, Umberto Eco faz outra provocação que nos interessa: “À parte as muitas e importantes razões estéticas, acho que lemos romances porque nos dão a confortável sensação de viver em mundos nos quais a noção de verdade é indiscutível, enquanto o mundo real parece um lugar mais traiçoeiro”.

Ele diz romance, mas podemos pensar o mesmo sobre os contos. E sobre as crônicas. Em todos eles, a ideia de verdade se sustenta conforme o desejo do escritor e se o leitor o acompanhar. Enquanto, fora do texto, a coisa é bem mais complicada. Quer ficção maior do que uma verdade absoluta?

Em suma, o que fiquei pensando a partir daquela pergunta da estudante é que um mesmo texto pode ser lido como conto ou crônica, a depender da expectativa que o leitor cria a seu respeito. A solução vale para todos os contos e crônicas já escritos? Não. Mas vale para uma porção. Os demais, espero que rendam outras boas questões.

Publicado originalmente em LiteraturaBr.

terça-feira, 30 de maio de 2023

OS FILHOS DA PÁTRIA ARRASADA

Na entrevista a seguir, o escritor Nélio Silzantov fala sobre seu livro de contos Br2466 ou a pátria que os pariu.

“A cabeça decapitada, rolando de um lado pro outro nos pés da molecada em um campinho de futebol e, por fim, deteriorando-se a cada dia até a ossatura feito um bibelô na cabeceira de nossa cama.”
(trecho do conto Fale o que você quiser, receba um jab direto sem defesa)

A disputa entre o carnaval e a quaresma, de Pieter Bruegel, o Velho


Títulos longos e proféticos marcam o mais recente livro de contos de Nélio Silzantov. Formado por uma coleção de textos curtos, ele se divide em quatro partes: O estado é uma máquina de triturar homens; Os homens são bestas que se devoram e louvam; O credo é a peste sedenta de morte; Com quantos caracteres se constitui um caráter?

Já vemos indicados aí temas que atravessam as histórias. Entre eles, os avanços tecnológicos de controle, a influência do poder religioso na política e no imaginário cotidiano, o moralismo regendo as relações sociais e, claro, tudo o que pode haver de abjeto nesses tópicos.

Há no livro diversos outros, não menos impactantes. Há uma profusão de citações a pensadores de áreas como a ciência, a filosofia e as artes. Há também o entrecruzamento de línguas, em especial o português, o inglês e o espanhol, sugerindo trânsitos culturais.

Nélio desenvolve suas narrativas com cenas breves, de acontecimentos quase sempre pontuais e determinantes, que arrasam a vitalidade das personagens. Pois não se trata apenas de uma violência que dá cabo à vida, mas de violências diversas que minam o próprio sentido da existência, levando o conceito de humanidade até o limite.

No fim, seus contos nos fazem perguntar: é o horror o que nos aguarda? Ou essa é uma profecia já realizada? Os comentários do autor a seguir nos ajudam a formular nossas próprias conclusões.

1. Em sua mensagem aos leitores, logo no início do livro, lemos que em Br2466 ou a pátria que os pariu existe uma “escrita como expurgo”, no sentido de que os textos vieram ao mundo num ato de libertação, talvez numa tentativa de se afastar das impurezas em que estamos metidos. Em que medida esses contos carregam um ideal de vida pessoal e social?
Olhando para eles com essa finalidade, acredito que indicam sentidos opostos aos que ali são representados e que levaram as personagens ao estado decadente em que se encontram. O que reconheço não ser tão óbvio, por isso, antes de publicá-los e mesmo agora, considero válido dizer algo aos leitores como introito à experiência literária propriamente dita. Os contos de Br2466 são antes de tudo uma sátira sobre a barbárie, sem concessões ao potencial de horror ao qual somos capazes de praticar, nem promessas fáceis e horizontes utópicos; pois acredito que, se quisermos desbarbarizar a sociedade, é preciso antes e acima de tudo não apenas desvelar suas máscaras, mas irmos fundo em suas entranhas a fim de reconhecermos o estado em que nos encontramos. Mais do que uma distopia, costumo me referir aos contos em questão como uma realidade aumentada ou imagem da nossa sociedade vista por uma lente de aumento. E nesse sentido, o da possibilidade de apontar para aquilo que nem todos veem, acho que eles cumprem bem o papel, se quisermos atribuir algum tipo de papel à literatura.

2. Diversas referências a livros, músicas, acontecimentos socioculturais, entre outras, permeiam os contos. Muitas vezes as citações estão explícitas, outras vezes elas se encontram veladas. Essa sua literatura acontece num diálogo com outros pensadores? Como você faz para manter sua voz em meio àquelas que influenciam sua escrita?
Sou bastante influenciado por tudo aquilo que me afeta. Mas costumo dizer que a música é a base primária de minha intelectualidade. Gosto muito de observar e estudar o que meus colegas contemporâneos têm feito, mais até do que os clássicos do cânone. Em todo caso, considero impossível não estabelecer diálogos quando nos dispomos a falar algo. Estamos sempre reverberando algum discurso, seja em sua totalidade ou de forma fragmentada e unida a outras vozes, concordemos com elas ou não. Em certa medida, isso nos leva ao velho problema da “apropriação” e da “mimese”, que, vale dizer, não se restringe à representação da natureza, no sentido mais comum do termo; mas como o empréstimo de imagens, pensamentos e sentimentos que extraímos de algum autor para fazer um uso distinto, aproximado ou irmos além do original. E assim chegamos na questão da voz pessoal, ou daquilo que nos distingue dos demais escritores. Volta e meia interrogo a mim mesmo quando analiso minha escrita e a escrita de outros colegas. Mas a questão que eventualmente me coloco não é se devo ou não me apropriar de algo ou mimetizá-los, mas como utilizar tais referências. Até mesmo porque, em termos de criação artística, ser original não é criar algo do nada, mas saber como ou em que medida mostrar, dizer ou representar de modo distinto aquilo que todo mundo vê, possibilitando experiências de outra ordem.

