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sábado, 11 de dezembro de 2010

HISTÓRIA SEM FIM


A persistência da memória (1931), de Salvador Dali

O ano vai acabar e, se não tivéssemos calendário, nem teríamos notado. Afinal, um dia termina em 2010 e outro começa em 2011 exatamente da mesma maneira como os outros 364 que os antecederam. Mas a gente sabe que não é assim. Chega dezembro, chegam as férias escolares, chegam convites para confraternizações e cartões de felicitação. O ritmo diminui, deixa-se para o ano que vem o que poderia ser feito hoje, mas é Natal, é compreensível. É hora de pensar nos presentes, na decoração, no cardápio da ceia e em convencer as crianças arteiras a se comportarem, de modo a provarem ao Papai Noel que merecem uma recompensa. Acho incrível esse poder que o fim do ano exerce sobre nós, capaz de mudar o comportamento do mundo inteiro. Tudo isso por quê? Não se trata apenas de uma data como outra qualquer, inserida num calendário inventado pelo próprio homem? Aliás, o calendário que usamos hoje foi modificado diversas vezes ao longo do tempo, seguindo os interesses mais variados. Como era quando ele ainda não existia? Como o tempo era percebido? Porque o tempo não são os ponteiros do relógio ou os dias que vamos riscando na folhinha; é algo muito mais complexo, um conceito físico e psicológico que mal conseguimos definir.

As horas, os dias e os anos não são o tempo; são apenas uma maneira que inventamos para mensurá-lo. Como um grande número de pessoas concorda e aceita, o tempo é assim. Mas poderia ser diferente. Veja o calendário judaico, já está no ano 5771. Está errado? Claro que não, trata-se apenas de um outro jeito de medir o tempo. Se pensarmos que a idade da Terra é estimada entre 4,6 e 15 bilhões de anos, que diferença faz uns milhares a mais ou menos?

Certa vez, o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty fez uma observação acerca do ato de ver. Segundo ele, a visão não está no olho e nem no objeto visto, mas na relação que se estabelece entre eles. Portanto, a visão é algo que está no mundo e que pertence a ele, e todos nós vemos e somos vistos pelas coisas. Merleau-Ponty chamou essa relação de transcendência. Acho que o mesmo vale para o tempo: não está em nós e não está nos objetos; está no mundo, estabelecendo relações que são percebidas de maneira diferente pelas pessoas. É por isso que uma tarde atarefada passa mais rápido que uma ociosa, assim como as férias voam enquanto os outros meses se arrastam. O dia 31 de dezembro chegará e não será igual aos outros. Será o encerramento de mais um capítulo do livro inesgotável que chamamos de história.

Isso me lembra duas obras de arte do brasileiro Antonio Dias que vi há poucos meses numa bonita individual realizada pela Pinacoteca do Estado de São Paulo. A primeira, de 1968, é um saco plástico cheio de terra e etiquetado com o título História. Pois o passado em que acreditamos é isso: apenas um pedaço do que existiu, recolhido e etiquetado como uma amostra de pesquisa. A margem de erro é imensa, ou seja, muita coisa aconteceu e não deixou registro, não temos a menor ideia do que foi, quando foi e como foi, assim como nossas atitudes no dia-a-dia se perdem sem que a História seja capaz de registrá-las com a devida precisão científica.


History (1968), de Antonio Dias

Aliás, a segunda obra trata justamente disso. Criada em 1971, seu título, escrito em inglês, diferencia dois conceitos de história de um jeito que a língua portuguesa não permitiria: History/Story, ou seja, "história como ciência/história como ficção". Ambas as palavras estão inseridas numa tela de grandes dimensões, cuja pintura faz alusão ao Universo. Elas compartilham o mesmo espaço e, naquele momento, ficou claro para mim o que são ciência e ficção: nada mais do que dois modos distintos de perceber a mesma coisa. Qual é o verdadeiro? Nenhum. Qual merece crédito? Os dois.

Tudo que guardamos na memória pessoal está fadado a desaparecer com nós. O que sobrevive ao tempo é somente aquilo que pertence à memória coletiva – são os fatos que "entram para a história".

Dia a lenda que Aquiles, filho de um deus grego com uma mulher humana, teve que escolher entre ter uma vida breve porém gloriosa ou viver muito como homem comum. Para desespero de sua mãe, ele optou pela primeira, impediu a derrota dos gregos na Guerra de Troia e morreu como herói. Para sustentar sua escolha, Aquiles disse que a verdadeira morte não é aquela que consome o corpo, mas a que o apaga da memória alheia. Realmente, nesse sentido, ele permanece vivo até hoje, basta abrir um livro de mitologia e conferir.


History/Story (1971), de Antonio Dias

Na 16ª edição da revista Chiclete com Banana, de 1989, os cartunistas Laerte e Angeli publicaram a irônica História do sujeito que queria entrar para a história. Ali, um mauricinho metido a esperto chega à porta da História e tenta convencer o segurança a deixá-lo entrar. Como seus feitos não são dignos de nota, ele se desespera e cai no choro, até que seu pai, um desses magnatas que estamos cansados de ver, paga "duzentos paus" e coloca o filho para dentro.

Será que é fácil assim entrar para a história? Em alguns casos, talvez. Mas acredito mesmo é nas palavras do artista francês Marcel Duchamp, para quem é a própria história que decide quem desaparece e quem permanece existindo, não importa quais são os nossos desejos e esforços.

A História é como o tempo: não está em nós e não está nos objetos; ela está no mundo. Por isso, minha filosofia para 2011 continua a mesma: procurar ser bom, não tirar vantagem dos outros, não me achar melhor do que ninguém e agir sempre pensando no coletivo, ética e moralmente, procurando entender suas razões e as aceitando.

Com o tempo, aprendi que é assim que as portas se abrem, independentemente de termos ou não duzentos paus no bolso. Porque a vida acaba, mas a história que estamos encenando não termina nunca. Desejo sinceramente que todos sejam felizes durante o espetáculo. Um dia, quem sabe?

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

O LUGAR DO GRAFITE NA CIDADE E NA SOCIEDADE

"As pessoas que passam por nossas cidades não entendem o grafite porque acreditam que nada deve existir a não ser que dê lucro, o que torna essa própria opinião sem valor."

Foi com essa lógica ácida e simples que o grafiteiro inglês Banksy conquistou minha admiração. O primeiro contato com sua obra ocorreu recentemente, quando ele reinventou a vinheta de abertura do seriado Os Simpsons a convite da produtora e obteve repercussão bastante polêmica. Na ocasião, Banksy criticou o próprio programa, o sistema capitalista de que faz parte, a máquina industrial chinesa, o trabalho infantil e a atitude indiferente da sociedade que consome os produtos desse processo. Tudo isso em pouco mais de um minuto de desenho animado.

Acho muito difícil concordar totalmente com alguém que viola e depreda patrimônio alheio – público e particular – para exercer sua arte. Mas assumo que o trabalho de Banksy, apesar do meio em que atua, é no mínimo intrigante. Veja bem, a abertura de Os Simpsons foi uma exceção, quase toda a produção do artista está nas ruas. Então, fico me perguntando se é possível dissociar o grafite desse meio; quer dizer, será que ele se sustentaria se não estivesse ocupando ilegalmente os muros da cidade? A resposta mais provável é "não".

Banksy precisa dos muros, mesmo que essa dependência não seja recíproca. Ele precisa da ilegalidade, do atrevimento, pois é isso que dá significado às suas criações – para não dizer visibilidade. Grafite sem violação é alma sem corpo, que vaga por aí sem jamais ser percebida pelos passantes.

Por mais que às vezes eu me convença das reais necessidades dessa prática, do engajamento, da subversão dos valores, da crítica política e social, como poderia justificá-la? Como poderia argumentar a favor, estando do lado da lei? Não, defendê-la seria hipocrisia, seria abrir precedente para diversas outras práticas tão ou ainda mais danosas. Nosso papel nessa relação é ser contra. Aquela obra precisa dessa forma paradoxal de legitimação para sobreviver, precisa dela tanto quanto das paredes em que ganha corpo, precisa da madrugada, da adrenalina e da ousadia. Em outras palavras, o consentimento da comunidade destruiria o conceito da obra ou, no mínimo, a condenaria a se adequar ao universo da arte reconhecido oficialmente – título que, com certeza, o grafite não deseja.

Como disse antes, é muito difícil estar totalmente de acordo com Banksy e seus semelhantes, mesmo que os argumentos utilizados por eles se baseiem na tradição amplamente aceita de que "a parede sempre foi o melhor lugar para exibir o trabalho [artístico]".

