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sábado, 26 de maio de 2018

VIVEMOS TEMPOS NEOBARROCOS?

Cesto de frutas (c. 1598), de Caravaggio

Embora críticos sejam sempre atrasados em relação às criações artísticas, há casos em que suas leituras parecem previsões sagazes. O exemplo que nos últimos meses não sai de minha cabeça é o do esteta italiano Mario Perniola. Já em 1990 ele apresentou uma tese, que agora parece evidente, e que se encontra no livro Enigmas: egípcio, barroco e neobarroco na sociedade e na arte. Entre as ideias desenvolvidas ali, há uma sobre revalorizações do barroco do século XVII. Um primeiro neobarroco teria surgido entre o fim do século XIX e cerca de 1930; sua sensibilidade se anunciava com Verlaine, Mallarmé, Huysman, Eliot, entre outros, até os expressionistas alemães. Era possível entrever esse movimento nas leituras da modernidade realizadas por Baudelaire, e ele se estabeleceria em definitivo com as críticas de Wölfflin, Riegl e Worringer.

Outro neobarroco teria se iniciado nos anos 1960 e permanecia aberto quando o livro de Perniola foi publicado, quase trinta anos atrás. Minha questão é que, de acordo com as suas observações, ele não apenas continua aberto como assumiu uma dimensão preocupante.

O barroco seiscentista foi um acontecimento marcado pela volúpia, exuberância e êxtase, que mascaravam o regramento, o dogmatismo e a opressão da Igreja contrarreformista, cujos parâmetros foram determinados pelo Concílio de Trento e desembocaram nas perseguições do Santo Ofício. A arte barroca apresenta o desequilíbrio violento e bizarro próprio da sua época, figurado na técnica do chiaroscuro, nas alegorias e artifícios, em exagerada pompa e evocação sublimes. Sua pintura desrealiza o dado e substitui o natural pelo enigmático e artificioso, passa da estética do exemplar clássico à do simulacro e satisfaz a necessidade de estranhamento do homem com uma vontade de estilo.

O homem barroco, de acordo com Perniola, seria um sujeitado, passivo e alienado em relação às forças exteriores, de teor absolutista, que predominam em sua realidade e determinam sua forma de vida. Uma burguesia vítima da própria fraqueza que se iludia com o fausto e o cerimonial. Mais ou menos como a atual classe média brasileira.

Sabemos que o barroco desembocou na Inquisição, e que o primeiro neobarroco terminou nos horrores do nazifascismo. O segundo, que em tese permanece ativo, nos levará a quê?

De maneira similar àqueles, o neobarroco social dos nossos tempos se pauta em movimentos morais, de caráter emotivo, dirigidos pelo “intento de restaurar a religião, relançar os ideais humanistas, retornar à disciplina escolar e à seriedade profissional”, como escreve o esteta. Tais movimentos têm um núcleo resistente e “fornecem palavras de ordem nas quais centenas de milhares de pessoas se reconhecem e têm um peso determinante na vida dos estados e dos partidos”.

Como uma espécie de contrarreforma, esses movimentos morais configuram uma inversão da tendência anti-institucional dos anos 1960 e 1970, e são fáceis de identificar nas contradições que permeiam nosso cotidiano. O que Perniola não podia saber é que sua análise chegaria a este momento temeroso em que as bancadas governistas conservadoras, entre religiosas, latifundiárias e militares, dominam o poder; o moralismo e a precariedade cultural dominam a educação; o fascismo domina a juventude; o consumismo domina o desejo; entre tantos outros governos lamentáveis.

Como o autor explica, “não se trata de esperar o advento de um mundo menos cínico, menos bárbaro e menos ignorante (tudo isso entra no âmbito das boas intenções!), mas de compreender como numa sociedade cínica, bárbara e ignorante, como a que vivemos, uma grande quantidade de pessoas possa aderir a um imaginário religioso, humanista e científico, sem por outro lado conseguir tornar essa sociedade menos cínica, menos bárbara e menos ignorante! A efetividade dos ‘movimentos morais’ não diz respeito à substância daquilo que propugnam, que é mais irreal do que jamais tenha sido, mas à existência nua das suas consequências”.

Os trabalhos de arte contemporâneos chamam atenção para esse ponto mesmo quando não são expostos, como no caso da mostra Queermuseu, criticada por organizações embrutecedoras e censurada pelo Santander Cultural. Podemos ainda falar da performance La Bête, no MAM-SP, e dos ataques ao filme Vazante, no Festival de Brasília, só para citar alguns casos recentes.

Entre a sensualidade e a espiritualidade religiosa, prazeres exacerbados e ascetismos severos, diversidade e restrições formais, há o paradoxo da própria arte, que contraria e também endossa certo conservadorismo, na medida em que precisa se sustentar enquanto instituição. Como diz Perniola, “o neobarroco contemporâneo é a transformação da arte em dispositivo solene”. Com isso ele alerta que também a arte se coloca como causa nobre a ser conservada. Traduzindo seu italiano intelectual para o bom português, estamos num mato sem cachorro.

