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sábado, 22 de junho de 2019

EMOÇÃO ESTÉTICA


Edgar Morin entra pela plateia, não pelo palco, e de imediato começam os aplausos. O teatro do Sesc Pinheiros, em São Paulo, está lotado. O intelectual francês completará noventa e oito anos de idade daqui vinte dias. Pessoas de várias gerações se levantam e o aplaudem de pé durante um longo tempo. Emocionado, ele acena de volta. Então a sua emoção contagia a todos.

Li Morin pela primeira vez durante a faculdade de comunicação. Dois livros seus, na época, foram os que mais me marcaram, e os tenho ainda hoje. Falam sobre cultura de massas no século XX, “espírito do tempo”, indústria cultural e as diversas crises socioculturais dos anos 1960 e 1970. Entre o mestrado e o doutorado, interessei-me por suas ideias sobre o pensamento complexo, em especial enquanto método de pesquisa. Li trechos de seus diários já publicados e estou curioso a respeito de A aventura do método, que deve sair ainda este ano. Tenho certeza de que a maioria do público presente nessa conferência oferecida por Morin no último 18 de junho tem também alguma relação intelectual e afetiva com a sua extensa obra, que soma mais de trinta livros sobre sociologia, epistemologia, educação, filosofia, entre outros assuntos relacionados com o conhecimento.

Após uma breve apresentação de Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc São Paulo, Morin sobe ao palco. Tira o relógio do pulso e o deposita no atril. Fala de pé ao longo de quase uma hora, a princípio em português, depois num francês gesticulado, vivaz. Quase não recorre às anotações.

Seu argumento é um tanto simples: a emoção estética, conforme explica, pode ser experimentada por qualquer pessoa em situações não premeditadas, como ao contemplar uma paisagem ou encontrar-se com um conhecido. Não se trata de uma exclusividade das artes, mas de uma qualidade poética da vida. Ela também independe de cultura, etnia ou classe socioeconômica, sendo natural a todos.

As artes, por sua vez, suscitam tais emoções, que servem à sua comunicação, ao encantamento ou à inquietude. Segundo Morin, além do caráter afetivo, a emoção estética provinda das artes tem também uma força cognitiva. Isso significa que o contato com a literatura, a música, o teatro etc. pode resultar num conhecimento acerca da humanidade, do mundo e da vida em geral; um conhecimento específico que devemos valorizar tanto por sua singularidade quanto por sua potência.

Ao lermos um romance de Dostoievski, por exemplo, podemos conhecer a Rússia de sua época de maneira diversa – e não menos verdadeira – do que ao ler uma análise histórica de cunho científico. Ao ouvirmos um concerto de Schubert, é possível reviver os dramas do músico e de seu contexto. Ao assistirmos ao Marlon Brando em O poderoso chefão, é possível nos compadecer por um criminoso violento que é também um devotado pai de família, e assim apreender que as contradições e os paradoxos do ser humano são muito mais complexos do que os estereótipos, os preconceitos, as polarizações que empobrecem o pensamento e afastam as pessoas.

Com o mundo em constante compartimentação, faz-se necessário criar vínculos e estabelecer conexões. Porém as ditas “bolhas culturais” que habitamos – agrupamentos formados segundo familiaridades, afinidades ou interesses comuns – oferecem poucas surpresas ou situações inesperadas, além de nos isolarem da rica diversidade da vida, como se assim nos protegessem.

Em contrapartida, as artes tendem a nos colocar em contato com o diferente, o inusitado, o estranho, e com eles precisamos nos reaver. Acho bonito o sentido não literal desse termo, reaver, que tem menos o caráter de posse do que o de relação e implica um trabalho de lidar com o outro, vê-lo de novo e vê-lo com cuidado, e procurar maneiras de com ele fazer as pazes, gostando ou não, concordando ou divergindo, mas o respeitando, reconhecendo a legitimidade da sua diferença e assegurando o seu direito de ser como desejar. Daí a impossibilidade de separar estética e política.

Assim como a poesia advém do esforço de fazer as palavras abandonarem seus sentidos prosaicos para assumirem outros singulares, a experiência estética é essa força que nos arranca da banalidade e confere à nossa existência uma qualidade poética. Tamanho deslocamento pode ser tão maravilhoso quanto terrificante; não à toa as artes muitas vezes incomodam, ferem valores morais, desconstroem formas de ver, de pensar e de dizer. Lidar com elas é tão necessário quanto lidar com quaisquer emoções. Precisamos a todo o momento nos reaver com as artes. A experiência estética é, assim, um aprendizado constante. É também um aprendizado daquilo que só pode ser apreendido por meio da estética.

Edgar Morin sabe disso muito bem. Perto de completar um século de vida, continua a pesquisar, conhecer, dialogar e se abrir à música, à literatura, às artes visuais, à fotografia, ao cinema, ao teatro etc. Justamente por isso parece tão vivo enquanto palestra acerca dessa cultura, que chama de humanista porque apenas o homem é capaz de produzi-la e porque, com ela, pode-se ver além da própria humanidade.

terça-feira, 30 de abril de 2019

EDUCAÇÃO DESVIANTE

Vamos (re)descobrindo Fernand Deligny aos poucos, como uma vida retirada de sob os escombros da educação. No Brasil, temos dois livros traduzidos nos últimos anos, publicados pela n-1 edições. Alguns trabalhos estéticos de sua autoria ou em referência a Deligny fora exibidos nas Bienais de São Paulo em 2012 e 2014. Sua experiência na França desde meados do século passado com pacientes psiquiátricos, jovens inadaptados e crianças autistas é fundamental ao debate de hoje sobre escolas militares, diminuição da maioridade penal e cortes de investimento em programas da interface arte-saúde, entre outros endurecimentos socioculturais que demandam nossa resistência.

O livro intitulado O aracniano e outros textos chegou por aqui em 2015 e, como o título sugere, reúne quinze ensaios de Deligny relacionados, em especial, à sua experiência-limite em Cévennes, no centro-sul da França, onde montou residência para acolher e conviver com crianças autistas.

Acabo de ler Os vagabundos eficazes, segundo livro traduzido pela n-1 e publicado aqui no ano passado, setenta e dois anos após a edição original. É parte da primeira produção do educador e trata, basicamente, da sua atuação como diretor do Centro de Observação e de Triagem (COT) da região do Norte, onde recebia jovens delinquentes à espera de decisão judicial. Com um misto de revolta, ousadia, convocação social, crítica, coloquialismo, método e esperança, o autor debate a qualidade das medidas reeducativas em voga à época.

Jovem com centáurea (1890), de Vincent Van Gogh
São jovens com histórias diversas reunidos sob o estigma de “inadaptados”: anormais, desviantes, com transtornos de caráter, abortos sociais, vadios, miseráveis, ralé ou apenas “difíceis”, que são levados ao centro por autoridades. Espera-se que ali sejam punidos, transformados, talvez simplesmente ocultados, porém Deligny coloca isso tudo em questão, a começar pela moral que pretende determinar a forma de vida dessa juventude, acarretando em sofrimentos das mais diversas ordens.

“A correção moral”, acusa ele. “Como se as crianças tivessem em algum lugar um pedaço de não-sei-quê, direito em uma, torto em outras, e que poderia ser modelado vergando-lhes as costas a golpes de exemplos ou dando-lhes bolachas amanteigadas nos dias de visita ou de grande festa”.

A isso Deligny contrapõe uma ética do cuidado; preocupa-se menos com a integração dos jovens a um sistema ávido por explorá-los do que com manter viva neles certa rebeldia – essa “improvável ousadia de manifestar transtornos de comportamento”.

Sabendo que educadores bem orientados por instituições tradicionais “regurgitam todas as formas educativas às quais eles próprios foram submetidos”, Deligny faz uma escolha inusitada: recruta pessoal não qualificado nas periferias próximas. Pessoas que, até então, registravam queixas contra os delinquentes do COT e os queriam distante. Convoca, assim, uma responsabilidade comunitária sobre aqueles jovens, desmontando com isso a lógica da mera exclusão/inclusão social.

São os operários, artistas e revolucionários mencionados no subtítulo do livro, “donos de uma moral completamente desarticulada”. Vagabundos eficazes não porque fazem cumprir normas impostas verticalmente, mas porque, tão inadaptados quanto os jovens de que cuidam, são atentos ao contexto e capazes de criar circunstâncias para o convívio horizontalizado. Apenas daí é possível obter algum pertencimento social.

Mais interessante do que os breves trechos iniciais e finais do livro é, sem dúvida, o longo Diário de Bordo que os separa, escrito entre janeiro de 1945 e maio de 1946, no qual o autor narra uma porção de acontecimentos vivenciados no COT. É o seu olhar perspicaz e a sua elaboração poética que geram um pensamento estético e político acerca da educação.

Chama atenção o lugar que reserva aos artistas entre os seus monitores. Também não se trata de profissionais bem cultivados no meio, mas daqueles cidadãos desequilibrados que, como Pestalozzi, Rimbaud e Van Gogh, estão “em busca de uma moral que não seja uma impressão morta”. Pessoas cuja vida é marcada pela inquietude e recusa à domesticação, que canalizam essas forças para a concepção de uma obra marcante – revolucionária no melhor sentido do termo, pois livre da romantização posteriormente associada a ela. Artistas que têm, no fazer cotidiano, a resistência e a insurgência. E que valorizam, incentivam e dão lugar às ousadias que escapam do papel na direção da vida, preservando a espontaneidade própria da infância saudável.

Deligny obteve resultados positivos, e seus métodos eram permissivos com aqueles a quem os demais cidadãos desejavam punições severas. Na contramão da brutalidade social que desejava encarcerá-los, desenvolveu um trabalho para ensinar os jovens a viver, não a morrer. Entretanto, destreza profissional era, e por vezes ainda é, mostrar às pessoas o que elas esperam ver, não uma perspectiva nova, corajosa e melhor sob vários aspectos.

