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quarta-feira, 30 de março de 2016

IMOLAÇÃO DE SI

“Quando o vi pela primeira vez, meu avô estava numa foto em uma lápide. Eu tinha apenas cinco anos de idade, meu pai me carregou no colo e pediu que eu beijasse o seu retrato” (trecho de A imensidão íntima dos carneiros, de Marcelo Maluf).


De onde viemos? Quem somos e por quem somos? O que nos constitui, qual é o nosso estofo? Quanto devemos ao passado, inclusive àquele mais distante, imemorial, cujos pontos de referência se perderam? São questões que a religião tenta iluminar com seus textos sagrados, portanto não é absurdo afirmar que há muito tempo é pela literatura que tentamos desvendar a origem e a essência do ser.

No ensaio intitulado Tradição do imemorável, o filósofo Giorgio Agamben diz que toda transmissão de conhecimento – portanto toda tradição – pressupõe também a transmissão da própria linguagem, e que é por meio dela que o passado chega a nós. Transmitimos, por sua latência, a própria ilatência; alimentamos assim a tradição da transmissibilidade. “Esse legado imemorável, essa transmissão da ilatência constitui a linguagem humana como tal. [...] Por isso a filosofia, que quer dar conta dessa dupla estrutura da tradição e da linguagem humana, apresenta desde o início o conhecimento como preso na dialética memória/esquecimento, ilatência/latência, aletheia/lethe”, explica.

Essa problemática está implícita em A imensidão íntima dos carneiros, embora o romance passe longe daquelas complicadas filosofias. O que Marcelo Maluf fez foi investigar empiricamente o passado da própria família para depois o reinventar num texto leve, simbólico e tocante, que tem algo de fantástico; características antecipadas por Esquece tudo agora, seu livro de contos publicado em 2012.

Finalista do prêmio da APCA e vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, esse primeiro romance do autor trata da relação entre avô e neto, que não se conheceram pessoalmente, dado o falecimento precoce do primeiro. Ainda assim, sua presença é forte ao ponto de convocar uma jornada mística do neto em busca da própria origem; jornada corajosa, pois sua linhagem inteira estaria enraizada no medo. “O medo estava no princípio de tudo”, diz a frase de abertura do livro. “O mesmo medo que hoje ainda vive em mim. Um medo genético passado de pai para filho, de avô para neto”.

O personagem Marcelo Maluf visita o avô em sua infância e juventude, acompanhando seus dramas desde as montanhas do Zahle, no Líbano, até Santa Bárbara d'Oeste, cidade do interior paulistano que o acolheu. O desejo do avô por uma fronteira que barrasse as lembranças trazidas na bagagem se revelou um extenso limiar entre o passado e o presente, do qual ele jamais escapou. Embora a guerra tenha ficado para trás, os horrores persistiram, ocupando outro território da sua experiência, provocando feridas jamais cicatrizadas, por maior que fosse o seu esforço de cauterizá-las na memória.

De humana physiognomonia (1586), de Giambattista della Porta
(ilustração do livro)
O narrador explica: “por todos os filhos, Assaad temia. Por isso não lhes ensinou o árabe, amaldiçoou o Líbano e não lhes contou de sua infância, nem de como Rafiq e Adib foram mortos. Assaad dizia sempre que havia renascido para o mundo dentro do navio cheio de imigrantes que o trouxera para o Brasil. Assaad tem a consciência de que aos filhos negou o seu passado”.

Maluf registra fatos abandonados ao esquecimento e lembranças daquilo que não existiu, ou que não foi conhecido senão por meio de relatos anônimos – cultura ancorada na oralidade, que o autor utiliza como recurso técnico, cujas referências de tempo se perderam e que sobrevivem apenas pela transmissão. Tanto que as vozes do avô e do neto se misturam, abrem mão da identidade, até que o conteúdo da narrativa não pertença mais a ninguém específico, somente à própria história, à voz que não pode calar. O narrador se faz todos ao mesmo tempo em que não é ninguém.

Sem compromisso com o realismo, o autor recria sua própria tradição por meio da literatura. Tampouco se atém à cronologia, o que transforma a narrativa num mergulho livre na memória oceânica, nesse lugar sem começo ou fim estabelecidos, feito apenas de meios.

Como narrar uma história e permanecer fiel à realidade? Como transmitir uma tradição se o próprio linguajar a modifica, traduzindo a experiência em literatura, reinventando a vida no texto? “Penso que Assaad talvez esteja com medo de errar ao narrar o assassinato dos seus irmãos”, diz o neto ao observar as tentativas frustradas do avô de registrar num caderno suas inquietações mais profundas. “Medo de não ser fiel à sua história e que ela se apague, como um sonho que se esquece ao despertar”.

