Perto do meu trabalho havia uma casa antiga, daquelas com hall de entrada envidraçado que dava para a rua – uma das poucas construções do tipo que conseguira sobreviver aos prédios espelhados e às franquias de estacionamento. Um casal de velhinhos passava as tardes ali, cada um em sua cadeira de balanço, fizesse chuva ou sol. Eles observavam, simplesmente. Sempre que eu cruzava o local, virava o rosto para conferir e lá estavam os dois, observando o movimento. A cena continha um lirismo particular. Agora, ao terminar a leitura do conto A janela de esquina do meu primo, ela me voltou à lembrança. Já explico por quê.
Trata-se da narrativa derradeira do alemão E. T. A. Hoffmann, publicada entre abril e maio de 1822, dois meses antes de seu falecimento, aos 46 anos, vitimado por uma doença degenerativa muito semelhante a do protagonista, que o impedia de andar e escrever.
Sem dúvida, o teor autobiográfico do texto é irrefutável. Merece destaque, entretanto, o relato que faz da vida social metropolitana daquela Berlim em plena transformação.
O personagem que dá título ao conto, escritor de certo renome, então condenado a passar os dias observando a vida acontecer através da janela de seu apartamento, tenta ensinar ao primo como enxergar a modernidade que se apresenta logo adiante, na feira livre do outro lado da rua.
O frenesi, o efêmero, o senso de civilidade, o comércio, os tipos urbanos, a burguesia em ascensão, as relações sociais e a nítida diferença entre classes – tudo isso aparece no conto de Hoffmann. Talvez o autor tenha sido o primeiro a explorar tais temas com tamanho afinco, embora a façanha ficasse mais conhecida com Edgar Allan Poe (O homem da multidão, 1840) e Charles Baudelaire (O pintor da vida moderna, 1863).
"Falta-lhe a disposição mais elementar para poder seguir os passos de seu primo digno e paralítico, ou seja, um olho! Um olho que realmente enxergue! Aquela feira do mercado não lhe oferece senão a visão de um colorido e alucinante amontoado de gente se movendo num afã insignificante. Há, há! Ao contrário de você, meu amigo, vejo desenrolar-se um cenário variado da vida burguesa e meu espírito (...) inventa um esboço após o outro, cujos contornos mostram-se com frequência impregnados de malícia."
Ilustração de Daniel Bueno para edição da Cosac&Naify
Com uma luneta em mãos, o escritor paralítico consegue se aproximar da multidão que se acotovela na praça, caminhar entre as pessoas e as observar uma a uma, em detalhes. Munido de olhos atentos e muita imaginação, passa a preencher as lacunas proporcionadas por esses breves encontros, inventando premissas e desenlaces, modificando a realidade por meio da ficção, recriando o mundo como lhe parece mais conveniente.
É um artifício que permite ao autor desenvolver os mais diversos assuntos, incluindo alguns bastante proféticos. Hoffmann denuncia, por exemplo, o preconceito com estrangeiros e a repulsa que a miscigenação de culturas provoca nos mais ingênuos, que desejam manter a identidade local intacta. Antecede, portanto, em quase dois séculos os anseios da globalização e as diferentes fobias sociais que, infelizmente, ainda constatamos nas cidades de hoje.
Há também o anonimato e o conflito paradoxal de se misturar à massa sem perder a individualidade, questões-chave do modernismo europeu. Observando pela janela o mundo em transformação, os atores do conto nos introduzem uma problemática que renderia reflexões por, no mínimo, mais cem anos.
"Essa janela é meu consolo, aqui a vida alegre ressurgiu para mim e eu me sinto reconciliado com o movimento incessante que me proporciona. Venha, primo, dê uma olhada para fora!"
O apartamento ocupado por Hoffmann ficava acima da taverna Lutter & Wegner, que ele tanto frequentou
Terminada a leitura, lembrei imediatamente do casal de velhinhos lá de perto do trabalho, que ficava a observar a vida acontecendo através do vidro do alpendre. Não sei o que houve com eles. Passei um dia e não estavam lá, nem no outro, nem no seguinte. A casa acumulou poeira, a janela embaçou, as cadeiras de balanço desapareceram. Então, numa tarde como outra qualquer, um trator colocou tudo abaixo. No lugar, montaram um fast food especializado em yakisoba.
Há diversos prédios comerciais nas proximidades, o restaurante vive lotado. Eu mesmo almoço lá de vez em quando, naqueles dias de pressa em que tenho muito a escrever e prazo curto para terminar. O conto de Hoffmann me fez perceber que, mergulhado nessa realidade alucinante, fico impedido de ver – e de compreender – o que acontece ao meu redor. Na maior parte do tempo, minha vida é uma reação instintiva aos constantes estímulos externos. E só.
Lembrei do simpático casal de velhinhos que ficava a observar o frenesi cotidiano através da janela e, inspirado pelo conto recém-lido, passei a me perguntar que tipo de futuro eles enxergavam ali.
sábado, 3 de setembro de 2011
domingo, 28 de agosto de 2011
LOGO ALI, DO OUTRO LADO DA RUA
Devo ter levado uns dois ou três minutos até levantar da cadeira e ir lá olhar, na janela do escritório. Eu estava concentrado na leitura do jornal e foi a repetição daquilo que me chamou a atenção, não o barulho em si. Tem feito tanto barulho nessa cidade que aprendi a ignorá-lo. E também a tosse, cada vez pior, não me deixava prestar atenção em nada. Mas aquela pancada inicial e a subsequente chuva de vidro, a pancada e a chuva, de novo e de novo... era isso que me parecia, até eu ir lá olhar.
Tinha um trator no quarteirão de trás, demolindo uma casa antiga. Moro no alto de uma ladeira, no topo do morro, então dava para ver bem. Ele primeiro erguia a pá escavadeira, assim, meio de lado, depois corrigia a posição e descia com força no telhado da casa. Com força, veja bem, não com velocidade. Era até bastante lento, daquele jeito bronco e desengonçado dos tratores. E as telhas iam todas ao chão, um monte de telhas por vez, provocando aquele barulho de vidro.
O muro de pedras da casa tinha agora um buraco com a largura exata do trator. Ele passou por ali, derrubou o muro com um encontrão só, com as esteiras laterais, aquelas de tanque de guerra, vencendo o obstáculo facilmente. Não há como impedir o progresso, mesmo. Depois da capital e do centro, são os bairros mais afastados que começam a crescer para cima. Ninguém precisava anunciar nada; para mim, estava muito claro que iam subir um prédio ali.
Quando me aproximei da janela, ainda com o jornal na mão, a nuvem de poeira já havia tomado quase tudo. Só de ver aquilo já me veio uma nova crise de tosse, que passou logo. Apoiei no umbral. O trator espantara de vez meu sossego. Eu estava tentando ler as notícias do dia anterior com aquilo tudo acontecendo bem na minha frente, e acabei indeciso sobre o que seria mais interessante. Era uma questão de circunstância. A circunstância e tudo o que ela sugere de eterno.
Era uma casa antiga, bem posicionada no centro de um terrenão, com quintal e até umas árvores ao redor. Deveria estar ali há uns cinquenta anos, talvez sessenta. Sim, com certeza, foi uma das primeiras desse lugar, veio antes mesmo de mim. Uma casa bonita, de construção sólida, feita para durar. No mínimo dois anos de construção, tijolo por tijolo... essas coisas demoravam para ser feitas direito. E agora vinha o trator e derrubava tudo com uma facilidade assombrosa, nem aí para o passado. Com movimentos laterais, assim, o braço da escavadeira punha abaixo um pilar em seguida do outro. Paf... paf... paf... Mais e mais telhas caíam, aos montes, mais barulho de pratos se quebrando, de louça se espalhando pelo ladrilho da cozinha quando a gente, meio distraído, deixa escorregar. A mão cheia de espuma, na beira da pia, a água vertendo e os cacos correndo pelos cantos, fugindo dos olhos.
Nuvens e nuvens de pó, cada vez mais densas. Quando elas esconderam o trator inteiro pela primeira vez, dei uma olhada ao redor. Eu moro no alto, então consigo vigiar o bairro bastante bem. Aguardando do lado de fora do muro de pedra, havia uns cinco ou seis homens vestidos com uniforme laranja. Eles provavelmente iam limpar o terreno depois que a demolição fosse concluída. Por isso, de vez em quando, davam uma espiada pelo buraco que o trator deixou. Eu via também um rapaz de terno, talvez o arquiteto ou algum manda-chuva da construtora, que gesticulava enquanto falava com eles. O barulho ali devia ser insuportável.
Foi curioso. Percebi também que eu não era o único vizinho a observar a movimentação. No conjunto logo ao lado da obra, num desses prédios baixinhos, de três andares, cabeças se colocavam para fora da janela. Eu não conhecia ninguém dali, e a posição não ajudava muito, eles precisavam se esticar ao máximo e imaginar o resto. Não dava mesmo. Uns pedestres que passavam pela rua também ficaram olhando. E, por fim, havia a dona Cleide. Essa sim, na laje do sobrado localizado bem na frente da casa, tinha até se debruçado na mureta, com o cachorro se agitando ao lado. Olhos atentos e orelhas em riste. Aquele cachorro imenso e bobo, como era mesmo o nome dele? Chocolate, Bombom... sei lá, um nome de doce. Dona Cleide tinha uma visão boa dali, estava quase num camarote. Devia estar pensando no inferno que iam fazer da sua vida, por causa do barulho, da poeira e dos assovios dos pedreiros. Ela está com uma filha bem na idade, sabe como é. Em compensação, ia ter assunto durante meses.