3. Como distopias não muito distantes – às vezes já realizadas –, seus contos mostram violências de diversas ordens, como opressões sociais, julgamentos morais, abusos de poder, entre outros absurdos, virulências, escatologias bastante factíveis. A humanidade é levada até um limite, que funciona como uma espécie de alerta. Por que escrever tendo em vista esse fim? E como você tem percebido a recepção de seu livro entre os leitores?
De modo muito trágico nos tornamos naqueles personagens históricos que nos inquietavam nas aulas de História do Ensino Médio. Durante muito tempo nos pareceu difícil acreditar como foi possível tamanha passividade, conveniência e cumplicidade com inúmeras tragédias e barbáries, como Auschwitz, e quando menos esperamos quase repetimos o erro. Penso que um alerta, uma advertência ou lembrete nos serve justamente para não confiarmos tanto em nossa memória ou na memória daqueles que elegemos para administrar e zelar nossa vida em sociedade. Quem leu Desumanizados e me acompanha sabe que a condição humana, a violência e a finitude da vida são questões caras em minha escrita. Em certa medida, Br2466 é um alargamento dessas questões, vistas e expostas com o auxílio daquela lente de aumento. Neste sentido, a recepção do livro tem sido bastante positiva, ao menos até aqui. Mesmo porque, assim como inúmeros escritores iniciantes, independentes ou publicados em pequenas casas editoriais, meu círculo de leitores é bem curto e a qualquer momento alguém considerará minha literatura uma perda de tempo. Isso faz parte do jogo e não me preocupa. Eu até poderia escrever meus livros de outra forma, mas prefiro acreditar que eles são exatamente o que deveriam ser. Cada obra exige um tom e um estilo único que somente seu autor ou sua autora são capazes de imprimir. O maior desafio de quem assume a ficção como ofício é representar aquele olhar diferenciado, mesmo quando falamos sobre as mesmas coisas.

4. Os contos da parte final parecem mais colados a acontecimentos recentes da nossa realidade. O que falta para essa “pátria que os pariu” se tornar uma “pátria que nos pariu”? E, aproveitando, de onde vem o “Br2466” do título, que parece indicar uma rodovia, uma lei, talvez uma data futura? Ou até um “666”, se somarmos o 2 e 4...
Talvez a grande questão que não se encontra no livro e dependa muito mais de nossa interpretação seja justamente essa, tentar entender em que medida a pátria ali representada é mãe das personagens que povoam suas páginas e não daquele que as escreveu e seus leitores. Se nosso olhar for pessimista/fatalista — ou realista, como eles se consideram —, talvez não haja diferença entre nós e os personagens de Br2466. Se assim encararmos a questão, então seu título pode muito bem ser compreendido como uma referência a esse caminho/rodovia em direção à barbárie, às leis que validam os Estados mais atrozes e totalitários, ou mesmo às representações apocalípticas. Se incluirmos uma data nessa semiologia, apesar da catástrofe em seu horizonte, não deixa de ser uma visão bastante otimista e utópica imaginarmos que a humanidade ou mesmo o planeta continuará existindo por mais quatro séculos, independentemente da forma como o exploramos. Em algum momento até cogitei utilizar BR666, mas logo considerei não muito criativo, sem falar no risco que tal referência implicaria nas leituras e interpretações. Na dúvida, preferi instigar o leitor a pensar sobre o título e abrir a possibilidade para que esse questionar o acompanhasse até o final da leitura, tendo a dúvida do que ali está escrito como companheira do início ao fim, colocando o pensamento em constante movimento.


O livro:
Br2466 ou a pátria que os pariu
Autor: Nélio Silzantov
Editora: Penalux
Ano: 2022
Clique para saber mais

sexta-feira, 31 de março de 2023

MINHA ESTREIA NO PORTAL LITERATURABR

 

Clique aqui para acessar

Escrevi durante 14 anos para o caderno de cultura do Correio Popular. O que de início foi a concretização de um sonho aos poucos se revelou uma oportunidade incrível de construir carreira e exercitar o pensamento. No jornal, tive a oportunidade de experimentar os mais diversos tipos de textos, dialogar com leitores e desenvolver meios de divulgar o meu trabalho.

Esse ciclo se encerrou no ano passado. Achei que era hora de me dedicar a outras coisas, mas o “impulso ensaístico”, por assim dizer, continuou a me requerer.

Pois é com imensa alegria que inicio agora uma contribuição com o portal LiteraturaBr. Sou muito grato pela acolhida e pelo espaço que me concederam. Esse é um site repleto de conteúdo bem cuidado, dedicado a valorizar a cultura em geral, com destaque para a literária. Tem podcast, clube de leitura, artigos, resenhas, excerto de livros e muito mais, vale a pena conhecer.

Sinta-se mais do que convidado, convidada, convidade a acessar o LiteraturaBr. E aproveite para assinar a newsletter deles, que é gratuita e leva para o seu e-mail alguns destaques do conteúdo publicado ali.

Pretendo seguir escrevendo sobre literatura e artes visuais. E o primeiro texto, que acaba de sair, trata exatamente do embate entre essas duas áreas iniciado na Renascença e revisitado pelos impressionistas. Espero que goste. 😊

quinta-feira, 16 de março de 2023

GÊMEOS

Foto de Jacob Capener

Ninguém, em absoluto, tem conhecimento de que a Terra possui um planeta gêmeo, com as suas mesmas características, onde todavia a vida não se desenvolve. São idênticos os oceanos, as montanhas, as áreas desérticas, os polos Sul e Norte. Idênticas as luzes e sombras, ventos, correntes marítimas. E assim por diante. Com a diferença de que lá não se veem plantas, animais de qualquer espécie, sequer vírus e bactérias. Muito menos seres humanos. Nenhuma forma de vida habita tal lugar. Não por causa de ameaças fisioquímicas, por tragédias de tipo material ou transcendente, por guerras nucleares ou pandemias; a vida em nosso planeta-irmão não acontece por uma profunda impossibilidade. Como uma força indomável que nada permite, nem o premeditado e menos ainda o fortuito. Impossibilidade tamanha que tampouco nossos cientistas mais bem formados, equipados e assessorados, com toda razão, são capazes de tomar conhecimento desse corpo cósmico particular, ainda que suas dimensões não devessem passar despercebidas sequer a olho nu. Ninguém toma conhecimento dele, nem tomará, por mais semelhante que nos seja, pois mais próximo que se coloque em nosso sistema solar. Ao ponto em que sua gravidade tanto influencia a Terra que, de fato, ela se faz imprescindível para a nossa existência, tal como a conhecemos.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

QUEM SE ASSUSTA COM UM SUCESSO DESTES?