Ao transformar a história da sua família em romance, Marcelo Maluf reafirma que a ficção provém da experiência da vida, portanto toda obra fictícia se baseia em fatos reais, não somente aquela etiquetada dessa maneira com objetivo de realizar certo fetiche dos leitores. Todo livro desse gênero tem algo de biografia. Se a matéria-prima da escrita é a vida, a literatura apresenta sempre uma realidade, ainda que mais ou menos misturada à imaginação. Sua “verdade real” é uma utopia. Temos apenas perspectivas ficcionais sobre uma possível ideia de realidade. Tais fronteiras são quase sempre indiscerníveis.

Em A imensidão íntima dos carneiros, Marcelo Maluf se apropriou daquele artifício para expandir a trajetória de sua história pessoal à apreensão universal. Não se trata de um significado particular: é um romance sobre medo, violência, tradição, memória e esquecimento, razão e sensibilidade, divino e profano, mitos e fatos. Questões fundamentais da existência humana, dispostas num livro que pode ser lido de maneiras variadas; desde a trajetória de um libanês refugiado no Brasil, que jamais conseguiu se livrar dos horrores da guerra, à reflexão sobre o fazer literário e sua relação com a experiência cotidiana, com as vivências do autor e a potência de diálogo delas com o outro.

Diz o protagonista: “eu preciso que as suas palavras venham ao meu encontro. Eu preciso devorar o passado para não ser por ele consumido. Dentro de mim, meu avô, também habita um carneiro”.

Em vez de contar sua história pessoal, a seu modo Marcelo Maluf conta uma história de todos nós. Sacrifica a si próprio como a um carneiro. Sacrifica suas lembranças, sua genealogia e sua identidade para dar sentido a uma existência maior, partilhada num banquete por todos os leitores que a desejarem. Faz isso em nome da literatura.


A imensidão íntima dos carneiros, de Marcelo Maluf
Editora Reformatório, 2015.

Trechos:

"Uma estrela cadente é um segredo que se guarda para sempre nos olhos, pois eles contemplaram o último sopro de uma luz". Essa frase esteve presente na família como uma máxima que repetíamos todas as vezes que víamos uma estrela cadente. "Quem foi mesmo que disse isso?", perguntávamos uns aos outros. Esquecíamo-nos da autoria. Essas palavras tinham o mistério necessário para que se transformassem em uma citação recorrente. (p. 31-32)

Passei horas em frente ao seu túmulo, tentando compreender que jamais tornaria a ver o seu corpo novamente, que ele estaria ali por algum tempo se decompondo e que sua imagem iria aos poucos se tornar a minha memória. Eu teria dele as impressões que, a partir daquele momento, comecei a reinventar para mim. Como nossas vidas juntas e os nossos momentos bons e ruins. Tudo seria transformado em experiência que não sei mais o que realmente aconteceu ou o que eu hoje acredito ter acontecido, ou mesmo tenha inventado. (p. 104)

O berro de um carneiro é a sua imensidão íntima, doada em forma de som para o mundo. Quando um carneiro berra, ele expressa a sua angústia, raiva, medo ou alegria. O berro de um carneiro é a maneira dele de se comunicar com Deus. O cristo berrou: "Pai, por que me abandonaste?" (p. 113)

O autor:

Marcelo Maluf nasceu em Santa Bárbaro d'Oeste, interior de São Paulo, em 1974. É músico e mestre em artes pela Unesp. Autor do livro de contos Esquece tudo agora (2012) e do infantil As mil e uma histórias de Manuela (2013), entre outros. A imensidão íntima dos carneiros é seu primeiro romance. Vive em São Paulo desde 1999.

quarta-feira, 23 de março de 2016

ORGULHO FERIDO


O C-47 que eu pilotava foi interceptado com a comporta aberta, a 37ª infantaria paraquedista saltando para trás das linhas inimigas, ponto-chave na reconquista do litoral norte francês.

– O que você está fazendo?

Não precisei tirar os olhos dos caças que perfuraram a fuselagem; eu reconhecia a voz de vovô pelo sotaque alemão, que meu pai não herdara.

– Brincando de guerra! –, respondi.

– De quem ganhou esse aviãozinho? –, quis saber ele. Nenhum detalhe escapava à revista.

– Do seu Vittorio.