Eu via tudo isso acontecer na janela do escritório. Mesmo assim, passada a surpresa inicial, resolvi deixar aquela história para lá. Era uma cena peculiar, verdade, porém muito repetitiva. Não gosto dessas coisas. A casa ruindo, depois sumindo de vez... Vi quando a escavadeira acertou a caixa d'água lá no alto, quebrando a casca fina de amianto como se fosse casca de ovo. Ela estava seca, nada vazou de dentro. Foi estranho. Fina, frágil, um corpo sem alma. Ficou só o esqueleto. Aquilo me incomodava. Não sei explicar por que, mas a destruição é sempre incômoda para quem já passou dos sessenta, sessenta e seis. Ainda mais assim, ao vivo e a cores. As novidades se aproximam como quem não quer nada, pedem licença e nos empurram um pouquinho mais para longe.
A tosse não me deixava em paz. Tosse seca. Depois de outra crise, daquelas de tirar o fôlego, levei o jornal de volta para a escrivaninhatrator, bem ali, no outro lado da rua, abrindo um novo buraco na terra, pondo fim a uma coisa para outra nascer no lugar. Tudo no seu devido tempo, fosse ele qual fosse.
Durou mais dez minutos, no máximo. Digamos que, num total de quinze, a casa foi inteirinha posta abaixo. Uma casa grande, de estrutura sólida, dessas feitas para durar. Quinze minutos, não mais do que isso. Foi o quanto ela resistiu.
No momento em que percebi que a demolição terminara, larguei o jornal de uma vez por todas e voltei à janela para averiguar o estrago. Cheguei a tempo de ver dona Cleide se levantar e deixar seu posto na mureta, com o cachorro correndo em círculos ao seu redor, todo contente, abanando o rabo sem entender nada. Não havia mais cabeças esticadas nas janelas do condomínio ao lado, elas devem ter desistido bem antes, dada a posição pouco privilegiada. Os pedestres também tinham retomado o rumo e os peões de laranja agora escalavam com dificuldade os montes de entulho feitos pelo trator, averiguando o entorno. Teriam que limpar tudo aquilo. Daria um trabalhão, mas uma parte permaneceria soterrada ali para sempre, tenho certeza.
Dois caminhões-caçamba encostaram na calçada, um atrás do outro. O terreno era largo o bastante para acolhê-los com tranquilidade. Um ótimo terreno, como disse.
A poeira mal havia abaixado e já dava para ver várias montanhas de entulho. O trator foi deixado no alto de uma delas, imponente, para observar a região recém-conquistada. O rapaz de terno, que eu supunha ser o arquiteto ou o dono da construtora, estava ao lado dele, com uma mão apoiada na esteira e a outra na cintura. Também observava, quieto, com um sorriso no rosto. Havia muita coisa para fazer ali, muitos planos para aquele lugar. Era impressionante! A poeira mal havia assentado, os escombros da antiga casa ainda tinham que ser recolhidos. Ia dar um trabalhão, com certeza. Ia levar tempo. Que coisa. Do alto, eu via lascas de porta, tijolos com argamassa e tinta grudados, telhas quebradas, o perfilado todo retorcido. Eu via as pedras do muro, os pilares tombados, o antigo dono chegando do trabalho, as crianças correndo no quintal, trepando nas árvores. Via a rede balançando lentamente depois do almoço do domingo, a limonada servida geladinha nas tardes abafadas de verão. Via a bola bater na parede e voltar no pé do garotinho, que cresceu e começou a namorar escondido. Eu via montanhas de entulho sob entulho, via tudo isso bastante bem. Tudo aquilo ali, na minha frente, agonizando.
O rapaz de terno, olhando mais de perto, possivelmente via mais. Tinha olhos mais vivos do que os meus, olhos que viam além. Era diferente. Ele devia enxergar, inclusive, o novo prédio começando a ser erguido.
Tinha um trator no quarteirão de trás, demolindo uma casa antiga. Moro no alto de uma ladeira, no topo do morro, então dava para ver bem. Ele primeiro erguia a pá escavadeira, assim, meio de lado, depois corrigia a posição e descia com força no telhado da casa. Com força, veja bem, não com velocidade. Era até bastante lento, daquele jeito bronco e desengonçado dos tratores. E as telhas iam todas ao chão, um monte de telhas por vez, provocando aquele barulho de vidro.
O muro de pedras da casa tinha agora um buraco com a largura exata do trator. Ele passou por ali, derrubou o muro com um encontrão só, com as esteiras laterais, aquelas de tanque de guerra, vencendo o obstáculo facilmente. Não há como impedir o progresso, mesmo. Depois da capital e do centro, são os bairros mais afastados que começam a crescer para cima. Ninguém precisava anunciar nada; para mim, estava muito claro que iam subir um prédio ali.
Quando me aproximei da janela, ainda com o jornal na mão, a nuvem de poeira já havia tomado quase tudo. Só de ver aquilo já me veio uma nova crise de tosse, que passou logo. Apoiei no umbral. O trator espantara de vez meu sossego. Eu estava tentando ler as notícias do dia anterior com aquilo tudo acontecendo bem na minha frente, e acabei indeciso sobre o que seria mais interessante. Era uma questão de circunstância. A circunstância e tudo o que ela sugere de eterno.
Era uma casa antiga, bem posicionada no centro de um terrenão, com quintal e até umas árvores ao redor. Deveria estar ali há uns cinquenta anos, talvez sessenta. Sim, com certeza, foi uma das primeiras desse lugar, veio antes mesmo de mim. Uma casa bonita, de construção sólida, feita para durar. No mínimo dois anos de construção, tijolo por tijolo... essas coisas demoravam para ser feitas direito. E agora vinha o trator e derrubava tudo com uma facilidade assombrosa, nem aí para o passado. Com movimentos laterais, assim, o braço da escavadeira punha abaixo um pilar em seguida do outro. Paf... paf... paf... Mais e mais telhas caíam, aos montes, mais barulho de pratos se quebrando, de louça se espalhando pelo ladrilho da cozinha quando a gente, meio distraído, deixa escorregar. A mão cheia de espuma, na beira da pia, a água vertendo e os cacos correndo pelos cantos, fugindo dos olhos.
Nuvens e nuvens de pó, cada vez mais densas. Quando elas esconderam o trator inteiro pela primeira vez, dei uma olhada ao redor. Eu moro no alto, então consigo vigiar o bairro bastante bem. Aguardando do lado de fora do muro de pedra, havia uns cinco ou seis homens vestidos com uniforme laranja. Eles provavelmente iam limpar o terreno depois que a demolição fosse concluída. Por isso, de vez em quando, davam uma espiada pelo buraco que o trator deixou. Eu via também um rapaz de terno, talvez o arquiteto ou algum manda-chuva da construtora, que gesticulava enquanto falava com eles. O barulho ali devia ser insuportável.
Foi curioso. Percebi também que eu não era o único vizinho a observar a movimentação. No conjunto logo ao lado da obra, num desses prédios baixinhos, de três andares, cabeças se colocavam para fora da janela. Eu não conhecia ninguém dali, e a posição não ajudava muito, eles precisavam se esticar ao máximo e imaginar o resto. Não dava mesmo. Uns pedestres que passavam pela rua também ficaram olhando. E, por fim, havia a dona Cleide. Essa sim, na laje do sobrado localizado bem na frente da casa, tinha até se debruçado na mureta, com o cachorro se agitando ao lado. Olhos atentos e orelhas em riste. Aquele cachorro imenso e bobo, como era mesmo o nome dele? Chocolate, Bombom... sei lá, um nome de doce. Dona Cleide tinha uma visão boa dali, estava quase num camarote. Devia estar pensando no inferno que iam fazer da sua vida, por causa do barulho, da poeira e dos assovios dos pedreiros. Ela está com uma filha bem na idade, sabe como é. Em compensação, ia ter assunto durante meses.
Eu via tudo isso acontecer na janela do escritório. Mesmo assim, passada a surpresa inicial, resolvi deixar aquela história para lá. Era uma cena peculiar, verdade, porém muito repetitiva. Não gosto dessas coisas. A casa ruindo, depois sumindo de vez... Vi quando a escavadeira acertou a caixa d'água lá no alto, quebrando a casca fina de amianto como se fosse casca de ovo. Ela estava seca, nada vazou de dentro. Foi estranho. Fina, frágil, um corpo sem alma. Ficou só o esqueleto. Aquilo me incomodava. Não sei explicar por que, mas a destruição é sempre incômoda para quem já passou dos sessenta, sessenta e seis. Ainda mais assim, ao vivo e a cores. As novidades se aproximam como quem não quer nada, pedem licença e nos empurram um pouquinho mais para longe.
A tosse não me deixava em paz. Tosse seca. Depois de outra crise, daquelas de tirar o fôlego, levei o jornal de volta para a escrivaninhatrator, bem ali, no outro lado da rua, abrindo um novo buraco na terra, pondo fim a uma coisa para outra nascer no lugar. Tudo no seu devido tempo, fosse ele qual fosse.
Durou mais dez minutos, no máximo. Digamos que, num total de quinze, a casa foi inteirinha posta abaixo. Uma casa grande, de estrutura sólida, dessas feitas para durar. Quinze minutos, não mais do que isso. Foi o quanto ela resistiu.
No momento em que percebi que a demolição terminara, larguei o jornal de uma vez por todas e voltei à janela para averiguar o estrago. Cheguei a tempo de ver dona Cleide se levantar e deixar seu posto na mureta, com o cachorro correndo em círculos ao seu redor, todo contente, abanando o rabo sem entender nada. Não havia mais cabeças esticadas nas janelas do condomínio ao lado, elas devem ter desistido bem antes, dada a posição pouco privilegiada. Os pedestres também tinham retomado o rumo e os peões de laranja agora escalavam com dificuldade os montes de entulho feitos pelo trator, averiguando o entorno. Teriam que limpar tudo aquilo. Daria um trabalhão, mas uma parte permaneceria soterrada ali para sempre, tenho certeza.
