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domingo, 1 de agosto de 2010

PÁGINAS AMARELAS

Eu estava lendo uma coletânea de contos do Hemingway e faltava pouco mais de trinta páginas para terminar o primeiro volume. Fui almoçar sozinho num café perto do escritório, comi um sanduíche de qualquer coisa, pedi uma bebida gelada e meti os olhos no livro. Fazia, calor, muito calor para o inverno paulistano, e o sol brilhava forte lá fora. Dei sorte de conseguir a melhor poltrona do lugar, que fazia par com uma pequena mesa redonda de madeira, ao lado da porta. As pessoas entravam e saíam o tempo todo, lembro de ter me surpreendido com aquele movimento e imaginei alguma relação com o dia de sexta-feira. As sextas-feiras têm uma atmosfera diferente, a gente se permite o luxo de aproveitar um pouco mais a vida, estender a hora do almoço, caminhar lentamente pelas ruas ou bater papo no café.

Eram pensamentos de segundo plano, desses automáticos que se formam sem a gente perceber e sem entender os porquês. A leitura provoca isso em mim, me faz desviar o foco e perceber a realidade como se a estivesse ouvindo na sala ao lado, ou vendo-a refletida num espelho, estando ali sem estar de verdade, entende? Meu senso crítico abaixa a guarda e já não importa mais quem sou, o que sou ou como devo agir. Faço-me finalmente personagem da história alheia.

Só me dei conta do horário quando a garçonete tropeçou numa ponta solta do carpete, perdeu o equilíbrio e deixou um copo cair da bandeja. Era um daqueles copos altos em que servem soda italiana, todo chanfrado, meio retrô. Gosto desses copos. Ele se espatifou em milhares de pedacinhos brilhantes, provocando um silêncio súbito que só foi interrompido pelo ralhar histérico da gerente. "Vamos, não fique olhando com essa cara de tonta, pega a vassoura e limpa essa bagunça. Vai, vai, vai!"

A garçonete pareceu desconcertada por alguns instantes, até que abaixou a cabeça e sumiu cozinha adentro. A patroa não parecia contagiada pela síndrome das sextas-feiras. Fez questão de deixar à mostra todas as suas linhas de expressão enquanto a empregada retornava com um esfregão e enxugava o terrível desastre.

Isso tudo aconteceu exatamente quando eu terminava de ler o penúltimo conto, "Vinho do Wyoming". O copo quebrado cortou a suspensão de meus pensamentos, olhei o relógio e resolvi voltar ao escritório. A bebida tinha esquentado e, de qualquer maneira, não daria tempo de terminar o livro.

Devolvi o marcador de páginas ao seu lugar, recoloquei os óculos de sol no rosto e caminhei de volta sentindo o doce aroma do fim de semana se aproximando. Apenas mais algumas horas e eu estaria livre, com a batalha ganha. Tentei repassar mentalmente os contos recém-lidos, só que eles já estavam ocultos pela névoa espessa do mundo banal.

Foi então que deparei com uma cena lírica, que veio caminhando lentamente pela calçada até mim, a despeito do tráfego esquizofrênico da rua. Um bairro movimentado, entenda, cheio de prédios que não combinam nada com aquela casinha antiga de paredes vermelhas e rococós brancos, térrea, com um gramado ralo na frente e uma roseira seca no centro. Vidro texturizado na janela da sala, treliça de ferro descascada, alpendre. Provavelmente havia um poço cimentado no quintal dos fundos, escondido sob uma série de varais de arame. Quase na calçada, no lugar onde caberia um carro, sentada numa cadeira de balanço a apenas alguns metros do mundo contemporâneo, estava uma senhora de idade avançada, magrinha, de agasalho e com os cabelos escassos e amarelados presos para trás num coque, a cabeça baixa e o rosto todo dobradinho sobre si mesmo. Em seu colo, envolvido por longos dedos deformados pela artrose, havia um livro, provavelmente tão velho quanto a dona, as páginas amarelas e cheias de manchas. Em sua inércia, compartilhando sozinhos uma unidade de tempo particular, ambos pareciam se completar.