Aliás, o livro de onde tirei essa citação é uma fonte de pesquisa bastante irreverente. Chama-se Wall and Piece (Muro e Obra), uma analogia com War and Peace (Guerra e Paz). Escrito pelo próprio Banksy, ele apresenta um panorama de seus trabalhos e elucida a maneira como o autor entende a arte de rua. Se não nos convence a aceitá-la, ao menos dá a oportunidade de refletir sobre o assunto e imaginar, por exemplo, os motivos de o grupo Pixação SP ter sido convidado a participar da 29ª Bienal de São Paulo, mesmo após os ataques polêmicos ocorridos durante a edição anterior. O catálogo da nova mostra explica a decisão dos curadores afirmando que "nem tudo que é arte o campo institucional é capaz de abrigar ou de entender plenamente". Acho que o mesmo vale para nós, cidadãos-espectadores.

O fato de Banksy chegar à televisão e às livrarias, de o grupo Pixação SP estar na Bienal e de muitos outros grafiteiros serem aos poucos incluídos em galerias e museus de todo o mundo prova que a sociedade se interessa cada vez mais por esse tipo de arte, não somente por curiosidade, mas também para aprender a lidar com ela. No entanto, é bem difícil prever o futuro dessa relação. Pois já constatamos que o grafite conquistou um lugar de destaque na cidade; agora, resta saber com exatidão que lugar é esse, se deve continuar ilegal, se é célebre ou banalizado, atraente ou banido, cultuado ou apenas perseguido. Mesmo estando a apenas alguns passos de um muro grafitado, ainda vai levar um tempo para nos posicionarmos com segurança em relação a ele. Enquanto isso, as discussões estão abertas e são muito bem-vindas.


Ria agora, mas um dia nós estaremos no comando, de Banksy


Este artigo também foi publicado em Psicanalítica – Revista de Cultura e Arte

domingo, 17 de outubro de 2010

A RAIVA DO FILÓSOFO


O arremessador de flores, de Banksy

Quando algum imbecil fechar seu caminho no trânsito, pense em Sêneca. Quando lhe deixarem horas esperando em pé na fila do banco, pense em Sêneca. Quando lhe enviarem um cartão de crédito não solicitado ou aumentarem as tarifas telefônicas, pense em Sêneca também, para variar. Não que o velho filósofo tenha sido bom motorista, cidadão ou consumidor, mas porque já na Roma antiga ele percebeu que a raiva não leva a lugar algum, exceto à cova, e normalmente mais cedo do que gostaríamos.

Falar é fácil, difícil é se controlar na hora H. Mas compreender esse sentimento segundo o ponto de vista de Sêneca nos ajuda a lidar com ele e, consequentemente, com as situações desagradáveis que a vida impõe.

Isso porque grande parte dos acontecimentos estaria sob o controle da deusa Fortuna, administradora do destino dos homens, e desafiar o poder divino estava fora de cogitação. Não restava nada a fazer, exceto se consolar com a ideia de que, se não podemos mudá-los, temos ao menos a liberdade de determinar a maneira como reagimos a eles. Afinal, "tudo depende do conceito que temos das coisas", ou seja, da maneira como as enfrentamos.

Por que deixamos os problemas do dia a dia nos irritar? De acordo com Sêneca, porque criamos muita expectativa a respeito deles. Depois, quando a realidade dá as caras e carrega nossos desejos para o ralo, não sabemos responder filosoficamente à frustração decorrente.

Quer dizer, o trânsito nos irrita porque, cada vez que tiramos o carro da garagem, acreditamos, ainda que inconscientemente, que ninguém cometerá barbeiragens pelo caminho. O aumento das tarifas nos tira do sério porque estávamos seguros de que nenhuma empresa teria a ousadia de planejar a exploração de nossos bolsos enquanto aguardávamos pacientemente a conta chegar; enquanto a fila do banco nos deixa com vontade de xingar todos em voz alta porque, em nossa vã ingenuidade, ninguém teria pensado em levar a cabo seus afazeres financeiros exatamente no mesmo instante que nós, por mais que seja hora do almoço do dia trinta.

A filosofia, no entanto, está aí para nos ensinar a sermos felizes, mesmo que isso signifique encarar a vida com um pouquinho de pessimismo. Se assumirmos que o mundo não é perfeito e não deixarmos as expectativas nos iludirem, as situações que fogem ao nosso controle serão aceitas mais facilmente.

É um exercício que vale a pena experimentar. Pela manhã, antes de sair de casa, pense em tudo que pode dar errado: o trânsito, a xícara de café derramada na calça, as reuniões intermináveis, o almoço engolido em cinco minutos, o telefone que não para de tocar, o salto alto quebrado, o banco lotado, o chefe mal humorado e a necessidade súbita de fazer hora extra durante a novela ou o campeonato brasileiro. Pense também que não há nada que você possa fazer para impedir esses desastres. Assim, tudo o que sobrar será lucro.

Parece uma maneira por demais melancólica de encarar a vida, lembra até aquela hiena dos desenhos animados que vivia resmungando "Oh, vida. Oh, azar". Só que o segredo é não exagerar, afinal, trata-se de um exercício filosófico cujo objetivo é mostrar que não temos controle sobre tudo e que, portanto, ninguém precisa sofrer com isso. Talvez o termo exato nem seja "pessimista", apenas "racional" ou mesmo "realista".

Sêneca também dizia que sofrer por antecipação nos faz perder o presente por medo do futuro. "Somos, no mais das vezes, mais vítimas do nosso terror do que dos perigos reais, e sofremos mais com a ideia que fazemos das coisas do que com as próprias coisas". Ele ainda nos aconselha a não sermos infelizes antes da hora, porque os perigos que tememos talvez nunca cheguem.

Era um homem que sabia das coisas. Escreveu mais de vinte livros inspirado no que acontecia ao seu redor, o que nos permite supor que a vida não era fácil naquela época. Em 49 d.C., só para citar um exemplo, o filósofo recebeu a ingrata tarefa de educar um menino rebelde, metido a dono do mundo, que mais tarde se tornaria o temível imperador Nero e o condenaria ao suicídio induzido.

Portanto, quando alguma coisa tirar você do sério, pense em tudo que Sêneca aprendeu e que ainda hoje nos serve de lição. E, quando alguém quiser lhe consolar dizendo que "vai ficar tudo bem", não se iluda. Considere apenas que, se não ficar tudo mal, já será um ótimo resultado.