Se existe uma esperança nesta crise, acredito que esteja no que Perniola apenas indica, e que Jacques Rancière desenvolve no livro A partilha do sensível. O primeiro fala de um neo-páthos expressionista que, ao contrário do que o senso comum acredita, implica a suspensão do eu, considerado na sua identidade e no seu papel psicossocial. Rancière fala em um compartilhamento que devemos buscar, diluindo o eu identitário no comum da experiência coletiva, que não pressupõe diversidade, mas um convívio de diferenças pautado na ética do dissenso. Isso é difícil de entender, dada a nossa subjetividade capitalística, e ainda mais difícil de realizar. Mas sugere, entre outros pontos, buscar a emancipação pelas vias de alteridade, ou seja, pela abertura ao outro. Jamais pelo estado de exceção, disfarçado de paternalismo positivista, que fundou nossa república e continua a afundá-la na mediocridade política que denominamos governo, com toda a infelicidade semântica que o termo contém.

segunda-feira, 2 de abril de 2018

O GESTO MÍNIMO

Monotipias de Mira Schendel (1964-5)


A exposição Sinais, no MAM-SP, apresenta uma seleção de trabalhos de Mira Schendel produzidos entre as décadas de 1960 e 1980, na maioria monotipias e objetos gráficos. São composições de tamanho convencional, com poucas figuras e cores, como gestos mínimos marcados no papel. Obra delicada e, por causa disso, muito potente. A artista usa canetas de variados tipos, datilografia, decalques, nanquim, letraset, entre outras técnicas artesanais. Mas o que chama atenção é a sua “não técnica”, como Paulo Venancio Filho, que assina a curadoria da mostra, escreveu em 1997: se a técnica é o modo de o homem se impor ao mundo, a arte de Mira Schendel se recusa a privilegiar o sujeito; ela induz, suscita, provoca, sensibilizando a matéria e ativando sua estrutura molecular. Parece mesmo uma técnica desinteressada, como o crítico a definiu, ou seja, uma técnica sem outro interesse que não o próprio gesto criador, e que portanto não busca uma eficiência positiva.

Saí do museu com uma inquietação: qual é o lugar do gesto mínimo em tempos que demandam graves transformações? Tal gesto é capaz de convocar ou provocar mobilizações amplas? Uma poética como a de Mira Schendel estaria de acordo com nossas tormentas sociopolíticas atuais?

Penso que, mais do que nunca, é o gesto mínimo que tem a capacidade de produzir efeito real. As grandes comoções sociais, infelizmente, têm obtido resultados pífios, que acabam por desestimulá-las ou as transformam em espetáculos, no pior sentido do termo.

Do mesmo modo, pensar que a arte deve corresponder tal e qual às demandas do presente é reduzi-la a uma simples reação, ou a uma espécie de panfleto. Não devemos lutar sob a bandeira da arte; a arte só deve levantar bandeira contra as próprias bandeiras, talvez nem isso. Para condizer com seu presente ela deve desdizê-lo, desacreditando-o, tensionando-o com um outro, deslocando-se à distância para criticá-lo com linguagem menos viciada.

Se a arte se apresenta como sintoma do contemporâneo, não é porque aponta o que ele é, mas porque sugere o que pode vir a ser. Nas palavras de Gilles Deleuze, não há obra de arte que não faça apelo a um povo que ainda não existe.

Vista da exposição Sinais, no MAM-SP. Foto: studioladecor.com.br


Espera-se que a arte performe um ato político, seja contra ou a favor. É uma expectativa enganosa. O artista, enquanto sujeito social, pode de fato agir e atentar; sua arte, em compensação, deve apenas ativar situações, de maneira que não dilua a poética em militâncias objetivistas nem se converta em instrumento ideológico. Espera-se dela um ato, porém a arte oferece um gesto, que mesmo mínimo já é muito: é a força máxima da criação. Enquanto o ato é automatizado e se resume em seus efeitos, o gesto é “a poesia do ato”, como Jean Galard afirmou certa vez. Só ele é capaz de fazer emergir novos sentidos, ao invés de impô-los.

Com sua potente delicadeza, o trabalho de Mira Schendel consegue colocar a gravidade contemporânea em suspensão. Suas menores intervenções na superfície do papel já a transforma substancialmente. Suas manchas e borrões são de alguma maneira incontroláveis, e essa natureza inexata é incorporada à obra. A transparência do papel arroz apresenta ao espectador uma ambiguidade que expande o espaço e põe abaixo a distinção entre frente e verso, esquerda e direita, certo e errado. Sua manipulação mínima da matéria convoca à contemplação todo o tempo e a disposição de quem chega. Uma fenda, um risco, um ponto de cor, uma letra desarticulada da própria língua, um símbolo ressignificado; singelezas que, acaso não existissem, tampouco existiria a potência da obra de arte.

Não devemos confundir tal singeleza com falta de rigor, e muito menos confundir delicadeza com fragilidade. O trabalho de Mira Schendel transborda consistência na escolha dos materiais, no enfrentamento do desconhecido, na afirmação do sutil como força poética. Recusa o lugar-comum, previsível e explícito. Seu gesto é mínimo não porque denota pouco esforço, mas porque é denso ao ponto de se infiltrar, afetar e desestruturar as maiores instituições. Não as enfrenta com as mesmas armas nem com a mesma lógica; em vez disso cria desvios, reinventa sentidos, desarma mecanismos por demais azeitados.

A que sinais o título da exposição alude? Elementos gráficos, sugestões de forma, indicações interpretativas? Ou sinais de um porvir, agora apenas entrevisto na insurgência silenciosa de sua obra? A exposição alude a isso tudo. Se com os primeiros aprendemos sobre estética, com estes últimos conhecemos o singular componente político da arte, que nada tem a ver com mensagem, moral ou adequação.

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

ATOS DE CRIAÇÃO E DE RESISTÊNCIA

Arlequin au violon (1919), de Juan Gris
Os cubistas tinham olhar acurado. Sabiam que tudo pode ser visto por inúmeras perspectivas. Ao mesmo tempo, deixaram-se iludir pela ideia impossível de reunir todos aqueles pontos de vista num mesmo plano. Seus trabalhos de arte resultam num exercício árduo de desconstrução da visualidade. Que nos oferece um método de pensamento e aponta para uma utopia. Após o Cubismo, não podemos ignorar que muitos olhares se voltam para o mesmo mundo e, nele, veem mundos diferentes.