Saiba mais sobre o livro no site da editora Alfaguara

 
Gótico nordestino, de Cristhiano Aguiar, reúne nove contos em que tradições brasileiras se encontram com outras da literatura fantástica, com destaque para o horror do século XIX.

São histórias com clima bem construído e engenhosa condução do leitor pelo enredo, que sempre parte do drama de um personagem (diante de seus parentes e amigos, da comunidade, do destino etc.). Essa premissa particular acaba por ecoar algo mais geral, como políticas, futuros possíveis, relações sociais, entre outras. O resultado: trata-se mais de um livro sobre família do que propriamente um “horror raiz” feito de sangue e sustos. 

Ali, Campina Grande, cidade de origem do autor, se mistura com ficção científica, música, histórias em quadrinhos, Henry James, Poe e Lovecraft, nostalgia dos anos 1990, Covid-19 e inúmeras outras referências, em especial da cultura pop, numa miscelânea corajosa, que atualiza certos clichês do gênero, como vampiros e mortos-vivos.

Assim, o autor cria cenários, situações e conflitos complexos, sem cometer deslizes como o de explicar o que não precisa ser explicado, ou justificar o imponderável.

Seu livro tem ainda o benefício de aproximar de outras possibilidades literárias aqueles leitores mais chegados ao realismo, apresentando, sobretudo, o potencial de discussão política que o horror também oferece. Nesse sentido, o prêmio da Biblioteca Nacional conquistado pelo Gótico nordestino em 2022 não surpreende, mesmo se tratando de uma obra de gênero pouco reconhecido pela crítica em geral.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

FASE DE CRESCIMENTO

 

Foto de Gabby Orcutt

Vizinho de nós, constroem um prédio
cinquenta, sessenta, oitenta andares
– a certa altura já
não faz diferença –
é o maior, não o único
há também o complexo hospitalar
o mercado de luxos
a imponente loja disso ou daquilo
– todos projetos de um moderno “eixo” imobiliário
dizem, rumo ao futuro

Enquanto, para mim, realmente grandioso
é ver seus pezinhos voltados para cima
no braço do sofá. Dez dedinhos redondos
no horizonte iluminado pelo abajur, dançando
ao som do desenho animado
que prenuncia o seu sono

Lá fora, um mundo vasto reivindica
o seu caminhar. Mas ainda é tempo
de viver as pequenas alegrias
dar risinhos com o personagem maluco
ter medo do gigante, do dragão e
construir seu lugar na escala
do ser humano, nem um centímetro mais.

*Minha pequena Lis faz 5 anos! 😍

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

ESPELHO D'ÁGUA

 

Foto de Francesco Ungaro

Não sei se li em algum lugar 
ou se imaginei por conta própria 
certa civilização que mantinha 
tradição infalível contra desavenças: 
consistia em juntar dois rivais 
numa tina de banho 
para ali se lavarem até que 
suas diferenças se diluíssem 

Daquela água suja saíam 
nem puros nem amigos 
saíam uma gota mais conscientes 
de seus limites e do pó 
do mundo que lhes é comum 

Pó dos ossos antepassados 
farinha dos pães frescos 
a serem partilhados.

terça-feira, 13 de setembro de 2022

DESPERTAR PARA A POESIA

Clique aqui para ver o livro no site da editora Quelônio


Dispersar todo sonho, de Lolita Campani Beretta, seria um chamado à vigília? Seus poemas, sem dúvida, oferecem uma (re)descoberta da realidade, como quando esmiúçam as diferenças e semelhanças entre facas e plumas, quando se debruçam sobre o corpo humano, quando pairam sobre o mar, quando se voltam às lembranças de infância, entre outros dos seus diversos temas. Em contrapartida, o libertário pulso criativo do inconsciente é também convocado a produzir epifanias, muitas delas de caráter surreal, como a de engolir pássaros, matar plantas com água fervente, lançar móveis pela janela, visitar um cinema abandonado no deserto... A riqueza desse imaginário sensato ou onírico nos acompanha nas mais de 100 páginas do livro, com o texto diagramado como num jogo ou numa dança, oferecendo mais esse elemento para nossa apreciação estética.

Somos, por vezes, conduzidos através de longas explanações, que têm algo de narrativas, versando sobre determinado assunto. Em outros casos, o poema se resume a uma só frase. Seja como for, já sempre uma intimidade prestes a implodir, pois não pode permanecer confinada na simplicidade das palavras com que se apresenta. Essa espécie de cotidiano pessoal vai ganhando ares de universal na medida em que o olhar lírico atento se dedica àquilo que, a princípio, parece desimportante, mas que se revela fundamental.

A fotografia, a areia da praia, a pele, a ruína, a fenda, a máquina, entre outros substantivos configuram formas de existência elaboradas com delicadeza, sinceridade, lentidão. Surpreende que nada do livro esteja fora do lugar, nada seja acessório, marca de uma maturidade invejável para a estreia da autora. Assim, Dispersar todo sonho é, no mínimo, um despertar para o que a boa poesia pode nos oferecer.


sexta-feira, 9 de setembro de 2022

EM CAMPINAS OU EM CARTAGO, A UNIVERSALIDADE É UMA ABSTRAÇÃO

Na entrevista a seguir, o escritor Fábio Mariano fala sobre sua novela Habsburgo, que apresenta uma trama de relações entre o próximo e o distante.

Habsburgo (Editora Patuá, 2019), de Fábio Mariano, é uma história de relações entre humanos, como muitas. Porém, diferente da maioria, traz como panos de fundo a vida universitária e o mercado de arte. Vemos os personagens Carlos e Coca Munhoz se conhecerem quando ainda são estudantes e desenvolverem uma amizade permeada por conflitos, mal-entendidos e mútua admiração. Coca, agenciado pelo companheiro, acaba por se tornar um artista plástico de carreira internacional, e o círculo de pessoas ao seu redor deixa a trama cada vez mais complexa. 

Fábio Mariano usa recursos narrativos para acentuar isso. Desde o flashback – praticamente a história toda é contada por Carlos durante o encontro com uma amiga num café – ao anacronismo e à sobreposição de espaços – Brasil e República Tcheca se confundem, assim como épocas distintas, de modo que Chopin, Campinas, pizzas e pieroguis, entre outras referências culturais se misturam, criando a estranha sensação de que algo se deslocou no tempo e no espaço.