Fiquei pensando no que a velhinha estaria lendo. Após tantos anos de vida, o que o livro teria de interessante para contar? Será que ele permitia à dona sair por aí, caminhando livremente, fora do trilho que as calçadas altas lhe impunham? Ou seria aquele livro seu último elo com o passado, as páginas amarelas que ocultavam a realidade atualizada do entorno e mantinham as memórias vivas, o poço do quintal aberto, a roseira florida?

A velhinha parecia abandonada ao sol. Morava sozinha? Fiquei pensando em seu pai, mãe e irmãos comendo mexericas na mesa da cozinha, cuspindo as sementes numa tigela coletiva. Pensando nos passeios pelos antigos descampados da cidade, ali mesmo, naquele bairro. No dia em que conheceu o marido numa quermesse de São João, brincando ao redor da fogueira. O casamento, a casa simples, térrea, com as paredes vermelhas e rococós brancos, tijolos levantados um a um. A fome ocasional e as brincadeiras inocentes. Fiquei pensando no primeiro filho, homem para agradar ao marido; no segundo, homem também; e na caçula, menininha excessivamente protegida por todos os outros. Fiquei pensando no dia em que percebeu que não teria mais filhos, no dia em que os nascidos saíram de casa, em que perdeu a vontade de cozinhar sempre a mesma comida, dia em que a quitanda virou supermercado e o dono, seu Manuel, sumiu. Quando derrubaram a casa do vizinho, tão agradável que era, e fizeram uma loja no lugar. No dia em que se deu conta de que não conhecia mais ninguém do bairro, que milhares de transeuntes passavam pela calçada de sua casinha, ela os observando por trás do vidro da janela. Estranhos. Pensei no dia em que enterrou o marido, os filhos ficaram um pouquinho e foram chamados de volta às suas próprias vidas. No dia em que percebeu que não sabia usar nada do que via por aí, celular, computador, carros flex. Não sabia nem mesmo para que serviam. No dia em que as frutas e os legumes e as verduras perderam o gosto, e ela não sabia se era culpa deles ou de sua língua gasta.

Então um dia ela despertou às cinco da manhã ouvindo o galo que já não existia há décadas, passou café no coador de pano e comeu torradas com manteiga. Chacoalhou a toalha no quintal e olhou para o céu procurando pardais. Vieram pombos, só que ela já tinha entrado de volta e não os viu. Varreu a casa até sentir as costas doerem, coisa que não demorou muito, então repousou na frente da TV até perceber que era melhor preparar o almoço. Comeu antes do meio-dia, lavou a louça, colocou-a de lado para escorrer o excesso de água, enxugou-a com um pano, devolveu tudo aos armários de origem e pendurou o pano num dos varais de arame do quintal. Ela ainda teria uma longa tarde para enfrentar e precisava de algo que distraísse o tempo. Escolheu um livro entre os poucos que ficavam na prateleira da sala, logo acima do rádio e abaixo dos portarretratos, um livro de páginas amarelas que já tinha sido lido milhares de vezes, e com muito esforço o arrastou até o sol que batia na frente da casa. Colocou os óculos, a cordinha oscilando nos cantos, e se acolheu ao lado da roseira seca, apenas aguardando que a natureza as consumisse de vez. A história era tudo que lhe restava. Fiquei pensando nela e numa porção de coisas assim, e me esqueci do fim de semana que se aproximava. Também me esqueci dos contos do Hemingway que precisava terminar de ler.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

ONDE VIVEM OS MONSTROS?