A reunião de pontos de vista não fundamenta verdade absoluta sobre o assunto. Pelo contrário, ela apenas comprova que não pode existir verdade que não seja meio ficcional e meio ilusória. Mas o exercício de construir um comum a partir de tantas perspectivas pode levar a um dissenso, ou seja, a um lugar onde a diversidade convive com dignidade. Um comum onde os direitos são assegurados, onde todos têm voz e onde a ética medeia as relações. Uma utopia, sem dúvida. Que precisa ser sonhada, buscada, experimentada. Tal como os cubistas fizeram.

Toda relação provoca tensões. Por mais semelhantes que sejam em suas complexidades, há sempre pontos de discórdia entre um e outro sujeito. São as tensões que mantêm as relações pulsando. O exercício político deve cuidar para que elas continuem a manter vivo o organismo social. “Verdade absoluta é outro nome que se dá para a morte”, Jean Baudrillard escreveu certa vez.

Há quem pense que a arte está aí para atenuar as tensões. Eu acredito no contrário. O próprio ato de criação já implica embates terríveis do artista com a obra. Embates violentos. O pintor, por exemplo, precisa destruir o seu próprio olhar para produzir uma imagem de arte. Precisa rasgar a tela, rasgar os clichês, rasgar a si mesmo; arrancar de si um ponto de vista que desconhecia. O escultor deve destruir sua própria forma para criar condições ao surgimento de outra. O coreógrafo precisa esvaziar-se de movimentos para que seu corpo produza gestos. O músico deve desaprender a ouvir para ressoar sonoridade outra. O fotógrafo deve deseducar o olhar. E assim por diante. Sempre tensões vitais.

O mesmo vale para outros campos do conhecimento? Não tenho afinidade, mas suponho que sim. O professor deve destituir-se do lugar de enunciador para criar pedagogias e didáticas. O advogado precisa escapar dos manuais de direito. O neurocientista precisa levantar-se contra os procedimentos tradicionais da ciência para criar novos paradigmas. O arquiteto deve pôr abaixo ideais de construção para projetar o edifício jamais habitado. Todos mirando a comunidade que vem.

Posso falar com alguma propriedade do escritor. Ele precisa desativar os mecanismos da própria língua. Não ceder aos significados prontos; desviar das armadilhas do lugar-comum. Refiro-me ao escritor que pretende fazer arte – há diversas atuações para o profissional da escrita, e nem todas têm essa vocação. Mas o artista das letras precisa jogar a própria língua contra a parede, torturá-la, fazê-la confessar o que não sabe. Deve levar cada palavra ao limite da sua realização, àquele ponto de caos em que ela já não se reconhece. Deve, com essas palavras, criar cenas e situações capazes de provocar a realidade. Falhará, inevitavelmente. É impossível sustentar tamanha destruição. Ficará devendo. Quem disse que é fácil?

Há quem pense que a arte está aí para atenuar tensões. Eu acredito no contrário: a arte vem para produzir tensões, ou para explicitar as que se encontram debaixo do tapete, ou simplesmente para potencializá-las. Mesmo quando agrada, a arte deve instigar o pensamento. Por que agrada? Em que o agrado se baseia? Quais perversidades minhas se realizam nesse prazer inexplicável? O encantamento estético oculta perigos traiçoeiros. Convém abrir os olhos.

A arte não informa nada. Ela desinforma, deforma, desenforma. Gilles Deleuze explicou assim durante uma convenção de cinema, em 1987: uma informação é um conjunto de palavras de ordem. Quando alguém informa, diz a você em que deve crer. A informação é o sistema de controle. A obra de arte não é um instrumento de comunicação, ela não contém estritamente a menor informação. A obra opera como contrainformação e se torna eficaz quando é ato de resistência.

De acordo com o filósofo, apenas o ato de resistência resiste à morte, seja sobre a forma de uma obra de arte, seja sob a forma de uma luta dos homens.

Eu tenho dúvidas sobre como proceder com a resistência. Porque me parece que em raras ocasiões ela não é apenas um adversário jogando o mesmo jogo com as mesmas cartas, tentando assumir o poder. Raras vezes o resistente não fará girar as engrenagens tradicionais da máquina de governo.

Por sua vez, se não houver resistência, como será possível pensá-la? Se não houvesse Cubismo, como poderíamos analisá-lo e produzir críticas? É preciso olhar com cuidado e sempre perguntar em que medida a resistência de fato é um ato criador e em que medida apenas reitera os mecanismos do poder. Se este último caso prevalecer, é preciso inventar formas outras de resistir. É preciso que os insurgentes se destruam a si próprios para criar novos meios e métodos de levante.

Se a resistência parece hoje um tanto desvitalizada, ou pior, se ela se confunde cada vez mais com a brutalidade reacionária, os resistentes precisam ter a audácia de destruírem a si próprios. Toda destruição é também ato de criação; uma potência de vida capaz de sobreviver ao extermínio da diversidade, das tensões e das formas de existência no comum.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

É PRECISO SER FORTE PARA SER DELICADO


Em 2010, Sandra Cinto realizou uma pintura na sala expositiva redonda do Instituto Tomie Ohtake, na cidade de São Paulo. A parede foi tingida de azul profundo, sobre o qual a artista criou ondas imensas, compostas por uma infinidade de linhas prateadas desenhadas à mão. O ambiente era como um mar intempestivo e ao mesmo tempo calmo, inquietante e acolhedor, sublime. Na época eu trabalhava ali perto e aproveitava o horário do almoço para mergulhar – uma experiência poética revigorante. Por quê? Qual a força daquele mar, que me fazia sentir um náufrago na concretude da metrópole? Por que a condição de náufrago fazia tão bem?