Apesar do inédito sucesso, em especial quando comparado a casas de detenção convencionais, o COT foi fechado em 1946 e teve todos os seus educadores dispensados por “burocratas pequeno-autoridades” que, na maioria, jamais puseram os pés lá. Falou-se que Deligny comandava “experimentação sociológica, não reeducação”. Incomodava-os saber que o centro era um pedaço do mundo comum, não uma heterotópica “incubadora artificial coletiva” em que prematuros sociais viviam sob rígida disciplina. A máquina de sofrimento não podia aceitar caminho desviante.

terça-feira, 2 de abril de 2019

EQUILÍBRIO INSTÁVEL

Dois trabalhos do artista suíço Paul Klee me chamaram a atenção durante a visita à mostra Equilíbrio instável, em cartaz no CCBB São Paulo até 29 de abril. O primeiro é uma água-forte de 1903; o segundo, feito com cola colorida sobre papel, data de 1940. Trinta e sete anos os separam, portanto. E nesse meio-tempo: duas guerras mundiais, dezenas de movimentos artísticos de vanguarda, ascensão e queda de instituições, culturas, projetos sociopolíticos, entre inúmeros outros acontecimentos que marcaram a primeira metade do século XX na Europa.

A gravura em questão não chega a vinte centímetros de altura. Apresenta uma mulher magérrima, algo deformada, com ancas deslocadas que lembram as de um centauro; tem o corpo retorcido pela vida até uma forma de quase morte. Nua, de pé num cenário apenas sugerido com traços mínimos onde nada há para ver, ela é quase uma entidade. Desenha com os braços amplas curvas no ar; dança na aridez do papel em branco, exultando a sua potência criadora. De suas mãos caem pequenos pontos negros que flutuam e desaparecem. São sementes retiradas da bolsa que ela traz à cintura, atada por uma cinta larga.

Mulher semeando ervas daninhas (1903), de Paul Klee
A imagem se chama Mulher semeando ervas daninhas. É um plantio contraprodutivo, verdadeiro disparate se pensarmos em termos de agricultura com intuito capitalista. Um plantio delirante, provocador, imprevisível. O que pretende? Afirmar que figuras miseráveis espalham pelos campos elementos danosos? Duvido. Paul Klee não é literal como um panfleto. O crítico italiano Mario De Micheli, ao comentar os variados protestos do expressionismo alemão, diz que Paul Klee tende a se exprimir sempre por alegorias, analogias e símbolos. A curadora Fabienne Eggelhöfer, por sua vez, deu no CCBB grande destaque à seguinte declaração do artista: “a arte não reproduz o visível, ela torna visível”.

Seria fácil afirmar que a gravura denuncia a disseminação de maldades. Para mim, ela provoca a pensar o que é danoso, a quem e por qual motivo. Klee provém de uma escola crítica ao positivismo. “Daninha”, afinal, implica um ponto de vista a respeito das ervas; são consideradas assim apenas porque preferimos que outras se desenvolvam naquele terreno. Caso contrário, são plantas quaisquer dispostas na natureza.

O próprio gesto da semeadora cria tensão com o título: é um movimento delicado, nada ameaçador. Contradição sugestiva. Não bastasse isso, a mulher habita um deserto. Ali, as daninhas serão as únicas ervas; sem elas, o ambiente permanecerá vazio, numa improdutividade radical.

Depois do ato de violência (1940), de Paul Klee
O segundo trabalho que me instigou se chama Depois do ato de violência. Resume-se numa imagem abstrata de contornos marcantes e cores sem gradientes. Lembra um vitral de igreja gótica, mas é difícil identificar ali qualquer referência a tempo, espaço, enredo ou personagem.

Uma série de outros trabalhos de Klee apresenta o ato de violência em si, como os seus desenhos de observação das primeiras manifestações fascistas semeadas pelo governo alemão, que germinavam nas ruas na forma de perseguições a judeus, artistas, comunistas etc. Atitudes, a princípio, da melhor estirpe moral, que acabaram por se revelar uma praga inextinguível.

Os atos de violência costumam ser evidentes; nós é que muitas vezes nos recusamos a vê-los. Como imaginar, entretanto, o seu momento posterior? Em outras palavras, como atravessar o instante do ato e elaborar o que vem a seguir, que é quase sempre algo arrebatador, cujo mero relato jamais daria conta? Como fazer dessa força uma obra de arte?

Paul Klee não parece mesmo preocupado com reproduzir o visível em suas criações. As obras no CCBB nada têm de realistas; elas apresentam conflitos de maneira torta, que não se esgota com rapidez nem com facilidade. Ainda assim, ele fala de uma realidade tão sua quanto nossa. Dá visibilidade a questões modernas que persistem no contemporâneo, como se um século não bastasse para resolvê-las. Mostra, de fato, como o aparente equilíbrio da nossa existência é instável e pode se transformar de uma hora para a outra.

A retrospectiva mais completa do artista já realizada na América Latina apresenta cento e vinte e três obras pertencentes ao acervo do Zentrum Paul Klee, instituto responsável por cuidar de seu legado. Não é visualmente deslumbrante porque traz um grande número de esboços e estudos. Porém nos ajuda a conhecer melhor o intrincado mundo desse artista, seus processos criativos e as questões que se propôs investigar. Trata-se de uma excelente história da arte e, sendo assim, uma história da humanidade.

quarta-feira, 6 de março de 2019

PEDAGOGIA DA AUTONOMIA


“Minha mãe só me faz estudar. Não adianta estudar se a pessoa é burra”, reclamou uma garota à amiga que a acompanhava no metrô de São Paulo. Tinham uns treze anos e mochila nas costas. Eu estava próximo, lendo a Pedagogia da autonomia, portanto a situação não podia ser mais contraditória. A pessoa em questão era a encarnação do fatalismo neoliberal que Paulo Freire critica em seu livro. Estava bem ali, diante de mim, a comprovar que a teoria se fundamenta na realidade.

Eu ainda não tinha lido um livro inteiro de Paulo Freire. Sentia uma vergonha danada por desconhecer a obra do intelectual brasileiro mais influente nas ciências humanas – é o terceiro autor mais citado em trabalhos científicos da área em nível mundial, batendo gigantes como Karl Marx e Michel Foucault, por exemplo. Fiquei ainda mais curioso por conta das faixas de protesto que, a favor da candidatura de Bolsonaro, pediam o fim da “doutrina Paulo Freire”.

Resultou que Pedagogia da autonomia é um dos escritos ensaísticos mais bonitos que já li. Sensível, esperançoso e necessário, como parece ser toda a obra freireana. Também ficou claro o motivo da oposição reacionária a ele: sua “prática educativo-progressista” se põe contra toda discriminação, aposta no diálogo entre pessoas com concepções de mundo diversas e trabalha a inserção do educando na realidade, e não a sua mera adaptação a ela. Segundo Freire, somos condicionados às formas da vida, então somos também capazes de mudar tal condição – justamente o contrário daquele fatalismo mencionado há pouco, que implica a subordinação às situações vigentes. Diferente do que acreditava a garota no metrô, para Freire ninguém é e permanecerá “burro” e ponto final: nada é determinado, tudo pode ser modificado.

Vem daí a noção de autonomia, associada à formação dos estudantes, e não à sua domesticação. Formar é muito mais do que treinar habilidades técnicas. De acordo com o autor, implica reforçar sua capacidade crítica, sua curiosidade epistemológica, sua insubmissão. Não é o educador que molda os educandos – seu papel é oferecer condições para que eles encontrem suas próprias formas de ser, o que requer tanto uma ética quanto uma estética. De modo que se assumam como sujeitos do próprio saber e das responsabilidades subsequentes.

Esse é o ponto em que começa a incomodar os reacionários. Porque, ao deixar de ser objeto de um governo, o sujeito assume o poder, o direito e o dever de agir para transformar a sua realidade. Ele não será vítima da fatalidade que o quer apático. Aprender a pensar criticamente é um gesto emancipatório de empoderamento e insurgência contra todo tipo de violência governamental; não apenas contra políticas de Estado opressoras, mas também formas menos evidentes de governança sobre a vida.

Freire defende a rebeldia legítima das minorias, fazendo-as perceber que podem transformar a história, se assim quiserem. Rebeldia que tem potencial para revolucionar e assim necessariamente perturbará a ordem em vigor, a qual o conservadorismo pretende manter a todo custo.

É muito bonito porque incentiva o pulso da vida que pode e faz. Vida que opera os próprios desejos em vez de esperar que sejam realizados por seus representantes.

A fome, por exemplo, não é uma fatalidade, mas uma imoralidade, diz Freire. É imoral que haja fome nos tempos atuais. Se deixamos que aconteça é porque não assumimos responsabilidade sobre ela. O rompimento de barragens é uma imoralidade; a corrupção, a discriminação e a repressão idem. O desmanche dos sistemas educativo, previdenciário, trabalhista e de saúde. Se aceitamos tamanhas imoralidades é porque nosso desejo foi colonizado por uma lógica que privilegia o aspecto financeiro em detrimento do desenvolvimento social e nos destitui da condição de sujeitos políticos.

Daí a impossibilidade de a prática educativa ser neutra, como querem iniciativas do tipo “escola sem partido”. Já em 1996 Paulo Freire alertava para o fato de que um espaço pedagógico assim é aquele em que a ideologia dominante treina os alunos para práticas apolíticas, como se a maneira humana de estar no mundo fosse ou pudesse ser neutra. O professor em sala de aula não deve ser omisso, mas um sujeito de opções, capaz de analisar, optar, romper.

No lugar da pretensa neutralidade, Paulo Freire propõe o respeito entre educador e educando, de maneira que opiniões divergentes possam se ouvir e se deixar afetar uma pela outra.

A pedagogia da autonomia é toda fundamentada na liberdade, na dignidade e na escuta dos envolvidos. Não confunde autoridade com autoritarismo. Mais do que conteúdos decorados, ensina a manter uma postura vigilante. E acredita na educação como meio de problematizar e reverter ordens injustas.

Se por vezes parece utópica, sonhadora ou “otimista”, como o próprio Freire diz, nada tem de ingênua. É uma proposta baseada na vivência e no exercício da pedagogia. É plausível, pragmática, passível de ser implementada. Se a julgamos idealista – ou pior, “ideológica”, como alguns sugerem – talvez seja porque nós, capturados pela subjetividade capitalística, sustentamos certa desesperança.