Comprei esse livro porque assisti ao filme e me apaixonei.
Antes, não conhecia a história, não sabia nem mesmo da existência dela, embora tenha ganhado importantes prêmios desde que foi escrita, em 1963.
O livro também me surpreendeu. Muito.
Primeiro, pela concisão do texto. (como foi que fizeram um longa-metragem a partir desse "parágrafo?")
Depois, pelas ilustrações, riquíssimas. São aquarelas e nanquins realizadas pelo autor, Maurice Sendak, que soube onde colocar os detalhes e onde suprimi-los para a criançada poder sonhar.
Por último, porque encontrei aqui a mesma essência selvagem do filme – ainda que seja essa a original –, a mistura da realidade com a ficção, o universo das fábulas infantis.



Fui assistir ao filme simplesmente porque o pôster atiçou minha curiosidade. E porque a música do Arcade Fire ("Wake Up") escolhida para compôr a trilha me pareceu perfeita.
Ele prometia um visual bonito e algo selvagem. Saí do cinema extasiado.
Dirigido por Spike Jonze (o mesmo de "Quero ser John Malkovich"), a história nos oferece uma série de perguntas cruciais:
1. Até onde temos que ir para entender o mundo em que vivemos?
2. Quem são os monstros de verdade?
3. Será que eles não vivem dentro de nós mesmos?
O filme pareceu forte demais para as crianças, queria ver como elas reagiriam. Mas sessão era legendada, então não deu para saber.
O termo "selvagem" do título original (Where the wild things are) me parece traduzir melhor o sentimento proposto, aquele pulso primitivo do livro, instintivo e natural.
As emoções descontroladas e imprevisíveis dos monstros são muitas vezes assustadoras. Será que já vimos algo parecido por aí?
Com certeza.
O que nos difere dos monstros, afinal?
Nossa capacidade de nos relacionar uns com os outros, talvez.
Nossa capacidade de nos organizar.
Nossa capacidade de amar.
Será?


Clique e assista ao trailer de Onde vivem os monstros

quarta-feira, 28 de julho de 2010

AOS 25 ANOS, COM AFETO



Texto e fotos por Carlota Cafiero
Assessora de comunicação do LUME Teatro


Um clarinetista maluco desafiava os carros que desciam a Rua Monte Alegre, em Perdizes, enquanto uma moradora de rua puxava um trenzinho de madeira atrás de si, falando impropérios aos passantes. Jogado na calçada, um homem de short e camiseta ignorava o frio, visivelmente embriagado. Próximo dele, uma mulher com os cabelos desgrenhados tomava cachaça e contava piadas aos curiosos. Tudo isso aconteceu na noite de segunda-feira, em um mesmo momento e quarteirão, na frente do Teatro da Universidade Católica (TUCA), o que chamou atenção de pedestres e motoristas que, por alguns momentos, viram suas rotinas alteradas pela ocupação CASA LUME, que o LUME Teatro está promovendo em todos os espaços do TUCA, em comemoração aos seus 25 anos de fundação.

As cenas descritas acima foram apresentadas pelos atores Ricardo Puccetti, Ana Cristina Colla, Jesser de Souza e Raquel Scotti Hirson, respectivamente, e fizeram parte da abertura da programação da CASA LUME, que segue até 1 de agosto, domingo, com palestras, demonstrações técnicas, workshops e espetáculos no TUCA - que também está comemorando aniversário, mas de 45 anos.

As cenas não pararam por aí: dentro do foyer do TUCA, mais dois atores do LUME surpreendiam o público com suas figuras: Carlos Simioni vestia o figurino do espetáculo solo "Sopro", dirigido por Tadashi Endo, e se movimentava lentamente ao lado da exposição de fotos "Fluxolume", montada por Juliana Pfeifer. No alto de uma das escadarias do foyer, Naomi Silman apresentava a trágica figura de Lady Macbeth, em um exercício cênico que faz parte da demonstração técnica Não Tem Flor Quadrada. Em outra escadaria, Puccetti fazia um trecho do solo "Cnossos", espetáculo que está há 15 anos em cartaz.