Passaram sete anos até que assisti Sandra Cinto apresentar sua trajetória artística no III Seminário Internacional Arte e Natureza, realizado na USP em agosto. Sua fala soava ingênua, aclamando a beleza das pessoas, do mundo, da vida. Nestes tempos sombrios, tomados por violências e intolerâncias de diversas ordens, o discurso parecia alienado. Como é possível, eu me perguntava, que uma artista contemporânea se ponha a falar sobre as flores que enfeitam o seu ateliê enquanto as ruas ardem? Como é possível que, enquanto alguns se armam de paus e pedras, Sandra Cinto escolha uma canetinha qualquer e fique a desenhar marolas?

Minha incredulidade foi aos poucos se deixando infiltrar pela perseverança do seu trabalho. Que no início dos anos 1990 consistia em pintar céus e também contemplar os céus de outros artistas, desde Giotto, no Gótico italiano, à nossa Carmela Gross. Um trabalho que se mobilizava pelo desejo de céu em uma cidade que já não conseguia admirá-lo, fosse por causa do ar poluído, fosse pelos prédios que dominaram o horizonte, pela falta de hábito ou pelo excesso de luz que ofusca as estrelas.


“Se houve outra vida, fui japonesa”, diz Sandra Cinto, apaixonada pelo modo como aqueles orientais celebram os menores acontecimentos e não separam o homem da natureza. Com a mesma dignidade ela se coloca a desenhar por três semanas ininterruptas, desde a manhã prematura à madrugada plena, para realizar um trabalho que ficará exposto durante o mesmo tempo e depois será destruído. Pela efemeridade da obra, a artista exercita a própria finitude e se concilia com a morte.

Usa borracha para não se ludibriar com a utopia da perfeição; prefere negociar os erros e incorporá-los à obra, ao ponto em que nada parece fora de lugar. A beleza se encontra na própria imperfeição.

Em determinado momento, a artista quis experimentar tintas mais fluídas, que escorriam pela tela independentemente da sua vontade de controlá-las. Foi, assim, aceitando os acasos da criação.

São palavras suas. Sandra Cinto define o próprio trabalho como “muito simples e de coração”. Ao término da palestra, tal ingenuidade aparente tinha diluído minha expectativa árida e me deixava ver, debaixo daquela água toda, uma aposta política. Cuja força não pretende impor uma vontade – sua natureza é outra, menos combativa e mais sensível, menos destrutiva e mais vital, menos razão e mais corpo. Uma força política pautada na delicadeza, que age na contramão da guerrilha ou, em outras palavras, que desvia do puro e simples enfrentamento.

Isso não implica covardia ou irresponsabilidade, mas a busca por outro modo de agir. Ela não se arma para enfrentar o adverso; ao contrário, evita os velhos estratagemas e corre na direção do mar. “Toda poética é também política”, explica. E pode operar de maneiras diversas. Por vezes, bater contra uma ameaça apenas concede a ela relevância.

A poética é ainda mais potente quando não reproduz nem reitera as artimanhas do poder. Resta a questão: como? Como desativar os mecanismos da opressão sem recorrer a atitudes semelhantes? Como criar linhas de fuga em meio à perversidade? Como dançar em plena batalha?

As demonstrações de força quase sempre implicam abuso de autoridade, incapacidade de dialogar e medo do diferente. Sim, a força bruta se apresenta como uma reação amedrontada à vontade de mudança ou à existência outra. Já a potência política da arte de Sandra Cinto está na delicadeza exercida com rigor e tenacidade, e que oferece uma alternativa às tormentas atuais. A força dos seus mares coloca certezas em suspensão, permite ao espectador flutuar e se deixar levar, experimentar a segurança da superfície e a imensidão desconhecida que se encontra logo abaixo.

A artista aposta no belo. Pois acredita que o ímpeto transformador desse gesto é mais promissor do que a verborragia, a perseguição e o julgamento dogmático. Porém eu não acredito que o belo baste. Não é só disso que se trata. Acontece que Sandra Cinto consegue romper a beleza superficial para encontrar um ponto sísmico profundo, capaz de abalar a sensibilidade do espectador. Um ponto que toca a estrutura da sua subjetividade.

Para isso ela não precisa recorrer à bomba atômica. Sua obra é mais forte porque consegue, em meio às tensões do presente, sustentar a delicadeza. A qual, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, nada tem de ingênua ou frágil. Em tempos de violência, é preciso ser muito forte para ser delicada.

quarta-feira, 4 de outubro de 2017

JORNADA DE PESQUISA EM ARTE PPG IA/UNESP 2017


Amanhã, a partir das 14h, eu estarei no Instituto de Artes da Unesp (São Paulo/SP), participando da Jornada de Pesquisa em Arte. O título da minha fala é Humanidade Ficcionada, Humanidade Profanada: Patricia Piccinini e Ron Mueck em São Paulo. Ela faz parte da Mesa 11: Arte Moderna e Contemporânea em São Paulo). Todos estão convidados!

Mais informações sobre o evento estão aqui: https://jornadadearteunesp.wixsite.com/pesquisa2017/2017

CONVERSAS-COLETIVAS NO MAM-SP

Em uma parede imensa do MAM-SP você encontrará também o diagrama que Ricardo Basbaum produziu para a exposição. Este é apenas um trecho (clique na imagem para ampliá-la)


Nossa criação coletiva para o 35º Panorama da Arte Brasileira já está disponível no Museu de Arte Moderna de São Paulo. O projeto é de Ricardo Basbaum. Foram sete dias de trabalho intenso para produzir o texto e gravar o áudio. Em visita ao museu você pode se sentar numa grande mesa branca, colocar os fones de ouvido e acompanhar a conversa pelos roteiros deixados à disposição.