Presos nessa rede, os personagens buscam formas de escapar. Quando nos damos conta, fomos capturados também, e seguimos com o livro aberto até que as páginas se esgotem.

Clique aqui para acessar o livro no site da editora Patuá


1. Em Habsburgo, Campinas e Cartago são coincidentes. Ouve-se Chopin como uma espécie de hit do momento, há um sentimento de que tudo foi realocado no tempo e no espaço. Identificamos algo familiar naquilo que parece estranho, tais como hábitos estrangeiros, receitas culinárias, nomes de lugares etc. Esse recurso indica certa universalidade das relações humanas, assim como de afinidades culturais, trânsitos, atravessamentos e influências em um mundo “globalizado”? Você teve que pesquisar referências para enriquecer o livro?

Eduardo, antes de mais nada, queria agradecer pelo convite e pela leitura atenta e cuidadosa do livro, que se revela nas perguntas complexas e interessantes que você coloca. Vou começar respondendo à questão da sobreposição entre Cartago e Campinas, porque Cartago é o meu universo desde o primeiro livro, O gelo dos destroieres, e atravessa os contos esparsos que publiquei, e também o terceiro livro, Ruído branco. Meu projeto literário sempre teve a ver com a criação dessa cidade, desse universo ficcional que dialogasse com Campinas, com esse paradoxo que é uma cidade “grande do interior”, a capital frustrada, o lugar onde as coisas abrem e depois fecham, onde existem sempre a noção de um potencial não realizado, como se fosse uma maldição. Ao mesmo tempo, Campinas é uma cidade em que, se você procurar, encontra coisas muito únicas, muito particulares. Eu me lembro, quando estudava russo, de procurar gramáticas nos sebos e encontrar uma gramática do russo em espanhol. Aquilo tem uma história, sabe, alguém que era falante nativo de espanhol e estava aprendendo russo, ou que era professor de russo e tinha alunos que falavam espanhol, existe uma história única naquilo. É uma cidade com uma universidade enorme, cheia de pessoas de todos os lados que vieram parar aqui, que ficaram. Eu nasci em São Paulo e vim para cá, e cresci sempre cercado de pessoas que não eram daqui; nesse sentido é mesmo uma cidade, um entrecruzamento de rotas onde as pessoas vão ficando. Por isso, em parte, Cartago é atravessada por pessoas de diferentes lugares – porque essas pessoas fundam restaurantes, abrem lojas, se empregam no serviço público, a vida inteira eu estive rodeado dessas pessoas, que vinham de outro lugar. Quanto às referências, acho que é importante dizer que esse livro nasce de uma pesquisa muito específica sobre as relações entre professor e aluno e, ao mesmo tempo, sobre o gênero novela. Antes de escrevê-lo, eu cursei uma disciplina na universidade que era justamente sobre a relação professor-aluno na literatura, e aquilo me marcou. Coincidência ou não, vários dos autores eram nascidos no antigo império austro-húngaro, o império dos Habsburgo. Eu sou fascinado por esse império justamente por ele ter sido, numa época de nacionalismos extremados, um império multinacional. Essa diversidade faz com que os pontos de vista diferentes que existem ali sejam muito enriquecedores. Acho que é o Eric Hobsbawm que fala (mas posso estar enganado nessa referência) que Sarajevo abre e fecha o século XX, e o estouro da primeira guerra mundial, ali, é de fato o fim de muita coisa, e isso me fascinava e fascina ainda. Então, ao mesmo tempo em que existiu uma pesquisa muito grande sobre o império, e aí sobre as filiações, as diferentes nacionalidades que o compunham e os diferentes interesses que o envolviam, todos eles pincelados no livro, há um interesse meu de longa data pelas produções culturais dele que é anterior. Eu escrevi o livro quase todo à mão, no primeiro rascunho, ouvindo o quarteto de cordas do Janácek “Sonata a Kreutzer”, que eu tinha ouvido ao vivo num espaço cultural aqui de Campinas uns anos antes e que tinha me deixado obcecado. Então, nesse sentido específico das referências culturais, eu não pesquisei diretamente para o livro – elas foram se encaixando naturalmente, em função de uma pesquisa anterior e mais extensa sobre o império dos Habsburgo.

2. A história aborda certos aspectos da produção, da circulação e do comércio de arte, e assim ajuda a desmistificar um tema que ainda hoje carrega certa aura. Você tem familiaridade com o assunto? De onde vem esse interesse e o que o levou a incluí-lo em Habsburgo?

A origem desse livro é um conto fracassado. O Coca Munhoz aparece, pela primeira vez, em O gelo dos destroieres, numa cena que é contada de um ponto de vista que não é o dele (é como se o conto fosse o negativo fotográfico dessa novela). E desde então eu tentava escrever um conto sobre o Coca, que teve uns quatro rascunhos, mas que não dava certo. Foi na disciplina que mencionei, sobre a relação professor-aluno, que a coisa se encaixou na minha cabeça; foi ali que eu achei uma forma. Ainda assim, eu escrevi quatro começos diferentes, em terceira pessoa primeiro, depois em primeira com o Coca, até achar finalmente a voz do Carlos. Porque isso para mim era importante – não falar desse mundo da arte com a propriedade de quem o viveu. Escolher o Carlos como narrador coloca a distância do espectador; por mais que seja um crítico, ele nunca consegue de fato adentrar o processo de criação. Eu pessoalmente não conheço nada do comércio de arte, então também é algo que fui indagando e pesquisando, mas não pelos detalhes, e sim para poder ambientar essa história. Eu queria trabalhar com um artista plástico porque, na verdade, é a arte mais distante de mim, e é uma das minhas grandes frustrações. Eu já tentei, e eu não consigo desenhar, pintar, esculpir, nada; não consigo ter a mínima habilidade em nada disso. Então, o processo criativo, que para mim na literatura é muito claro, na música faz sentido, já que eu toco instrumentos e já compus, mas nas artes visuais é um mistério total. Se você não domina a técnica, como é que você faz para saber as suas potencialidades de criação, as suas possibilidades, o que você consegue dizer e fazer? Então, a escolha do Carlos como narrador e o fato de ela ter destravado essa história tem a ver com conseguir achar um ponto de vista para falar que não fosse de um profundo conhecedor. Agora, quanto à dinâmica do mercado, a questão do assédio, os segredos, as informações privilegiadas, para mim isso é a marca de qualquer mercado, e esse glamour que recobre é uma máscara que, de fato, mistifica. Isso acaba dando uma espécie de validação, de salvo-conduto, para que pessoas reconhecidas como “gênios” tenham licença para ter comportamentos abusivos, violentos, destrutivos, o que é um absurdo. Por isso, também, eu quis explorar um pouco as ramificações desses comportamentos, os impactos, as marcas que não passam.