No foyer superior do teatro, mais figuras: Renato Ferracini como o Seu Mata-Onça, de "Café com Queijo", provocava risos nos público espalhado pelas almofadas e sofás do Cantinho da Leitura da CASA LUME - com livros e revistas publicadas pelo grupo junto da editora da Unicamp e Hucitec -, enquanto Jesser de Souza, de chapéu e bengala, subia lentamente a escada como Seu Geraldinho, do espetáculo fora de cartaz "Contadores de Estórias.

Quem conduzia o público entre uma figura e outra era a atriz Silvia Leblon, como a palhaça esfarrapada do espetáculo "Sonho de Ícaro", do LUME. Dessa, forma - e com um guia ilustrado nas mãos - os cerca de 100 espectadores que compareceram à abertura da CASA LUME no TUCA foram apresentados a algumas figuras-chaves que marcaram a trajetória dos 25 anos do grupo.

Para finalizar o evento de abertura, os sete atores retomaram figuras do espetáculo cênico-musical "Parada de Rua", preenchendo todos os espaços do TUCA com canções, sopros e percussão, levando o público para o Tucarena - onde está montada a exposição de fotos "Singularidades Plurais", de Adalberto Lima. Lá, Carlos Simioni (que também é coordenador e cofundador do LUME), ainda vestindo o figurino feito de papel-arroz de "Sopro", falou à plateia sobre o desafio de manter um grupo de teatro durante 25 anos, seguido da fala da musicista Denise Garcia, viúva de Luís Otávio Burnier (idealizador e fundador do LUME) e também cofundadora do grupo.

Após a exibição de um trecho da rara gravação do espetáculo "Duo para Piano e Mímica", com Burnier e Denise, os atores rasgaram a tela de papel e entraram em cena como as exageradas e bem-humoradas figuras dos Bem Intencionados, para apresentar o número musical "Caleidoscópio de Emoções", que faz parte do novo espetáculo do LUME, ainda em processo. Foi dessa maneira afetiva, e rindo de si mesmos, que os atores inauguraram a semana que comemora as Bodas de Prata deste importante núcleo de pesquisa teatral.



Se você ainda não leu, aqui estão meus comentários sobre a abertura do evento.

terça-feira, 27 de julho de 2010

COMO SE DISSESSE ÁGUA

por Eco Moliterno

Fico imaginando como foi o recente encontro entre dois antigos desafetos: Saramago e Deus.