Dois caminhões-caçamba encostaram na calçada, um atrás do outro. O terreno era largo o bastante para acolhê-los com tranquilidade. Um ótimo terreno, como disse.
A poeira mal havia abaixado e já dava para ver várias montanhas de entulho. O trator foi deixado no alto de uma delas, imponente, para observar a região recém-conquistada. O rapaz de terno, que eu supunha ser o arquiteto ou o dono da construtora, estava ao lado dele, com uma mão apoiada na esteira e a outra na cintura. Também observava, quieto, com um sorriso no rosto. Havia muita coisa para fazer ali, muitos planos para aquele lugar. Era impressionante! A poeira mal havia assentado, os escombros da antiga casa ainda tinham que ser recolhidos. Ia dar um trabalhão, com certeza. Ia levar tempo. Que coisa. Do alto, eu via lascas de porta, tijolos com argamassa e tinta grudados, telhas quebradas, o perfilado todo retorcido. Eu via as pedras do muro, os pilares tombados, o antigo dono chegando do trabalho, as crianças correndo no quintal, trepando nas árvores. Via a rede balançando lentamente depois do almoço do domingo, a limonada servida geladinha nas tardes abafadas de verão. Via a bola bater na parede e voltar no pé do garotinho, que cresceu e começou a namorar escondido. Eu via montanhas de entulho sob entulho, via tudo isso bastante bem. Tudo aquilo ali, na minha frente, agonizando.
O rapaz de terno, olhando mais de perto, possivelmente via mais. Tinha olhos mais vivos do que os meus, olhos que viam além. Era diferente. Ele devia enxergar, inclusive, o novo prédio começando a ser erguido.
terça-feira, 16 de agosto de 2011
QUEM SOU EU, AFINAL?
Quando Rodrigo de Moraes, editor assistente do Caderno C, perguntou se eu não teria uma foto minha para estampar esta coluna, desencadeou, sem querer, uma série de pensamentos existencialistas que culminaram na batidíssima questão: quem sou eu, afinal?
Exagero? Ora, um pouco de exagero nunca é demais, e a verdade é que eu não sou muito afeito a exibir o rosto por aí, preferindo sempre me ocultar atrás do codinome Edu Almeida. Por quê? Para ser sincero, não sei. "O que sou e o que escrevo são uma coisa só. Todas as minhas ideias e todos os meus esforços, eis o que sou.", disse C. G. Jung certa vez, e eu sempre levei a sério os pensamentos daquele simpático velhinho suíço, tanto que essa sua frase consta em meu blog desde que o criei. Além do mais, acho que nunca confiei no modo como a imagem lida com o conteúdo, principalmente quando ela precisa sustentar o enorme peso de uma identidade. Não basta, percebe? A imagem reduz tudo a um instante, um ponto de vista, uma gama de cores. Não precisa nem se tratar de uma pessoa, pode ser uma paisagem mesmo, daquelas que você fotografou na sua última viagem de férias – a imagem, no máximo, sugere a sensação do lugar; jamais será o lugar propriamente dito, visto e experimentado.
Convenhamos, nosso comportamento está intimamente atrelado à visão, então é natural que a imagem fale mais alto. Veja só o grau de confiança que uma testemunha ocular recebe, no caso de um crime, por exemplo, enquanto uma testemunha olfativa viraria motivo de piada. Só que os olhos também se enganam. O mesmo vale para os nossos preconceitos. De repente, alguém não vai com a minha cara e deixa de ler a coluna só por causa da foto. Uma imagem, mil palavras, sabe como é... Acontece direto comigo. Se não gosto de um sujeito à primeira vista, ele precisará de muita lábia para me convencer do contrário, ainda mais porque acredito cegamente em meu sexto sentido.
No caso do jornal, havia também uma questão prática: que foto usar? Essa é muito antiga, naquela estou despenteado, naquela estou acompanhado, esta outra tem fundo difícil de recortar, tem sorriso torto, olho fechado... que lástima! Sem contar que eu adoro tirar fotografias e, na maioria das vezes munido de câmera, acabo não aparecendo em nenhuma. Enquanto isso, milhões de anônimos entulham seus perfis de redes sociais com todo o tipo de retrato, sem vergonha de serem felizes. É mesmo um desprendimento admirável.
Vão dizer que é frescura, mas sou publicitário, sei que o poder da imagem é comprometedor. Ele resume você a uma falsa realidade: um instante específico, um olhar perdido, um estilo de roupa, uma luz, um peso e uma altura que, como tudo na vida, estão sempre em mutação. Quer dizer, a imagem é necessariamente uma ilusão. Não se pode confiar nela.
Já fui vítima desse poder e tentei ludibriá-lo. Comecei a escrever cedo, jovem o bastante para que não me atribuíssem o devido crédito. Então, eu deixava a barba crescer, para disfarçar, vestia roupas sóbrias, tentava parecer mais velho manipulando a imagem que faziam de mim. Funcionava – ou, pelo menos, eu achava que sim. No escritório, era a mesma coisa: eu tinha subordinados com mais tempo de carreira e, na época, acreditava que hierarquia era determinada pela data de nascimento. Não revelava a idade de jeito nenhum, deixava o povo confabular. Coisas da juventude, não há como ocultá-las.
Não se trata de mania pessoal. Em regra, as pessoas não gostam de aparentar, digamos assim, o "grau de experiência". Tenho amigos e amigas lindos que se acham decrépitos só porque já passaram dos trinta. Ou dos quarenta. Ou dos cinquenta, que seja. Uma pena.
Outro dia, uma dessas amigas fez um ensaio fotográfico para guardar como recordação – ou "para a posteridade", como gosto de pensar. Teve direito a cabelo, maquiagem, figurino e photoshop. Me diverti à beça com os elogios decorrentes: "Nossa, as fotos ficaram lindas. Nem parece você!" Ela estava entusiasmadíssima, preferi não polemizar. Mas achei um paradoxo absurdo alguém ficar linda na foto justamente porque deixou de parecer consigo mesma. É assim que a história da humanidade vai sendo escrita.
Eu ri, na ocasião, e depois sofri do mesmo mal. Na falta de alternativas, resolvi improvisar um retrato novo para esta coluna e, devido ao resultado pouco animador, pedi a um amigo que fizesse leves retoques. Apagar uma espinha, corrigir olheiras, ajeitar uns fios de cabelo que saíram do lugar bem na hora do clique. Coisinhas assim, fugazes. Ele foi lá e, pelo bem da amizade, me recompôs. Portanto, se você quiser saber como sou, de verdade, direi que pareço com o cara aí do alto, só que mais real.
Meu próprio pai, que nunca foi disso, teve que renovar o RG e, quando viu a foto tirada lá, na hora H, ficou desconsolado. Aquele senhor grisalho, de óculos, era velho demais para ele. Calúnia! Cancelou o RG, fez a foto em outro lugar e voltou no dia seguinte rejuvenescido.
Isso me lembrou mais um caso, que conto agora para terminar de vez com o papo furado. Está mais para uma lenda do rock, não sei até que ponto é verdade, mas dizem que Neil Young, depois de gravar um primeiro disco muito bom e assinar contrato para outro, acabou processado pela gravadora porque, no segundo, já não se parecia mais com o Neil Young original. É mole? Sei lá quem ganhou o páreo... Como é que se comprova a própria autenticidade?
Pois bem, eu continuo mesmo acreditando no bom e velho Jung. Sou o que escrevo, muito mais do que aparento, e vou ser um novo eu a cada frase, a cada pensamento, a cada inspiração, mesmo que a foto da coluna permaneça a mesma. Se ela não agradar, peço que coloque o polegar em cima e ignore. Para saber de verdade quem eu sou, continue a me acompanhar aqui, mensalmente. Aos pouquinhos, vou revelando interesses, trocando ideias, puxando papo. Entre o ser e o nada, vamos, juntos, descobrindo nossas verdades mais profundas.
Exagero? Ora, um pouco de exagero nunca é demais, e a verdade é que eu não sou muito afeito a exibir o rosto por aí, preferindo sempre me ocultar atrás do codinome Edu Almeida. Por quê? Para ser sincero, não sei. "O que sou e o que escrevo são uma coisa só. Todas as minhas ideias e todos os meus esforços, eis o que sou.", disse C. G. Jung certa vez, e eu sempre levei a sério os pensamentos daquele simpático velhinho suíço, tanto que essa sua frase consta em meu blog desde que o criei. Além do mais, acho que nunca confiei no modo como a imagem lida com o conteúdo, principalmente quando ela precisa sustentar o enorme peso de uma identidade. Não basta, percebe? A imagem reduz tudo a um instante, um ponto de vista, uma gama de cores. Não precisa nem se tratar de uma pessoa, pode ser uma paisagem mesmo, daquelas que você fotografou na sua última viagem de férias – a imagem, no máximo, sugere a sensação do lugar; jamais será o lugar propriamente dito, visto e experimentado.
Convenhamos, nosso comportamento está intimamente atrelado à visão, então é natural que a imagem fale mais alto. Veja só o grau de confiança que uma testemunha ocular recebe, no caso de um crime, por exemplo, enquanto uma testemunha olfativa viraria motivo de piada. Só que os olhos também se enganam. O mesmo vale para os nossos preconceitos. De repente, alguém não vai com a minha cara e deixa de ler a coluna só por causa da foto. Uma imagem, mil palavras, sabe como é... Acontece direto comigo. Se não gosto de um sujeito à primeira vista, ele precisará de muita lábia para me convencer do contrário, ainda mais porque acredito cegamente em meu sexto sentido.
No caso do jornal, havia também uma questão prática: que foto usar? Essa é muito antiga, naquela estou despenteado, naquela estou acompanhado, esta outra tem fundo difícil de recortar, tem sorriso torto, olho fechado... que lástima! Sem contar que eu adoro tirar fotografias e, na maioria das vezes munido de câmera, acabo não aparecendo em nenhuma. Enquanto isso, milhões de anônimos entulham seus perfis de redes sociais com todo o tipo de retrato, sem vergonha de serem felizes. É mesmo um desprendimento admirável.