3. O mesmo vale para o ambiente universitário, tanto em relação ao ensino quando às pesquisas científicas. Sei que você tem uma afinidade particular com isso. De que maneira sua experiência pessoal atravessou o enredo do livro?

Uma das maneiras de entender esse livro, para mim, é uma grande homenagem à universidade onde me formei, a Unicamp, uma universidade que representa tudo o que eu quero e valorizo no ensino superior – um ensino público, gratuito, de qualidade e que se torne cada vez mais democrático e acessível. Algo que está em risco no Brasil há um bom tempo, e que temos que lutar para manter. De certa maneira, a vida do Carlos é tão atrelada a dois polos, o Coca e a universidade, que ele só narra isso. É como se nada mais existisse na vida dele – família, antecedentes, nada. É como se tudo começasse e terminasse na universidade. A Unicamp mudou a minha vida, e eu sou completamente ligado a ela – hoje, inclusive, profissionalmente, já que sou professor num dos colégios técnicos dela e faço o doutorado lá. Mas acho que, mais que tudo, o que eu procurei recriar ali foi o sentimento de estar na universidade, de atravessá-la, porque esse sentimento é algo que não encontrei na literatura brasileira ainda. A descrição das paisagens do distrito universitário e da própria universidade não é gratuita – ela é, também, uma representação e um diálogo com o que aconteceu com a Unicamp e o distrito da cidade onde ela fica, Barão Geraldo, entre 2007 e 2017, que eram minhas datas de referência naquele momento, e das descrições e histórias de um pouco antes. Mas na ficção a gente cria, transforma, faz alquimia com as referências, e há ali também pitadas de outros campi que eu conheci: a Unesp de Franca, a USP Pinheiros, a Uni Duisburg-Essen, onde estudei na Alemanha, e a Universidade do Mississippi, nos EUA. É engraçado que a relação com o livro é invertida – hoje, meu doutorado é sobre o academic novel americano, os romances que se passam na universidade e têm como personagens principais os docentes. Quando escrevi Habsburgo, eu ainda não fazia esse doutorado; em certo sentido, foi o livro que me levou ao doutorado e à pesquisa que faço hoje. O livro atravessou a minha experiência depois de minha experiência ter atravessado o livro. 

4. A história de Habsburgo parte da amizade do protagonista Carlos e de seu amigo artista Coca Munhoz, que se conhecem durante a graduação, e segue até o momento em que ambos têm carreiras consolidadas. Ao longo desse tempo, novos personagens aparecem e deixam tudo mais complicado. São abordados temas como as relações entre professor e aluno, amizades que se desfazem, jogo de interesses, assédios de vários tipos, contatos internacionais, passado e presente, vivos e mortos, enfim, apresenta-se uma circularidade da qual não se escapa e que aponta para algo maior, como a própria história da humanidade, que de alguma maneira jamais deixa de se repetir. Você tinha essa pretensão ao escrever o livro?

Com certeza. Se por um lado é um livro que tenta recriar um ambiente específico e um sentimento específico dentro de determinadas estruturas, pensar a partir da universidade e da trajetória de uma carreira docente, ele é também um livro que aponta, sempre, para algo que extrapola aquele ambiente. A gente costuma se referir a essas questões como universais, mas elas só acontecem dentro de determinadas configurações, o universal é sempre uma abstração. As amizades só acontecem dentro de uma certa configuração – a universidade, o bairro, a rua, as cartas, as redes sociais, e isso muda, cria especificidades, possibilidades diferentes. Mas para mim essas estruturas serviam justamente para que eu pudesse explorar questões, para que eu pudesse olhar para a humanidade. O título e a sinopse do livro não combinam muito – mas os detalhes todos do livro apontam para o título, e para um momento específico, para o fim do império dos Habsburgo, o momento de crise, o momento no qual as contradições dentro daquela panela de pressão que o era território austro-húngaro explodiram. Ali, não foi só um império que se desfez, foi uma configuração do mundo. Então, o que eu queria era explorar essas complexidades, não numa chave alegórica, mas de diálogo mesmo com as referências, uma espécie de montagem entre o livro e suas referências para provocar o leitor a fazer uma aproximação que chega a parecer um convite indevido, mas que teima, insiste, reaparece. Esses temas, a fundo, são a espinha dorsal do livro, o que não é dizer que o enredo é menos importante, porque é o enredo que permite a relação entre todos os temas, mas é um pouco como o André Malraux fala sobre o Faulkner: parece que ele cria primeiro as situações para depois imaginar os personagens nelas. Eu tinha esses temas todos em mim, mas precisava de um enredo e de uma voz, até que encontrei o Carlos.

5. A novela Habsburgo é seu segundo livro (o primeiro foi O gelo dos destroieres, de contos, publicado em 2018). Depois você publicou Ruído branco, também de contos, em 2021. Todos os três pela editora Patuá. Está trabalhando em novos projetos atualmente? O que vem por aí?

A história do Ruído branco é curiosa. Ele foi publicado numa parceria entre a Patuá e a Ofícios Terrestres, editora independente aqui de Campinas, do Gabriel Morais Medeiros, que é um baita poeta e um amigo de muitos e muitos anos. O livro foi contemplado pelo ProAC de 2019, e era para ter saído em 2020; ele até saiu, mas o projeto envolvia uma turnê de lançamentos pelo interior de São Paulo, e mais várias ações que tiveram que ser remanejadas por conta da pandemia. Acho que eu não consegui escrever sobre como a pandemia afetou o cotidiano de um personagem em parte porque ela afetou o meu projeto literário daquele momento – e aí, é estranho, mas de uma certa forma acho que a minha energia para pensar a relação pandemia-literatura ficou confinada nessa reconfiguração do projeto. E quem me apontou uma saída para isso foi justamente o Gabriel, quando me ofereceu a possibilidade de traduzir um poeta alemão chamado Paul Boldt. Saiu uma plaquete no ano passado, com quatro poemas, que integrou a coleção de plaquetes da Ofícios Terrestres, e em breve (estamos calculando para setembro ou outubro) deve sair a versão que tem 21 dos 84 poemas deixados pelo Boldt (é a primeira tradução dele no Brasil, eu espero que outros tradutores e estudiosos se interessem e mergulhem, traduzam, retraduzam!). Além disso, tenho um projeto de contos para o ano que vem, um projeto que vai se materializar e que é uma parceria com outros dois escritores que admiro muito. E eu ainda tenho outros projetos que vão avançando, mas a passos mais lentos; a verdade é que eu comecei a escrever os contos de O gelo dos destroieres lá em 2012, como um estudo para o ambiente e possíveis personagens de um romance. E o caderno de anotações para esse romance se desdobrou, se transformou em outros projetos, mas o núcleo dele também continua ativo. O que posso dizer com certeza é que, seja em que formato for, Cartago vai continuar sendo o cenário da minha ficção. E que vêm mais histórias de Cartago por aí!

