Não me recordo da época em que acreditava em Papai Noel. Quando escrevia cartinhas, tentando convencê-lo de que, apesar das artices e malcriações, eu me comportaria melhor no ano seguinte, e não me importaria se recebesse um presentinho de incentivo. Suponho que a argumentação fosse mais ou menos essa. Do mesmo modo, não me recordo de quando deixei de acreditar nele. Havia certas suspeitas, compartilhadas entre os primos, quando passamos a observar a lógica impossível do evento. Quer dizer, Papai Noel visita todas as casas do mundo numa única noite? Se dividirmos essas bilhões de pessoas em 24 horas, quantas ele precisa visitar num minuto? Como pode? Além do mais, ele trabalha só um dia por ano? Consegue ler as cartinhas, escritas em tantas línguas diferentes? Por que algumas crianças ganham presentes melhores do que outras? Por que muitas não ganham presente algum? Cadê as renas? Noel mora no Pólo Norte ou no shopping center? Aquela barba é esquisita, quem se arrisca a puxar?
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Busto do filósofo grego Sócrates |
Já faz tanto tempo! Todavia ainda me recordo de quando voltei a acreditar na bondade do velhinho, e percebi a tolice que foi suspeitar da sua existência. Um despropósito da razão; dessa mesma lógica racional que transforma os homens em padrões de comportamento, dogmas e protocolos. Que só acredita vendo, que exige a verdade absoluta, que toma decisões com base em estatísticas. Que sustenta preconceitos, hipocrisias, burocracias e sistemas obsoletos, ao mesmo tempo em que esvazia símbolos, afetos e intuições. Que desacredita os sentimentos mais naturais do vivo.
Foi ao ler
O Brincar e a Realidade, de Donald Winnicott, que me dei conta do que tinha acontecido. Um trecho em que ele comenta o valor simbólico de certos objetos. Assim: “Se considerarmos a hóstia da Sagrada Comunhão, simbólica do corpo de Cristo, penso que tenho razão se disser que, para a comunidade católico-romana, ela
é o corpo e, para a comunidade protestante, trata-se de um
substituto, de algo evocativo, não sendo, de fato, o próprio corpo. Em ambos os casos, porém, trata-se de um símbolo”. Em outras palavras, determinada coisa pode ser acolhida de maneiras diferentes, dependendo de quem lida com ela e do contexto cultural no qual está disposta. No caso citado pelo psicanalista, a hóstia pode ser uma representação ou o corpo nu e cru; pode existir como realidade ou ficção, conforme seu valor simbólico for evocado.
No caso de Noel, penso que a ordem lógica do mundo nega sua possibilidade de existência. E diminui sua potência simbólica a uma anedota infantil, sustentada enquanto a ingenuidade da fantasia permitir.
Junto isso com um pensamento de Michel Foucault, que propôs a autoria, num contexto mais contemporâneo, não como um lugar estático, mas como uma
função assumida e abandonada conforme convier. Nesse sentido, todos podem ser, momentaneamente, autores dos feitos. Trata-se de uma atitude perante eles; um modo de agir. Não uma questão de posse nem de direitos autorais.
Isso significa que Papai Noel não pertence a ninguém específico, mas à comunidade inteira, e somos responsáveis por ele, se concordarmos que é relevante.
Compreendi, assim, que sua existência não pode se pautar no raciocínio lógico, mas no simbolismo. Claro, pois não se trata de um velhinho de carne e osso, de roupão e trenó, e sim de uma maneira de ser e estar no mundo, de partilhar desse sensível. Uma função político-social que podemos assumir com intuito de transformar a situação vigente. Isso ocorre numa época determinada – o Natal – porque está de algum modo atrelada à tradição, embora possa operar o tempo inteiro, em todos os lugares.
Penso que é dessa maneira que deveríamos falar de Noel às crianças, quando percebemos os primeiros movimentos para desmascará-lo. Explicando que o disfarce não é uma mentira, mas uma fantasia, uma representação de certa vontade transformadora. A evocação do “espírito natalino”. Ímpeto que independe de religião.
Nesse sentido, Papai Noel existe sim. Como uma ficção que criamos para combater a dureza do dia a dia, as desigualdades sociais, a descrença na força afetiva do povo. Se não sobrevive ao avanço da idade, talvez seja porque a ideia de doação como proposta de vida encontra tamanha resistência que se esfacela antes mesmo de adolescer. Imagino que cabe a experiência de tentar mantê-la ativa. E o tempo dirá se vale a pena.
Noel está abandonado à voracidade do capitalismo, deturpado por ações de marketing de todo o tipo, completamente associado ao consumo. Se pudermos reverter esse quadro, me parece que só teremos a ganhar. E não estou me referindo a presentes. Não são eles que importam, afinal. É o ato de se doar.
Quando alguma criança espertinha diz que Papai Noel não existe, respondo que existe sim. Porém não da maneira como a TV ou a “verdade científica” o vendem para nós.
Carl G. Jung explica que, “como diz o cético, símbolos e conceitos religiosos foram, durante séculos, objeto de uma elaboração cuidadosa e consciente. É também certo, como julga o crente, que a sua origem está tão soterrada nos mistérios do passado que parece não ter qualquer procedência humana. Mas são, efetivamente, ‘representações coletivas’ – que procedem de sonhos primitivos e de fecundas fantasias”.
Eu acredito em Papai Noel. E num feliz 2014 a todos.
Ho ho ho.