Distração é morte certa, soldado! A missão foi retomada assim que ouvi o clique da fechadura.

Dias depois, encontrei outra miniatura estacionada no aeroporto, sobre a cômoda de meu quarto, lado a lado com o C-47. Havia também um bilhete de vovô, que dizia apenas: "Pilote este Junker 52 da Luftwaffe. É melhor que seu yank".

segunda-feira, 21 de março de 2016

O TEMPO DE CADA UM

Relógio de sol em Tiradentes, Minas Gerais

Penso no meu primeiro relógio "de verdade", que já não tinha pulseira de plástico nem personagem da Disney no mostrador. Presente de minha avó. Não me recordo com exatidão a idade. Dez? Doze anos no máximo. Usava-o todos os dias em todos os lugares, quer dizer, de segunda a sexta-feira na escola, fim de semana em casa de parentes. O relógio escorregava de cima a baixo em meu pulso magrelo. O tempo que marcava não condizia com o meu. Até o dia em que matei aula para jogar fliperama no boteco. Tinha acabado de descobrir essas possibilidades. Cedinho, fazia frio, estávamos apenas eu e os bêbados mais dedicados. Enquanto jogava, outro garoto se aproximou, ficou olhando. Quando apenas ele olhava, puxou do bolso uma faca e levou embora meu relógio. A frágil ingenuidade que me restava acabou ferida de morte. Sem festa nem parabéns, naquela hora abriram para mim as portas da vida adulta. Fui empurrado para dentro, passaram a chave logo depois. Ninguém notou nada diferente, nenhum movimento suspeito. Vivo desde então desorientado, incerto, inseguro; sem saber direito quanto tempo me resta.

sábado, 19 de março de 2016

MÃE É AMOR

VERSÃO1: Minha mãe é amor. Minha mãe é amor quando cozinha. Quando jogo bola dentro de casa enquanto ela pica cebolas. Quando jogo bola dentro de casa contra a sua vontade, quando a desobedeço. Quando quebro seu vaso de orquídeas favorito. Minha mãe é amor quando me surpreende ao lado do vaso, em cacos, paralisado. A faca ainda na mão. O cheiro ácido das cebolas. Amor que explode de raiva, berra maldições, agarra a bola e a apunhala na minha frente. A sangue frio. Meus olhos arregalados se enchem de lágrimas, é o único movimento de que sou capaz. Sem ar, tenho o vazio dentro de mim. Reajo assim àquela violência jamais sofrida. É amor de mãe que a faz paralisar também, que solta a faca no chão. É seu amor, somente ele, que a traz para chorar junto comigo.

VERSÃO 2: Eu queria ficar por perto enquanto minha mãe cozinhava. Ela me mandava ao quintal, eu insistia com a bola dentro de casa. Ela berrava sem largar a faca nem a cebola. Eu chutava a bola. Corria, batia nos móveis, quicava nas paredes. Continuei até atingir seu vaso de orquídeas favorito. Eu não tinha ido ao quintal, agora sequer podia dar um passo. Minha mãe sim, deu todos os passos num só. Chegou transtornada. Era outra pessoa, alguém que eu desconhecia. Tudo mudado, menos a faca, ainda à mão. Minha mãe nunca me batia, era uma santa. Naquele dia ela atirou a cebola no chão, agarrou a bola e a apunhalou sem piedade. Eu era apenas olhos, arregalados; jamais me moveria de novo. Chorar era tudo o que me restava. Não pela bola, mas pela mãe, que não era a minha, não podia ser. Chorei tormentas que lavaram sua maldição. Até ela voltar ao que era, aquela mãe amorosa que me envolveu e chorou comigo. Que eu queria para sempre por perto.

quinta-feira, 17 de março de 2016

DESRAZÃO

Que me desculpem os pragmáticos, não acredito em função da arte. Se me perguntarem para que ela serve, respondo com convicção: para nada. Ela não pertence a esse registro típico do capital nem da razão esclarecida; a arte como produto vale somente para colecionadores e como ganha-pão dos artistas e donos de galeria. Se você não é nenhum dos três, usufrua dessa liberdade. Pois a arte pode se apresentar como produto, mas não é o produto em si; é aquilo que se abstrai dele. Você pode pendurar um quadro na parede, encher a biblioteca de livros, convidar amigos para uma sessão de cinema ou de teatro; pode pagar por isso tudo e acabar sem nada. Quantos colecionadores conheci que possuíam apenas dinheiro transmutado em pintura!