domingo, 19 de setembro de 2010

O FIM DE UMA ILUSÃO



A Bienal de Arte de São Paulo está de volta pela vigésima nona vez e com ela vem também uma série de dificuldades de recepção por parte do público, às quais eu gostaria de pôr um fim. Seria muita pretensão mudar o comportamento do milhão de visitantes esperados com apenas uma crônica, mas eu já ficaria satisfeito se conseguisse ajudar pelo menos meia dúzia a aproveitar ao máximo esse que é o principal evento de arte do país e, talvez, um dos "top 3" do mundo. A começar pela seguinte revelação: as obras que você gostaria de ver por lá, tipo Van Gogh e Monet, com paisagens bucólicas coloridas e belas flores repousando num jarro em cima da mesa não estarão presentes. Aliás, já tem mais de meio século que sequer vemos quadros tradicionais pendurados nas paredes, quem dirá pinturas daqueles gêneros. Não fique triste, dá para contemplar essas obras-primas em diversos outros museus da cidade, tais como o MASP e a Pinacoteca, sem contar as constantes retrospectivas que se organizam em galerias, institutos culturais etc. A questão é que a Bienal tem outro propósito: reunir produções relevantes que estão sendo desenvolvidas atualmente ao redor do mundo, em geral escolhidas segundo tema específico. Isso não significa que só há no pavilhão trabalhos com até dois anos de idade – alguns possivelmente são mais velhos do que você, mas foram produzidos a partir de conceitos artísticos vigentes ainda hoje e que, portanto, pertencem àquilo que chamamos de arte contemporânea. Que conceitos seriam esses? Bom, são muitos, porém posso afirmar que a ideia da "obra como janela", ou seja, aquelas tentativas de criar uma ilusão e transportar você a uma nova realidade, já não existe mais. Em outras palavras, ninguém verá pinturas contendo um universo isolado, capturado e emoldurado, tampouco tentará entrar nelas para chegar à realidade do artista. Agora, é a obra que vem até você, que salta da parede e tenta penetrar a sua realidade. Parece esquisito, só que, na verdade, é muito mais legal. É por isso que os trabalhos raramente ficam pendurados nas paredes – eles venceram o confinamento das molduras e querem interagir com o público. O que nos leva a outro conceito importante da arte contemporânea: você, espectador, foi promovido à coautor do artista. Eita. Isso significa que eu, mero curioso, posso interpretar as obras à minha maneira e criar as minhas verdades a respeito delas? Até certo ponto, sim. Quer dizer, você não precisa mais quebrar a cabeça para desvendar a intenção do artista. No contemporâneo, ele sugere uma ideia e você a completa com sua própria experiência de vida. Por exemplo, o desenho de uma suástica. Com certeza, ele estimulará sentimentos diferentes se o visitante for judeu ou não. Mas, se a suástica é a mesma para ambos, o que muda? O visitante, ora. Percebe a liberdade de apreensão? Porém, como eu disse antes, você pode interpretar a obra como bem entender até certo ponto. Porque a Bienal ficará muito mais interessante se você conhecer a história do artista. Aproveitando o exemplo da suástica, você concordaria que a obra se transforma completamente quando descobrimos que o seu criador não é judeu, ateu ou praticante de qualquer outra religião, mas neonazista, certo? Pode acontecer... Isso nos leva a outro preceito importantíssimo da arte contemporânea: devemos conhecer o contexto da obra, pois normalmente ele é revelador. Só que a Bienal é enorme, como farei para descobrir a particularidade de cada artista? Não dá. A melhor saída é fazer uma visita guiada, pois a equipe de educadores passou meses estudando a exposição e vai adorar explicá-la a você. Eles estão lá para isso, então não tenha vergonha de perguntar tudo, por mais óbvio que possa parecer. Porque arte deve ser simples e prazerosa, e não um tormento inacessível. As obras de hoje costumam ter apelos conceituais, ou seja, nem sempre são o que parecem ser à primeira vista. Para explicar melhor, vou citar o Parangolé, do brasileiro Hélio Oiticica. Trata-se de uma capa de tecido, que deve ser utilizada para dançar. É uma das obras mais importantes da nossa história da arte. Mas você a verá exposta e sabe o que vai parecer? Um retalho de pano, "que até meu sobrinho de dois anos faria igual". Porque a obra não é a capa em si, mas o uso dela, aqueles movimentos ritualísticos que, ao ritmo da música, provocam uma experiência maior, que mistura cor, som e emoção, que nem o Carnaval. Mas como você vai descobrir isso? Tem que perguntar aos educadores, porque não dá para colocar um grupo de pessoas dançando o tempo todo na Bienal, né? Imagina a disposição! Eu quis citar o Oiticica porque haverá algumas obras fundamentais dele por lá, porque elas foram criadas há décadas e porque ele nos ajuda a deixar a tentadora ilusão da arte antiga de lado e adentrar esse rico universo de possibilidades do presente. Além do mais, ele chamava o espectador de um jeito muito mais carinhoso: participador. Portanto, deixo aqui o convite: vamos visitar a 29ª Bienal de São Paulo sem preconceitos, porque muita gente trabalhou sério durante pelo menos dois anos para proporcionar essa experiência física e intelectual. É uma oportunidade única que, se você permitir, acabará com uma série de ilusões ingênuas e lhe apresentará uma nova e maravilhosa realidade artística: a realidade de agora.


Quer saber mais sobre os Parangolés? O vídeo abaixo mostra uma experimentação da obra na Praça da República, Belém/PA.


29ª BIENAL DE SÃO PAULO
Parque do Ibirapuera - Portã​o 3
Pavilhão Ciccillo Matarazzo (Pavilhão da Bienal)

De 2ª a 4ª feira das 9 às 19h
5ª e 6ª feira das 9 às 22h
Sábado e domingo das 9 às 19h
(entrada admitida até uma hora antes do fechamento)

De 25 de setembro a 12 de dezembro
Entrada gratuita
Mais informações: http://www.29bienal.org.br/

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

MUITO EXCESSO É DEMAIS


Monalisa aos doze anos de idade (1959), de Fernando Botero

Quando idealizei esta crônica, eu queria falar dos exageros do homem contemporâneo. Só que, na hora de colocar a ideia no papel, eram tantas analogias, referências e citações que não sabia nem por onde começar. Foi assim, por acidente, que também me descobri vítima desse mal. Um mal que nos obriga a saber tudo sem entender nada, a acumular amigos sem conhecer ninguém de verdade, a correr para cumprir missões que poderiam ser postergadas e a exigir informações cada vez mais objetivas. Pois, agora, qualquer tempo usado é tempo perdido.

O fato de ter chegado a este segundo parágrafo já faz de você um(a) vitorioso(a). Tenho certeza de que muitos começaram a ler e pensaram "isso não me interessa", passando rapidamente à próxima coluna, enquanto outros acharam "legal, vou guardar para ler depois" e jamais retornarão àquele velho recorte de jornal. É uma pena, porque vou falar de Epicuro, um interessante filósofo que viveu entre 341 e 270 antes de Cristo e que, naquela época distante, já sabia das coisas. Entre elas, como lidar com os exageros e onde encontrar a felicidade.

Você já deve ter visto por aí o termo "epicurista", embora provavelmente tenha uma noção errada de seu significado original. Fui consultar o dicionário e mesmo lá se usa "materialista" e "sensual" para defini-lo. Só que Epicuro não foi um homem banal, ainda que sua grande contribuição para a história tenha sido adotar o prazer como estilo de vida e, a partir dele, ter formulado seus conceitos filosóficos. "Não sei conhecer o bem", escreveu, "se reprimo os prazeres da mesa, da luxúria e da audição, e se me privo das agradáveis emoções causadas pela visão das belas formas".

Uma leitura superficial pode trazer mesmo a ideia de que a felicidade de Epicuro estava diretamente relacionada com a comilança, o sexo e a preguiça – é aí que tudo se confunde. Na verdade, poucos filósofos foram tão francos em admitir que a vida deveria se voltar ao prazer. Um número ainda menor se preocupou em desvendar o que seria esse prazer e como, em geral, ele é erroneamente associado com fama, poder e extravagâncias. Epicuro estava entre estes últimos.

A pergunta que direcionou todo o seu pensamento foi: "O que me fará feliz?" Ele sabia que a intuição não bastava para obter uma resposta consistente, porque não é realizando desejos como trocar de carro uma vez por ano, comer em restaurantes caros e se relacionar com o maior número possível de pessoas que se atinge a felicidade plena. Esta seria encontrada a partir de um esforço basicamente racional, ou seja, a tarefa da filosofia consistia em ajudar a interpretar nossos impulsos e, desse modo, evitar planos equivocados para a conquista de prazer. Em outras palavras, a felicidade viria da melhor compreensão de nossos desejos e necessidades, ao invés dos exageros que muitas vezes se impõem com a promessa de satisfação.

Para você ver como o termo "epicurista" é mal empregado, a casa do filósofo era simples, assim como sua comida. Não havia excessos materiais ou sensuais, como sugere o dicionário. A felicidade se justificava apenas com a presença de amigos e com a liberdade de agir sem vergonha de si mesmo, ou seja, sem a obrigação de provar nada a ninguém. A reflexão era seu único requisito para acalmar a mente e reconhecer o valor das coisas simples, como o alimento, a natureza e a tranquilidade. Sua filosofia era tão visionária que, já naquele tempo, se preocupava com o poder da propaganda. Para ele, a publicidade não influenciaria tanto nossas vidas se não fôssemos sugestionáveis em demasia.

O que me fez lembrar de Epicuro foram alguns fatos decorrentes dos últimos grandes eventos literários do país: a FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty) e a Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Na primeira, ganhei um adesivo com os dizeres "Você pode ler mais". Na segunda, me deparei com uma coleção de livros assinada com as palavras de ordem "Leia mais". É verdade que, comparado a outros povos, o brasileiro lê pouco. Mas, vendo todo esse exagero que movimenta nossas vidas, fiquei me perguntando se essa seria a melhor abordagem para incentivar a leitura por aqui. É curioso como aceitamos passivamente essas mensagens, enquanto consideraríamos absurdo um "Você pode comer mais" nas embalagens do McDonald´s, por exemplo, ou um "Fume mais" nos maços de cigarro.