Vão dizer que é frescura, mas sou publicitário, sei que o poder da imagem é comprometedor. Ele resume você a uma falsa realidade: um instante específico, um olhar perdido, um estilo de roupa, uma luz, um peso e uma altura que, como tudo na vida, estão sempre em mutação. Quer dizer, a imagem é necessariamente uma ilusão. Não se pode confiar nela.
Já fui vítima desse poder e tentei ludibriá-lo. Comecei a escrever cedo, jovem o bastante para que não me atribuíssem o devido crédito. Então, eu deixava a barba crescer, para disfarçar, vestia roupas sóbrias, tentava parecer mais velho manipulando a imagem que faziam de mim. Funcionava – ou, pelo menos, eu achava que sim. No escritório, era a mesma coisa: eu tinha subordinados com mais tempo de carreira e, na época, acreditava que hierarquia era determinada pela data de nascimento. Não revelava a idade de jeito nenhum, deixava o povo confabular. Coisas da juventude, não há como ocultá-las.
Não se trata de mania pessoal. Em regra, as pessoas não gostam de aparentar, digamos assim, o "grau de experiência". Tenho amigos e amigas lindos que se acham decrépitos só porque já passaram dos trinta. Ou dos quarenta. Ou dos cinquenta, que seja. Uma pena.
Outro dia, uma dessas amigas fez um ensaio fotográfico para guardar como recordação – ou "para a posteridade", como gosto de pensar. Teve direito a cabelo, maquiagem, figurino e photoshop. Me diverti à beça com os elogios decorrentes: "Nossa, as fotos ficaram lindas. Nem parece você!" Ela estava entusiasmadíssima, preferi não polemizar. Mas achei um paradoxo absurdo alguém ficar linda na foto justamente porque deixou de parecer consigo mesma. É assim que a história da humanidade vai sendo escrita.
Eu ri, na ocasião, e depois sofri do mesmo mal. Na falta de alternativas, resolvi improvisar um retrato novo para esta coluna e, devido ao resultado pouco animador, pedi a um amigo que fizesse leves retoques. Apagar uma espinha, corrigir olheiras, ajeitar uns fios de cabelo que saíram do lugar bem na hora do clique. Coisinhas assim, fugazes. Ele foi lá e, pelo bem da amizade, me recompôs. Portanto, se você quiser saber como sou, de verdade, direi que pareço com o cara aí do alto, só que mais real.
Meu próprio pai, que nunca foi disso, teve que renovar o RG e, quando viu a foto tirada lá, na hora H, ficou desconsolado. Aquele senhor grisalho, de óculos, era velho demais para ele. Calúnia! Cancelou o RG, fez a foto em outro lugar e voltou no dia seguinte rejuvenescido.
Isso me lembrou mais um caso, que conto agora para terminar de vez com o papo furado. Está mais para uma lenda do rock, não sei até que ponto é verdade, mas dizem que Neil Young, depois de gravar um primeiro disco muito bom e assinar contrato para outro, acabou processado pela gravadora porque, no segundo, já não se parecia mais com o Neil Young original. É mole? Sei lá quem ganhou o páreo... Como é que se comprova a própria autenticidade?
Pois bem, eu continuo mesmo acreditando no bom e velho Jung. Sou o que escrevo, muito mais do que aparento, e vou ser um novo eu a cada frase, a cada pensamento, a cada inspiração, mesmo que a foto da coluna permaneça a mesma. Se ela não agradar, peço que coloque o polegar em cima e ignore. Para saber de verdade quem eu sou, continue a me acompanhar aqui, mensalmente. Aos pouquinhos, vou revelando interesses, trocando ideias, puxando papo. Entre o ser e o nada, vamos, juntos, descobrindo nossas verdades mais profundas.
terça-feira, 9 de agosto de 2011
Qual a importância da literatura na vida cotidiana das pessoas?
"Esta pergunta poderia abranger a noite inteira de conversa, porque seria algo relacionado com a filosofia da arte. Para que serve a arte? A literatura, assim como a arte, é uma forma de conhecimento, de perceber o mundo e de expressar essa percepção. Nesse sentido, toda arte teria uma utilidade. Mas não acho que o critério da utilidade deva ser usado em relação à arte. Arte não deve ser vista de uma maneira tão pragmática, tão imediatista. Não se pode negar que a literatura contribui para a maturação e evolução da língua, para a expressividade dessa língua, para a utilização dessa língua, inclusive para a comunicação científica, porque as linguagens se entrelaçam. E como qualquer arte, a literatura é uma forma importante de conhecimento, de ver o mundo e de expressar o mundo através da linguagem. Acho que quem se expõe a um estímulo intelectual, emocional, artístico, está dando a si mesmo uma chance de expansão da sua sensibilidade, da sua humanidade. Se nós nos limitássemos a comer e procriar, tudo seria muito pobre."
O escritor João Ubaldo Ribeiro, num bate-papo do Paiol Literário (projeto promovido pelo jornal Rascunho em parceria com a Fundação Cultural de Curitiba, o Sesi Paraná e a Fiep). Leia a entrevista completa aqui: www.rascunho.com.br
O escritor João Ubaldo Ribeiro, num bate-papo do Paiol Literário (projeto promovido pelo jornal Rascunho em parceria com a Fundação Cultural de Curitiba, o Sesi Paraná e a Fiep). Leia a entrevista completa aqui: www.rascunho.com.br
segunda-feira, 8 de agosto de 2011
MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO
Um escritor, tomado por angústia e desilusão, fala sobre a sua dificuldade de escrever um bom romance. Paradoxalmente, ele termina o relato com um romance escrito, que é bom o bastante para desmentir a si mesmo. Parece meio esquisito. Parece também meio clichê – quantos livros você já viu sobre escritores que escrevem sobre outros escritores tentando escrever? Um monte. Pois bem. Quem se lembra de David Foenkinos?, do francês David Foenkinos, é as duas coisas ao mesmo tempo, meio esquisito e meio clichê. Mas é também bastante bom, coisa que só fui perceber quando terminei de lê-lo.
Comprei o livro por acaso, num saldão. Estava tão barato que acabei levando-o por curiosidade, esperando apenas folhear e, quem sabe, encontrar ali alguma coisa interessante. Li as primeiras trinta páginas num pulo. E as outras cento e trinta em outro.
A história é meio deprimente, já vou avisando. O personagem David Foenkinos escrevera um romance de sucesso, seguido por outros cinco que passaram despercebidos tanto pelo público quanto pela crítica. Agora, ele está atrás de uma grande ideia perdida num trem, concebida e esquecida numa viagem entre Genebra e Paris. Por conta dessa obsessão – e da apatia gerada pelos fracassos –, sua vida pessoal desmorona, em especial o relacionamento com esposa e filha. Afinal, é sobre isso que ele escreve.
O livro tem boas passagens. Embora pouca coisa aconteça, a leitura flui rápido. Vamos nos embrenhando na vida de David e experimentando o gosto repugnante da derrota que ele outorga a si próprio.
O mais bacana talvez seja justamente não saber quanto dali foi inventado e quanto foi apropriado da vida real do Foenkinos autor. Fica claro que toda biografia não passa também de mera ficção, e que qualquer história pode ser recontada conforme convier às partes interessadas. Como lemos logo nas primeiras páginas, só as nossas certezas conhecem intimamente as nossas incertezas.
David Foenkinos estava mesmo esquecido? Seus romances anteriores foram tão ignorados quanto o personagem afirma? Sua estreia fez aquele sucesso todo? Sabemos que aqueles livros existem porque está escrito nas orelhas do atual e, suponho, essas orelhas não fazem parte da criação original. Mas posso estar enganado. Sim, claro. Esse é o mérito do autor. Ele nos engana sem que percebamos, justamente porque nos faz acreditar em sua história reinventada.
Na fronteira entre ficção e realidade, David nos leva a refletir sobre o amor, a ansiedade e as relações humanas; sobre tudo que está ao nosso alcance e sobre aquilo que independe da nossa vontade. Ele procura um bode expiatório para sua mediocridade e, como resultado, acaba produzindo um livro nem um pouco medíocre. Um livro sobre o próprio livro, que conseguiu prender minha atenção enquanto rolavam as páginas.
Já próximo do desfecho, o personagem Foenkinos se pergunta: "Pode-se amar mais uma mulher do que confundindo-a com uma ficção?" Imagino que não. O mundo, em geral, existe apenas como uma ideia de mundo. As coisas não existem por si mesmas, mas da maneira como nós as concebemos. Quer dizer, uma casa, para mim, é diferente daquilo que você entende por casa. Uma maçã possui diferentes significados para quem planta e para quem come. Um livro idem. É o que o autor Foenkinos sugere nas entrelinhas: é impossível amar a vida sem escrever, a partir dela, a nossa própria ficção.
Comprei o livro por acaso, num saldão. Estava tão barato que acabei levando-o por curiosidade, esperando apenas folhear e, quem sabe, encontrar ali alguma coisa interessante. Li as primeiras trinta páginas num pulo. E as outras cento e trinta em outro.
A história é meio deprimente, já vou avisando. O personagem David Foenkinos escrevera um romance de sucesso, seguido por outros cinco que passaram despercebidos tanto pelo público quanto pela crítica. Agora, ele está atrás de uma grande ideia perdida num trem, concebida e esquecida numa viagem entre Genebra e Paris. Por conta dessa obsessão – e da apatia gerada pelos fracassos –, sua vida pessoal desmorona, em especial o relacionamento com esposa e filha. Afinal, é sobre isso que ele escreve.