O valor da arte, se é que devemos usar esse termo, está na experiência que ela proporciona, ou seja, está na sua relação com as pessoas. Não podemos dizer que uma obra é melhor do que outra sem determinar o sujeito: essa é melhor para você, esta conversa melhor com as minhas questões, aquela os toca profundamente. Colocadas na balança, todas pesam o mesmo; quer dizer, não pesam nada. Não se consome arte a quilo.

Por outro lado, quanto vale a emoção de encontrar uma obra que lhe desconstrói e apresenta outra forma de pensar, fazer, olhar, existir? Que permite a você reorganizar sua subjetividade? A experiência tem efeito alucinógeno. Uma informação se conecta a outra, produz novos sentidos, apresenta uma realidade que estava ali o tempo inteiro e que você não percebia. Isso é magnífico. Descobre-se outro eu, que chega tanto pela razão quanto pela emoção. Essa é a potência transformadora do conhecimento pela arte.

O nascimento de Vênus (cerca de 1484), de Sandro Botticelli

Quando estive na Galleria degli Uffizi, deparei-me com O nascimento de Vênus, de Botticelli, um clássico renascentista. Eu perambulava pelas salas do museu até que, de repente, estanquei diante da pintura; linda, estonteante, muito maior do que eu imaginava a partir das reproduções nos livros. Junto me veio uma onda de sentimentos, que só então ganharam corpo. Eu estava na Itália, pisando o solo de meus antepassados e de muita gente que admirava. Eu realizava um sonho. Via com meus próprios olhos séculos de história espalhados por todos os cantos e me sentia transbordante. Aquilo tomou uma dimensão que eu não podia controlar e tampouco queria. O que pude fazer foi chorar.

Quanto vale essa experiência? Nada. Não há dinheiro que pague, não se mede isso de jeito nenhum. A pintura pode atingir centenas de milhões de dólares, caso colocada à venda. Para mim, não vale nada. Minha relação com ela é imensurável, incomparável, insubstituível; sem valor de troca nem de uso.

Enquanto soluçava diante da Vênus, uma porção de turistas passava, olhava, apontava um detalhe aqui e outro acolá, fazia comentários em sua língua estrangeira, prosseguia a visita. Sabe qual é o valor daquela pintura para eles? Eu não sei. Mas tenho certeza de que cada um contaria algo diferente, se fosse questionado; algo banal ou impressionante, conforme seu interesse.

Muitos ainda não se deram conta de que a arte tem essa potência de nos deslocar do lugar comum para outra realidade e para outro regime de relação com as coisas. É um privilégio que poucos conseguem realizar. Mudar a chave, experimentar diferentes pontos de vista, aproximar-se do outro, recusar absolutismos e permitir a si mesmo experiências transformadoras. Nestes tempos de crises, isso tem uma importância vital.

A arte oferece a possibilidade de nos afastar dos excessos, da lógica maniqueísta, da percepção condicionada pela mídia e pela moral. No lugar do racionalismo, ela convoca o plano sensível, das poéticas, que também é um meio de apreender o mundo, trocar conhecimento e fazer política. Uma produção impactante ou delicada, abrangente ou profunda, quase sempre ignorada em meio a este automatismo que habitamos e que só existe por nós.

É ignorância enquadrar a arte no sistema de valores cotidiano, que estamos cansados de saber como funciona e que, no geral, só produz violência. Você pode tentar fazer isso, não duvido que consiga, porém nada restará no fim senão um número ou uma razão qualquer. Talvez até o sentimento narcisista de que você poderia ter feito melhor.

Mais uma vez, não se trata de fazer melhor. Trata-se, sim, de se propor a fazer e fazer de fato, de se colocar à disposição da arte e se permitir transformar. Nem sempre é possível, há trabalhos que simplesmente não conectam. Isso significa que não foram feitos para você neste momento, para este você de hoje que, espero, não é o mesmo de ontem nem de amanhã. Pode ocorrer daqui uns dias, pode ser que jamais seja afetado por eles. Tudo bem, alguma arte haverá de lhe tocar.

Quando julgamos a produção de um artista, falamos de nós mesmos e em nosso próprio nome. Quando muitos concordam que é bom, seja porque vende mais ou porque sensibiliza mais pessoas, é provável que ele entre para algum rol, seja de best sellers, seja a História. A essa altura você já supõe o que tenho a dizer: nos termos da estética, tal seleção não significa que o trabalho é melhor do que os outros, por mais que o mercado e a comoção popular insistam no contrário. Não é melhor nem tem maior serventia.