Não dá para levar tudo ao pé da letra, nem mesmo o epicurismo. Um exagero ou outro, aliás, pode ser saudável, porque é testando os limites que demarcamos a área mais segura para se habitar. Como disse um colega de trabalho, alguns excessos fazem parte, são eles que dão emoção à vida e que nos tiram da rotina. Só não podemos abusar sem considerarmos os ensinamentos daquela filosofia, que buscava na razão o sentido de nossos desejos e o equilíbrio verdadeiramente saudável. Pois, como meu colega disse, "a gente só quer ser feliz; porém, até mesmo quando o assunto é felicidade, muito excesso é demais". Percebi na hora que não haveria título mais apropriado para esta crônica.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

INTELECTUAIS TAMBÉM FAZEM XIXI FORA DO VASO



Em sua oitava edição, a FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty) continua batendo recordes, seja de visitantes, velocidade de venda de ingressos ou reconhecimento internacional. Estive lá no último sábado para respirar aqueles ares e assistir ao debate entre Robert Crumb e Gilbert Shealton, dois quadrinistas da dita contracultura americana. Foi minha segunda FLIP – já tinha participado em 2008 – e foi diferente, claro, as coisas mudam bastante e em pouco tempo. Sabe o que mais chamou minha atenção? O lugar que a literatura perdeu para as outras atrações.

Sim, na primeira vez, Paraty cheirava a livros, via-se papel pólen por toda parte, jornais e revistas abertas, leitores ávidos por exercerem sua função e exibir os títulos favoritos pelas ruas. Lia-se até manual de instruções e direito autoral de cardápios. Havia também escritores inéditos em busca de editoras, outros vendendo livros publicados do próprio bolso, gente de todo o país divulgando trabalhos como verdadeiros mascates. Só que agora não. A cidade estava abarrotada, é verdade, mas de seguranças, artesãos, camelôs, violeiros, índios, estátuas vivas, fotógrafos, jornalistas, celebridades e curiosos tarados por muvuca. A FLIP agora é pop, sabe, todo mundo quer dizer que esteve lá pagando de intelectual, mesmo que o último livro lido tenha sido da Coleção Vagalume, no ensino fundamental.

Nada contra, claro, a participação é direito incontestável. Só que os números preocupam e, como disse, a FLIP não para de bater recordes. Os restaurantes, por exemplo, não davam conta dos clientes – meu almoço demorou uma hora e meia para chegar. Folhear um romance entre bebericadas de café também era um prazer impraticável, porque as mesas estavam sempre ocupadas e a espera era longa. E os banheiros... esse foi o capítulo verdadeiramente tenso da história, pois toda a água, cerveja e refrigerantes consumidos pelos milhares de visitantes terminavam num reduzidíssimo número de banheiros químicos – falha grave da organização que vai marcar minha biografia para sempre.

De resto, posso dizer que as lojas de cachaça, miçangas e bugigangas estavam bastante concorridas – talvez até mais do que os banheirinhos de plástico –, assim como as festas dos patrocinadores. A única livraria do centro histórico, no entanto, fechou. Livro mesmo, só na unidade temporária da Livraria da Vila, com sede em São Paulo, que montam lá durante esses dias. E depois? Os autores se vão, os volumes se vão e os leitores que sobram ficam órfãos. Muito triste.

Agora, se as exposições de fotografia, artes plásticas e manifestações literárias passavam despercebidas nas instituições culturais, a programação da Flipinha e da FlipZona (para crianças e jovens) arrasou, positivamente falando. Tinha música, pintura e quadrinhos, além de contação de histórias e discussões na língua da moçada. Tenho certeza de que eles se divertiram à beça. Assisti à apresentação de dois jovens músicos da região, que tocaram canções criadas ali mesmo, pelas gerações passadas, e à palestra de Sérgio Martinelli, sobre produção de textos para cinema e TV. Ambas com gente em pé, de tão cheias.

O debate entre Crumb e Shealton foi morno, quase frio, com perguntas genéricas a respeito da época de ouro deles e respostas prontas que se encontra em qualquer entrevista concedida nos últimos quarenta e cinco anos. Eu queria saber a opinião deles sobre as produções contemporâneas, próprias e alheias, e os fãs estavam tão ansiosos quanto eu; porém, exceto por breves comentários acerca das obras recém-publicadas e pela participação inesperada da esposa – também quadrinista – Alice Crumb, pouco se salvou. Dava para perceber a decepção geral pelos murmurinhos na saída.

Mas, como o nome diz, a FLIP é uma festa, não uma feira, e foi divertida como toda festa deve ser. Não quero você pensando que odiei, muito pelo contrário, não tem como odiar Paraty, a não ser que se esteja em cadeira de rodas. A comida estava boa, as pessoas pareciam felizes e a movimentação era, de alguma maneira, cultural. Talvez a falta de estrutura tenha se mostrado apenas no sábado, quando aparece mais gente. Não pude ficar no domingo para averiguar, já que escolheram bem o Dia dos Pais para finalizar o evento – sabe como é, não dava para trocar o almoço com o meu por um Breakfast at Tiffany´s.

Em resumo: não consegui nenhum autógrafo, não adquiri nenhum livro e praticamente não escrevi. Confesso que dei minhas escorregadas não-literárias e comprei lembrancinhas para a família, tudo por culpa daquelas lojinhas charmosas. Tampouco descobri grandes novidades do universo das letrinhas, embora tenha constatado nos banheiros químicos que intelectuais também fazem xixi fora do vaso e, quanto a isso, só posso agradecer por ter nascido menino.

Ao mesmo tempo em que o excesso de celebridades e assuntos aleatórios me incomodou, eles significam que a FLIP têm obtido sucesso e nos resta apenas engoli-los. Afinal, realizações desse porte os atraem, invariavelmente. O ciclo continua, pois os hotéis já estão sendo reservados para a próxima edição. Quem devora livros e não aguenta esperar, pode matar a fome na Bienal de São Paulo, que está começando. Por sua vez, quem adora aquela cidade, encontra em setembro o Paraty em Foco, importante evento de fotografia. Eu, por minha própria vez, vou tirar uma folga e ler a montanha de panfletos, revistas e jornais que acumulei pelo caminho. Haja literatura!


[Também publicado (com algumas modificações) em Colherada Cultural]

terça-feira, 6 de julho de 2010

POR QUE NÃO?


Alvo com quatro faces (1955), de Jasper Johns

Dois meses atrás, comecei a praticar arco e flecha. Você, igualmente a todos para quem dei a notícia, deve ter pensado: "Arco e flecha? Por quê?", ao que já adianto uma réplica: por que não? É uma atividade antiquíssima, já serviu à caça, à guerra e agora é esporte olímpico. Exercita o lado físico e mental do atleta – para atirar, é preciso ter em mente apenas o alvo, e para isso deve-se deixar todo o resto muito bem preparado, incluindo musculatura, técnica, confiança, concentração etc., mais ou menos como uma estratégia de marketing promissora. Por isso eu digo, se você tiver capacidade de abstração, por menor que seja, e conseguir enxergar nas coisas outros sentidos que não os mais óbvios, abandone os livros de autoajuda e vá praticar arco e flecha. Dá para retirar dali toda uma filosofia, à lá Sun Tzu.

Por exemplo: arco e flecha tem tudo a ver com eleições políticas, quando temos apenas uma tentativa para acertar o alvo e não podemos desperdiçá-la, assim como não podemos dar nosso voto a um governante qualquer e depois querer voltar atrás. Do mesmo jeito que para disparar um bom tiro o arqueiro precisa se preparar, conhecer-se interna e externamente, ser consciente de seu lugar no espaço, preparar o corpo e a mente, buscar a perfeição ou, melhor dizendo, a otimização de todos os elementos envolvidos, o eleitor, por sua vez, deve ter em mente as necessidades da nação – e não unicamente as suas –, deve conhecer a fundo os candidatos e os planos de governo, deve se concentrar e acreditar no poder de seu voto. Se a maioria se dedicar de verdade, tenho certeza de que acertará em cheio.

Mas, por que treinar arco e flecha no país do futebol? Bom, já joguei bastante bola na vida, especialmente na época do colégio, e sempre fui um grande perna de pau. Não adianta, não nasci para a coisa e nunca a levei tão a sério quanto meus colegas. Para mim, futebol era apenas distração e risada. Só que o esporte é um cânone brasileiro, parece a única alternativa sensata por aqui e o resultado disso é o amadorismo que o país demonstra nas olimpíadas, com as pouquíssimas medalhas que conquista. Quero só ver em 2016, quando sediaremos o evento. E não adianta querer compensar, dizendo que somos os únicos a ganhar cinco Copas do Mundo; pois, se é verdade que ganhamos cinco, também é verdade que perdemos catorze.

Pode até existir um pouco de preconceito, mas acho que não se praticam outros esportes por aqui porque nem se pensa neles, ou porque deles se conhece muito pouco. Além do mais, futebol combina perfeitamente com a nossa realidade socioeconômica, já que basta uma latinha de refrigerante amassada para a turma toda se divertir, enquanto outras modalidades costumam exigir algum investimento. De vez em quando aparece um Guga, uma Daiane dos Santos ou uma Maurren Maggi para abrir os olhos da população, mas o fogo nunca dura muito tempo. É claro que não existe apoio do governo, só que, se a gente não tem nem escola e hospital decentes, quem dirá lei de incentivo a esportes pitorescos. Imagine aulas de arco e flecha no ensino fundamental. Parece piada...