- Seja bem-vindo, José. Surpreso em Me ver?
- Pois estou mais surpreso em ter sido aceito aqui no céu.
- E por que Eu não te aceitaria?
- Porque sempre desdenhei do Senhor e desse lugar aqui, ora.
- Mas é exatamente por isso que você está aqui.
- Para uma vingança póstuma Sua, imagino.
- Não, pelo contrário: para Eu te recompensar.
- Me recompensar? Por ter blasfemado o Senhor e Seu filho?
- Você também é meu filho, José.
- Só acredito vendo o teste de DNA.
- E de todos os Meus filhos, é um dos poucos que nunca Me pediu nada.
- Decepcionei-te?
- Não, nem um pouco. Tanto que até te ajudei a ganhar o Prêmio Nobel.
- Votastes em mim? Não sabia que eras membro da Academia...
- Não votei, mas fiz Meus votos.
- Fizestes votos? Então fraudastes a eleição dos suecos, Gajo!
- Não se faça de tolo, José. Agora não há mais motivos para zombar de Mim.
- Pois bem, então já que o Senhor existe, exijo algumas explicações.
- Chegou a sua hora de perguntar.
- Por que deixastes o mundo do jeito em que está?
- Eu o criei para ser de outro jeito.
- Então o criastes para depois o abandonares?
- Não o abandonei. Eu o deixei para vocês tomarem conta.
- O Senhor o deixou para os banqueiros, para os políticos... não para nós.
- Deixei-o para todos, José.
- Mas por que nem todos têm acesso igual às mesmas coisas?
- No início, tinham. E deveriam ter até hoje.
- Então por que o Senhor não intervém?
- Eu já fiz Minha parte. Agora está na mão dos homens.
- Dos homens milionários norte-americanos, suponho.
- Não, esses ficarão com pouco.
- Bom, se esses ficarão com pouco, então quem ficará com muito?
- Você.
- Eu?
- Sim. Não disse que iria te recompensar?
- Mas por que não recompensas as crianças que morrem de fome na África?
- Porque não estou falando de recompensa material.
- E que tipo de recompensa eu mereço, ora pois?
- A eternidade.
- Como assim?
- A partir de agora, José, você é eterno.
- E o que fiz para merecer isso?
- Você se imortalizou. Simples assim.
- Curioso: precisei morrer para ficar imortal.
- Na verdade, você já era eterno antes de vir pra cá.
- Bom, se o Senhor está falando, quem sou eu pra discordar.
- Engraçado... antes de morrer você discordava bastante de Mim.
- Não me leves a mal, mas agora usarei minha eternidade de outra forma.
- "Não tenhamos pressa. Mas não percamos tempo."
- Conheço essa frase...
- Sim, foi você que escreveu.
- E como a sabes?
- Você deveria saber que Eu sei de tudo.
- Bom, até onde eu sei, acabamos de nos conhecer.
- Pois Eu te conheço desde quando você era serralheiro mecânico.
- E nunca me falou nada?
- Falei sim. Você que não ouviu.
- Se tivesse Te escutado, teria ouvido.
- Se acreditasse em Mim, teria escutado.
- Bom, não vamos transformar isso em uma discussão eterna, vamos?
- De acordo.
- Então o Senhor leu todos os meus livros?
- Todos.
- Ainda bem que não és um crítico literário...
- Pois saiba que gostei bastante do que li.
- Pois não deves entender bem o português, só pode ser.
- Entendo sim. Sou brasileiro, se esqueceu?
- Nunca soube disso.
- É porque você não deve gostar muito de futebol.
- Não mesmo. Mas voltando aos livros, algo que escrevi Te irritou?
- Nada.
- Nem o meu descrédito no Senhor?
- José, Eu nunca fui esse tal Deus em que você não acreditava.
- "Todos os dias tento encontrar um sinal de Deus, mas não encontro."
- Sim, Eu li essa sua frase também.
- E mesmo assim não mandastes um sinal?
- Se você estivesse falando comigo, teria mandado.
- Se soubesse que o Senhor existia, teria falado.
- "Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara."
- O Senhor realmente conhece minhas frases... estou surpreso, confesso.
- De todas que você escreveu, só existe uma que não entendi até hoje.
- Então chegou a Sua hora de perguntar.
- É a dedicatória em seu último livro para sua esposa Pilar.
- "À Pilar, como se dissese água". Essa?
- Exato. O que quer dizer?
- Esquece. O Senhor jamais entenderia.
- Mas agora temos a eternidade inteira para você me explicar.
- Mesmo assim. A eternidade é pouco tempo para o Senhor entender isso.
- Por que?
- Porque o Senhor nunca amou uma mulher.
- José, José... Você não existe...

Post original: CCSP

A QUEM SE INTERESSAR, COM CARINHO

Olha só a carta que Van Gogh enviou a seu irmão Theo em 1882. E não foi só essa não, são milhares, que depois foram reunidas em livros e ganharam fama mundo afora.

Enquanto isso, a gente envia e repassa um monte de e-mails sem graça.


CONSTRUIR ALGO, CHEGAR A ALGUM LUGAR


Foto de Carlota Cafiero

Fomos recebidos por uma mendiga louca que nos ofereceu a cachaça de sua canequinha. O segurança percebeu nossa apreensão, aproximou-se e disse que poderíamos ficar à vontade para perambular pelo lugar. A mendiga veio atrás e sumiu pouco depois, provavelmente porque encontrou outro casal para compartilhar seu vício. Nos dirigimos à escadaria da direita e, ao fim do primeiro lance, encontramos Lady Macbeth prostrada, contorcendo-se de dor e culpa. Foi só então que percebemos como a noite ia ser legal.