Uns anos atrás, ao término de uma disciplina de pós-graduação na USP com a qual colaborei, eu e a docente responsável pedimos aos estudantes que avaliassem o semestre, tanto em relação ao conteúdo quanto às próprias trajetórias. Uma moça deu um depoimento que me marcou profundamente. Sentia-se burra no início do curso – foram estas as suas palavras. Não compreendia os textos, não acompanhava os debates, cogitou desistir. A mãe fez com que sustentasse a insegurança e persistisse, pois acreditava na capacidade da filha.

Hoje percebo que a estudante não desistiu também porque encontrou um contexto de sala de aula que a acolheu e ofereceu condições para enfrentar o novo. Uma abertura que possibilitou o desenvolvimento da sua autonomia. A estudante terminava o semestre mais forte, satisfeita com o que experimentara. Não sei dizer como se apropriou dos conteúdos da disciplina, e na verdade isso não me preocupa. Importante foi ter revertido o fatalismo que se impunha e, com isso, exercido o corajoso gesto de formar-se.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

ALGUMAS VEZES PERAMBULAR PODE SER ARTE

A line made by walking (1967), Richard Long

Não encontrar o caminho numa cidade requer apenas ignorância, enquanto perder-se requer uma preparação, escreveu Walter Benjamin. Com as atuais tecnologias de geolocalização, entre outras, não encontrar o caminho é cada vez mais raro, quem dirá errar. Uso este termo apostando em sua ambiguidade, ou seja, em seu sentido de “não acertar” e, em especial, de “perambular”. Existe aí uma diferença fundamental: quem não acerta tinha, a princípio, um alvo, um objetivo, um ponto a ser encontrado; quem perambula tem como propósito somente a própria perambulação. Se pensarmos com mapas, diríamos que o primeiro sujeito traça uma rota e segue instruções no encalço de sua meta; o sujeito que perambula, em contrapartida, media o embate entre desejo e situação, criando uma cartografia sensível enquanto se movimenta pela cidade. São ações muito diferentes. A primeira diz respeito ao pragmatismo cotidiano, às obrigações da vida banal e à lógica capitalista. A segunda pode colocar isso tudo em suspensão, daí seu potencial poético e político ser investigado por artistas modernos e contemporâneos.

Na coluna passada comentei a Bienal de São Paulo realizada em 2018. Com o recente anúncio de Jacopo Crivelli Visconti como curador da próxima edição, fiquei a imaginar suas possíveis configurações. O crítico, nascido em Nápoles (Itália) e radicado no Brasil, tem uma pesquisa instigante em torno dessa prática artística que dá nome ao livro de sua autoria publicado em 2014 pela WMF Martins Fontes: Novas derivas. De que maneira as questões abordadas ali atravessarão o programa da mostra?

No livro, Visconti remete à ideia da deriva situacionista, que se desenvolveu por volta dos anos 1960 impulsionada, em especial, pela atuação de Guy Debord na França. O filósofo, agitador social e diretor de cinema, uma década antes da publicação de seu marcante A sociedade do espetáculo já descrevia e normatizava a prática da deriva como uma técnica de passagem rápida por locais variados, principalmente urbanos, afirmando um comportamento lúdico-construtivo oposto às tradicionais noções de viagem e de passeio. Visconti explica que se trata de um “perambular, sobretudo, a pé, […] sem rumo predefinido, escolhendo ao acaso, ou com base em sensações e impressões extemporâneas, a direção a ser tomada a cada momento”.

Tal perambulação, por sua vez, remete às derivas dadaístas e surrealistas, talvez até mesmo às saídas do ateliê realizadas pelos pintores impressionistas, à flânerie baudelairiana e, no limite, à comédia de Dante. Caminhar não é novidade para a arte. Porém certa formatação dessa prática é ponto comum a experiências contemporâneas que pretendem assim prescindir da obra de arte como objeto físico, oporem-se à lógica dominante do museu moderno “cubo branco” e libertar o sujeito da condição de espectador numa sociedade espetacularizada.


The green line (sometimes doing something poetic can become political and sometimes doing something political can became poetic) (2004), de Francis Alÿs

Visconti analisa uma série de trabalhos artísticos que tomam o movimento como elemento central e catalisador, alguns de fato muito similares ao proposto pelos situacionistas, outros apresentados como aproximações críticas possíveis, a título de comparação. Se a deriva situacionista trazia consigo o objetivo sociopolítico de imersão, exploração e experimentação da cidade, artistas posteriores se apropriaram de elementos dessa prática com propósitos variados. O taiwanês Tehching Hsieh, entre 1981 e 1982, passou um ano inteiro na rua, sem jamais adentrar edifícios ou abrigos de qualquer tipo. Denominada Outdoor piece, essa foi uma das cinco performances realizadas por ele na série One year performances. Em A line made by walking (1967), o artista inglês Richard Long criou justamente o que o título indica: uma linha na grama amassada de tanto ir e voltar pisando no mesmo trecho de terreno; trabalho que desapareceu em poucas horas, quando a grama retomou a forma inicial, e cuja fotografia remanescente chama atenção para a própria efemeridade. Francis Alÿs, artista belga citado com frequência no livro de Visconti, em 2004 atravessou a pé a fronteira entre Israel e Palestina, carregando uma lata de tinta verde que escorria por um pequeno furo. Traçou assim uma linha, e seu trabalho se chamou The green line (sometimes doing something poetic can become political and sometimes doing something political can became poetic), que podemos traduzir por A linha verde (algumas vezes fazer algo poético pode se tornar político e algumas vezes fazer algo político pode se tornar poético).

“Andar é apenas o início da cidadania, mas através desse ato o cidadão conhece a sua cidade e os outros cidadãos, e passa a habitar realmente a cidade, e não uma pequena parte privatizada dela”, diz Rebecca Solnit, citada por Visconti. Estaria aí o fundamento sociopolítico das derivas situacionistas e das subsequentes criações artísticas inspiradas nelas. Perambular, conhecer, ocupar, trocar, transformar. Uma experiência estética que pode ser também política e vice-versa.

Além da ação não voltada a um fim, da abertura programada para acolher o acaso e das formas de registro que contrariam a tendência ao desaparecimento, reinscrevendo-a na lógica capitalista, a deriva opera desvios a todo instante. Não somente desvios literais, da direção do caminhar, mas também aqueles dos sentidos, dos modos de fazer banalizados, dos lugares comuns que predominam em nossa relação com o mundo. Eles implicam apropriações e transformações do que está posto, visando a subversão de seus significados originários “em prol da revolução”, como Guy Debord enfatizaria.

Essa qualidade de desvio nos interessa no contexto atual. Ela possibilita aproximações, embates, desestabilizações do status quo e reinvenções dos nossos modos de ver, pensar e dizer em sociedade. A reinvenção é própria do que é vivo. Ao ponto de os situacionistas quererem matar a arte transformando-a em vida. Se esse paradoxo soa como uma espécie de máxima modernista, a potência da deriva enquanto prática estética ainda tem muito a nos ensinar.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

A ARTE DA APRECIAÇÃO

A 33ª Bienal de São Paulo nos pediu para apreciar a arte. O verbo, no caso, não significa necessariamente gostar, mas olhar com atenção, dedicar-se a olhar e dedicar o próprio olhar a trabalhos que, não à toa, são chamados de artes visuais. Apreciar significa experimentar com os olhos antes de tentar compreender. Com esse viés foi sem dúvida uma bienal diferente das imediatamente anteriores, mais conceituais. A arte conceitual, ainda que visual, conduz o olhar até uma “ideia”, quase como se pudéssemos decodificá-la e esclarecer seu mistério. Verdade que não é tão simples assim, mas no limite há sempre uma espécie de racionalidade calculada por detrás das produções de caráter conceitual. Essas obras foram menos numerosas na bienal passada. Os curadores, alguns deles artistas, privilegiaram trabalhos pautados na materialidade e no fazer artísticos. Em que a “ideia”, que de uma maneira ou de outra está sempre lá, não se apresenta com a lucidez do conceito, no sentido filosófico do termo. Talvez ela se apresente sem clareza alguma e nos convoque a apreciar sua obscuridade. Mais pelo sentido – ou seja, pelo sentir – do que pelo significado. Mais pela intuição do que pela lógica. Mais pela conotação do que pela denotação. Nestes tempos ávidos por explicação, argumentação, justificativa, parâmetro e esclarecimento, a bienal propôs um desafio e tanto.

Exposição de Antonio Ballester Moreno durante abertura ao público da 33ª Bienal de São Paulo. © Leo Eloy / Estúdio Garagem / Fundação Bienal de São Paulo.

Os brasileiros se digladiavam pelas eleições quando a exposição foi inaugurada. Tive a impressão de que ela passou despercebida do público geral, que só tinha olhos para outras questões, por sinal muito urgentes. Fosse uma edição abertamente politizada como as que a antecederam, talvez jogasse um balde de gasolina na fogueira. Não foi. A bienal de 2018 propôs um desvio. Alguns toparam seguir com ela, grande parte preferiu caminhos diversos. Eu mesmo a visitei com alguma reticência, sem conseguir me deixar afetar por ela, tamanha a afetação que o cenário nacional provocava. Apesar disso admiro a tentativa da organização, mesmo que tenha realizado um perigoso recuo diante da sua potência sociopolítica. Cabe à bienal experimentar, assim como cabe a nós avaliar os resultados das propostas.

Toda vez que trabalhos artísticos se voltam à materialidade, às formas e aos seus procedimentos, a arte recai sobre as características que a constituem a priori. Podemos dizer que se volta a si mesma, às suas regulagens internas, à sua intimidade. Fosse engajada, proporia-se ativista, guerrilheira, protestante. Não foi o caso agora. E não me entenda mal: nunca é somente uma coisa e não outra, absolutas; são intensidades. Por vezes observamos uma seleção de trabalhos mais assim, por vezes a proposta curatorial prefere um recorte mais assado. Disso advêm prós e contras conforme este ou aquele ponto de vista.