Aí está um exercício interessante: imagine-se praticando algum outro esporte que não seja futebol ou levantamento de garfo. Não poderia ser legal? Então, por que não pesquisar um pouquinho e tentar? Uma das experiências mais ricas que a vida de publicitário me proporciona é a de lidar com o inusitado. Recentemente, me vi em uma sala de reunião com seis marmanjos das mais diversas estirpes, discutindo as diretrizes de uma concorrência da qual a agência resolveu participar. Tratava-se do contrato com uma multinacional que fabrica potes plásticos, desses de cozinha, que se acumulam caoticamente nos armários. Em poucos minutos, tínhamos montado e desmontado uma série deles e me vi refletindo sobre durabilidade, resistência, elasticidade, tecnologia, praticidade, design e reciclagem de um troço que nunca fez a menor diferença em minha vida. Se me perguntassem naquela manhã, quando ainda não sabia da reunião, o que eu entendia de potes plásticos, provavelmente teria dito que nada. Porém, duas horas depois, fui colocado à prova e passei. Por quê? Porque não tive receio de encarar um assunto novo quando precisei.

O mesmo aconteceu com o arco e flecha. Certa vez, li relatos sobre os arqueiros ingleses da Idade Média e pensei: deve ser legal praticar isso aí. Fui atrás, comecei e gostei. Hoje em dia, já consigo acertar uma maçã a dez metros de distância (não exatamente na primeira tentativa). Alguém se voluntaria a colocar uma na cabeça e me ajudar?

Pensar e agir é uma sequência de atitudes inteligente e muito mais produtiva do que apenas agir ou, ainda, pensar depois de agir. Considere-a nas próximas eleições e também durante o resto de sua vida. Pois viver é uma arte complexa, que exige técnica, inspiração e muita reflexão. Como diz o crítico Luiz Camillo Osorio, a arte não veio para explicar ou para confirmar nada, mas para nos fazer pensar e falar. As coisas mais improváveis vão se transformar nas mais simples se você se abrir às novidades.

Esta crônica mesmo é um exemplo. Se tivessem lhe pedido para relacionar, num texto curto, assuntos tão díspares quanto arco e flecha, eleições, potes plásticos e crítica de arte, qual seria a sua resposta? "Deixa comigo" ou "impossível"? Em minha opinião, a melhor resposta é sempre a réplica com tom de autodesafio: por que não?

sábado, 19 de junho de 2010

AS ASAS DAS BORBOLETAS



Imagine-se caminhando por um campo florido sob o claro sol de inverno, a brisa fria tocando seu rosto de leve, o céu azulzinho, a grama ainda molhada pelo sereno da noite recém-vencida. E uma xícara de café quente lhe aguardando a poucos passos num chalé com lareira acesa e cheiro de pão no ar. Agora, imagine-se preso a uma cama de hospital com o corpo totalmente paralisado, os olhos fixos no teto, condenado a sonhar eternamente com a cena anterior sabendo que jamais poderá vivenciá-la. Imagine também a angústia de não poder falar, escrever ou fazer qualquer outra coisa para dividir esse sentimento com alguém.

Não importa o quanto você imagine, jamais poderá compreender a realidade de quem carrega uma sina tão cruel. Ainda bem que aos poucos vêm surgindo promessas de melhorias, seja para revertê-la, seja para amenizar o sofrimento.

Talvez você também esteja imaginando por que trago um assunto delicado como esse para o caderno de cultura. Simples: um projeto recente tem ajudado pessoas com paralisia a recuperarem a vontade de viver por meio de – adivinhem – arte.

Acho que não existe nada pior do que sermos privados de nossa expressão pessoal ou, melhor dizendo, dos meios que possuímos para exercê-la. Porque o ato de expressar-se é natural do ser humano, não conseguimos simplesmente nos livrar dele. Colocar sentimentos, vontades e pensamentos para fora é nossa maneira de pertencer ao mundo.

Olhe ao redor, todos se revelam de alguma maneira, seja pintando girassóis, seja jogando bola, cozinhando, organizando encontros de amigos e assim por diante. Agora, o que faríamos se de repente nos víssemos obrigados a manter essa necessidade criativa trancafiada, essa criança hiperativa que quer pular, cantar e correr o tempo inteiro? É uma tarefa árdua e também impossível de se cumprir sozinho.

Eis que surge o EyeWriter, um projeto que visa desenvolver a capacidade expressiva a quem perdeu os movimentos do corpo. Simplificando, trata-se de óculos equipados com microcâmera que, ligados a um software gráfico, reconhecem o movimento do globo ocular e possibilitam a execução de desenhos digitais. São três equipes de profissionais que, em parceria com o grafiteiro Tony Quan (diagnosticado em 2003 com uma doença degenerativa) vêm implementando as novas descobertas em diversos países. Eles utilizam materiais locais e fontes de pesquisa compartilhadas para obterem resultados positivos com custo baixo, o que possivelmente caracteriza o grande diferencial do EyeWriter e o torna muito mais relevante. Afinal, quanto mais barato for, mais pessoas terão acesso. No site do projeto há inclusive um passo-a-passo para quem precisa montar um.

Fiquei muito contente ao descobrir tamanha engenhosidade e me lembrei imediatamente de Jean-Dominique Bauby, ex-redator chefe da revista francesa Elle, atingido por aquilo que a medicina chama de "locked-in syndrome" (literalmente, trancado dentro de si mesmo). Durante os meses em que ficou hospitalizado, ele podia mover apenas um olho, que se tornou seu meio de conexão com o mundo. Com esse olho, Bauby realizou a proeza de escrever um livro, intitulado O escafandro e a borboleta, no qual relatou as angústias enterradas sob sua pele. Isso só foi possível graças a um precário sistema de "digitação" criado por sua enfermeira, que ia ditando letras até obter uma piscadela do paciente.

Bauby memorizava os capítulos previamente e, letra por letra, palavra por palavra, o livro foi surgindo. Isso o manteve focado, produzindo, refletindo e enfrentando diariamente a situação crítica que vivia. Talvez possamos até mesmo dizer que foi aquele sistema de escrita que o manteve são, dividindo com o papel o peso psicológico da doença. Em determinado momento, ele revela: "O escafandro já não oprime tanto, e o espírito pode vaguear como borboleta".

Jean-Dominique Bauby venceu a doença porque pôde continuar expressando seus sentimentos e se sentindo parte do mundo. Sua história ainda hoje é exemplo do poder vital da criação artística. Imagino que projetos inovadores como o EyeWriter permitirão que muitas outras histórias semelhantes se concretizem. Pois, contrariando a sabedoria popular, talvez não seja a esperança a última que morre, mas nossos sentimentos mais profundos. Quando tudo parece ter chegado ao fim, eles permanecem vivos. E a arte ainda pulsa.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

O(S) BABACA(S) DO GULLAR


Merda de artista, lata número 20 das 90 produzidas por Piero Manzoni em 1961. Elas foram vendidas pelo mesmo valor do peso do ouro.


Perguntei a Ferreira Gullar por que uma obra de arte deve sobreviver ao tempo, já que ele afirma a rápida decadência das “bobagens conceituais”. Será que elas não podem emocionar uma geração e depois ficar com seu discurso obsoleto? O que há de errado nisso? Eu estava com medo de que essa maneira de pensar se tornasse mais um critério para a definição de arte e não-arte – e ninguém precisa retomar esse debate retrógrado.

Gullar não tinha resposta, fingiu indignação e fez pouco caso da pergunta, como se a solução fosse tão óbvia que não merecesse ser anunciada em voz alta.

Para mim, qualquer manifestação humana é arte, não importa o quanto dure. Podemos ir de um gostoso pudim de pão à Monalisa: querer provar que não são obras de arte não leva a lugar algum. A obra pode mexer ou não com você, emocionar a muitos ou somente ao seu autor, conter uma ideia evidente ou não. E ponto final. Talvez esses critérios sirvam para medir sua relevância histórica, mas não vejo outro tipo de julgamento a ser feito. Aliás, qualquer nova medida parecerá impertinente e egoísta.