Se você não pôde nos assistir ao vivo durante o evento de abertura ou não conseguirá visitar a exposição a tempo, ouça o áudio e leia o roteiro nos links abaixo. Sugestão: use fones de ouvido para perceber melhor as variações do som.

Ouça aqui o áudio e leia o roteiro.

Como mencionado em post anterior, trata-se de "um texto desconexo porque não é prosa. Sem melodia porque não é canto. Sem dramatização porque não é teatro. Um texto. Uma conversa feita de nós. Um conversa feita de sons".

Participantes: Bruna Beber, Eduardo A. A. Almeida, Julia de Souza, Marina Jerusalinsky, Monise Rigamonti, Rafa Éis, Ricardo Basbaum, Rodrigo Munhoz.

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

NÓSONS


O 35º Panorama da Arte Brasileira, no MAM/SP, será inaugurado em 26 de setembro. Tive o prazer de participar, junto com um pequeno grupo de pessoas, do projeto Conversas-Coletivas, do artista Ricardo Basbaum.

Ao longo de alguns encontros nós trocamos ideias, expusemos desejos, negociamos possibilidades, experimentamos comuns e diferenças. Verdadeiro exercício político. O resultado é um roteiro que orquestra nossas vozes, a ser lido durante a abertura da exposição. Haverá também uma gravação para quem visitar o museu depois.

Um texto desconexo porque não é prosa. Sem melodia porque não é canto. Sem dramatização porque não é teatro. Um texto. Uma conversa feita de nós. Um conversa feita de sons.

Se você puder, vá à abertura para nos assistir ao vivo.
Será terça-feira, 26 de setembro, a partir das 20h.
No MAM/SP (dentro do Parque do Ibirapuera).

terça-feira, 12 de setembro de 2017

NOTA SOBRE O ENCERRAMENTO DA EXPOSIÇÃO QUEERMUSEU

Triste (e preocupante) esse recuo do Santander Cultural (RS), que decidiu encerrar a exposição Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira. Em primeiro lugar porque o tema é relevante, atual, urgente. Depois, porque é próprio da arte o lugar de provocação, contestação, inquietação. Se você fecha os olhos (e as portas) para essas questões, apenas reitera a ignorância nossa de cada dia. Isso tudo está além de concordar ou não, de apoiar esta ou aquela causa. A posição assumida pela instituição é, simplesmente, tornar inacessível um espaço de discussão que tinha tudo para ser promissor, dando ouvidos a clamores que não querem discutir nada, e que se escondem sob a desculpa da "ofensa" e da "moral".

Ao dar ouvidos a grupos reacionários (e pedir desculpas a eles!), o Santander Cultural tenta escapar de boicotes ao banco Santander. Explicita, assim, um dos problemas graves da instituição privada: ela tenderá sempre a moldar seus valores nos valores do capital. É, por isso, incapaz de atuar em âmbitos da cultura que sustentam minorias, oposições, insurgências.

Se o Santander Cultural prefere ficar ao lado dos censores, é porque estes são a maioria ou porque falam mais alto. Se os insurgentes fossem maioria, se tivessem voz, o banco ficaria com eles. É dessa maneira pervertida que se organiza a sua ética.

Pois ficou decidido que uns não serão ofendidos agora, enquanto outros continuarão ofendidos como sempre foram. Esse é o lugar que o Santander Cultural lhes concede; um lugar em que a diferença, para variar, não pode entrar. Triste. E preocupante.

Cabeça coletiva, de Lygia Clark.
Um dos trabalhos que faziam parte da exposição
Eis a nota divulgada pelo Santander Cultural, justificando o encerramento da exposição:

"Nos últimos dias, recebemos diversas manifestações críticas sobre a exposição Queermuseu - Cartografias da diferença na Arte Brasileira. Pedimos sinceras desculpas a todos os que se sentiram ofendidos por alguma obra que fazia parte da mostra.

O objetivo do Santander Cultural é incentivar as artes e promover o debate sobre as grandes questões do mundo contemporâneo, e não gerar qualquer tipo de desrespeito e discórdia. Nosso papel, como um espaço cultural, é dar luz ao trabalho de curadores e artistas brasileiros para gerar reflexão. Sempre fazemos isso sem interferir no conteúdo para preservar a independência dos autores, e essa tem sido a maneira mais eficaz de levar ao público um trabalho inovador e de qualidade.

Desta vez, no entanto, ouvimos as manifestações e entendemos que algumas das obras da exposição Queermuseu desrespeitavam símbolos, crenças e pessoas, o que não está em linha com a nossa visão de mundo. Quando a arte não é capaz de gerar inclusão e reflexão positiva, perde seu propósito maior, que é elevar a condição humana.

O Santander Cultural não chancela um tipo de arte, mas sim a arte na sua pluralidade, alicerçada no profundo respeito que temos por cada indivíduo. Por essa razão, decidimos encerrar a mostra neste domingo, 10/09. Garantimos, no entanto, que seguimos comprometidos com a promoção do debate sobre diversidade e outros grandes temas contemporâneos."

domingo, 20 de agosto de 2017

QUEM É RAFAEL BRAGA?