Eu falava de uma dificuldade que a arte oferece ao priorizar a plasticidade no lugar do conceito. A qual requer de nós sustentar certo não saber, aceitar o estranhamento e domar a ansiedade de “entender”. Uma dificuldade de olhar sem de imediato interpretar.

Certa vez acompanhei estudantes a uma exposição de Mira Schendel. Eles circulavam entre suas linotipias, decalques e pinturas; trabalhos delicados compostos por papéis, tintas e tipos gráficos, entre outros elementos visuais típicos de ateliê. A conversa que se seguiu à visita evidenciou precisamente a dificuldade de que tratamos aqui, manifestada quase como impossibilidade de descrever os trabalhos sem agregar um significado, um suposto propósito da artista ou um “para mim evoca...” Minha questão era simples: o que vemos? Entretanto, salvo exceções, ninguém conseguia dizer: diferentes qualidades de papel, manchas coloridas, pinceladas; gestos trêmulos de um corpo que risca a superfície com lápis carvão; obras de tamanho similar emolduradas e distribuídas com simetria pelas paredes do museu, na altura média dos visitantes adultos, conforme o padrão expográfico etc.

Intitulada “Afinidades afetivas”, a 33ª Bienal de São Paulo nos convocou a prestar demorada atenção a essa materialidade e a esses procedimentos que são próprios do saber artístico. E que parecem cada vez mais inacessíveis. Aprendemos ali que não devemos prescindir da matéria quando apreciamos arte visual. Ainda que fale outra língua, a matéria testemunha uma história e muitas vezes diz o que as palavras não conseguem. Toda matéria é uma possibilidade de forma e tema, que vêm à tona pela criação poética. Ela apresenta problemas e a subsequente dificuldade de responder a eles sem, com isso, encontrar solução definitiva – talvez até mesmo sem encontrar solução alguma.

Se já prestamos melhor atenção a tais informações visuais, em que momento perdemos essa habilidade? Se já pudemos nos demorar diante de uma única imagem, por que deixamos de fazê-lo? Se já conseguimos apreciar o obscuro, o incerto, a sensação de estranhamento, como hoje é tão difícil?

No catálogo da mostra, o crítico Jacopo Crivelli Visconti explica que a artista Lúcia Nogueira mantém seu trabalho “à beira do abismo da incompreensão”. O mesmo pode ser dito sobre vários outros artistas apresentados ali. Terminada a recente batalha eleitoral e tendo em vista os abismos que nos aguardam, o exercício de apreciação que a arte propõe à subjetividade contemporânea parece um tanto promissor para desenvolver racionalidades e temporalidades diversas, e mesmo uma ética na relação com o outro.

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

ACREDITAR NO LIVRO


Quando estive pela primeira vez em Buenos Aires, o número de livrarias me surpreendeu: era como se houvesse uma a cada quarteirão, mais ou menos como drogarias em São Paulo. Não eram “megastores”, pelo contrário, eram comércios pequenos, alguns com charmosas estantes de madeira pesada, outros apenas empoeirados, a venderem livros novos e usados. A língua espanhola permite o trânsito de títulos editados em países diversos. Xeretar aquelas prateleiras foi uma experiência cultural inesquecível. Diante da situação crítica que nosso mercado livreiro vive nos dias atuais, retomo a viagem de mais de uma década em busca de alguma explicação.

Não tenho dúvidas de que a tendência global às grandes redes comerciais nos levará a um buraco negro. Isso vale para o livro e para todos os demais ramos. Ao valorizarmos padronizações de marca, ficamos reféns de empresas que engolem a concorrência, dominam setores, extinguem singularidades e, em períodos de queda, fazem tudo desabar com elas.

Não tenho condição de analisar tecnicamente os pedidos de recuperação judicial da Cultura e da Saraiva, ou mesmo o encerramento das atividades da multinacional Fnac. Sei lá que tipo de lambança administrativa levou cada uma delas à beira do precipício. Como ávido consumidor de livros, entretanto, tenho cá meus palpites, válidos em especial para as duas últimas: o maior erro delas foi não acreditarem no livro. E talvez tenham cobiçado mais do que o nosso potencial pode oferecer.

Se o brasileiro em geral lê pouco, isso não significa que nosso mercado editorial é enxuto. Somos mais de duzentos milhões. Se uma parcela discreta dessa população lê, ainda é um público consumidor maior do que países inteiros. O Uruguai não atinge quatro milhões de habitantes, e eu me lembro bem das livrarias de Montevidéu. Eram numerosas e pequenas como as argentinas. Se o Chile tem mais pessoas, proporcionalmente deve ter mais livrarias também.

Trabalhei durante dez anos no bairro de Pinheiros, em São Paulo, onde havia uma Fnac enorme. O setor de livros tomava metade do prédio. Eu passava meu horário de almoço lá. Encontrei mil maravilhas entre as lombadas à mostra. Com o tempo, porém, os best sellers ocasionais começaram a predominar, até que eles próprios perderam espaço para videogames, camisetas, bonecos, cafeteiras, computadores e assim por diante. Meus desejos de leitor eram cada vez menos contemplados. Quando o mercado editorial encolheu, a Fnac o abandonou sem pestanejar. E eu a abandonei em seguida.

O leitor fiel, que compra livros como arroz e feijão, aos poucos deixou de frequentar as livrarias que perderam a fé nos seus principais produtos. Sempre me pareceu perigoso preferir pilhas de livros do youtuber da vez à obra completa de José Saramago, para citar um exemplo entre inúmeros outros. Porque o famosinho só pagará as contas deste mês. Quem pagará as do mês seguinte? Perto da Fnac havia a Cultura do Shopping Villa Lobos. Uma loja especialíssima, com corredores labirínticos onde adorava me perder. Lembro-me de buscar uma nova tradução de Foucault e o vendedor não apenas saber qual era, mas já a tinha lido e podia comentá-la – enquanto numa Saraiva me fariam careta e digitariam no terminal de busca: fucô. O atendimento da Cultura também era capaz de acolher e incentivar leitores principiantes, indo além de somente efetuar vendas. Frequentar livraria desse tipo era uma experiência estética por si só.

As lojas que apostaram nos leitores e nos livros, e que talvez tenham evitado extravagâncias capitalísticas, mantiveram a saúde em dia. A carioca Travessa, no auge da crise, abre loja em São Paulo e em Lisboa. A Martins Fontes continua encantadora, inclusive com suas programações culturais. Livrarias da Vila idem. Sabe o que elas vendem? Livros. De todos os tipos e a leitores de gosto variado.

Preciso citar também as livrarias pequenas que ganharam espaço com produtos e programação cultural de qualidade, como lançamentos, debates, oficinas, grupos de leitura etc. Tais como Tapera Taperá, Zaccara, Banca Tatuí, LopLop, entre muitas outras.

Sou um autor iniciante, com apenas dois livros publicados por editoras de pequeno porte. Um terceiro título sairá no próximo ano. Dada essa perspectiva, as contradições do mercado não me parecem tão pessimistas. Visitei uma Festa de Livros da USP lotada, cada vez maior e melhor organizada. A Miolo(s), na Biblioteca Mário de Andrade, foi a mesma coisa. As feiras estão com tudo. Diversos amigos tiveram livros publicados em 2018. As editoras independentes, apesar do adjetivo questionável, conquistaram prêmios, espaços nas lojas e interesse dos leitores. Isso porque acreditaram em escritores, no público e nos livros, fazendo corpo para segurar as quedas da economia.

Como bem disse Luiz Schwarcz em seu apelo de amor aos livros, precisamos incentivar o editor pequeno e suas publicações minoritárias, não só em número de exemplares, mas nas causas que defendem. O livro ainda é um ponto de resistência em que a diferença pode se apoiar. Mas para isso precisamos comprá-los, lê-los e valorizá-los.

A queda de 40% na arrecadação desde 2014 mostrou que as editoras não podem se iludir com os incentivos do governo, que ora aquecem o mercado, ora deixam todos à deriva. Se a Amazon espreme as margens de lucro dos fornecedores e recentemente começou a editar por conta própria, não é sem motivo que insiste no consumidor brasileiro. Por outro lado, existe uma experiência de compra em livraria que, ao menos por enquanto, a gigante norte-americana está longe de proporcionar.

De minha parte, suponho que o caminho está esboçado. É preciso acreditar nos livros, investir na qualidade da experiência com eles e na formação de público leitor. É preciso acreditar nos escritores, em suas obras e em seus admiradores. Talvez a crise atual sirva para mostrar que nosso mercado editorial não precisa crescer como as indústrias farmacêuticas; talvez sejam as doses homeopáticas que manterão a saúde livreira por aqui. Ao menos é assim que os pequenos editores vêm remediando a crise, com perseverança, página por página.

terça-feira, 13 de novembro de 2018

DESAPRENDER A DIZER


Por diversos motivos, volto de tempos em tempos à aula inaugural de Roland Barthes no Colégio de França, oferecida em 1977 e publicada no Brasil na forma de um livrinho. Desta vez eu quis relembrar sua denúncia sobre o fascismo da língua, que sempre achei muito ousada. Para o semiólogo, a língua é fascista não porque impede de dizer, mas justamente pelo contrário: ela obriga a dizer. E, sempre que proferida, a língua se põe a serviço de um poder.

Fui relembrar essas ideias por incentivo de Peter Pál Pelbart, uma das nossas vozes filosóficas mais instigantes, que mencionou Roland Barthes durante a palestra sobre a “Experiência nômade da escrita”, oferecida no Sesi-SP como evento de abertura do Ciclo de Dramaturgia deste ano. Eu queria – ou melhor, eu precisava de – algumas palavras que me ajudassem a pensar outro fascismo, recorrente na política atual, que de política preserva bem pouco na medida em que mina debates e sustenta autoritarismo de variadas ordens. Se a campanha dos candidatos foi um horror, a atuação dos eleitores foi pior: ignorante, violenta, impositiva etc.