O livro tem boas passagens. Embora pouca coisa aconteça, a leitura flui rápido. Vamos nos embrenhando na vida de David e experimentando o gosto repugnante da derrota que ele outorga a si próprio.
O mais bacana talvez seja justamente não saber quanto dali foi inventado e quanto foi apropriado da vida real do Foenkinos autor. Fica claro que toda biografia não passa também de mera ficção, e que qualquer história pode ser recontada conforme convier às partes interessadas. Como lemos logo nas primeiras páginas, só as nossas certezas conhecem intimamente as nossas incertezas.
David Foenkinos estava mesmo esquecido? Seus romances anteriores foram tão ignorados quanto o personagem afirma? Sua estreia fez aquele sucesso todo? Sabemos que aqueles livros existem porque está escrito nas orelhas do atual e, suponho, essas orelhas não fazem parte da criação original. Mas posso estar enganado. Sim, claro. Esse é o mérito do autor. Ele nos engana sem que percebamos, justamente porque nos faz acreditar em sua história reinventada.
Na fronteira entre ficção e realidade, David nos leva a refletir sobre o amor, a ansiedade e as relações humanas; sobre tudo que está ao nosso alcance e sobre aquilo que independe da nossa vontade. Ele procura um bode expiatório para sua mediocridade e, como resultado, acaba produzindo um livro nem um pouco medíocre. Um livro sobre o próprio livro, que conseguiu prender minha atenção enquanto rolavam as páginas.
Já próximo do desfecho, o personagem Foenkinos se pergunta: "Pode-se amar mais uma mulher do que confundindo-a com uma ficção?" Imagino que não. O mundo, em geral, existe apenas como uma ideia de mundo. As coisas não existem por si mesmas, mas da maneira como nós as concebemos. Quer dizer, uma casa, para mim, é diferente daquilo que você entende por casa. Uma maçã possui diferentes significados para quem planta e para quem come. Um livro idem. É o que o autor Foenkinos sugere nas entrelinhas: é impossível amar a vida sem escrever, a partir dela, a nossa própria ficção.
quinta-feira, 4 de agosto de 2011
Mariana Delfini: Muitas pessoas vêm à peça atraídas pela imagem que têm de você na televisão. Mas, no palco, você adota um tom irônico e até agressivo em relação à plateia. Não teme frustá-la?
Caco Ciocler: A graça do espetáculo é mesmo esta, frustrar qualquer expectativa de quem vai em busca de entretenimento. O fato de eu fazer televisão potencializa esse jogo. Veja bem: não tenho nada contra o entretenimento, mas já existe tanta coisa dando conta dele... Acho uma pena as pessoas virem buscá-lo também no teatro. Sinto que a gangorra pesa muito para esse lado e pouquíssimo para o da arte, que dá espaço à dor – não a dor como objeto de culto, mas a dor da vida, mesmo, a dor diante do vazio. Preencher o tempo com o entretenimento é uma maneira de fingir que esse vazio não existe. A arte deve estimular o movimento oposto: nos fazer parar de mentir sobre ele. Deve dar à existência uma dimensão mais sublime, para além do banal.
Entrevista concedida à revista BRAVO! deste mês, a respeito da peça 45 minutos, em cartaz no Centro Cultural São Paulo.
Caco Ciocler: A graça do espetáculo é mesmo esta, frustrar qualquer expectativa de quem vai em busca de entretenimento. O fato de eu fazer televisão potencializa esse jogo. Veja bem: não tenho nada contra o entretenimento, mas já existe tanta coisa dando conta dele... Acho uma pena as pessoas virem buscá-lo também no teatro. Sinto que a gangorra pesa muito para esse lado e pouquíssimo para o da arte, que dá espaço à dor – não a dor como objeto de culto, mas a dor da vida, mesmo, a dor diante do vazio. Preencher o tempo com o entretenimento é uma maneira de fingir que esse vazio não existe. A arte deve estimular o movimento oposto: nos fazer parar de mentir sobre ele. Deve dar à existência uma dimensão mais sublime, para além do banal.
Entrevista concedida à revista BRAVO! deste mês, a respeito da peça 45 minutos, em cartaz no Centro Cultural São Paulo.
segunda-feira, 1 de agosto de 2011
Eu continuo a escutar Norah Jones. E continuo a cantar Norah Jones. As músicas permanecem em repeat perpetuum em minha cabeça. Mas é um pop disfarçado de jazz, você vai dizer, melancólico e inocente. Também é. Além de pop jazz, é uma porção de outras coisas.
Eu gosto cada vez mais de Norah Jones. A cada disco, descubro uma nova artista. Só que o disco que continua a tocar, nesse momento, é o seu primeiro. Come away with me, vou explicar por quê. Porque gosto tanto dele, apesar dos pesares que a crítica ácida insiste em corroer. Há um lirismo escondido atrás daquela banalidade toda. Um lirismo que, inclusive, ganha forças com a tal banalidade.
Em Feelin’ the same way, letra assinada pelo baixista Lee Alexander, Norah canta: o sol acaba de escorregar sua mensagem por debaixo da porta, e eu não posso me esconder, enterrada em meus lençóis. Eu já li aquelas palavras antes, então agora sei que o tempo chegou novamente para mim. E eu me sinto do mesmo jeito, de novo, eu canto os mesmos versos, de novo, não importa o quanto eu finja que não.
Acho lindo. Se fosse simplesmente banal, ela poderia dizer “vejo o sol na fresta, sob a porta, e eu não posso ficar na cama para sempre”. Mas o lirismo dá as caras, para nossa sorte, e o sol não aparece, ele não se deixa ver, apenas escorrega um bilhete. Um bilhete que ela já leu muitas outras vezes, e que insiste: o tempo está correndo, o novo dia veio lhe buscar, ávido por novidades; não adianta se enterrar, não adianta morrer, é preciso vencer. Dia após dia, é preciso vencer a mesmice de ser sempre você.
Na música que dá nome ao disco, essa sim escrita por Norah, para você não dizer que o mérito é alheio, ela canta o amor do jeito mais banal possível. Porém, ao invés do escorraçado “eu amo você”, que o nosso sertanejo pop esfolou ao limite, até que ele não significasse mais nada, até que não passasse de mera rima, Norah diz: venha comigo, num ônibus; venha para onde eles não podem nos tentar com as suas mentiras. Eu quero acordar com a chuva caindo num telhado de lata, enquanto estou a salvo em seus braços.
Cenas banais, fugazes, porém belíssimas. Belas justamente porque banais.
É possível ser pop, jazz e lírico, tudo ao mesmo tempo? É possível falar a mesma coisa, mas diferente? É possível retirar do banal, da rotina, do dia a dia, algo estupendo? Fazer complexo das coisas simples? Norah acredita que sim. Então eu a deixo tocar.
Eu gosto cada vez mais de Norah Jones. A cada disco, descubro uma nova artista. Só que o disco que continua a tocar, nesse momento, é o seu primeiro. Come away with me, vou explicar por quê. Porque gosto tanto dele, apesar dos pesares que a crítica ácida insiste em corroer. Há um lirismo escondido atrás daquela banalidade toda. Um lirismo que, inclusive, ganha forças com a tal banalidade.
Em Feelin’ the same way, letra assinada pelo baixista Lee Alexander, Norah canta: o sol acaba de escorregar sua mensagem por debaixo da porta, e eu não posso me esconder, enterrada em meus lençóis. Eu já li aquelas palavras antes, então agora sei que o tempo chegou novamente para mim. E eu me sinto do mesmo jeito, de novo, eu canto os mesmos versos, de novo, não importa o quanto eu finja que não.
Acho lindo. Se fosse simplesmente banal, ela poderia dizer “vejo o sol na fresta, sob a porta, e eu não posso ficar na cama para sempre”. Mas o lirismo dá as caras, para nossa sorte, e o sol não aparece, ele não se deixa ver, apenas escorrega um bilhete. Um bilhete que ela já leu muitas outras vezes, e que insiste: o tempo está correndo, o novo dia veio lhe buscar, ávido por novidades; não adianta se enterrar, não adianta morrer, é preciso vencer. Dia após dia, é preciso vencer a mesmice de ser sempre você.
Na música que dá nome ao disco, essa sim escrita por Norah, para você não dizer que o mérito é alheio, ela canta o amor do jeito mais banal possível. Porém, ao invés do escorraçado “eu amo você”, que o nosso sertanejo pop esfolou ao limite, até que ele não significasse mais nada, até que não passasse de mera rima, Norah diz: venha comigo, num ônibus; venha para onde eles não podem nos tentar com as suas mentiras. Eu quero acordar com a chuva caindo num telhado de lata, enquanto estou a salvo em seus braços.
Cenas banais, fugazes, porém belíssimas. Belas justamente porque banais.
É possível ser pop, jazz e lírico, tudo ao mesmo tempo? É possível falar a mesma coisa, mas diferente? É possível retirar do banal, da rotina, do dia a dia, algo estupendo? Fazer complexo das coisas simples? Norah acredita que sim. Então eu a deixo tocar.
segunda-feira, 25 de julho de 2011
A PSICANÁLISE, A ARTE E A CRIAÇÃO DO MUNDO
Quantos mundos diferentes existem nessa realidade compartilhada em que vivemos? Infinitos. Um mundo para cada pessoa, mundos e mais mundos instáveis, em constante mutação. A cada dia, somos uma pessoa diferente, e nosso universo particular muda também. Nosso mundo é, na verdade, nossa singular concepção de mundo. Nossa vida nada mais é do que o fruto da nossa própria criação.
"O homem só compreende enquanto cria. O que ele pode chegar a conhecer de verdade não é a essência das coisas, mas somente a estrutura e o caráter peculiar de suas obras. Nenhum ser conhece (ou verdadeiramente penetra em) qualquer coisa, exceto aquilo que ele mesmo cria."