terça-feira, 26 de julho de 2022

BRASIL, TERRA SERTANEJA


ERVA BRAVA, de Paulliny Tort (Editora Fósforo), reúne doze contos que se passam na cidade fictícia de Buriti Pequeno, no interior de Goiás. Daquela terra sertaneja brotam personagens como o agricultor turrão, a primeira-dama romântica, a benzedeira dedicada, a parteira feminista, o drogadito, o sineiro, o ludibriado, entre outros. Com seus dramas particulares, eles de alguma maneira contam do lugar onde vivem, assim como a cidade diz muito a respeito dos habitantes. No fim, uma parte não existe sem a sua contraparte. E digo contraparte porque tais relações não são pacíficas — boa quantidade dos conflitos do livro provém daí. Trata-se, sem dúvida, de um projeto literário belamente estruturado, com perspectivas e enredos variados, todos eles também conectados a um destino nada promissor: a destruição do município por um dilúvio no conto final, intitulado “Rios voadores”. Com isso, lava-se a alma de um Brasil perdido entre as modernidades, tradições e contradições do agronegócio, do tráfico de drogas, da corrupção, da herança colonial, da intolerância, do machismo, enfim, das violências todas que vivemos em nossas cidades reais.

segunda-feira, 30 de maio de 2022

MORRE UM JOVEM

Clique aqui para saber mais

Escrevi os versos abaixo quando soube do falecimento de Victor Heringer. Nos primeiros rascunhos havia uma menção a ele. Mas achei que, no livro que estou publicando agora, o poema poderia ser dedicado a todos que nos deixam ainda jovens. E à esperança que resiste. Por isso não há dedicatória alguma.

O livro em questão se chama Sutilezas, fins. É o quinto na minha trajetória de escritor, e o primeiro composto exclusivamente por poemas. Ele aposta na apreciação da sutileza, da delicadeza e da profundidade como saída para nossa condição contemporânea.

A pré-venda vai até 31 de maio no site da Loja Pedregulho. Como se trata de uma editora pequena e a tiragem é limitada, faz toda a diferença você encomendar seu exemplar. Clique aqui

Agora sim, o poema.

MORRE UM JOVEM

Morrem milhares
todos os dias dizem:
o país não se importa
exceto por este sujeito
ele se importa
e aquela moça mais aquele senhor e
assim por diante
morre um suposto país

É preciso matar muitos países supostos
para viver um
fresco rebelde ingênuo ousado delicado
desse tal jeito jovem
que outros tantos ajeitados
teimam em envelhecer
ao ponto em que a obsolescência
confunde-se com salvação.

quinta-feira, 24 de março de 2022

COMO SER MACUXI?


“A damurida, prato tradicional de meu povo
já fazia parte, de um jeito mágico, de meu paladar.
[…] As pimentas dançam no rio da minha memória,
invocando a antiga canção dos antepassados que me chama de volta
pra casa.”

Julie Dorrico, Editora Caos & Letras, p. 27

Acredito que a grande questão do livro Eu sou macuxi e outras histórias é aprender a ser/pertencer a essa etnia. Isso implica não apenas conhecer a língua ou praticar os costumes, mas reavivar uma memória que, no limite, é a própria essência cultural daqueles indígenas. 

Quem encara a jornada é a narradora dos textos que compõem o livro, que não são exatamente contos, são também poemas, relatos, fábulas, registros de acontecimentos. Narradora que ora é observadora, ora é personagem, ora cede a palavra e se torna ouvinte da avó, que por sua vez conta histórias por intermédio de uma tradutora – do macuxês para o inglês para o português para uma língua própria, inventada. Assim, coloca-se em pauta a tradição oral e as permanências e transformações que atravessam gerações. 

Mas talvez o que mais tenha me intrigado seja o abandono daquele “eu” convencional, numa atitude fundamental para a narradora se tornar macuxi. Ela faz isso contando não somente uma experiência sua de conhecimento e imersão, mas dando voz às mitologias fundadoras de um povo. Só assim, abandonando uma determinada “si mesma”, é capaz de aprender a ser ainda mais; aprender a ser uma indígena e uma nação macuxi ao mesmo tempo.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

ESCRITO NA AREIA


Textos para lembrar de ir à praia, de Rodrigo Luiz P. Vianna, traz poemas que têm em comum essa temática explicitada no título. O livro se divide em três partes: Escrito na areia, Ampulheta e Pérola. Que implicam também três destinações da areia, às quais são dedicados inúmeros versos. A sensibilidade e a criatividade do autor para escrever tanto a esse respeito são impressionantes. Sem dúvida, o grande destaque do livro fica com a sua exploração, que ganha aspectos, camadas, perspectivas e significados a cada página, trabalhados com uma cuidadosa elaboração.

Há jogos de palavras, como “mãos em concha” e “o labirinto se despedaça aos ouvidos”; há também ideias muito bonitas, apresentadas na forma de imagens sugestivas, como em “a circunstância tem vida e espessura” ou “cartografar durante o terremoto”. Há muito mais. Trata-se de um escrito capaz de produzir inusitados a partir de algo corriqueiro como um passeio no litoral. Por exemplo, quando nos fala da escultura conforme aquilo que falta a ela: “pedra pole a água / lapida ao longo da vida / as faltas da estátua”.