Foi com descrença que descobri a exposição OSSO, em cartaz no Instituto Tomie Ohtake até pouco tempo atrás. O subtítulo deveria ser autoexplicativo: exposição-apelo ao amplo direito de defesa de Rafael Braga. Digo “deveria ser” porque, de fato, pouca gente sabe de quem se trata, pouca gente sabia e, dada a minha descrença geral, penso que pouca gente saberá, apesar de toda a mobilização social dos anos passados. Pouca gente sabe ou pouca gente se importa? Como anunciou o apresentador da Band News FM na noite em que se organizou uma manifestação na Avenida Paulista, havia ali um grupo de pessoas reivindicando a libertação de algum presidiário, que ele, jornalista, não fez questão de conhecer. A notícia dizia que, somada à chuva e ao frio, a manifestação atrapalhava o trânsito na cidade. Um problema que afeta a vida de muitos, compreende? Pois só no último mês, em São Paulo, houve a exposição de 29 artistas, houve a manifestação popular, houve debates naquele mesmo instituto e oficinas de cartazes no CDP Pinheiros III, além de diversas outras movimentações no restante do país. Mas quem é mesmo Rafael Braga?

Mais informações em:
libertemrafaelbraga.wordpress.com
Conhecemos, no máximo, a sua condição por “ouvir dizer”. Trata-se do único jovem detido e condenado durante as manifestações de 2013. O crime: portar um frasco de desinfetante e outro de água sanitária no ato da abordagem policial. Materiais inflamáveis usados para produzir explosivos, segundo a acusação. O que transforma todos nós em terroristas potenciais, e todo supermercado num paiol. Quatro anos e oito meses de reclusão.

Em dezembro de 2015, Rafael Braga recebeu tornozeleira eletrônica e passou ao regime aberto. Trabalhava como auxiliar de serviços gerais quando foi detido outra vez, flagrado com maconha e cocaína. A vítima nega as acusações e afirma ter sofrido extorsão, espancamento, entre outras violências nunca investigadas. As únicas testemunhas foram, claro, os policiais que o detiveram. Que poderiam ser também seus algozes, se o rapaz fosse ouvido. 11 anos e 3 meses de prisão por associação com o tráfico de drogas.

Será inocente? Se for culpado, seria o sistema carcerário uma boa solução? Enquanto cidadãos preocupados com a sociedade, estas são perguntas que devemos fazer sempre. Temos a quarta maior população carcerária do mundo. Se a situação só piora, algo precisa ser revisto.

Muita gente compra drogas ilícitas cotidianamente. Autoridades abusam do seu poder e praticam violências cotidianamente. Mas quem está preso é Rafael Braga: jovem, negro e pobre. Desde 2013, nós continuamos com os nossos afazeres cotidianos. Inclusive, muito preocupados com o congestionamento nas noites chuvosas.

A exposição OSSO, as manifestações e as demais atividades de mobilização não têm como exigir a soltura de Rafael Braga. O que podem fazer, fizeram e ainda fazem, é reivindicar para ele o mesmo tratamento dado a qualquer outro cidadão, nem mais nem menos. Algo, em tese, tão simples, mas em que é difícil acreditar. Por quê?

Foi bonito ver a FLIP deste ano dar voz a escritores negros e a causas menores. (Menores não porque são menos importantes, pelo contrário; elas têm menor representação política que defenda seus direitos.) Mais da metade da população do Brasil é negra ou parda, entretanto a plateia em Paraty era majoritariamente branca. Um evento cultural elitista, sem dúvida, que serve de ilustração às nossas desigualdades sociais.

Os meios de comunicação apenas reiteram a falsa soberania branca. Assim como faz o descaso das autoridades, com a falta de políticas públicas igualitárias. Compartilhamos nas redes sociais cada bobagem do Trump sobre racismo. Por que não defendemos com o mesmo afinco a demarcação das terras indígenas e quilombolas? Assunto que diz respeito à economia, à causa social, à história e à cultura do nosso país, mas que é menosprezado como caso de invasão de propriedade. De fato, existe invasão e apropriação de terras desde 1500. Crimes cometidos pelo Estado que até hoje não conseguimos resolver.

Não faz muito tempo, o telejornal local cobria a libertação de reféns durante assalto a uma agência dos Correios. Aconteceu perto de casa, fiquei assistindo. As imagens eram transmitidas ao vivo. A primeira refém liberada foi uma mulher. Ela saiu pela porta da frente, o soldado das operações especiais foi até lá e a escoltou para um local seguro. O segundo refém foi um oriental. O agente cumpriu o mesmo procedimento. O terceiro refém era negro. O agente foi até ele, mandou-o encostar as mãos na parede, revistou-o e o liberou. Tenho certeza de que a maioria assistiu à cena sem perceber nada anormal. Eu não tive como. Desliguei a TV.

Nossa subjetividade vai sendo domesticada, ao ponto de não ver com o mínimo discernimento. É por isso que quem não se identifica nessa ou naquela minoria tem condição de dizer como é, o que deve ser feito, quais são os problemas reais. Cotas, demarcação de terras, assédio, preconceito, violências diversas. Eu não tenho a menor condição de dizer. Quero conhecer, ouvir, pensar junto. Quero defender o direito de o outro falar e ter o seu amplo direito de defesa garantido. Porém jamais posso dizer em seu lugar. Porque falarei bobagem, cometerei injustiça e exporei todos os preconceitos subjetivados. Não quero dar vazão aos preconceitos, mas a cultura me educou assim. Como posso evitar? É um esforço fadado ao fracasso. Que não por isso deve ser abandonado.

Tolo é quem pensa que a discriminação é problema dos outros. É um problema de todos os brasileiros, possivelmente o mais grave. Discriminação social, racial, regional, de gênero etc. E sobre nós incidem as consequências. Se de alguma maneira todos fazemos parte de uma minoria, também é fato que somente algumas estão fragilizadas e sofrem ameaças perigosas. É delas que devemos cuidar. Não por favor ou misericórdia; é obrigação civil.