Estávamos no TUCA, teatro da PUC-SP, para a abertura do evento que marcaria duas importantes comemorações: os 45 anos do teatro e os 25 anos do grupo Lume, da Universidade de Campinas. De 26 de julho até o próximo domingo, 1º de agosto, haverá espetáculos, workshops, demonstrações técnicas, exposição de fotos, palestras e exibição de vídeos para todos os interessados – confira a programação aqui.

No fim dos degraus, passados a Sra. Laranjeiras (moradora de rua que a atriz Ana Cristina observou para a montagem do espetáculo “Um dia…”, de 2000) e de Lady Macbeth (figura clássica desenvolvida pela atriz Naomi Silman a partir da técnica de Dança Pessoal), encontramos Seu Mata-Onça (Renato Ferraccini) e Cnossos (Ricardo Puccetti), entre outros personagens-chave dessas duas décadas e meia de história. Eram apenas amostras de espetáculos passados, mas a gente se envolvia de maneira tão profunda que se esquecia do contexto e queria participar. Eu mesmo quase fui ajudar o velho Geraldinho (Jesser de Souza) a subir as escadas com sua bengala de pau. Que aflição que dava aquele esforço!

Aos pouquinhos, a sensação de caminhar por um hospital psiquiátrico foi cedendo lugar a uma curiosidade contagiante, uma vontade de tocar e dançar com os sete atores do grupo, de deixar a razão de lado e mergulhar de vez na ficção. Com aquelas encenações acontecendo ao redor, nos sentíamos de fato num enorme palco.

Em seguida, fomos conduzidos à arena do TUCA, onde ouvimos os depoimentos dos dois fundadores restantes do Lume, Carlos Simioni e Denise Garcia (Luís Otávio Burnier faleceu uns anos atrás). Foi espontâneo e bonito. Deve ser difícil resumir uma história tão rica, ainda mais quando se trata de um dos mais importantes centros de pesquisa teatral do mundo. Como núcleo artístico e pedagógico vinculado à Unicamp, o Lume elabora novas possibilidades expressivas e reinventa o teatro a cada novo espetáculo, difundindo esse trabalho também por meio de oficinas e projetos de intercâmbio.

Praticamente sem alteração de integrantes durante todo esse tempo, víamos ali uma grande família. Como confessou o ator Carlos Simioni, depois de vinte e cinco anos de trabalho em conjunto, como é que se deixa o Lume? Não se deixa. Mantém-se criando, ensinando e pesquisando, sem muita certeza de aonde vai chegar. Carlota Cafiero, assessora de comunicação do grupo, comentou deslumbrada a cena em que os atores incorporavam uma banda brega e meio decadente: são os primeiros minutos de um novo espetáculo, e quem diria que eles, conhecidos por encenações sérias e dramáticas, agora fariam uma banda cômica? É mesmo um processo contínuo de construir algo e chegar a algum lugar, como disse Simioni, mesmo que não se saiba muito bem o que e aonde.

É impossível calcular a abrangência do Lume – tanta gente que já passou pelas salas de aula e pela plateia! Só que um dado relevante mostra a influência deles: em 1985, eram o primeiro grupo de pesquisa teatral da região; hoje, são catorze, muitos formados por ex-alunos.

Seja qual for esse “algum lugar” para onde eles rumam, posso dizer que, depois de muita construção e descontrução, o Lume já protagonizou uma conquista especial: vinte e cinco velinhas no bolo. Foi muita honra para mim presenciar essa festa.


O Lume está de site novo. Confira aqui.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

BRINCADEIRA DE CRIANÇA

Ou tão efêmero quanto. Mas quem nunca quis desenhar assim na lousa da escola?









Site do artista: Philippe Baudelocque
WELCOME TO – oh, shit, what happened there!? – LIFE.