Sua complexidade nem sempre é fácil de apreender, e por diversas vezes me peguei flutuando em ondas de indefinição. Tal como faz o vento de um dos seus poemas, este livro “dissolve os limites / entre meu corpo e a praia”. Daí a sensação de desfazimento, da impossibilidade de se reter os significados diminutos, que escorrem por entre os dedos. Afinal, “a areia é um fragmento da areia”. Se por vezes enchemos as mãos com ela, outras vezes é ela que se agarra em nós. E seguimos assim, por simples prazer.

Publicado no Brasil pelas editoras Reformatório e Patuá em 2020.

sábado, 27 de novembro de 2021

AMOR DE ÓCULOS — UMA RETRATAÇÃO

Foto de Mariana Beltrán
Seus olhos me convocam 
para mais uma aventura 
a criança no colo 
o dia após dia o 
favor, não esquece 
me tira o sono 
olhos cansados, braços estendidos 
na minha direção 
tudo ainda por fazer 
só o desejo pronto 
a vida correndo solta 
o esforço para agarrar o possível 
tão forte, o que resta 
desta nossa fortuna 
são seus olhos 
atrás da armação 
das lentes engorduradas 
minha insistência em elogiá-los 
em pedir que tire os óculos 
essa insensibilidade minha de não ver 
que eles fazem parte de você 
de não perceber a sua beleza neles 
inclusive quando estão na mesinha de canto 
sugerindo que você está por perto 
como sempre, meu amor.

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

SOBRE ERROS

Foto de Inge Poelman

Se de forma antecipada
eu soubesse das coisas
que quase tudo daria certo e afinal
o que não daria importa pouco, ah
se eu tivesse sido informado que
para o que não deu certo
e fosse ainda importante
haveria perdão
teria eu agido diferente
teria mais paciência, talvez
teria dito que amava, teria
ido aonde não tive coragem
sonhado ininterruptamente
arriscado mais, errado menos
por certo
teria deixado de fazer, e assim
teria deixado de viver uma parte, ah
mas que coisa
esta minha vida mediana
feita de altos e baixos
alegrias e tristezas
companhia e solidão e sabores e dissabores e
você já entendeu, logo
sua vida deve ser também assim
ambas têm lá alguma autenticidade
– os erros a comprovam
e por mais que saibamos perfeitamente
a realidade é que corremos e tropeçamos
e caímos e levantamos e
corremos sem poder fugir
disto que nos forma
e com o tempo me fez
careca de tentar aprender.

terça-feira, 19 de outubro de 2021

ESCRITOS SOBRESCRITOS

Página 47 do DOCUMENTO PT/AMLSB/RJA/01/018, Arquivo Municipal de Lisboa


Meu ofício é escrever. Seja na ficção, na poesia, na comunicação, na revisão, na pesquisa, na edição, na crítica, nas aulas, no acompanhamento de projetos alheios, enfim, escrevendo é como me sustento e me expresso. É pela escrita, especialmente, que me coloco no mundo. Tenho com ela uma obrigação, uma companhia, por vezes certa desconfiança, em outras, uma paixão permeada por realizações, conflitos e frustrações. E mais. Meu ofício me convida para conversas, que rendem anotações a seu respeito, quase sempre perdidas em cadernos e folhas avulsas. Revendo-as, senti o desejo de compartilhar algumas, que você lê a seguir. Elas não concordam entre si nem pretendem estabelecer verdade incontestável; na realidade, com frequência são incompatíveis e precisam ser acolhidas com parcimônia. Seja como for, espero que tragam alguma inquietação a leitores e escritores, assim como trazem para mim.

***

Existe um abismo entre as palavras e as coisas. Escrever é atirar-se nele, não como forma de suicidar-se, pelo contrário: é levar às últimas consequências a tentativa de sobreviver.

***

O que diferencia um texto da “arte literária” de outro qualquer é que ele sempre tratará do próprio ato de escrever, por mais que se apresente dissimulado na forma de temas, narrativas, versos, personagens.

***

Para ser um escritor bem-sucedido é preciso se interessar pelas pessoas, pelas coisas, pela língua; tanto quanto pelas relações, jogos de força e diferenças que atravessam isso tudo. É preciso ter curiosidade e abertura ao que é estranho. Escrever é elaborar esse profundo interesse pelo outro.

***

A boa escrita jamais é a mera expressão do ego. Ela só se realiza quando o escritor se abandona, inclusive ao falar de si mesmo.

***

Ser influenciado pela obra de outrem não pode significar uma receptividade passiva; não se trata de simulação. Melhor é deixar que ela e a sua própria obra colidam, reflitam e se transformem. É uma ação poderosa e, em geral, perturbadora.

***

É sempre o livro que escolhe o seu leitor – o contrário é uma ilusão.

***

Hoje, e talvez desde sempre, não saber ler imagens é o mais grave tipo de analfabetismo.

***

Uma artista me afirmou certa vez que pintar é escrever. Referia-se não apenas ao aspecto narrativo da imagem pintada, mas ao que apresenta também de linguagem, de estrutura, da sua relação com as palavras que a interpretam, com o que ela dá a ver e como é vista. Essa artista não disse que pintar é “como” escrever, não sugeriu uma compatibilidade. “Pintar é escrever”. A pintura é um escrito – embora não necessariamente um texto, claro. Poderíamos responder que escrever é pintar? Que a escritura é também pintura? Uma composição de cores, sensações, espessuras, forças, temporalidades, sugestões, camadas, visualidades, imaginários, ilusões?

***

Poesia é a capacidade de tornar visíveis as singularidades onde a princípio vemos apenas lugares-comuns.

***

Ao mesmo tempo em que um escrito realiza uma memória, dando a ela a materialidade das palavras, torna-a ainda mais distante, impessoal, autônoma, como um construto, uma invenção, uma obra fictícia da qual o autor já não é o sujeito que a viveu e que sobre ela tem ainda algum controle. Tomamos notas para lembrar; escrevemos para esquecer.


***

Como sombras deslocadas do objeto que as produz, personagens são o autor do livro projetado, espelhado, ampliado, negativado, reduzido, distorcido, ou seja, modificado segundo as necessidades da narrativa. Autor e obra são como formas similares e não coincidentes. São e não são. Assim.

***

Um escritor precisa ter muito claras as questões que mobilizam sua escrita. O que não significa respondê-las, mas enunciá-las. Somente assim saberá se de fato acredita nelas e se exerce seu ofício com sinceridade. Essa é a única verdade que importa quando falamos em escrever.