Gilberto Safra, em A face estética do self
"O homem só compreende enquanto cria. O que ele pode chegar a conhecer de verdade não é a essência das coisas, mas somente a estrutura e o caráter peculiar de suas obras. Nenhum ser conhece (ou verdadeiramente penetra em) qualquer coisa, exceto aquilo que ele mesmo cria."
Gilberto Safra, em A face estética do self
quinta-feira, 21 de julho de 2011
ARTE INVISÍVEL CUSTA OS OLHOS DA CARA
É verdade que existem muitas coisas que não podemos ver. Mas... arte também?
MONA (Museum of Non-Visible Art) é o nome do novo Museu de Arte Invisível que o grupo Art-Praxis e o ator James Franco estão lançando. A proposta é que, ao invés de obras materiais, encontremos ali imaginação, ideias e proposições visuais pertencentes ao mundo invisível do pensamento.
A iniciativa, bastante esquisita, não escapa do tal mercado de arte – o que depõe contra o conceito tradicional de museu e acaba por transformá-la numa galeria como outra qualquer. Digo isso porque as obras do MONA podem ser compradas por quantias que variam de mil até dez mil dólares.
Funciona assim: o comprador investe dinheiro de verdade e, em troca, recebe uma descrição da peça adquirida. Por exemplo, a peça intitulada "Ar fresco" chega às mãos do dono da seguinte maneira:
"Uma peça única, somente esta se encontra disponível para venda. Comprar esse ar é como comprar um tanque de oxigênio. Não importa onde você está, sempre poderá inspirar o mais delicioso e limpo ar que a Terra pode produzir. Cada inspiração dá a você uma infinita paz e saúde. Esta peça de arte é algo para carregar sempre com você, caso seja sua. Porque, seja lá onde estiver, você pode se imaginar provando o mais lindo e saboroso ar das montanhas, do campo ou do litoral; o suprimento jamais se extingue."
E alguém põe dinheiro nisso? Claro. Sempre tem quem ponha. Como diz meu pai, para tudo no mundo há um comprador; produto e interessado só precisam se encontrar.
Um exemplo é Aimee Davidson, que pagou dez mil dólares pelo ar fresco descrito acima. Para ele, o MONA pode parecer um golpe, mas na verdade é um movimento artístico de mídias sociais. Seja lá o que for, custa caro. E os preços parecem chamar mais a atenção do público do que as obras em si.
Entre a arte invisível e a convencional (dessas que podemos ver), acho que vale pesar o custo x benefício delas, e deixar que o mercado de arte penda para a mais compensadora. Se é que isso pode ser medido assim, com valores financeiros.
Site do museu: MONA
Assista ao vídeo de divulgação:
Uma reportagem interessante sobre o MONA: Paste Magazine
MONA (Museum of Non-Visible Art) é o nome do novo Museu de Arte Invisível que o grupo Art-Praxis e o ator James Franco estão lançando. A proposta é que, ao invés de obras materiais, encontremos ali imaginação, ideias e proposições visuais pertencentes ao mundo invisível do pensamento.
A iniciativa, bastante esquisita, não escapa do tal mercado de arte – o que depõe contra o conceito tradicional de museu e acaba por transformá-la numa galeria como outra qualquer. Digo isso porque as obras do MONA podem ser compradas por quantias que variam de mil até dez mil dólares.
Funciona assim: o comprador investe dinheiro de verdade e, em troca, recebe uma descrição da peça adquirida. Por exemplo, a peça intitulada "Ar fresco" chega às mãos do dono da seguinte maneira:
"Uma peça única, somente esta se encontra disponível para venda. Comprar esse ar é como comprar um tanque de oxigênio. Não importa onde você está, sempre poderá inspirar o mais delicioso e limpo ar que a Terra pode produzir. Cada inspiração dá a você uma infinita paz e saúde. Esta peça de arte é algo para carregar sempre com você, caso seja sua. Porque, seja lá onde estiver, você pode se imaginar provando o mais lindo e saboroso ar das montanhas, do campo ou do litoral; o suprimento jamais se extingue."
E alguém põe dinheiro nisso? Claro. Sempre tem quem ponha. Como diz meu pai, para tudo no mundo há um comprador; produto e interessado só precisam se encontrar.
Um exemplo é Aimee Davidson, que pagou dez mil dólares pelo ar fresco descrito acima. Para ele, o MONA pode parecer um golpe, mas na verdade é um movimento artístico de mídias sociais. Seja lá o que for, custa caro. E os preços parecem chamar mais a atenção do público do que as obras em si.
Entre a arte invisível e a convencional (dessas que podemos ver), acho que vale pesar o custo x benefício delas, e deixar que o mercado de arte penda para a mais compensadora. Se é que isso pode ser medido assim, com valores financeiros.
Site do museu: MONA
Assista ao vídeo de divulgação:
Uma reportagem interessante sobre o MONA: Paste Magazine
O CURIOSISMO
Este vídeo de divulgação da nova mostra de longa duração que a Pinacoteca de São Paulo está preparando explica por que a mesma curiosidade que matou o gato também pode matar você. É muito bacana, dê uma espiada:
terça-feira, 19 de julho de 2011
sábado, 16 de julho de 2011
ARTE, NECESSIDADE VITAL
Mãos de Portinari executando a pintura Menino com carneiro (1953)
Tem um fato marcante na biografia de Cândido Portinari que, de tão banalizado, já não recebe o devido respeito. Esse fato é a própria morte do pintor. Ontem mesmo, saiu escrito na Folha de São Paulo, numa reportagem sobre a exposição recém-inaugurada no MAM, que Portinari "morreu intoxicado pelas tintas aos 58 anos, em 1962". E o texto continua como se tivesse explicado uma fração da raiz de nove, sem demonstrar emoção por algo tão cheio de significado - a informação aparece como uma curiosidade qualquer.
Pintar era a vida de Portinari; ainda que ela determinasse sua morte, deveria ser levada adiante. Porque a intoxicação não foi acidental - desde 1953, ele tinha plena consciência do mal que as tintas faziam ao seu organismo. Seu médico o havia proibido de usá-las, e ele tentou obedecer, testou lápis de cor, escreveu poesias, buscou outras linguagens. Morrer pela pintura - e por causa da pintura - foi sua escolha. A opção de viver sem ela jamais o convenceu.
Para esse paulista de Brodósqui que tanto contribuiu para a cultura nacional, a arte pictórica não era um vício impossível de largar. Era muito mais, uma necessidade física e intelectual; o tal "sentido da vida", como dizem por aí. Sua relação com as tintas contribui para o entendimento de toda a sua obra e ressignifica tudo que ele criou a partir delas. Uma dedicação sobre-humana que, para Portinari, valia a pena ser levada às últimas consequências.
No Ateliê de Portinari: 1920-45
Exposição no MAM/SP, com curadoria de Annateresa Fabris
Parque do Ibirapuera, portão 3 - s/nº
De 14 de julho a 11 de setembro de 2011
De terça-feira a domingo, das 10h às 18h
Tem um fato marcante na biografia de Cândido Portinari que, de tão banalizado, já não recebe o devido respeito. Esse fato é a própria morte do pintor. Ontem mesmo, saiu escrito na Folha de São Paulo, numa reportagem sobre a exposição recém-inaugurada no MAM, que Portinari "morreu intoxicado pelas tintas aos 58 anos, em 1962". E o texto continua como se tivesse explicado uma fração da raiz de nove, sem demonstrar emoção por algo tão cheio de significado - a informação aparece como uma curiosidade qualquer.
Pintar era a vida de Portinari; ainda que ela determinasse sua morte, deveria ser levada adiante. Porque a intoxicação não foi acidental - desde 1953, ele tinha plena consciência do mal que as tintas faziam ao seu organismo. Seu médico o havia proibido de usá-las, e ele tentou obedecer, testou lápis de cor, escreveu poesias, buscou outras linguagens. Morrer pela pintura - e por causa da pintura - foi sua escolha. A opção de viver sem ela jamais o convenceu.
Para esse paulista de Brodósqui que tanto contribuiu para a cultura nacional, a arte pictórica não era um vício impossível de largar. Era muito mais, uma necessidade física e intelectual; o tal "sentido da vida", como dizem por aí. Sua relação com as tintas contribui para o entendimento de toda a sua obra e ressignifica tudo que ele criou a partir delas. Uma dedicação sobre-humana que, para Portinari, valia a pena ser levada às últimas consequências.
No Ateliê de Portinari: 1920-45
Exposição no MAM/SP, com curadoria de Annateresa Fabris
Parque do Ibirapuera, portão 3 - s/nº
De 14 de julho a 11 de setembro de 2011
De terça-feira a domingo, das 10h às 18h
terça-feira, 12 de julho de 2011
"O mundo atual apresenta problemas e situações que levam o ser humano a adoecer em sua possibilidade de ser: ele vive hoje fragmentado, descentrado de si mesmo, impossibilitado de encontrar, na cultura, os elementos e o amparo necessários para conseguir a superação de suas dificuldades psíquicas."
Gilberto Safra, em A face estética do self
Gilberto Safra, em A face estética do self
sábado, 9 de julho de 2011
EDITOR DA NOSSA HISTÓRIA
Não faz muito tempo, a Edusp e a Com-Arte lançaram um livro com o título de Paula Brito – Editor, Poeta e Artífice das Letras. Trata-se de uma coletânea de ensaios a respeito da produção desse que é considerado o primeiro editor do Brasil – ou, como o definiu Machado de Assis, "o primeiro editor digno deste nome que houve entre nós". Uma publicação importante, já que a história da nossa literatura é tão conhecida quanto o final de um livro inacabado. Pois bem, eu lia uma reportagem a respeito e alguma coisa parecia desconexa ali, só não sabia dizer o quê. Caminhando distraidamente pela página, demorei a perceber que era a foto, estampada bem no centro, que me inquietava: o tal editor era negro.