Ao visitar uma exposição de artes, ao ler um livro, ouvir música ou assistir a um espetáculo de dança, tente saber mais sobre o trabalho daqueles artistas. O que os motiva? O que investigam? O que desejam com a obra?

Tente também dispensar o juízo. Sustente esse lugar do não julgamento, afaste as ideias preconcebidas tanto quanto puder; abra espaço na dureza do cotidiano e experimente. Se não gostar, tente descobrir por quê. Sem receio da explicação, ela não precisa fazer sentido. Se o trabalho não lhe disser nada, paciência, acontece. Não há necessariamente nada de errado com ele ou com você. Pode ser que a execução deixou a desejar, pode ser que você não estivesse num dia propício, pode ser que um não interesse ao outro. Tudo bem. Haverá outras oportunidades de viver com arte, se você deixar.

domingo, 13 de março de 2016

INFERNO



O fogo tem esse poder. Destrói a inocência inteira, bastam-lhe poucos segundos. As chamas a consomem, não importa o tamanho, não importa a idade, não importa a natureza. Diante de olhos arregalados resta a impotência de ser e de agir, a dimensão reduzida diante da claridade infinita; cinzas que mancham a eternidade da memória. Resta a certeza da punição desmedida. No terreno devastado brota a culpa. Só ela. A trajetória sem retorno, a rua sem saída. Reclusão, danação. O arredor se agiganta, as paredes se tornam muros, a fiação de arame farpado, as janelas têm grades. Através delas há a decepção do pai, o choro represado da mãe. A desconfiança dos vizinhos, a família que se recusa a acreditar. Dedos apontam em minha direção, ardentes como labaredas, famintos como o inferno. Atiçam-me a carne, açoitam-me a consciência; as bolhas estouram a pele, o sangue irrompe e se esvai de uma só vez na tentativa inútil de apagar a cena, abafar a tragédia, reverter a brincadeira inconsequente. Aquele eu não existe mais, nada dele sobreviveu. As asas queimaram, a queda iminente anunciada pelas sirenes cada vez mais altas. Nada direi em minha defesa. Não há palavra, tudo se foi. Queimei a língua, queimarei a alma. Nada se sustentará. Desabo diante da verdade. Desfaço-me em fragmentos minúsculos. Recolhem os indícios do que fui. Varrem o pó para o calabouço da humanidade. Frio. Faz muito frio aqui.

domingo, 6 de março de 2016

DISSABORES

O colesterol de minha avó chegou a 800. Nem os médicos acreditaram, segundo relato de meu pai. Meu pai gordo adorava os bifes que só minha avó sabia fritar. Os bifes nadando em óleo fervente, os gomos de batata encharcados, o arroz cozido em banha de porco como ela aprendera a fazer ainda menina na roça. Isso tudo deslizava com prazer goela abaixo de meu pai, eu sabia porque via por entre seus dentes ferozes enquanto ele mastigava com vontade, a mandíbula incansável, como se alguém fosse lhe apanhar a comida antes que se desse por satisfeito, como se jamais pudesse se satisfazer.

O cheiro da cebola amolecida na gordura anunciava o almoço para a vizinhança inteira, mais ainda quando minha avó virava sobre ela uma xícara de vinagre de vinho tinto. Então o caldo gritava na panela como se o torturassem. Aquela essência da cozinha de minha avó me impregnava as roupas, os cabelos, a minha própria carne tenra. Não importava aonde corresse eu continuava a senti-la em redor.

A rusticidade daqueles bifes era demais para mim. A carne acinzentada, por descuido tostada em vários pontos, retorcida de agonia. Aquele sumo que escorria em sangue quente, enquanto os soldados rasos de minha boca tentavam a todo custo esfacelar a resistência do pelotão. Eu mastigava e mastigava e mastigava até que restassem somente talhos de tecido fibroso, invencíveis, intragáveis; mastigava até doerem os músculos do rosto, ao ponto de os bifes encouraçados terem somente gosto de minha própria saliva.

Queria largar aquela provação e afundar os dentes até as gengivas no pudim de leite que só minha avó sabia fazer, servido como um céu após o purgatório salgado. Pudim macio e convidativo, sedutor como o próprio nome sugere, "pudim deleite". Que minha avó dividia conforme as visitas. Fôssemos apenas eu, meu pai e ela, a sobremesa seria partida em três pedaços gigantescos, do tamanho quase compatível ao da minha gulodice inocente, do tamanho exato do diabetes de vovó, que papai dizia chegar ao teto. Um pudim de leite que ia até o teto, não tão alto assim, da sua casinha humilde.