***

A cada palavra do escritor, a obra pode viver ou morrer. É preciso compreender a responsabilidade implicada nesse gesto toda vez que acrescentar, excluir, modificar palavras num texto. Ao mesmo tempo, somente é possível escrever deixando-as livres para escolherem a si mesmas, sem o controle muitas vezes autoritário do autor. Escrever é manejar esse paradoxo.

***

O real motivo do texto é a sua escrita. Qualquer outro produz resultados duvidosos, quando não desastrosos.

***

O texto deseja existir por sua conta e risco. Nossa tarefa é tornar essa existência possível. E basta.

***

A palavra é sempre um aprisionamento, ela encerra no significado a dimensão maior e mais complexa da vida. Na medida em que cria fissuras no entendimento, subjuga o óbvio, reinventa usos, a poesia tenta escapar dessa limitação. Tentativa deveras frustrada.

***

Um texto que não perturba certa ordem preestabelecida não merece ser escrito. Não há escritura real senão em afrontamento.


*Publicado originalmente no jornal Correio Popular.

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

UM VAZIO

Foto de Kunj Parekh


Era
uma concha
não era uma concha, era uma cavidade
uma ferida
uma caverna
era
o escuro o abismo a depressão
não, era uma queda
profunda
a queda era uma verdade
a verdade era a dor
a dor era um corpo, de fato
um filho
era
o mar
a onda
a lágrima
a convulsão
o agudo atravessando toda a rouca imensidão
não era um buraco, era
uma marca
a ferro e fogo
perfuração na superfície da história
era mais uma história de ocultamento
era
o trecho da história que não se conta, e muda tudo
a carne que faltava à vítima
a alma que faltava à casca
a existência renegada
era
uma mãe também
não era uma mãe, era um eco
um horror
o júri montado ao redor, nós
como urubus
uns aqui e outros ali e todos
a mesma culpa jamais assumida
assistindo apenas
ao último carinho, à tentativa
de agarrar o que já se tinha esvaído
era o buraco de bala no peito
era a areia ao redor
era uma concha
o nome já meio enterrado
como sempre
a água que batia
e se afastava
a água ia e vinha e batia
uma vez mais
displicente
escavando
desfazendo a concha
em mais areia.

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

QUANDO O MUNDO LÁ FORA NÃO FAZ SENTIDO


 
“Eu imitava com grande facilidade o vídeo de treinamento a que assistimos na sala dos fundos, ou os gestos que o instrutor nos mostrava. Até então, ninguém jamais havia feito essa gentileza de me explicar claramente: ‘Este é o jeito normal de sorrir, este é o jeito normal de falar’.” (p. 22) 
 
Vencedor de prêmios importantes, best-seller internacional, Querida Konbini chega a soar um tanto ingênuo e repetitivo. Acontece que essas são também características da protagonista, funcionária temporária – há 18 anos – de uma loja de conveniência (konbini) em Tóquio, o que é considerado um desastre, profissionalmente falando. 
 
Seu jeito estranho de compreender as relações sociais, embora inadequado aos padrões, obedece a uma racionalidade sistemática típica daquele comércio popular, que todos os cidadãos frequentam e sabem como funciona. Percebe o paradoxo? É uma mulher tão bem encaixada no mecanismo que por isso mesmo deixa ver seu desencaixe. 
 
Li o romance em poucos dias e ele permanece crescendo em mim. É uma leitura que instiga com sua simplicidade, nos coloca diante da estranha ordem contemporânea e, oscilando entre risos e espantos, mostra como nossa sensibilidade também segue uma espécie de manual de atendimento ao cliente. 
 
Querida Konbini, de Sayaka Murata, foi traduzido do japonês e publicado no Brasil pela editora Estação Liberdade.

sexta-feira, 3 de setembro de 2021

O BELO E A BESTA: RESSONÂNCIAS


Este é um livro escrito para o leitor rir de si mesmo. Ou melhor, rir de sua patética humanidade. Seja com ironia, espanto ou escracho, estes textos breves retomam uma questão que atravessa as fábulas de Esopo, os bestiários medievais, os seres imaginários de Borges, a bicharada de Guimarães Rosa, qual seja: há diferença entre nós e eles?

“Predicamos ‘homem’ de um homem; assim, de ‘homem’ predicamos ‘animal’”, escreveu Aristóteles em suas Categorias. Para concluir que “um homem é tanto ‘animal’ quanto ‘homem’”. Este O belo e a besta, com menos filosofia e mais absurdo, parece inverter a equação e sugerir que a humanidade não está um grau acima na evolução; ela é a limitação de uma animalidade maior e desconhecida, ainda que jamais abandonada.

O que resta a nós? Ler e rir. Porque, bem sabemos, é melhor rir do que chorar.

Saiba mais no site da editora Moinhos

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

ENTREMEIO (ALGUMA LUZ)

Foto de Shio Yang

Trinta e sete mil e quatrocentos metros de fio de cobre paralelo foi a quantidade que conseguiu comprar com todas as suas economias. Esticou-o desde a sala de estar de seu apartamento, no décimo segundo andar, atravessando ruas e avenidas, estradas, linhas de trem suburbano, terrenos baldios, pracinhas cheias de capim alto etc., desviando de feiras livres, crianças, ruínas, córregos etc., fazendo as curvas necessárias para manter uma trajetória suficientemente retilínea na direção da cidade vizinha mais próxima. Na extremidade do fio, instalou um soquete e, no soquete, uma lâmpada. Voltou para casa. Na ponta inicial, acoplou um interruptor, desses de abajur, e na sequência um plugue macho. Ligou o circuito à rede elétrica. Precisou forçar um pouco para que alcançasse a tomada localizada atrás do sofá. Tudo certo. Era noite. Acionou o interruptor. Desde então, isso já faz meses, muda a chave seletora para a posição contrária toda manhã ao acordar. Imediatamente antes de dormir, coloca-a outra vez na posição anterior. Jamais soube se, ao fazer isso, acende ou apaga a lâmpada no entremeio. Sequer tem certeza de que ela continua rosqueada no soquete a trinta e sete mil e quatrocentos metros de distância. Sua rotina é acender e apagar a lâmpada em qualquer ordem que seja e atender clientes de uma rede de lanchonetes para, todo décimo dia do mês, pagar a conta de luz.