Estamos falando de outro Brasil, acontecido praticamente duzentos anos atrás. Francisco de Paula Brito nasceu em 1809, num Rio de Janeiro escravocrata e precário, dependente de Portugal em quase todos os sentidos. Nossas primeiras tipografias tinham sido inauguradas apenas um ano antes, com a vinda da família real, e publicar qualquer coisa por aqui era difícil, perigoso e praticamente inútil, já que a maior parte da população não sabia ler.
Toda história promissora começa mesmo com um drama. De origem humilde, descendente de escravos e autodidata, esse negro conseguiu um feito incrível para sua época e condição: levou uma vida dedicada às letras, tornou conhecida nossa produção literária de meados do século XIX e fez de A marmota um dos principais periódicos da primeira fase da imprensa nacional.
Apelidado de "artífice das letras", Francisco também era poeta, ainda que tenha se destacado não por conta de seus escritos, mas de seus escritores: Machado de Assis, Casimiro de Abreu, José de Alencar e Basílio da Gama, entre outros – nomes que, ao contrário do seu, vivem pipocando por aí.
Editar obras desse porte não é tarefa para qualquer um. Quando me dei conta do significado, a façanha me pareceu inacreditável. E mais inacreditável ainda é um herói do nosso povo ficar esquecido durante tanto tempo.
O Brasil é mesmo um país que não se cansa de me surpreender. Toda vez que a gente se desentende, ele saca um punhado de flores e me conquista de novo. Temos uma imensa desigualdade social, o maior leão do mundo se alimenta do nosso suor sem dar nada em troca, somos maltratados aqui dentro e lá fora, ninguém acredita muito em nosso potencial, nem a gente mesmo. Por aqui, rola uma corrupção tão escancarada que faz parecer errado agir certo, como se ética fosse coisa de ingênuo sonhador. Certo mesmo é agir errado, dizem, porque o mundo é dos espertos. Alguém contradiz?
Pois é, são absurdos que, de tão repetidos, já nem surpreendem mais. Logo vem alguém tentar me convencer de que o problema é cultural, mas cultura, para mim, é outra coisa. Cultura é coisa boa, enriquecedora, dessas que transformam bichos em seres humanos civilizados, solidários e justos. É a cultura que me faz manter intacta a esperança de que, um dia, quem sabe...
O Brasil tem jeito sim. O que me confirma isso são homens e mulheres como Francisco de Paula Brito, que acreditam num bem maior e lutam para concretizá-lo. Um filho do povo que, certa vez, escreveu: "a eternidade depende das obras úteis: se ele as fez, quaisquer que elas sejam, mas de que se aproveitem os presentes e os vindouros, esse homem vive na glória".
Para nossa sorte, conheço um monte de franciscos assim, compartilhando conosco o agora, trabalhando quase sempre no anonimato, mas fazendo acontecer, criando, melhorando, ensinando etc.; ou seja, produzindo essa nossa cultura que é uma obra sempre em processo de formação e transformação. Tal como acreditava o primeiro editor da nossa história, esses homens vivem na glória, ainda que o país demore para reconhecê-los. Ele próprio apareceu só agora para comprovar.
quinta-feira, 7 de julho de 2011
LER COM OS OUVIDOS
"Temos de ler musicalmente, testando a precisão e o ritmo da frase, ouvindo o ruído quase inaudível de associações históricas que se prendem à margem das palavras modernas, prestando atenção nos padrões, nas repetições, nas ressonâncias, decidindo por que uma metáfora é boa e outra não, avaliando de que forma a colocação perfeita do verbo ou do adjetivo confere à frase um caráter matematicamente definitivo."
James Wood, em Como funciona a ficção
James Wood, em Como funciona a ficção
terça-feira, 5 de julho de 2011
VAI UM POUCO DE CULTURA AÍ?
A revista Continuum deste mês revela um dado impressionante: QUASE METADE DA POPULAÇÃO BRASILEIRA NÃO CONSOME CULTURA PORQUE NÃO QUER. Impressionante e alarmante, claro.
Quem frequenta o universo da cultura já parte do pressuposto que ele é essencial à vida, que todos precisam experimentar, que é um absurdo ficar de fora alimentando a ignorância, sabe como é... Uma atitude natural, ainda que precipitada, porque quem valoriza também gosta de compartilhar.
Então surgem ideias de mobilização, de incentivo, pulverizamos palavras de ordem na internet e acabamos correndo o risco de nos tornar chatos persistentes.
Antes de sairmos divulgando cultura por aí, convém perguntar a nós mesmos: por qual razão as outras pessoas teriam interesse nela? Quando isso ficar claro, será mais fácil entender a falta que a cultura faz.
Porque um pouco de cultura não faz mal a ninguém, mas um pouco de consciência também não.
Ps.: Para ler a reportagem da Continuum nº 31, intitulada Vou não, quero não, carregue-a diretamente na web (aqui) ou baixe o arquivo (aqui).
Quem frequenta o universo da cultura já parte do pressuposto que ele é essencial à vida, que todos precisam experimentar, que é um absurdo ficar de fora alimentando a ignorância, sabe como é... Uma atitude natural, ainda que precipitada, porque quem valoriza também gosta de compartilhar.
Então surgem ideias de mobilização, de incentivo, pulverizamos palavras de ordem na internet e acabamos correndo o risco de nos tornar chatos persistentes.
Antes de sairmos divulgando cultura por aí, convém perguntar a nós mesmos: por qual razão as outras pessoas teriam interesse nela? Quando isso ficar claro, será mais fácil entender a falta que a cultura faz.
Porque um pouco de cultura não faz mal a ninguém, mas um pouco de consciência também não.
Ps.: Para ler a reportagem da Continuum nº 31, intitulada Vou não, quero não, carregue-a diretamente na web (aqui) ou baixe o arquivo (aqui).
segunda-feira, 4 de julho de 2011
NOTA DA TRADUTORA
Estou lendo Como funciona a ficção, livro de crítica literária escrito pelo americano James Wood que propõe reflexões bastante interessantes sobre técnicas narrativas, construção de personagens, relação da fantasia com a realidade etc. Para melhorar, a edição brasileira chegou com algo a mais: Denise Bottmann, responsável por verter a obra para o português, criticou publicamente a escolha da editora Cosac Naify de utilizar trechos traduzidos anteriormente das obras citadas por Wood. Para ela, o mais correto seria traduzi-los novamente, de modo que fossem compatíveis com a análise do autor.
A crítica não invalida ou prejudica a edição brasileira, muito pelo contrário; discussões como essa são mais do que pertinentes quando o assunto é literatura. Melhor ainda quando vêm a público.
Quem gosta de escrever tem obrigação de ler o livro de Wood. Quem gosta de ler também vai adorar, porque passará a conhecer mais a fundo os detalhes dessa arte. Depois – ou antes, como preferirem – leiam também os argumentos da tradutora Denise Bottmann. Esse "capítulo extra" está disponível aqui: Como engripa a ficção.
A crítica não invalida ou prejudica a edição brasileira, muito pelo contrário; discussões como essa são mais do que pertinentes quando o assunto é literatura. Melhor ainda quando vêm a público.
Quem gosta de escrever tem obrigação de ler o livro de Wood. Quem gosta de ler também vai adorar, porque passará a conhecer mais a fundo os detalhes dessa arte. Depois – ou antes, como preferirem – leiam também os argumentos da tradutora Denise Bottmann. Esse "capítulo extra" está disponível aqui: Como engripa a ficção.
quinta-feira, 23 de junho de 2011
PARA PENSAR TUDO AO CONTRÁRIO
Consegui visitar a exposição O Mundo Mágico de Escher, finalmente! Eu tinha tentando uma vez, logo que ela chegou a São Paulo, mas o CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil) estava tão lotado que não dava nem para entrar. Agora entendi por quê: aquilo é superdivertido!
Como as gravuras do artista podem ser vistas em qualquer livro sem que o entendimento seja comprometido, os organizadores da mostra prepararam instalações especiais para os visitantes experimentarem as ilusões na própria pele.
Tem o quarto de Escher, reproduzido tal como consta em seu autorretrato, e podemos segurar uma bola de metal para ver nossa imagem lá; tem portas que correm sobre trilhos e formam desenhos, tem escadas malucas e muitos jogos de espelhos. Resultado: todo mundo se diverte, até os menos interessados em arte.
O mais legal disso tudo: conseguimos perceber claramente que o maior mérito do artista não estava na sua técnica ou na habilidade com o lápis, que são indiscutíveis, mas na sua maneira de pensar. Sabe-se lá como, Escher conseguia desbloquear o cérebro das convenções e imaginar o mundo de ponta-cabeça, com a ponta vista por um ângulo e a cabeça por outro, com as águas correndo no sentido inverso e com escadas que começam e terminam no mesmo ponto. Obras de arte dignas de um verdadeiro mágico.
Relatividade (1953), M. C. Escher
O mundo mágico de Escher é um ótimo programa para o feriadão de Corpus Christi. Mais informações: CCBB/SP.
Belvedere (1958), M. C. Escher
Site oficial de M. C. Escher: www.mcescher.com
sábado, 18 de junho de 2011
QUANDO A PINTURA REVELA O PINTOR
Autorretrato (1971), de Francis Bacon
Li todos os contos do livro Gran Cabaret Demenzial nos dois ou três dias que sucederam o lançamento. Depois o emprestei à minha namorada, mesmo sabendo que ela o acharia constrangedor. Foi o que aconteceu: suas expectativas puritanas acabaram violentadas pelo linguajar sujo da autora, a amiga Veronica Stigger. Quando nós três nos reencontramos, minha namorada, meio sem jeito, comentou que jamais imaginaria aquilo. Como uma pessoa tão elegante pode escrever tanto palavrão? Veronica riu. Para ela, obra e autor jamais deveriam ser confundidos. Essa é uma tendência que, inclusive, ela parece querer derrubar, pois suas histórias são desconstruções muito bem arquitetadas da ideia de "literatura de entretenimento". Elas incomodam o leitor, deixando-o realmente constrangido. Agora, por mais que Veronica não as queira ver confundidas com sua pessoa, Gran Cabaret Demenzial ainda é resultado de sua pesquisa artística, mesmo que isso não signifique – e nem poderia significar – que livro e autora são uma coisa só. Senão daria medo de chegar perto dela.