FILHOS DO BRASIL, NOTAS RÁPIDAS



• Musical criado e dirigido por Oswaldo Montenegro
• Não possui narrativa linear. Parece mais um apanhado de cenas com um tema em comum – o perfil do brasileiro
• É uma tentativa de compreender a essência do brasileiro, esse pressuposto filho da nação
• Encontrar uma única definição não é um reducionismo perigoso?
• É difícil conhecer os filhos se não sabemos nem quem é o Brasil
• Os esteriótipos do nordestino, do político corrupto, da loira burra, do povo sofrido, do mineirinho da terra, do homem do morro, do hip hop, entre outros, rendem uma leitura ingênua, patética e banal
• O trabalho dos atores e músicos é muito competente
• Música e dramatização se complementam bem
• Em muitos momentos a peça lembra a antiga "Noturno": aparecimentos repentinos em diferentes lugares do teatro, lanternas no rosto, pontos de luz para direcionar a atenção do espectador
• A cena de Léo e Bia é o melhor momento, embora pertença originalmente a outra peça – a lógica fraca e sem graça de Oswaldo dá lugar à lírica
• A defesa do Brasil como território e cultura faz Oswaldo parecer o Policarpo Quaresma da nova era
• Não creio que o nacionalismo seja o caminho para o brasileiro se encontrar. Isso parece retrógrado, principalmente em tempos de universalização, internet, redes sociais internacionalizadas etc. Gosto mais do conceito de "cidadão do mundo", que Alanis Morrissete inseriu em seu último disco
• Desde quando se deve gostar de MPB só porque nascemos aqui?
• "No Brasil não há preconceito, a natureza faz parte do povo, judeus e muçulmanos convivem decentemente, todos se amam e se abraçam nas ruas" são mentiras em que fingimos acreditar
• Discordo conceitualmente de Oswaldo em diversos pontos, principalmente quanto a querer encontrar a essência do brasileiro e a amar incontestavelmente a nação. Tirando isso, a peça é divertida

Ps.: Alguma ligação com o filme "Lula, o filho do Brasil"?
Ps. 2: Lula seria mesmo o único?

sexta-feira, 23 de julho de 2010

AS PEQUENAS COISAS DA VIDA

Encontro muitas pessoas curiosas nas aulas de arco e flecha. Até porque quem pratica arco e flecha no Brasil é índio ou, no mínimo, diferente. E o diferente é sempre curioso.

Por exemplo, descobri ontem que um dos colegas tem o braço torto porque, quando criança, ele o quebrou. Depois, devido a uma calcificação errada, o braço foi quebrado mais nove vezes, exatamente o número de tombos que o menino colecionou. O resultado é que a articulação do seu cotovelo emperrou, o bíceps atrofiou e, para compensar, o corpo desenvolveu uma estrutura diferente. A clavícula direita, por exemplo, ficou grossa, e os músculos das costas cresceram mais do que o normal. É por isso que ele consegue puxar a corda do arco.

Mas não era bem disso que eu queria falar. Acontece que fiquei pensando naquela história do anão sequestrado e, coincidentemente, um colega arqueiro – obstetra nas horas vagas – começou a falar do parto de uma anã. Disse que ocorreu um recentemente no hospital em que trabalha, que isso é raríssimo, talvez até mais raro que enterro de anão, e que o pai também é anão e que, mesmo assim, a criança pode nascer normal. Tem alguma coisa a ver com herança genética e cromossomo modificado. Perguntei se essa criança, especificamente, nasceu anã. Ele disse que não dava para saber. A criança ainda era muito pequena.


Mediations (towards a remake of Soundings), 1979-1986, de Gary Hill

CONVITE PARA UM PIQUENIQUE FLORESCENTISTA



Saiba mais sobre as propostas do artista: Natureza da Arte

RIA COM GORGONZOLA

Citei a criação do queijo gorgonzola no post anterior e me lembrei dessa versão engraçada que inicia o filme Estômago, de Lusa Silvestre, Marcos Jorge e Cláudia da Natividade.