“Por toda parte, de todos os lados, chefes, aparelhos maciços ou minúsculos, grupos de opressão ou de pressão: por toda parte, vozes ‘autorizadas’, que se autorizam a fazer ouvir o discurso de todo poder: o discurso da arrogância”, diz Barthes com a sua lucidez tão característica.

Seremos solicitados a nos acostumar com esses autoritarismos nos anos que vêm. Para mim é impossível, aviso de antemão. Para outros milhões de brasileiros também será.

Como escapar do fascismo anunciado? De acordo com Barthes, a linguagem humana é sem exterior, só podemos sair dela pelo preço do impossível. Entretanto o autor oferece uma alternativa: se é impossível escapar do fascismo que a todo instante obriga a dizer, podemos trapacear a língua. “Essa esquiva, esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem” é o que Barthes chama de literatura.

Ele aproveita para explicar que a força de liberdade da literatura não depende do engajamento político do escritor, que afinal é um déspota entre tantos outros, nem mesmo do conteúdo doutrinal de sua obra, mas do trabalho de deslocamento que exerce sobre a língua.

Eu estava, como sempre, encantado com seus pensamentos. E pretendia chamar atenção para o engano comum que tenho observado ao meu redor: a confusão entre a obrigatoriedade de dizer e a liberdade de expressão. Trata-se de um engano grave. Pois liberdade de expressão não é o direito de dizer tudo o que vem à cabeça; isso na realidade quase sempre configura um aprisionamento, que é próprio do tal fascismo da língua. O que se diz, no caso, são meras fórmulas, repetidas à exaustão; violências normalizadas, discursos prontos que colonizam o sujeito que fala, notícias falsas e lógicas escusas a corromperem todo o sistema de comunicação. Trata-se, enfim, de enclausurar a própria expressão, sufocar a vida, abrir a mão da potência de não dizer.

A verdadeira liberdade de expressão é muito mais difícil de exercer. Pois implica libertar a própria expressão das amarras já subjetivadas que impregnam, deturpam e modulam os discursos. Implica destituir o governo que se impõe sobre o dizer e o faz delirante.

Se é de fato impossível, é ainda a utopia que a literatura deve perseguir. E não apenas ela: cada um de nós precisa aprender a desarmar a própria língua, desarticular o próprio discurso e escapar dessa condição de cativo.

Vou preenchendo meu caderno com notas, apoiando-me numa aula que se atualiza desde a França de décadas atrás e me ajuda a pensar o Brasil de hoje. Lá para o fim do livro, deparo-me com a seguinte frase: “o que pode ser opressivo num ensino não é o saber ou a cultura que ele veicula, são as formas discursivas através das quais ele é proposto”.

É nesse momento que encontro palavras para botar ordem em minhas próprias inquietações. E afirmar, em primeiro lugar, que suprimir das nossas escolas conteúdos urgentes – como a consulta pública do Senado que sugere criminalizar o debate sobre questões de gênero – é impedir que a diferença seja visível e problematizada por estudantes que têm plena capacidade de aprender com ela. Estudantes inteligentes que não precisam dessa censura disfarçada de tutela.

Em segundo lugar, e também relacionado a outra consulta pública, é preciso desfazer a ilusão da tal “escola sem partido”, a qual é por princípio impossível. Ao contrário de mais restrições, que tendem apenas a gerar mais violências, impedir debates e autorizar opressões, é preciso dar voz a todos os que desejam falar. De maneira que, novamente pela diferença, seja possível experimentar a força arrebatadora da democracia e a resistência ao fascismo dos discursos autoritários.

Com sorte, todos nós teremos a chance de atingir o ápice da maturidade do ensino, que para Roland Barthes é a experiência de desaprender. Eu, ainda distante de tamanha sabedoria, só tenho a concordar com ele e, humildemente, agradecer o privilégio de sua aula e toda a abertura que ela oferece.

segunda-feira, 15 de outubro de 2018

A IMPOSSIBILIDADE DE DIZER

Ao ler o esboço de uma peça de teatro que eu escrevia, minha esposa fez o seguinte comentário: você é artista, deve saber o que está fazendo. Hoje preciso dizer que não é bem assim. A poesia habita justamente um não sabido que compõe o discurso. Não saber – e não poder enunciar –, de certo modo, é o que torna a arte interessante e a diferencia do panfleto. Por isso defendo que os teóricos e críticos sustentem a potência do não sabido e a impossibilidade de dizer sobre, em vez de pretenderem esclarecer os trabalhos de arte como se pudessem esgotá-los. O mesmo vale para outros campos das humanidades.

Num ensaio recente intitulado O que é o ato de criação?, Giorgio Agamben comenta a conferência homônima que Gilles Deleuze proferiu em 1987. Deleuze falou da arte como resistência. Agamben, por sua vez, esmiúça a ideia, querendo entender em que medida uma criação pode também resistir e qual seria a natureza dessa resistência.

Ele começa por não associar a resistência a uma força externa, mas a uma potência inerente ao próprio ato criador. Fazendo uma arqueologia da potência desde Aristóteles, como é seu costume, Agamben insiste que toda obra conserva uma inoperosidade na forma de uma potência que não se realiza, resiste e se opõe à expressão. Essa resistência impede que a potência criativa se esgote no ato da criação. Ao mesmo tempo ela expõe a própria potência e a forma criada, de maneira que possamos apreciá-las, contemplando-as, ou seja, observando-as atentamente e sem pressa. O filósofo explica: “a grande poesia não diz apenas aquilo que diz, mas também o fato de que está dizendo, a potência e a impotência de dizê-lo”. Ela diz a si mesma e o impossível de dizer que a faz poesia.

Em outras palavras, é como se algo permanecesse irrealizado durante o ato de criação da obra de arte, e que essa resistência à realização pusesse em xeque tanto o ato quanto a própria obra. De maneira que a obra de arte jamais esteja totalmente exposta, explícita ou acessível pelo olhar, pelo discurso e pelo pensamento do público e até mesmo do artista.

A poesia, por sua vez, seria uma operação na linguagem que desativa o hábito e torna inoperantes funções comunicativas e informativas, abrindo-as a um possível novo uso. É essa sua inoperosidade que desarticula modos de fazer já estabelecidos e abre espaço para alternativas, reinvenções, intervenções.

Isso que permanece não realizado durante a criação poética põe em questão uma política da arte. Ao desativar modelos, destitui governos do olhar, do dizer e do pensar numa operação política que não se distingue de certa operação estética. Nas palavras de Agamben, “política e arte não são tarefas nem simplesmente ‘obras’: elas designam a dimensão na qual as operações linguísticas e corpóreas, materiais e imateriais, biológicas e sociais são desativadas e contempladas como tais”.

Sua filosofia me ajuda a sobreviver nestes tempos de certezas, verdades e absolutismos morais, sociais, históricos etc.; tempos em que um lado é correto apenas porque seu oposto está errado. Ela aponta a importância ética de assumir alguma incerteza na estética e na política, que as mantém vivas e passíveis de transformação. A sabedoria que extravasa todo conhecimento de causa está em perceber que algo inexplicável, indizível e invisível reside em todo discurso, inclusive no que se pretende esclarecedor. Como podemos exercitar tal impossibilidade de dizer? Eu começaria por profanar o sujeito que diz. Uma estratégia seria, por exemplo, escutar o outro. Podemos também destituir o “eu” desse ranço identitário que o quer determinar. Por fim, poderíamos experimentar dar voz a um outro, o que é o fundamento de todo ato de criação. Tal exercício de partilha do sensível pode, com sorte, abrir lugar a alguma sabedoria que mereça ser dita.

Quando a dureza política e institucional impõe sua vontade de ordem, a criação poética pode devolver o gesto e a potência à vida. Não existe saber algum na verdade imposta pelo grito. Como bem notou Georges Didi-Huberman, historiador da arte que se destaca entre os intelectuais contemporâneos, “a certeza não tem a ver com o saber. É na medida em que a certeza é absoluta que se tende a dizê-la alucinada”.

Estamos vivendo um momento em que se fala demais. Um palavrório que pretende dizer tudo e revelar tudo. Se a política brutal insiste nesse discurso iluminado e verdadeiro, é preciso contrabalanceá-la com o incerto, o ambíguo e o paradoxal que pode haver na criação poética. Que nos sugere não afirmar nada em absoluto senão a necessidade urgente de questionamentos. É o que a resistência do ato criador tem a nos ensinar.

*Sobre a imagem que ilustra o texto: trabalho da exposição A infinita história das coisas ou o fim da tragédia do um, organizada por Sofia Borges na 33ª Bienal de São Paulo (2018).

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

LER PARA CRER

Foto por Lamparina Luminosa

Entre as diversas sensações que a literatura pode provocar, uma das mais promissoras é o estranhamento. Digo promissora no sentido da experiência estética que desloca o leitor do seu lugar-comum, de maneira a terminar a leitura diferente de como a iniciou. Por vezes confundimos o estranho com o grotesco, o exagerado ou o explícito. Não é a isso que me refiro, mas ao estranhamento tão sutil que chega a ser difícil identificar. Como uma pecinha que não se encaixa no conjunto e gera um ruído. Apenas a escuta atenta é capaz de distingui-lo. No entanto, uma vez percebido, o ruído se transforma numa espécie de “punctum”, para usar o conceito que Roland Barthes criou ao analisar fotografias. Com isso quero dizer que aquele pormenor quase imperceptível, assim que notado, domina a cena, sendo impossível desconsiderá-lo. Ele escapa das nossas convicções e expectativas, incitando-nos a perguntar: por quê? Será isso mesmo? Como é possível?

Foto por Lamparina Luminosa

Tentei explorar essa sensação nos contos do livro Testemunho Ocular, publicado algumas semanas atrás. Ali, o estranhamento está quase sempre associado ao invisível, ao implícito, ao “assassinato do Real”, como dizia Jean Baudrillard. Minha aposta é produzir tensionamentos entre territórios bem delimitados, conhecidos e habitados. De maneira que o leitor encontre nesse atrito a possibilidade de criar junto com o livro, imaginando justamente as imagens que não estão dadas – elas são, no máximo, sugeridas.