Quanto do autor está contido na obra? Essa pergunta alimenta discussões ao redor do mundo e jamais terá uma resposta definitiva. Trata-se de uma daquelas questões primordiais que aceitam diversos resultados, questões do tipo "o que é arte?" e "somos todos um pouco artistas?". Como diz o crítico Frederico Morais, "as questões da arte serão as questões de sempre", e as respostas, sejam elas quais forem, estarão ao mesmo tempo certas e erradas, pois não existe verdade absoluta quando se fala de recepção estética e produção artística. No entanto, existem argumentos que nos levam a acreditar mais em um ponto de vista do que em outro. Isso depende da maneira como cada pessoa aborda o assunto, dos conceitos utilizados e do embate interior entre razão e sensibilidade.
Um belo exemplo disso se encontra no relato O homem que confundiu sua mulher com um chapéu, escrito pelo neurologista Oliver Sacks e publicado em livro homônimo. Ele examina a vida de um músico excelente, professor de universidade, que teve um problema nas regiões do cérebro responsáveis pela visão. Só que, ao invés da cegueira comum, a doença fazia com que o doutor P., como o autor se refere a ele, desenvolvesse uma espécie de cegueira cognitiva, que impedia a compreensão daquilo que era visto, ao ponto de ele afagar hidrantes na rua pensando que fossem crianças e de não ser capaz de distinguir o sapato do próprio pé.
Numa visita à casa do paciente, Oliver Sacks descobriu algo curioso: além de cantar e lecionar, o doutor P. também pintava. Seus quadros, na sala de estar, estavam dispostos em ordem cronológica. Um exame minucioso revelou que as obras iniciais eram naturalistas e realistas; depois, foram se tornando mais abstratas, mais geométricas, até se resumirem a caóticas manchas de tinta.
A esposa do doutor P. entendia aquilo como prova do talento do marido, que renunciara à figuração da juventude e avançara para a arte não-representativa. Para o médico, entretanto, não se tratava de um avanço do artista, mas da sua doença: "Aquela parede de quadros era uma trágica exposição patológica, que pertencia à neurologia e não à arte".
Achei o caso do doutor P. interessantíssimo, pois se tratava de um exemplo claro em que a pintura revelava algo de que nem mesmo o artista tinha consciência. Isso não significa que todo pintor abstrato sofre de agnosia visual, seria um absurdo afirmar coisa assim, basta ver a intensa pesquisa intelectual que impulsionou o modernismo. Só que os quadros do doutor P. poderiam ter sido interpretados dessa maneira pela História da Arte, como a própria esposa o fazia, se não fosse o diagnóstico de Oliver Sacks. É uma questão de ponto de vista que somente se esclarece quando se conhece mais profundamente o autor.
Então, as boas e velhas perguntas retornam: quanto do artista está contido na obra? O que é arte? Somos todos um pouco artistas? Um escritor pode publicar palavrões sem que eles lhe pertençam? O que há por trás das vontades artísticas?
Para alimentar debates desse tipo, Frederico Morais reuniu 801 definições de arte no livro Arte é o que eu e você chamamos arte. Talvez algumas delas nos ajudem a decifrar aqueles mistérios, assim como a suscitar outros. Aos pouquinhos, porém, reflexões sobre a prática artística acabarão por revelar algum muito mais inesperado: nós mesmos.
Ps.: Eu adorei os relatos de Oliver Sacks assim que os conheci. Não apenas por seu talento literário, capaz de levar o conhecimento científico a todo tipo de curioso, inclusive aos mais leigos no assunto – esse neurologista de Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, conquistou meu apreço pela sensibilidade com que cuida de cada caso e pela preocupação com tratar o doente e não apenas a doença. Não à toa, o doutor Oliver Sacks assumiu também o posto recém-criado de artista naquela mesma universidade. Seja pela literatura ou pela medicina, ele deixa claro seu objetivo: promover uma ciência mais emotiva.
Li todos os contos do livro Gran Cabaret Demenzial nos dois ou três dias que sucederam o lançamento. Depois o emprestei à minha namorada, mesmo sabendo que ela o acharia constrangedor. Foi o que aconteceu: suas expectativas puritanas acabaram violentadas pelo linguajar sujo da autora, a amiga Veronica Stigger. Quando nós três nos reencontramos, minha namorada, meio sem jeito, comentou que jamais imaginaria aquilo. Como uma pessoa tão elegante pode escrever tanto palavrão? Veronica riu. Para ela, obra e autor jamais deveriam ser confundidos. Essa é uma tendência que, inclusive, ela parece querer derrubar, pois suas histórias são desconstruções muito bem arquitetadas da ideia de "literatura de entretenimento". Elas incomodam o leitor, deixando-o realmente constrangido. Agora, por mais que Veronica não as queira ver confundidas com sua pessoa, Gran Cabaret Demenzial ainda é resultado de sua pesquisa artística, mesmo que isso não signifique – e nem poderia significar – que livro e autora são uma coisa só. Senão daria medo de chegar perto dela.
Quanto do autor está contido na obra? Essa pergunta alimenta discussões ao redor do mundo e jamais terá uma resposta definitiva. Trata-se de uma daquelas questões primordiais que aceitam diversos resultados, questões do tipo "o que é arte?" e "somos todos um pouco artistas?". Como diz o crítico Frederico Morais, "as questões da arte serão as questões de sempre", e as respostas, sejam elas quais forem, estarão ao mesmo tempo certas e erradas, pois não existe verdade absoluta quando se fala de recepção estética e produção artística. No entanto, existem argumentos que nos levam a acreditar mais em um ponto de vista do que em outro. Isso depende da maneira como cada pessoa aborda o assunto, dos conceitos utilizados e do embate interior entre razão e sensibilidade.
Um belo exemplo disso se encontra no relato O homem que confundiu sua mulher com um chapéu, escrito pelo neurologista Oliver Sacks e publicado em livro homônimo. Ele examina a vida de um músico excelente, professor de universidade, que teve um problema nas regiões do cérebro responsáveis pela visão. Só que, ao invés da cegueira comum, a doença fazia com que o doutor P., como o autor se refere a ele, desenvolvesse uma espécie de cegueira cognitiva, que impedia a compreensão daquilo que era visto, ao ponto de ele afagar hidrantes na rua pensando que fossem crianças e de não ser capaz de distinguir o sapato do próprio pé.
Numa visita à casa do paciente, Oliver Sacks descobriu algo curioso: além de cantar e lecionar, o doutor P. também pintava. Seus quadros, na sala de estar, estavam dispostos em ordem cronológica. Um exame minucioso revelou que as obras iniciais eram naturalistas e realistas; depois, foram se tornando mais abstratas, mais geométricas, até se resumirem a caóticas manchas de tinta.
A esposa do doutor P. entendia aquilo como prova do talento do marido, que renunciara à figuração da juventude e avançara para a arte não-representativa. Para o médico, entretanto, não se tratava de um avanço do artista, mas da sua doença: "Aquela parede de quadros era uma trágica exposição patológica, que pertencia à neurologia e não à arte".
Achei o caso do doutor P. interessantíssimo, pois se tratava de um exemplo claro em que a pintura revelava algo de que nem mesmo o artista tinha consciência. Isso não significa que todo pintor abstrato sofre de agnosia visual, seria um absurdo afirmar coisa assim, basta ver a intensa pesquisa intelectual que impulsionou o modernismo. Só que os quadros do doutor P. poderiam ter sido interpretados dessa maneira pela História da Arte, como a própria esposa o fazia, se não fosse o diagnóstico de Oliver Sacks. É uma questão de ponto de vista que somente se esclarece quando se conhece mais profundamente o autor.
Então, as boas e velhas perguntas retornam: quanto do artista está contido na obra? O que é arte? Somos todos um pouco artistas? Um escritor pode publicar palavrões sem que eles lhe pertençam? O que há por trás das vontades artísticas?
Para alimentar debates desse tipo, Frederico Morais reuniu 801 definições de arte no livro Arte é o que eu e você chamamos arte. Talvez algumas delas nos ajudem a decifrar aqueles mistérios, assim como a suscitar outros. Aos pouquinhos, porém, reflexões sobre a prática artística acabarão por revelar algum muito mais inesperado: nós mesmos.
Ps.: Eu adorei os relatos de Oliver Sacks assim que os conheci. Não apenas por seu talento literário, capaz de levar o conhecimento científico a todo tipo de curioso, inclusive aos mais leigos no assunto – esse neurologista de Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, conquistou meu apreço pela sensibilidade com que cuida de cada caso e pela preocupação com tratar o doente e não apenas a doença. Não à toa, o doutor Oliver Sacks assumiu também o posto recém-criado de artista naquela mesma universidade. Seja pela literatura ou pela medicina, ele deixa claro seu objetivo: promover uma ciência mais emotiva.
sexta-feira, 17 de junho de 2011
"É difícil aceitar, para a arte de hoje, dogmas e diktats ou apegar-se a uma única definição, para, com ela, abranger toda a diversidade da criação plástica. O artista, hoje, é um ser anfíbio, deslizante entre ismos, escolas e tendências. A arte atual é ambígua, híbrida, plural."
Frederico Morais, em Arte é o que eu e você chamamos arte
Frederico Morais, em Arte é o que eu e você chamamos arte
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