Seria verdade ou ficção? Tanto faz. É apenas uma história em que a gente decide acreditar ou não, conforme convier.

O importante, no final, é ser divertido.



Clique na imagem para ampliar

Leia o roteiro na íntegra: Coleção Aplauso_Estômago

PINTURA NA ÁGUA

Como é que ele descobriu isso? Ou, melhor: o que veio primeiro, a ideia ou a concepção?

Não quero tirar o mérito de ninguém, mas muita coisa na vida é descoberta simplesmente por acaso. Bom, "acaso" se der errado, porque se funcionar é melhor chamar de "sorte".

Dizem que o champagne foi descoberto por conta de uma fermentação indesejada do vinho. E que o gorgonzola foi um queijo comum que embolorou e um monge corajoso – e provavelmente muito faminto – resolveu provar.

No mundo da arte, o acaso também costuma dividir a autoria de muita coisa. Seria o caso da técnica abaixo?



Postagem original: Robi Carusi, em Update or Die

quinta-feira, 22 de julho de 2010


Ubatuba (2009), de João Wainer

FICÇÕES


A traição das imagens (1928-9), de René Magritte
(tradução do francês: "Isso não é um cachimbo.")

Estava almoçando com mais nove colegas do trabalho quando alguém começou a contar o caso de um amigo do amigo do cunhado que, de tão bêbado e drogado que estava, confundiu um anão com um gnomo, colocou-o debaixo do braço e o levou para casa. Eles estavam num ponto de ônibus quando aconteceu. Aparentemente, o anão está processando o raptor até hoje.

Todos rimos por bastante tempo. De repente, um colega me olhou com cara de quem achava tudo aquilo muito suspeito. Como assim? O cara tomou o ônibus com um anão se debatendo e gritando debaixo do braço e ninguém fez nada?

"É tudo ficção", respondi. "O importante é ser divertido".

Às vezes, eu queria que as pessoas não fossem tão racionais.
Às vezes, eu queria que tudo na vida fosse fição.
Às vezes, tenho certeza de que tudo é.
Em certo grau.

FOTOCONSTRUÇÃO


Fotoconstrução 6

PROGRAMAÇÃO DA CASA LUME NO TUCA


Clique para ampliar

Saiba mais sobre o LUME: www.lumeteatro.com.br

terça-feira, 20 de julho de 2010

OLÁ, OLÁ, SEJA BEM-VINDO AO NOVO SITE



Veja só que beleza: o blog ficou maior, com colunas mais largas e bem mais gostosas de ler. As mudanças não foram radicais, é verdade. O conteúdo antigo continua no mesmo lugar, os links, o campo de pesquisa, o sistema de armazenamento... vamos aos pouquinhos para ninguém se perder. Eu tive um professor baiano que falava com aquele sotaque gracioso que só os baianos têm: "Tudo que é gostoso tem que ser feito devagar". Então vamos aproveitar cada etapa do novo blog juntos.

Primeiro, o visual, sempre leve e objetivo. Depois virão as novas páginas, as outras áreas de interesse etc. Por enquanto, quero que todos se sintam em casa como já estavam acostumados. A única diferença é que, para chegar aqui, terão que digitar http://www.artefazparte.com/ na barrinha lá de cima e apertar "enter". Tudo bem, né?

Além do nome, temos também um novo conceito: mostrar como, onde e por que você e a arte se encontram. Leia a apresentação no canto superior direito que fica mais fácil. De qualquer maneira, já adianto: o conteúdo permanecerá do jeito como você gosta, não precisa se preocupar. A definição do conceito é só para eu não perder o foco.

Comece a curtir o novo site lendo meus comentários (abaixo) a respeito da Supertrunfo, banda que acabou de lançar seu primeiro CD no SESC São José dos Campos. Nada melhor do que estrear este site citando um talento recente que vingou.