É verdade que não antecipei a proposta. Ela foi surgindo na medida em que eu escrevia, e o resultado é um livro de literatura, não uma tese. Durante o processo de criação, quando percebi um fio condutor a atravessar os textos, reuni a coletânea sob o título de Testemunho Ocular, aludindo à condição da imagem como legitimadora de verdades.

Temos ao nosso redor uma lógica perigosa ganhando força política, pautada na certeza e na razão absolutas, opressoras, fascistas na medida em que denegam formas menores de existência. Minha resposta poética para isso é celebrar a ambiguidade, o paradoxo, a obscuridade.

Capa do livro
Testemunho Ocular venceu o concurso da editora Lamparina Luminosa em 2017, e o processo de edição durou cerca de um ano. A definição da capa foi especialmente trabalhosa. Afinal, como é possível escolher uma imagem para um livro que tenta colocar em questão a nossa dependência da visualidade? Nestes tempos em que somos filmados, produzidos e compartilhados a todo instante, qual imagem contrariaria a sua própria vocação de evidenciar, esclarecer e testemunhar?

Eu e Christian Piana, editor responsável pelo projeto gráfico, consideramos diversas alternativas, até enfim concordarmos que os urubus voando em círculos resolveriam a questão sem de fato solucioná-la por completo. Era fundamental que a cena não fosse explícita. As aves têm relação com um dos contos da coletânea, chamado Rapinagem, e à primeira vista parecem lindos passarinhos voando livres no céu. Lá de cima são capazes de testemunhar extermínios das mais variadas ordens, dos quais somos cúmplices.

O projeto editorial condiz com o conceito do livro, que é espelhado desde a epígrafe do início à que o encerra. Há também dois poemas e vinte textos em prosa. No centro se encontra um trecho de páginas pretas com letras em branco, que chamo carinhosamente de “ponto cego”, repleto de provocações, expressões corriqueiras revisitadas e jogos de palavras que tentam escapar dos seus sentidos imediatos.

Foto por Lamparina Luminosa

Se existe um lugar de sobrevivência da literatura neste oceano de esclarecimento em que estamos naufragados, atormentado por ondas de verborragia, realismos e certezas moralizantes, talvez seja a poética do incerto, do não dito, do desvio, do obscuro e do estranhamento que o contato com o diferente pode provocar. Talvez possamos abrir aí uma brecha por onde a ameaça escoe e onde apareçam formas de vida mais contemporâneas.

Gostou? Compre seu exemplar aqui: www.lamparinaluminosa.com

quarta-feira, 22 de agosto de 2018

A VIDA COMO A ARTE É

Cena de Empire (1964), de Andy Warhol

Andy Warhol é bastante conhecido pelas serigrafias de celebridades como Marilyn Monroe, Elvis Presley e Liz Taylor. Ele também retratou outros ícones da cultura norte-americana, tais como as latas de sopa Campbell’s e as caixas de esponja Brillo. Acontece que todos esses trabalhos são de um período inicial de sua carreira. Com o passar dos anos, o artista foi se interessando cada vez mais pelo cinema e, depois, pela televisão, produzindo em ambos os formatos. Filmes, por exemplo, são cerca de setenta e cinco. Talvez o mais emblemático seja Empire, de 1964, que ultrapassa oito horas de duração.

O enredo de Empire é mínimo: Warhol levou uma câmera até um prédio vizinho – uma janela do Rockefeller Center –, apontou-a para o Empire State e deu início à gravação, substituindo os rolos na medida em que acabavam, a cada trinta e cinco minutos. O resultado, para o espectador, pode ser tão entediante quanto o artista desejava; Warhol dizia adorar o tédio.

Difícil encontrar alguém com disposição de ver o filme inteiro. Por que Warhol o quis assim, afinal? Por que gravar oito horas de um prédio – estático, naturalmente –, se nada acontece? Por que produzir um filme quase impossível de ser assistido?

O primeiro ponto é que, apesar da inércia aparente, muita coisa acontece nesse retrato de um dos mais célebres edifícios de Nova York. As nuvens transitam no céu, o sol se põe, os refletores da fachada se acendem. Não bastasse isso, uma infinidade de ações tem lugar além do alcance visual do filme e, por consequência, dos nossos olhos: pessoas trabalham dentro e fora do Empire State, caminham nas ruas, nascem e morrem. Em outras palavras, a vida acontece ao mesmo tempo em que o filme roda.

Por mais fiel a ela que pretenda ser, o filme não é a vida que retrata, embora passe a fazer parte dela depois de ser produzido; trata-se de uma elaboração técnica disposta à apreciação estética do espectador. Por mais realista que se queira, Empire é uma conformação artística que se destaca do banal. É um “objeto de arte”, além de um objeto qualquer. Esse paradoxo nos leva a uma possível definição da arte, esteja ou não relacionada a um objeto material: um gesto poético dado à experiência estética que se distingue da vida comum.

Claro que toda tentativa de encerrar a arte numa definição absoluta está fadada ao fracasso. Nosso objetivo aqui é somente instaurar uma referência que possibilite pensar quais práticas ditas “artísticas” se enquadram ou não naquele quesito, e a partir daí elaborar conceitos críticos, comparativos, referenciais etc.

Se Empire apresenta certo realismo formal, notamos que esse sufixo “ismo” já denota imitação, criação ou fingimento, no sentido da ficção e da ilusão de que mesmo a arte realista não escapa. Quer dizer, ainda que o Empire State seja mostrado “tal como é”, o enredo é de natureza criativa, o registro é poético e momentâneo, e o retrato o mostra “tal como Warhol o quis”, conforme a sua perspectiva e o objetivo do seu projeto cinematográfico. Pois mesmo a arte realista é ainda uma elaboração que se distingue da “vida real”.

Essa ideia nos ajuda a olhar proposições mais contemporâneas, especialmente as de cunho relacional, e a nos perguntar o que detêm daquele modelo de arte e o que escapa a ele. Arte social, arte política, arte terapia etc. são cada vez “menos arte”, no sentido convencional, na medida em que se aproximam da vida comum. Sob o risco de se tornarem outra coisa, colocando-se em diferente registro de apreensão. Não digo isso num sentido conservador, como se a arte precisasse ser preservada de um jeito determinado; pelo contrário, talvez esse seja um risco promissor, se junto forem assumidas também as consequências do afastamento da “instituição Arte”.

Com o artifício do tédio e do realismo, o filme Empire nos convoca a pensar a rotina da metrópole, a falta de tempo, o vício no consumo de novidades e assim por diante. Sua lentidão incomoda porque nos desacostumamos a ela. Fomos educados a gostar dos filmes repletos de reviravoltas, adrenalina, personagens ou relacionamentos idealizados. A disposição que o filme de Warhol requer, entretanto, parece muito além do que podemos oferecer. Mesmo que se trate de uma celebridade encantadora como o Empire State.

Por conta desses tensionamentos entre o banal e a maneira como a arte o concebe, o gesto do artista retorna e nos convoca a rever a vida tal como ela é para nós, espectadores. Com sorte, cada um se põe a reinventar o próprio viver. A irreconciliabilidade entre o comum e o estetizado é o ponto de inflexão dessa arte contemporânea que pode de fato produzir transformações, deslocamentos e reconfigurações da vida, indicando como ela ainda pode vir a ser.

domingo, 22 de julho de 2018

ARTE COM "A" MAIÚSCULO

Durante a disciplina de pós-graduação em História da Arte que ofereci no semestre anterior, surgiu o debate sobre a arte dos índios, dos loucos, dos escravos do Brasil colonial, entre outros marginalizados em relação à instituição Arte, assim mesmo, grafada com A maiúsculo. A questão é recorrente, sinal de sua atualidade. E cada vez mais eu acredito que não devemos colocar tudo sob o mesmo guarda-chuva, ou seja, não devemos chamar aquelas produções de Arte.

Explico por quê. Em primeiro lugar, existe a idealização dessa Arte. Como se a pintura feita por um louco, uma cerâmica marajoara, uma tatuagem tribal, por exemplo, se tornassem “melhores” caso consideradas Arte. Como se precisassem desse rótulo para terem suas qualidades legitimadas. Não ignoro que, em muitos casos, elas precisam mesmo apelar a tal recurso para serem valorizadas, ganharem atenção e, principalmente, escaparem de rótulos pejorativos. Minha proposta é, no entanto, mudar a condição do preconceito, e não ocultá-lo sob o poder raras vezes questionado da Arte.

Em segundo lugar há a consequência da rotulagem, que é o enquadramento daquelas produções num registro construído ao longo de séculos e que reitera a própria colonização cultural ainda ativa. Isso porque a palavra Arte evoca um modo de fazer, uma história, políticas e valores estéticos fundamentalmente europeus, hegemônicos, brancos, falocêntricos. Submetê-las a esse modelo acaba por ignorar que elas têm suas próprias redes de significados, propósitos e funções em suas respectivas culturas – tal como os modernistas fizeram com as estampas japonesas e as máscaras africanas, por exemplo. Ficamos, pois, tentando encontrar nelas valores estéticos da Arte, que na realidade não existem, exceto quando tal estética é aplicada de maneira selvagem, forçada, colonizadora.

O que nos leva ao terceiro problema da questão, que é a apropriação ou, pior ainda, o domínio e o governo que a Arte passa a exercer sobre tais criações. Porque essa instituição, operando num sistema capitalístico, com rapidez captura produções desviantes e as coloca sob sua tutela, mantendo certa linha narrativa, de circulação e, claro, de consumo.

Arthur Bispo do Rosário com seu manto. Foto de Walter Firmo

Poderíamos pensar em vários exemplos em que isso ocorre de maneira menos ou mais grave. Um bastante conhecido é o caso de Arthur Bispo do Rosário, internado ainda jovem como psicótico na Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, onde viveu ignorado durante cinco décadas. Acontece que Bispo criava objetos com os materiais encontrados nas celas, no lixo ou fornecidos pelos profissionais que cuidavam dele. O principal era seu manto, todo bordado com linha desfiada de outros panos, que ele vestiria durante seu encontro com Deus.