Vitória de Samotrácia

Gullar se sente dono da verdade e acredita que sua fama lhe dá o direito de ser mal educado. Chama os artistas conceituais de babacas, quer interná-los em hospitais psiquiátricos. Teimou comigo que obras como a Merda de artista, de Piero Manzoni, não são arte. Chamou-a de “cocô na lata” e disse que essas ideias esdrúxulas não sobrevivem. Ficou louco da vida quando retruquei, dizendo que, se não sobrevivem, por que ainda estávamos falando delas, quase meio século depois? E por que constam em qualquer livro básico de História da Arte, apenas alguns capítulos depois da Vitória de Samotrácia e do Davi, de Michelangelo?

A questão é não julgar a criação de Manzoni segundo aspectos formais, livres de contexto. Ou mesmo a Fonte, de Marcel Duchamp, outro exemplo dado por ele. Clemente Greenberg, influente crítico do modernismo, tentou seguir por esse caminho e chegou somente até meados do século passado, quando ficou sem critérios para continuar. Porque a arte mudou bastante e ambas as obras citadas aqui são concepções intelectuais, cápsulas de ideias, que não pretendem ser bonitas ou feias. Têm origem conceitual, criticam nossa maneira de encarar a produção artística, os artistas e a nós mesmos. São manifestações que falam da vida, das regras que se criam e se quebram e do comportamento humano perante tudo isso. Elas têm seu valor garantido, independentemente de Gullar gostar ou não.



Fonte (1917), de Marcel Duchamp

Para fechar com chave de ouro, ele quis provar para mim que a teoria da reprodutibilidade técnica de Walter Benjamin está completamente errada, pois a “aura” do objeto artístico continuaria existindo mesmo nas obras reproduzidas em larga escala. Acho que não entendeu direito o texto, ainda mais porque quis justificar sua posição dizendo que um veículo de 1930 foi vendido recentemente na Europa por 40 milhões de euros, mesmo tendo saído da fábrica junto com muitos outros iguais. Ora, esse é o exemplo perfeito do contrário, da aura adquirida com o tempo devido à raridade. Pois existem obras que se tornam “auráticas” por serem únicas, como a Monalisa; devido à autoria, como as cópias do Pensador, de Rodin; e devido à raridade, como esse carro que ele citou, entre tantas outras possibilidades destacadas por Benjamin.

De qualquer maneira, a conversa acabou aí, pois Gullar disse em bom tom que não valia a pena “perder tempo discutindo” comigo. Que belo crítico ele se tornou, que já traz as ideias prontas de casa e não se propõe a pensar diante daquilo que seu preconceito prefere ignorar. Ou diante de outros críticos interessados em compreender melhor esse troço esquisito denominado arte.

Fingindo-se revolucionário e exigente, com frases de efeito do tipo “o que eu mais quero é ser comovido”, Ferreira Gullar me decepciona a cada encontro. Logo ele, autor do repugnante Poema Sujo, se acha no direito de menosprezar outras repugnâncias artísticas. E por sua recusa teimosa de compreender (e participar) de diversas facetas da arte contemporânea, ele me parece muito mais babaca dos que os “babacas” que julga com critérios antiquadíssimos.

É uma pena que a maioria dos interessados em questões artísticas abaixe a cabeça e abane o rabo quando Gullar fala.

Penso em Hélio Oiticica, seu amigo de juventure e um dos artistas conceituais mais importantes do mundo, e fico triste. Ele deve se revirar no túmulo a cada barbaridade dita por Gullar. Acho que, no momento em que enterrou seu poema*, em 1959, Gullar enterrou também sua vontade de se atualizar. Só que a arte continua se transformando num ritmo alucinante, assim como a sociedade que dialoga com ela. Ainda bem. Tomara que ambas fechem os ouvidos aos resmungos inconformados do velho poeta ranzinza. Estaremos muito melhor sem eles.


*Poema enterrado era constituído por uma sala subterrânea, dentro da qual havia um cubo de madeira de cor vermelha. Dentro dele, um outro, verde e, finalmente, um último cubo de cor branca, com a palavra "Rejuvenesça". Construído na casa do pai de Hélio Oiticica, foi destruído por uma inundação, provocada por chuvas.

domingo, 2 de maio de 2010

O POP E O PAPA


Marilyn Monroe, de Andy Warhol

A gente se acotovelava para vê-lo, o lugar não parecia grande o bastante, os corredores estavam lotados e os seguranças a ponto de perder o controle. "Lá está! Lá está!", gritavam os mais afoitos quando reconheciam algum indício de toque divino. As mulheres suspiravam encantadas com a fama, querendo fazer parte daquilo tudo de uma maneira ou de outra, querendo um retrato seu em cores berrantes. "Ai-que-lindos", deuses aqui e acolá, o Olimpo hollywoodiano em todos os cantos, musos e musas do mundo flash. Olha o Marlon Brando!, olha o Jimmy Carter!, olha a Estátua da Liberdade! Pois é, eis que finalmente Mr. America vem nos visitar, o papa do pop, grande apropriador de ícones sócio-culturais e mobilizador de massas. Senhoras e senhores, please welcome, Mister Andy Warhol!

A Estação Pinacoteca, em São Paulo, estava lotada de analfabetos da arte em busca da tal "aura" que Walter Benjamin teorizou. Não compreendiam nada do que se pendurava à sua volta, apenas achavam bonito o que lhes fora ensinado como bonito e feio o que não lhes fora ensinado. Só que era pop estar ali. Nada como dar uma olhada nas Marilyn Monroe, todas coloridinhas, extravagantes, um show. As latas de sopa? Ficam ótimas quando estampadas em camisetas. Venham conferir! Garantam já as suas! E a lojinha estava ainda mais lotada do que o resto da exposição.

Não consegui assistir a filme algum, pois as salas de exibição estavam cheias de pessoas se socializando e prestando atenção em tudo, menos na tela. Deve ser chato, né? Preto e branco, sei lá, coisa velha. É melhor voltar para casa a tempo de pegar o Big Brother na TV.

Ah, bom seria se os artistas tivessem mesmo perdido a auréola, tal como quis Baudelaire quase duzentos anos atrás. Nada de divino, nada de devoção, apenas homens comuns como eu e você. Eu também queria um mundo sem tietagem. E o coitado do Benjamin ainda teve tempo de pensar, antes que os nazistas o levassem ao suicídio, que o futuro da arte estava no cinema, pois para ele a pintura era incompatível com as massas. Mas a verdade, meu caro Walter, é que a massa gosta mesmo é de uma massa, não está nem aí para a pintura ou a filmagem. A Monalisa que o diga, leva milhões ao Louvre todos os anos e, acanhada em sua redoma de vidro, mal deixa os olhos dos passantes a observarem diretamente. Tudo bem, para estes, o que importa é tirar uma foto escondido e dizer aos amigos que estiveram lá.



O pensador, de Auguste Rodin

Embora na maioria das vezes seja trágico, o preço da fama também tem seu lado cômico. Foi o Pensador de Rodin que me disse, sentado em sua pose clássica, com o cotovelo apoiado no joelho, a cabeça no punho e os olhos desbravando o além: "Todo mundo se aproxima, tenta me imitar, tira uma foto para o Orkut e vai embora rapidinho com medo de causar incômodo". Mal sabem que o que mais o incomoda é não darem a menor atenção às suas formas moldadas em argila (e não esculpidas), não tentarem compreender seus pensamentos e não perceberem que, ao imitá-lo, apoiam o cotovelo no joelho errado – veja bem, o cotovelo direito vai na perna esquerda, é por isso que seu tronco fica tão torcido. Que mico, hein?

Voltando ao pop de Mr. America, vou logo avisando que quase tudo ali era reprodução, o original não tem importância maior, é apenas uma matriz de impressora. Imagino que isso deverá desapontar muita gente, desculpe por destruir suas crenças. Só que era essa a ideia do homem, vou fazer o quê? Ele queria acabar com a aura criada pela obra de arte única – e ganhar muito dinheiro com sua fábrica de imagens –, embora ainda hoje seja incompreendido, basta ver o fuzuê da exposição. Então, o mínimo que devemos fazer é encará-lo da maneira correta. Pois, se hoje até o papa é pop, por que a Pop Art tem que ser sagrada? Não, a ideia é profanar, banalizar os ícones sócio-culturais, transformando-os em arte e depois destransformando, copiando, copiando e copiando. Se bater aquela vontade de chamar o Andy de "deus", cuidado: o que a arte de hoje menos precisa é ser considerada sagrada, e devemos evitar a todo custo transformar novamente o museu em templo. O divino não está ali, veja bem, ele está entre nós.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

MAR REVOLTO



Em meados de abril, o Cinesesc promove um festival que reprisa os trinta melhores filmes do ano anterior, segundo escolha da crítica e dos espectadores. Os preços variam de um a quatro reais, a programação agrada a todos os gostos e é uma pena que seja tão mal divulgado. Agora em 2010 mesmo, quando fiquei sabendo, ele já estava para lá da metade e só consegui ver dois filmes: Milk e À deriva. Achei ambos ótimos, mas este último mexeu mais comigo e, imagino, também mexerá com você de uma maneira ou de outra. Isso porque fala da adolescência, uma fase pela qual todos passamos e da qual é impossível sair ileso. Pois um dia você está em férias, divertindo-se com os amigos sem se preocupar com nada maior do que o sabor do próximo sorvete ou o nome da próxima paquera quando, de repente, suas crenças mais sólidas se desmancham no ar e você se vê flutuando em mar aberto entre os dilemas da vida.