Minha descrença na situação do país vem acompanhada de desânimo e inércia. Por sorte a arte, as organizações sociais e os gestos singulares podem, cada um à sua maneira, mudar o que vemos e o que educa o nosso olhar. Podem provocar o pensamento, o corpo, os desejos. Transformar inércia em conhecimento, conhecimento em indignação, indignação em ação. Isso tem pouco a ver com acreditar ou desacreditar; isso é da ordem do fazer.

Aplausos para quem faz.

Rafael Braga somos nós.

quarta-feira, 24 de maio de 2017

A POESIA COMO SINTOMA DO CONTEMPORÂNEO

No final do ano passado, tive o prazer de ouvir Carlito Azevedo recitar todo o Livro do Cão durante um debate sobre literatura e política. Trata-se de um longo poema do seu Livro das Postagens, lançado à época. Esbaforido, ele insistia:

O autor deveria estar aqui
mas é como se não fosse urgente
como se nada tivesse que ser dito
como se não estivessem batendo à porta
como se não estivesse batendo na nossa cara
como se não fosse urgente

O autor deveria estar ali, mas não compareceu. Irresponsável, enviou no seu lugar Carlito Azevedo, leitor. Um cão na iminência de ser devorado pela crise e sem consciência do perigo. A se justificar, inocentemente:

Eu vim porque me trouxeram
eu disse: estou vendo a lenha
eu disse: estou vendo o altar
eu disse: estou vendo a faca
mas onde está o cordeiro?

O real que se abate sobre nós, os cordeiros, é o invisível e o impossível que por acaso se realizam. Que, não por acaso, já eram sugeridos pela poesia. É por isso que alguns filósofos, ao investigarem o contemporâneo, vasculham poemas atrás de indícios. Giorgio Agamben recorre a A era, de Óssip Mandelstam. Alain Badiou recita As cinzas de Gramsci, de Pier Paolo Pasolini. E defende que a poesia e a matemática são as duas únicas atividades humanas realmente proféticas. Pois “todo grande poema é o lugar linguageiro de uma confrontação radical com o real”.

Em sua palestra no 1º Seminário Online de Escrita Criativa, intitulada A poesia das coisas minúsculas, Tarso de Melo expôs a tese de que os grandes poetas são, de alguma maneira, desajustados em relação ao seu tempo. Cita, como exemplo, o mal estar de Drummond, “poeta da anotação”, a registrar em versos aqueles acontecimentos tão minúsculos que em geral passavam despercebidos aos demais. Acontecimentos não evidentes, que só ganhariam lugar no discurso tempos depois.

Outro exemplo de Tarso de Melo é Leonardo Fróes, cuja obra reaparece meio século depois e ganha atenção dos jovens. Por quê? Segundo o pesquisador, existe mesmo um deslocamento temporal do poeta com o seu leitor. Caberia aos interessados procurar nesse deslocamento – nessa falha ou lacuna – a intuição do poeta, que é um saber anterior à constatação da crítica. Intuir, nas palavras de Melo, é ver por meio do olhar minúsculo.

O que o poeta veria por meio desse seu olhar? Não as grandes obviedades, mas a potência invisível das virtualidades. Veria o sacrifício realizado onde, aparentemente, há apenas lenha, altar e faca, além das vítimas – ele próprio e todos nós.

A poesia seria, assim, uma espécie de sintoma do contemporâneo. Indício sensível do desconhecido ainda em vias de tomar forma. É justamente essa sensibilidade para o menor, no sentido deleuze-guattariano, que me interessa nas artes, sejam elas plásticas, visuais, literárias, musicais, dramáticas etc.

Eu completaria aquela ideia com outra, que vem se realizando sorrateiramente nas sombras da minha pesquisa de doutorado, e à qual devo atentar adiante: a ideia de que o termo “contemporâneo” não condiz com a maior parcela da arte que se realizou nas últimas décadas ou que se realiza hoje. Estas são produções atuais, num sentido cronológico e até estilístico, que talvez recebam rótulo apropriado em breve. Mas o contemporâneo não pode ser um estilo, não pode ser o que presentifica, muito menos o que evidencia as questões da atualidade, mas o que se desloca em relação ao próprio tempo e torna as questões obscuras, ambíguas, paradoxais.

Nesse sentido, eu simpatizo com Agamben, e aposto que contemporâneo é o que vem, ou seja, o que aponta para a condição futura, por ora apenas intuída, talvez um dia a ser constatada. Com uma ressalva: apesar da sua força profética, o contemporâneo não é o que induz – é o que dá condições para o acontecimento ser conforme o seu próprio desejo. É o que torna possível o virtualmente impossível. É o que realiza o real.

A forma virtual, intuitiva, é necessariamente poética. Seu sentido não está dado de antemão, mas em potência. E tal forma poética não se encontra somente no poema. Esse é o nosso desafio, enquanto espectadores e coautores do que vem: esmiuçar a vida em seus variados aspectos para quem sabe encontrar, na urgência do presente, as virtualidades que estão por vir. Não para constatá-las, evidenciá-las ou esclarecê-las; não para extirpar a sua poesia, transformando-as em discurso, mas para acolhê-las e para inventar condições de, por acaso, elas virem a ser.

domingo, 10 de julho de 2016

ESTADO DE CAOS

Um conforto perigoso habita a opinião benquista. Pois é cômodo dizer aquilo que os demais querem ouvir, é um alívio ser aplaudido por tamanho consenso; um prazer ainda maior do que ouvir do outro a ideia com a qual concordamos sem tirar nem pôr, com a qual compactuamos, ou seja, selamos um pacto. Obtemos, em ambos os casos, paz de espírito, confiança e tranquilidade na ordem geral das coisas; na qual, confortavelmente, nos enquadramos muito bem.