Pode parecer tocante dizer que Bispo era um artista injustiçado, revolucionário, a fazer Arte no hospício. Fato é que a Arte o descobriu e logo o enquadrou no registro maiúsculo. Quem olha de fora pode mesmo se enganar, acreditando que ele fazia Arte. Porém suas criações estavam mais próximas de um rito, memorialístico ou religioso, e o fundamento era mais místico do que estético. O que para nós era Arte, para Bispo era uma espécie de fé, como ele mesmo explicou.

Seus objetos foram apropriados pelo mundo da Arte e hoje se encontram em museus, são pesquisados por teóricos, críticos e historiadores, escreve-se um tanto a respeito de seu valor artístico. Não faz muito tempo a Bienal de São Paulo reservou a eles um espaço privilegiado, onde os visitantes podiam, inclusive, ver o manto, exposto com destaque.

Arthur Bispo do Rosário faleceu no hospital psiquiátrico onde viveu quase toda a sua vida adulta e foi enterrado sem o manto que criou para encontrar-se com Deus, e que nada queria com o mundo da Arte. Esse é o tipo de sacrilégio que a Arte comete quando se apropria das produções que lhe escapavam.

Por isso tenho pensado que dar o rótulo de Arte a certas criações é um perigo, uma distorção e até mesmo uma violência contra elas e seus criadores. Se por um lado há o ideal salvacionista da Arte, de outro existe perversidade, contradições e jogos de poder. Não porque a Arte é ruim ou má, mas pelo simples motivo de que ela não é diferente de nenhum outro campo da produção humana, neste regime de subjetividade em que vivemos e que colonizou quase o mundo inteiro. A Arte não está livre dos defeitos gerais, que devem ser considerados toda vez que se aposta nela como prática política, econômica, social etc. Trata-se de um agente de conhecimento da humanidade como outro qualquer, que apenas se organiza de maneira diversa para dar forma a significados, sentidos, ideias, sentimentos, símbolos, expressões, entre tanto mais que a Arte mobiliza. Não se trata de negar a Arte, que tanto me encanta, mas de saber ver seus limites.

As criações dos índios, dos loucos, dos negros escravizados que citei no início do texto, entre muitas outras, não deveriam depender da legitimação da instituição Arte para ter valor. Não deveriam ser apropriadas e, assim, colonizadas.

O que precisamos, nós e eles, é valorizá-las em si mesmas, em seus contextos originais, nessa condição de minúsculas onde toda a sua força se realiza. Talvez assim percebamos que a tarefa, da nossa parte, é fadada ao fracasso: somente o louco sabe o que sua obra significa, somente o índio ou o escravo é capaz de acessar o potencial de cada criação sua dentro da própria cultura. Nós podemos tentar aproximações, podemos tentar compreender qualquer coisa, só que a Arte quase sempre não nos permite, ela dificulta a tarefa, uma vez que fomos capturados e educados por ela desde o berço.

Poderíamos chamá-las de arte, assim, grafada com a minúsculo? Ainda que seja um começo, a mim parece insuficiente. Por que não perguntar seus nomes originais, se é que existem? O que devemos exercer, em todo caso, é certa ética do cuidado com o outro. O que já é muito, dada as circunstâncias nada animadoras.

quinta-feira, 28 de junho de 2018

O SONHO IMPOSSÍVEL

Terminei na semana passada minha tese de doutorado em Teoria e Crítica de Arte. Naquela mesma noite, minha esposa perguntou: e agora, qual é o seu sonho? A princípio não tenho nenhum, respondi. Ela não acreditou e me contou uma série de sonhos seus. Para mim, eram desejos, dos quais também tenho vários. Os desejos são realizáveis. Por outro lado, penso no sonho como algo de natureza utópica e definitivamente impossível de realizar, sob pena de que o sonhador desperte no deserto do real. Na tese, influenciado pela filosofia de Alain Badiou, chamo isso de “ponto de impossível”.

O ponto de impossível do capitalismo é a igualdade, afirma Badiou. Ponto declarado como princípio embora, acaso realizado, acarrete na destruição do seu operador. O capitalismo jamais levará à igualdade social, uma vez que depende da desigualdade para continuar operante. Em outras palavras, o capitalismo continuará possível enquanto a igualdade social for impossível, embora sonhada, nem que seja apenas como discurso falacioso.

Pintura Suprematista (1915), de Kasimir Malevich
A mesma lógica, aplicada à história da arte, indicará como ponto de impossível o anacronismo. Georges Didi-Huberman tem se esforçado para tensionar as linhas do tempo, inspirado no legado de Aby Warburg, em especial no Atlas Mnemosyne. Ele chega mesmo a afirmar que só existe razão em pensar a história da arte, nos tempos atuais, como disciplina anacrônica. Entre as tensões e torções experimentadas pelo autor, notamos que a história continuará a exigir um fio de tempo e um espaço para suas narrativas. De fato, o século XX viu em diversas oportunidades declarações de fim da história da arte por conta de crises na historiografia, sem, entretanto, reinventar por completo os velhos métodos de narrar. Quando o anacronismo se realizar, não haverá história, mas outra coisa, possivelmente similar à literatura.

O ponto de impossível da política é o consenso, ao menos quando se pensa numa política apartada da barbárie. Na barbárie plena, o consenso é possível e serve de justificativa às violências; aliás, quase sempre é pelo consenso que se chega à barbárie. Por sua vez, a política depende do dissenso para existir enquanto lugar de trocas, de coletivização, de diferenciação. Qualquer contexto plenamente consensual é outra coisa que não política, ainda que esta pregue o consenso como comportamento de ordem, no limite até democrático. O consenso implicaria seu fim; a política sobrevive apenas na diferenciação.

Mais uma vez chegamos à arte, cujo ponto de impossível é a vida. Apesar de desejável, quando a arte abandonar sua elaboração poética e coincidir com a vida banal, deixará de existir. Ferreira Gullar usava o jargão de que a arte existe porque a vida não basta. De fato, quando a arte tentou enveredar pela funcionalidade, pela positividade ou pela objetividade, como em diversos aspectos da Bauhaus, por exemplo, tornou-se design, arquitetura, desenho industrial, comunicação. Quando se tornou ferramenta de regimes totalitários como o stalinista, o nazista ou o da china comunista de Mao Tsé-Tung, a arte tornou-se meio de comunicação que apenas reiterava ideias previamente estabelecidas pelo programa do governo.

Lygia Clark levou a arte à fronteira com a clínica, e sua Estruturação do Self confunde-se com metodologias terapêuticas. Joseph Beuys fez movimento semelhante na relação entre arte, educação e sociopolítica, misturando-se a associações de agricultores e criando modelos de universidade.

De alguma maneira, todos esses casos comprovam que o sonho modernista de estetização da vida nasceu fadado ao fracasso, ao menos no sentido de apontar um futuro para a arte. Seus resquícios no contemporâneo seguem o mesmo caminho. As artes comunitárias, por exemplo, ou mesmo as práticas artístico-terapêuticas tendem a fazer ruir o conceito europeu tradicional da arte. Não se trata de julgar o mérito de cada vertente, mas de constatar que o afastamento da estética na direção da vida comum desconfigura certo lugar da arte enquanto instituição, cujas consequências são ainda incertas.

De volta à pergunta de minha esposa, percebi que não tinha pensado a finalização da tese como realização de um sonho, mas de um desejo, e isso não me fazia menos feliz. Pelo contrário, eu me sentia pleno. O sonho, no caso, talvez fosse o conhecimento: como é impossível obtê-lo, a pesquisa não termina nunca, mesmo que tenha havido uma monografia, depois uma dissertação de mestrado e agora uma tese de doutorado, entre outras etapas da trajetória acadêmica.

Claro que cada um usa a palavra que preferir; longe de mim querer estragar os sonhos ou os desejos de ninguém, e muito menos determinar um ponto final sobre o assunto. Aliás, quanto mais estudo, mais tenho consciência do pouco que sei. Não digo isso apenas com objetivo de parodiar Sócrates, o qual “só sabia que nada sabia”, mas para afirmar que tal consciência nutre uma ética social e profissional.

De qualquer maneira, fico a pensar que o sonho precisa ter um ponto de impossível para que sua busca não cesse e a vida não perca o encanto com a sua realização. A busca é, afinal, a grande satisfação que jamais se satisfaz. É o sonho que mantém sua pulsação.

sábado, 26 de maio de 2018

VIVEMOS TEMPOS NEOBARROCOS?

Cesto de frutas (c. 1598), de Caravaggio

Embora críticos sejam sempre atrasados em relação às criações artísticas, há casos em que suas leituras parecem previsões sagazes. O exemplo que nos últimos meses não sai de minha cabeça é o do esteta italiano Mario Perniola. Já em 1990 ele apresentou uma tese, que agora parece evidente, e que se encontra no livro Enigmas: egípcio, barroco e neobarroco na sociedade e na arte. Entre as ideias desenvolvidas ali, há uma sobre revalorizações do barroco do século XVII. Um primeiro neobarroco teria surgido entre o fim do século XIX e cerca de 1930; sua sensibilidade se anunciava com Verlaine, Mallarmé, Huysman, Eliot, entre outros, até os expressionistas alemães. Era possível entrever esse movimento nas leituras da modernidade realizadas por Baudelaire, e ele se estabeleceria em definitivo com as críticas de Wölfflin, Riegl e Worringer.

Outro neobarroco teria se iniciado nos anos 1960 e permanecia aberto quando o livro de Perniola foi publicado, quase trinta anos atrás. Minha questão é que, de acordo com as suas observações, ele não apenas continua aberto como assumiu uma dimensão preocupante.

O barroco seiscentista foi um acontecimento marcado pela volúpia, exuberância e êxtase, que mascaravam o regramento, o dogmatismo e a opressão da Igreja contrarreformista, cujos parâmetros foram determinados pelo Concílio de Trento e desembocaram nas perseguições do Santo Ofício. A arte barroca apresenta o desequilíbrio violento e bizarro próprio da sua época, figurado na técnica do chiaroscuro, nas alegorias e artifícios, em exagerada pompa e evocação sublimes. Sua pintura desrealiza o dado e substitui o natural pelo enigmático e artificioso, passa da estética do exemplar clássico à do simulacro e satisfaz a necessidade de estranhamento do homem com uma vontade de estilo.