O filme nos coloca para pensar, coisa rara nesta época de efeitos especiais mirabolantes que não se sustentam por mais de uma temporada. A produção é brasileira, com roteiro e direção de Heitor Dahlia, o mesmo de Nina (2004) e O cheiro do ralo (2006). A trama se baseia na crise familiar vivida por Filipa, uma adolescente de catorze anos permeada por dúvidas, que oscila entre a inocência e a responsabilidade, os sonhos e a sensualidade, a infância e a tal maturidade.

Não acredito que crescer seja equivalente a "conhecer a realidade", como se esta fosse única e imutável. Quer dizer, criança também vive a realidade – a dela, composta das ilusões que sua percepção produz. No entanto, crescer implica conhecer os processos da vida adulta, na qual todos convivem e que são obrigados a compartilhar. Esta pode ser bastante decepcionante, diga-se de passagem, especialmente se não estamos preparados para enfrentá-la ou, melhor ainda, compreendê-la. É o que acontece com a Filipa do filme, ao descobrir por acaso que seu pai não é mais o herói com quem sempre contou, homem justo e infalível, irrepreensível. Ela cresceu e aqueles braços já não são fortes o suficiente para afastá-la dos perigos do mundo. Sua mãe tampouco permanece a rainha do lar, a mulher mais bonita do universo, sábia e carinhosa na medida certa, com o colo sempre pronto a confortar. Tem agora o rosto tomado por rugas, as pernas doem, as decisões hesitam. O lar já não é a fortaleza que costumava ser, há refúgios mais tentadores lá fora. Tudo é suscetível ao erro e isso é provavelmente o mais difícil de aceitar, o fator humano que destrói a perfeição da fantasia infantil. Os três porquinhos, a bela adormecida, o gênio da lâmpada – todos tiram as máscaras e se revelam atores de um espetáculo que infelizmente tem hora marcada para terminar.

Nesse momento, o que fazemos? Estamos no mar, flutuando ao sabor das ondas, sem saber para onde seguir. Nossos pés não alcançam o chão, que pode estar a centímetros ou a quilômetros de profundidade. Podemos então nos desesperar ou simplesmente aceitar que é mesmo impossível controlar as marés da vida. E que, ao invés de nos debater e afogar, o melhor talvez seja nos deixar levar.

No Cinesesc, quando finalmente relacionei as imagens com o título e compreendi a poesia de Heitor Dahlia, sobrou aquela sensação gostosa de que o cinema pode ser sim uma grande arte. As luzes se acenderam e revelaram uma série de pessoas que passaram por crises semelhantes às minhas e que também sobreviveram, amadureceram e tornaram a ver os pais como heróis – não infalíveis, mas super corajosos. Saí de lá com a sensação de que as tormentas fazem parte da vida e, principalmente, de que não há nada melhor do que encontrar um porto seguro onde atracar.

sexta-feira, 26 de março de 2010

ARTE POR ACASO


(sem título), de José Bezerra

Há quem diga que a providência divina rege o gênio artístico. Há outros, como eu, que preferem acreditar no acaso. Creio, inclusive, que este não se aplica somente às obras de arte – todo tipo de conhecimento humano é produzido, essencialmente, por acaso, e motivado talvez por alguma necessidade. Foi por acaso que Dante escreveu a Divina Comédia, que Leonardo pintou a Monalisa e que Newton compreendeu a gravidade. Um acaso muito bem premeditado, é preciso admitir, pois inúmeros fatores histórico-culturais tiveram que coincidir para possibilitar tais façanhas. Quer dizer, Dante jamais escreveria seu belo poema se tivesse vivido cinco séculos antes, principalmente porque nele trata de personalidades contemporâneas suas e, formalmente falando, deve inspiração aos antigos modelos gregos, que só então estavam sendo desenterrados da Idade das Trevas. Pois foi um grande acaso Dante nascer no lugar e na hora certos, assim como não ter morrido antes de concluir a tarefa. Talvez o universo conspire a favor, como afirmam os otimistas. Isso validaria a famosa anedota sobre Newton, segundo a qual uma maçã teria caído em sua cabeça e unido pensamentos inconclusos, possibilitando assim a formulação da Lei da Gravitação Universal. Se fôssemos creditar tudo ao destino, teríamos que admitir que ele não prevê apenas acontecimentos bons, mas também outros tão terríveis quanto o holocausto e a bomba atômica. Não, não vale a pena acreditar que todas as maldades do mundo já estejam escritas num livro sagrado – é melhor deixar tudo a cargo do acaso. Como disse o poeta e crítico de arte Ferreira Gullar no curso que atualmente ministra em São Paulo, enquanto o acaso é a bala perdida, o belo é a providência divina. Ora, criamos esta entidade porque precisamos justificar nossa existência, mas o importante mesmo é que, no final, entre acaso e necessidade, a arte vai se fazendo. Pois, segundo Gullar, "a arte existe porque a vida é pouca".

Essa questão lhe é muito mais relevante do que eu imaginava. Para ele, o acaso já é mesmo a possibilidade de haver arte, que revela todo o seu poder quando a tela em branco se coloca à frente do pintor; uma infinidade de coisas poderá ser criada ali e tudo dependerá unicamente das ideias surgidas no instante. Quando o primeiro traço for feito, as possibilidades do acaso se reduzirão enormemente; por outro lado, será esse mesmo traço que tornará a criação mais possível. Afinal, para o quadro acontecer, o pintor deve começá-lo de uma maneira ou de outra.

Compreendo o raciocínio, porém discordo de alguns pontos. Para mim, o acaso não está na probabilidade da arte acontecer, mas no acontecimento em si. A vida humana é tão complexa, depende de coincidências e realizações tão improváveis que, em certa medida, até parecem impossíveis, mas que se realizam e se apresentam ao espectador em forma de pinturas, esculturas e poesias, entre outras. O acaso é para mim esse fato consumado, que gerou algo novo. As possibilidades, prefiro chamar de caos.

Tudo isso para chegar à seguinte pergunta, que um colega de classe fez ao Gullar: nessa situação em que aparentemente qualquer coisa é válida, como diferenciar o "acaso-arte" do "acaso-não-arte"? Em outras palavras, como identificar uma obra de arte mais digna de valor, já que todas provêm do acaso?

Não me lembro da resposta, até porque já estava perdido em meus próprios devaneios, mas posso dizer que o segredo está na intenção do artista, em seu olhar crítico e inventivo que percebe algo novo naquilo que todos já olharam milhares de vezes. Não pense que é fácil. Para transformar acaso em arte, é preciso empregar-se a si mesmo na tarefa, dedicar tempo e neurônios, viver, sentir e compartilhar. Pois o acaso não produz arte sozinho, e tampouco a natureza o faz, por mais que uma pedra role montanha abaixo e adquira forma de Vênus. Tome como exemplo as esculturas do José Bezerra, que são tiradas da mata e quase não recebem interferência física do artista. À primeira vista, parecem escolhidas ao acaso, só que José faz isso com tanto conceito, tanta criatividade e sensibilidade que só dá para chamar aquilo de arte.

Na verdade, imagino que o acaso seja o único componente da criação que o artista não controla – todo o resto está em suas mãos. Dante, por exemplo, observava atentamente a sociedade de sua época e também conhecia a tradição lírica clássica quando, num belo dia, as ideias se uniram e ele decidiu escrever. Leonardo já se ocupava com milhares de problemas estéticos quando conheceu sua musa e Newton, por sua vez, já procurava uma solução quando esta caiu em sua cabeça – caso contrário, ele jamais saberia reconhecê-la.

Para criar arte a partir do acaso, é necessário estar predisposto, de olhos atentos. A famosa frase "até eu faria" não tem sentido, percebe? Portanto, quando estiver no museu e uma obra lhe parecer ter sido feita por acaso, pode acreditar que em certo sentido ela foi mesmo, porém jamais no sentido pejorativo. Às vezes, você só não está enxergando o processo que levou o artista até ela.