O que há de perigoso nisso? Sucumbir à regra. "Pois é da opinião que vem a desgraça dos homens", afirmam Deleuze e Guattari na conclusão do livro O que é a filosofia? Para eles, o termo "opinião" se refere àquelas ideias prontas que se encadeiam segundo um mínimo de regras constantes e nos fornecem o sentimento de proteção, semelhança, contiguidade, causalidade e ordem.

A contrapartida seria o caos: o inconstante, o incerto, o desvio, o dissenso, aquilo que não se deixa determinar pelas regras nem pela moral e que produz embates com o instituído. O estado de caos provoca insegurança, conflitos e desordem geral.

Salto no vazio (1960), de Yves Klein
O que pode ser positivo. Porque é no caos que reside a potência transformadora; é somente daquele desconhecido que pode surgir o novo. Segundo Deleuze e Guattari, a filosofia, a ciência e a arte querem que rasguemos o firmamento e mergulhemos no caos. Não para nos afogar nele, mas para que possamos traçar novos planos de imanência.

O artista mergulha no caos à procura de variedades; ele sensibiliza o caos para que dali nasça um ser sensível, para que possamos experimentar novas sensações, novas formas, novas possibilidades de existência.

"Será preciso sempre outros artistas para operar as necessárias destruições", dizem aqueles filósofos. Porque o artista enfrenta o caos e apressa o desregramento, querendo produzir uma sensação que desafia toda opinião pronta, todo clichê – até que a própria destruição vire regra e sua potência de arte esmaeça. Afinal, a arte deve se manter em movimento, continuar sempre a se reinventar. Para assim se manter viva.

A arte viva provoca inquietação, ainda que sutil. Por mais encantadora que seja, por mais agradável e benquista, a arte viva não é mera opinião – ela opera, justamente, um desgaste das regras, das instituições, das formas de existência enrijecidas. Enquanto que, por outro lado, a arte livre de conflitos perde sua conexão com o caos e se cristaliza num pastiche.

Ignorar o caos leva invariavelmente às atitudes fascistas. Que implicam negar a vivacidade, a potência e a diferença do outro. De maneira a impor a ele como regra a própria opinião, os próprios modos de ver, pensar e fazer do fascista, como se fossem "os corretos", como se não pudesse haver outros. Nesse sentido, o fascismo é a impossibilidade da vida comunitária, pois nega a existência dos demais seres.

O mito fundador desse termo remete à velha Itália de Mussolini, quase um século atrás, porém seu uso permanece em alta. Sim, existe esse outro perigo que nos contagia e que habita boa parte das opiniões sobre o fascismo atual: a institucionalização do fascista como um personagem, meio Cunha meio Bolsonaro, que deve ser cassado/caçado a todo custo.

Esse estereótipo, que se encontra sempre no outro, acaba por atrair atenção para si e por ocultar o fascista que nos habita e nos constitui. Que parece inofensivo, apesar da crueldade de suas ideias. Que não se percebe como fascista porque olha apenas para fora. Um comportamento perigoso, comum e banalizado, que Foucault já apontava no prefácio de O anti-Édipo, outro livro de Deleuze e Guattari.

Nesse texto, Foucault sugere um exercício que cabe a nós ininterruptamente, como verdadeiro esforço para o conviver social: atentar, identificar e banir todas as formas de fascismo, não somente as colossais, que nos envolvem e nos esmagam, mas também – e principalmente – as formas miúdas que fazem a amarga tirania de nossas vidas cotidianas. O fascismo que ronda nossos espíritos e nossa conduta, que nos faz gostar do poder, que está incrustado na cultura ao ponto de parecer normal, como uma simples ordem geral das coisas.

Como não agir como fascista, mesmo quando se acredita ser um militante revolucionário?, pergunta o filósofo. Como livrar do fascismo nosso discurso e nossas atitudes, nosso coração e nossos prazeres? Como lutar para que os outros sejam como desejam ser, e não conforme nós acreditamos que devem ser?

Abrindo as portas ao diálogo, acolhendo o diferente, livrando-se da conduta moralista, polarizada entre o bem e o mal, o certo e o errado, o real e o falso. Evitando desqualificar ou repudiar movimentos sociais sem conhecê-los de perto, sem se deixar afetar por suas causas. Deixando de reproduzir os modelos que se quer combater e as suas violências. Preferindo o positivo e o múltiplo ao invés da falta e do uniforme. Liberando a ação política da paranoia totalizante. Lutando com alegria.

O medo constitui uma das mais antigas formas de manipulação. Um povo com medo aceita se submeter às promessas de segurança do governo que anulam direitos e jamais se cumprem por completo. Um povo com medo vive sujeitado a um estado policial, acreditando que somente assim terá paz.

Precisamos vencer o conforto da ordem e mergulhar no caos. Abandonar a lógica sistêmica, os números sem sujeito, os projetos organizados administrativamente, que nunca darão conta de compreender o que é vivo e se transforma a todo instante. Porque o vivo escapa das regras, ao ponto de ser ingenuidade querer enquadrá-lo nos formulários todos com que sonha a nossa vã burocracia. Precisamos mergulhar no caos e traçar, a partir dali, nossas intenções de futuro. Precisamos inventar, poeticamente, o país que queremos ser. É pelo estado de caos, sobretudo, que nos veremos livres deste atual caos de Estado.