O homem barroco, de acordo com Perniola, seria um sujeitado, passivo e alienado em relação às forças exteriores, de teor absolutista, que predominam em sua realidade e determinam sua forma de vida. Uma burguesia vítima da própria fraqueza que se iludia com o fausto e o cerimonial. Mais ou menos como a atual classe média brasileira.

Sabemos que o barroco desembocou na Inquisição, e que o primeiro neobarroco terminou nos horrores do nazifascismo. O segundo, que em tese permanece ativo, nos levará a quê?

De maneira similar àqueles, o neobarroco social dos nossos tempos se pauta em movimentos morais, de caráter emotivo, dirigidos pelo “intento de restaurar a religião, relançar os ideais humanistas, retornar à disciplina escolar e à seriedade profissional”, como escreve o esteta. Tais movimentos têm um núcleo resistente e “fornecem palavras de ordem nas quais centenas de milhares de pessoas se reconhecem e têm um peso determinante na vida dos estados e dos partidos”.

Como uma espécie de contrarreforma, esses movimentos morais configuram uma inversão da tendência anti-institucional dos anos 1960 e 1970, e são fáceis de identificar nas contradições que permeiam nosso cotidiano. O que Perniola não podia saber é que sua análise chegaria a este momento temeroso em que as bancadas governistas conservadoras, entre religiosas, latifundiárias e militares, dominam o poder; o moralismo e a precariedade cultural dominam a educação; o fascismo domina a juventude; o consumismo domina o desejo; entre tantos outros governos lamentáveis.

Como o autor explica, “não se trata de esperar o advento de um mundo menos cínico, menos bárbaro e menos ignorante (tudo isso entra no âmbito das boas intenções!), mas de compreender como numa sociedade cínica, bárbara e ignorante, como a que vivemos, uma grande quantidade de pessoas possa aderir a um imaginário religioso, humanista e científico, sem por outro lado conseguir tornar essa sociedade menos cínica, menos bárbara e menos ignorante! A efetividade dos ‘movimentos morais’ não diz respeito à substância daquilo que propugnam, que é mais irreal do que jamais tenha sido, mas à existência nua das suas consequências”.

Os trabalhos de arte contemporâneos chamam atenção para esse ponto mesmo quando não são expostos, como no caso da mostra Queermuseu, criticada por organizações embrutecedoras e censurada pelo Santander Cultural. Podemos ainda falar da performance La Bête, no MAM-SP, e dos ataques ao filme Vazante, no Festival de Brasília, só para citar alguns casos recentes.

Entre a sensualidade e a espiritualidade religiosa, prazeres exacerbados e ascetismos severos, diversidade e restrições formais, há o paradoxo da própria arte, que contraria e também endossa certo conservadorismo, na medida em que precisa se sustentar enquanto instituição. Como diz Perniola, “o neobarroco contemporâneo é a transformação da arte em dispositivo solene”. Com isso ele alerta que também a arte se coloca como causa nobre a ser conservada. Traduzindo seu italiano intelectual para o bom português, estamos num mato sem cachorro.

Se existe uma esperança nesta crise, acredito que esteja no que Perniola apenas indica, e que Jacques Rancière desenvolve no livro A partilha do sensível. O primeiro fala de um neo-páthos expressionista que, ao contrário do que o senso comum acredita, implica a suspensão do eu, considerado na sua identidade e no seu papel psicossocial. Rancière fala em um compartilhamento que devemos buscar, diluindo o eu identitário no comum da experiência coletiva, que não pressupõe diversidade, mas um convívio de diferenças pautado na ética do dissenso. Isso é difícil de entender, dada a nossa subjetividade capitalística, e ainda mais difícil de realizar. Mas sugere, entre outros pontos, buscar a emancipação pelas vias de alteridade, ou seja, pela abertura ao outro. Jamais pelo estado de exceção, disfarçado de paternalismo positivista, que fundou nossa república e continua a afundá-la na mediocridade política que denominamos governo, com toda a infelicidade semântica que o termo contém.

segunda-feira, 30 de abril de 2018

ENTRAR NA DANÇA

Dois dançarinos (1937), de Henri Matisse

Dois garotos falavam alto e gingavam na plataforma da estação Sé do metrô de São Paulo, brincando um com o outro. Sua atitude inoportuna incomodava a maioria dos passageiros. Só podia ser assim, uma vez que desobedeciam às normas da boa conduta social. Essa é uma maneira de olhar para eles. Outra maneira seria considerar que, se existe um padrão de comportamento, todos nós de alguma maneira o desobedecemos. Isso porque não há nada mais antinatural do que um padrão; a vida não cabe em padrão algum. Com isso em mente, pode ser que consigamos perceber nuances naquela atitude que, a princípio, parece apenas impertinente.

Não se trata de afirmar que uma maneira é a certa e a outra é errada, mas de perceber que o “sistema” quer sempre estabelecer esse tipo de padrão para lidar com grande quantia de singularidades. Por mais que tente, ainda não consegue investir nas sutilezas de cada indivíduo. Acabamos encaixotados com nossos semelhantes conforme o que consumimos – cadastros de lojas, perfis de redes sociais, listas de interesses, desde Netflix a aplicativos de relacionamentos, entre inúmeros outros exemplos. Habitamos as ditas “bolhas de iguais”, ou seja, estamos em contato com pessoas de hábitos, gostos e pensamentos similares, das quais concordamos inclusive nas formas de discordar. Somos padronizados como lote de produtos recém-fabricados. As bolhas tornam nossos mundinhos mais confortáveis, seguros, acolhedores – e mais ilusórios também.

É o princípio de redes como o Facebook, onde vemos atualizações de poucas pessoas em nossa linha do tempo, ainda que tenhamos milhares de conexões. São os perfis que o sistema elege como compatíveis de acordo com um cruzamento de dados bastante complexo, mantendo os mais próximos em evidência a fim de nos entreter por mais tempo e, claro, fazer consumir mais anúncios. O algoritmo do programa afirma que temos muito em comum: somos atraídos pelos mesmos assuntos, frequentamos os mesmos lugares, temos os mesmos desejos, compartilhamos ideias e amigos. Porém estamos muito longe de instituir um comum, no sentido comunitário em que as individualidades se dissolvem numa experiência coletiva.

Um caso pessoal: costumo encomendar muitos livros pela internet. Ao escolher um título, recebo a mensagem sugestiva: quem comprou este também se interessou por... Na sequência há indicações de leitura baseadas em pedidos feitos por clientes de perfil compatível com o meu. Reiterando certa padronização, o sistema mostra opções de que também posso gostar e, de preferência, consumir. Não tenho dúvida de que se trata de uma ferramenta para conhecer autores. Entretanto a programação oferece as mesmas leituras aos mesmos leitores, desenvolvendo padrões de gosto viciados, manipuláveis e lucrativos. Se a ferramenta quisesse sugerir algo diferente, teria que inverter os dados e dizer: quem se interessou por este jamais compraria A ou B. Você gostaria de arriscar?

É claro que nenhuma empresa implementaria despropósito tão inusitado e incompatível com seu objetivo de venda. Porém se quisermos lidar com a diversidade sociocultural própria de nossos tempos, precisamos tentar escapar das capturas do sistema. Ler páginas de Facebook de cujo conteúdo discordamos ou, melhor ainda, abandonar a rede para conhecer quem não está nela. Buscar livros em outras seções da livraria, evitando os best-sellers importados. Quem sabe participar de encontros com escritores nacionais nas bibliotecas públicas? E também frequentar outros parques, restaurantes, bairros etc. São exemplos rotineiros, que podemos desenvolver de maneiras variadas. Talvez assim seja possível criar furos nas bolhas de iguais, deixando-as mais permeáveis à alteridade.

Se o diferente nos perturba, é essa perturbação que pode desestabilizar o funcionamento dos nossos próprios sistemas e nos tornar menos automáticos. Não é fácil. Aliás, é um tanto exigente. Mas é um princípio para nos fazer diferentes de nós mesmos; não há maior sinal de vitalidade do que a transformação.

Isso ajuda a pensar os casos em que a normatização pode ser ainda mais violenta, como no acompanhamento de menores infratores ou de usuários dos Centros de Atenção Psicossocial, por exemplo.

Neste semestre, tenho colaborado com o programa de estágio do Laboratório de Estudo e Pesquisa Arte, Corpo e Terapia Ocupacional da USP. Uma das estagiárias teve que lidar com situação inusitada durante suas atividades práticas: a senhora acompanhada por ela, que apresenta grave quadro de sofrimento psíquico, se pôs a dançar no Centro Cultural São Paulo. Ninguém mais dançava, sequer música havia. O que fazer?

Uma maneira de lidar com o caso seria impedi-la de burlar a moralidade e interromper sua dança. Uma resposta paradoxal às políticas de inclusão, fazendo com que a senhora em questão se comportasse como os demais ao seu redor, ou seja, agisse “normalmente”. É a primeira reação da maioria: voltar às regras, deixar de incomodar, obedecer aos preceitos sociais. Mas o que significa “ser normal”? Que padrão de comportamento queremos e a que custo? A estagiária titubeou. E optou por outra atitude: acompanhou a senhora na dança.

Alguns comportamentos que extrapolam as expectativas podem tirar as pessoas do conforto oferecido pela existência-modelo, verdadeiro porto seguro. Mas podemos entender algumas desobediências não como atentados às regras, e sim como oportunidades de algo diferente vir ao mundo.

Havia uma beleza transgressora naquela dança em meio ao CCSP. A dançarina sequer notou, ela apenas deu forma ao seu desejo. Nossa estagiária teve o privilégio de assisti-la. Só uma senhora “fora do padrão” poderia oferecer tal oportunidade. Que, se não tivesse se realizado, o dia da estagiária teria sido igual a todos os dias da maioria das outras pessoas. Nem mesmo este texto teria sido escrito.