Ao contrário dos bifes, o pudim era cremoso, irresistível às colheradas, tão leve quanto pode ser um pudim de leite gordo; furadinho por toda a extensão, não importava onde eu lhe tascasse os dentes ele estaria repleto de caramelo engrossado ao ponto de fio, nem espesso nem ralo demais. Muita calda abaunilhada a lambuzar meus lábios, por vezes meus dedos e minhas roupas. Eu dava colheradas maiores porque queria mais e mais, eu queria mastigar o pudim inteiro de uma só vez, senti-lo acariciar os cantos todos da boca, deitar a língua em seu sabor familiar.

Talvez eu ainda viesse a compreender por que meu pai amava aqueles bifes; talvez chegasse o dia em que eu também preferiria os bifes ao pudim. Isso não tem receita. De qualquer modo, não tive chance de prová-los por muito tempo. O bom senso diria que me foi oferecida uma vida saudável, sem aquela gordura toda, sem açúcar em demasia. Tendência dos dias atuais, das capas de revista. Não tenho certeza se concordo, para se sincero. Para mim, são dissabores. A cada exame médico que me reafirma a boa saúde, sinto gosto de nada. Eles não estão absolutamente corretos. Não há como ser saudável com essa saudade doída que sinto da minha avó, de seus quitutes, de seu sangue mineiro.

sábado, 5 de março de 2016

Azulejaria com cozinha e caças variadas (1995), Adriana Varejão

o tempo rasga com violência
a carne exposta
ao relento, desalento
rápido demais para a não-máquina

o mundo resta inerte
esfacelado em flashes, fragmentos
daquilo que foi, que já não é quase
desejo de recompor vida nova

quase porque não chega
o progresso lhe deixa para trás
abandonado, órfão, desterritorializado
sem teto, sem chão, sem tempo

quinta-feira, 3 de março de 2016

LINGER*

"Do you have to let it linger?", insistia a vocalista da banda. Cranberries. É o nome da banda. The Cranberries. O nome da vocalista eu não sei. Engraçado isso, só agora me dou conta. Ouvi aquela música pela primeira vez no pé da serrinha que divide as cidades de Caraguatatuba e São Sebastião, no litoral norte de São Paulo. Minha memória fica ancorada nos ouvidos, aguardando a hora certa de navegar; tal como os barcos de pescadores naquele canto da praia. Lembro da música e no mesmo instante desemboca a viagem, o local exato da estrada, a curva que terminava de frente para o cais. O céu azul claro praticamente sem nuvens, o sol muito brilhante, a brisa morna a entrar pela metade aberta da janela. Lembro da sensação de dirigir aquele carro, vencer a infinidade do asfalto; minha mão apoiada levemente na perna da namorada, sentindo na pele o seu descompasso com a pulsação da música. Eu apreciava cada movimento seu. Ela não. Minha namorada não gostava do calor, da umidade, dos insetos, da pele pegajosa de suor misturado ao protetor solar, dos cabelos desalinhados ao vento. De minha mão em sua coxa. Uma composição dissonante, um dueto sem aplausos no final.

A música toca minhas lembranças; elas vêm e vão como ondas no mar. Têm o mesmo ritmo pacato. A vida demora a chegar ao grand finale.

Decido buscar a tradução e não me surpreendo com o que encontro, tantos anos depois. "Você precisa prolongar isso?", questionava o refrão. E desenterra da memória um baú de sentimentos bem ou mal resolvidos.

Não me surpreendo com a letra da música porque o tempo transforma lembranças em coincidências. Conexões, acasos, destino, chame como quiser. É dele que emerge o sentido profundo daquilo tudo que se passou, que parecia não existir mais.

Desejo cavoucar um pouco mais as areias do tempo, descobrir o nome da vocalista dos Cranberries, ver uma foto sua. Por enquanto, ela tem o mesmo nome daquela antiga namorada, da época da viagem a São Sebastião. Em minha cabeça, o rosto delas também é idêntico. Não parece muito justo com a realidade.


*Durante os meses de fevereiro e março de 2016, estou participando da oficina de criação literária oferecida por Marcelo Maluf na Casa Mário de Andrade, em São Paulo. O título explica seu propósito: "Imaginar, lembrar e narrar - a arte da ficção". Postarei aqui alguns exercícios produzidos no curso, que poderão ser localizados por meio do link "Memória e  Ficção" na nuvem de tags (da coluna ao lado) ou clicando aqui.