Acredito mesmo que o acaso rege a vida em geral. Fazer arte, porém, é uma escolha. E das mais acertadas.

domingo, 10 de janeiro de 2010

MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE EDUARDO DE ALMEIDA


A música (1910), de Henri Matisse

Minha namorada acha surpreendente o fato de eu lembrar da música que tocava no rádio do carro quando passávamos por determinado lugar, ainda que isso tenha acontecido décadas atrás. Não é que eu me apegue muito aos detalhes da vida, ao menos não com essa minúcia toda. Raramente sei precisar a data de um acontecimento, os motivos de termos optado por isso não por aquilo etc. Não tenho a menor noção da idade em que realizei algumas coisas, mais ou menos como se meu passado tivesse ocorrido de uma vez só. O mesmo vale para a história do mundo. Nunca fui bom nas aulas do colégio e jamais pensei que me especializaria em história da arte quando crescido, pois os professores estavam mais preocupados com "quem faz o que e quando" do que com o significado real daquilo tudo. Napoleão foi derrotado em Waterloo no ano de 1815. Tudo bem, mas quem foi Napoleão? Que tipo de música ele gostava de ouvir? Como se relacionava com a família? Suas preferências gastronômicas tinham alguma coisa a ver com a carreira militar? É esse tipo de coisa que sempre me interessou – descobrir a essência de um personagem e seu papel no espetáculo da vida. Essa é a verdadeira História para mim, e não uma mera lista de acontecimentos a serem decorados segundo sua cronologia. Creio que a razão está no modo como minha memória foi configurada. Nunca lembro de nada muito concreto, mas o sentimento produzido em cada ocasião permanece claro, pulsante, como se tivesse sido vivido anteontem. Para mim, ele constitui a chave do tempo, que me permite avançar e retroceder conforme tenho vontade.

Existem músicas, por exemplo, que se encaixam perfeitamente no momento em que são ouvidas; criam uma combinação tão mágica e única quanto o alinhamento dos planetas. Fica impossível esquecê-las. De algum modo, elas elevam o tal momento a outro nível de percepção, a ponto de eu poder apreendê-lo e criar uma relação afetiva com ele. O instante então se fixa em minha memória, concretizando-se de maneira que quase posso tocá-lo. Você já sentiu algo semelhante?

Numa entrevista de 1942, o pintor francês Henri Matisse descreveu uma situação curiosa: "Quando me falam de um de meus quadros, mesmo antigo, me relembrando de alguns de seus elementos, sem conseguir situar a data da execução, vejo de maneira muito precisa o instante sentimental em que o fiz". Pois o sentimento do mundo é algo importantíssimo na concepção artística de Matisse, que sempre buscou pintar não a coisa em si, mas o efeito que ela provoca. Talvez seja por isso que me identifico tanto com ele. Para ambos, a exatidão da data e dos nomes não faz diferença. Percebo isso claramente ao rever fotografias de viagem. Não sei dizer com exatidão onde foi, nem há quanto tempo, mas as imagens reavivam os aromas, os sons e os sabores do lugar. Em outras palavras, não me importam muito os detalhes puramente racionais, mas sim seus significados mais intrínsecos, reunidos no que para mim constitui a essência do viver. Importa a sensação de pertencer ao mundo; de estar presente e ser parte dele. É o tempo vivo da memória, a persistência que Salvador Dali tentou representar. Acho dificílimo discorrer sobre um instante específico de maneira muito cartesiana, pois tudo se funde em uma lembrança essencial e nuclear; como uma música, por exemplo. A música certa no momento certo, a expressão adquirida e compartilhada; um passeio de carro, um jantar romântico, o cantarolar que põe a criança para ninar; ritmo, harmonia e melodia perfeitos. E a alquimia vira ouro. Como disse Matisse, "para meu sentimento, o espaço é um só desde o horizonte até o interior do aposento de meu ateliê, e o barco passando vive no mesmo espaço que os objetos familiares a meu redor, e a parede da janela não cria dois mundos diferentes. (...) Não preciso aproximar interior e exterior, os dois estão reunidos em minha sensação". Pois o mundo não está além de nossos sentidos. E, no final, tudo o que realmente importa é a nossa sensibilidade ao respirar, degustar, ouvir, tocar e assistir. Em outras palavras, quando todo o excesso sucumbir, restará apenas o belo para preencher nossas recordações. É somente este belo que iremos admirar.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

AMOR, SUBLIME AMOR


(sem título), de George F. Mobley

Chove, chuva. Chove sem parar. Ah, Jorge Ben Jor, o senhor sabe das coisas, já reivindicava há muito tempo essa moda de agora; a tal da chuva, não há quem a tire das manchetes. Se nos idos de FHC o problema era a falta, nos tempos de Lulalá é o excesso. Retrato perfeito do Brasil, terra do oito ou oitenta, do amor e do ódio, das tragicomédias em família. Eu queria dizer que, no final, é sempre o inocente que se ferra. Queria mesmo. Mas a verdade é que não há inocentes nessa história. Estamos em Manguetown e todo mundo está enfiado na lama de um jeito ou de outro, muitos até o pescoço. Bobeou, piscou, vai preso em nome da lei. Isso porque você também colabora com a enchente, seja de maneira ativa, jogando lixo nas ruas; seja simplesmente ficando sentado no sofá observando a chuva cair sem fazer nada para remediar o problema, sem cobrar melhorias no sistema de saneamento, sem perguntar para onde foi a verba que estava aqui. O gato comeu? Ah, é muito cômodo afundar a bunda no sofá enquanto os outros afundam nas águas barrentas da inundação. Nem tente se isentar!, desculpa esfarrapada não cola. Se qualquer garoa hoje em dia gera dilúvio, tem cara-pálida dizendo que isso não passa de tempestade em copo d'água. Não passa de falta de vergonha na cara, isso sim. Vá dizer para aquele povo que viu seus poucos bens saírem boiando pela janela da cozinha, que viu o vizinho ser desenterrado pelos bombeiros para ser reenterrado algumas horas mais tarde, que a enchente é culpa da natureza; aquele povo que só conhece tempestade em copo de requeijão. A-ham. Trouxa aqui, meu amigo, nem mesmo os do Harry Potter, pois não há magia que reverta este quadro absurdo com um toque de varinha. Se a vida fosse um conto de fadas, os lobos maus teriam superpovoado o bosque. E agora não precisamos nem esperar as águas de março chegarem, veja que beleza, pois é pau, é pedra, é o fim do caminho em qualquer época do ano. Superaquecimento global? Imagina, é mais conveniente acreditar que se trata de intriga da oposição, plano dos países ricos para impedir o desenvolvimento dos pobres. Me poupe... É o resto do toco, é o carro enguiçado, isso sim; são as previsões certeiras do nosso Tom Jobim. As orelhas de São Pedro que o digam, devem estar fervilhando de tão vermelhas, tanto que falam mal do seu trabalho. O coitado não deve estar entendendo nada, no mínimo já solicitou ao Ibope uma pesquisa de campo para verificar os motivos de sua água causar tamanho estrago. Será que o volume foi tão mais alto assim, que não estávamos preparados? Aposto que é apenas restituição pela secura dos Natais passados. Afinal, o que é certo assim o é, o próprio nome já diz, o Santo não ia calotear. Já os diabinhos daqui da Terra... Fato é que o ralo do Brasil está entupido de tanta sujeira, sujeira que atravanca nossos anais políticos, econômicos e sociais. Nossa piscina está cheia de ratos, como dizia o Cazuza. Pois no fatídico oito de dezembro paulistano, dia em que tudo foi definitivamente por água abaixo, comecei a ler a Crônica da estação das chuvas, do japonês Nagai Kafu. Foi de propósito mesmo, pura ironia. O livro fala de Tóquio no início do século XX, com sua movimentada vida noturna e seus problemas típicos de um povo perdido entre a tradição oriental e os novos valores ocidentais. A chuva está sempre ali, embora raramente possamos vê-la; o autor apenas a sugere, citando o ar úmido e pesado, a lama, o calçamento escorregadio, as barras dos quimonos levantadas... é bonito, meio poético, tem uma carga simbólica, sabe? Tem esse amor pela vida e pela cidade. Bem diferente do que ando vendo nos telejornais. Pois a arte costuma retratar a chuva como um fenômeno sublime da natureza, tão real e ao mesmo tempo tão fantástico que é lindo e também amedrontador. Ela nos faz lavar a alma, definitivamente. Pena que a situação brasileira esteja entrando num beco sem saída. E, como toda novela que se preza, desta também já conheço o final: vão esperar a estação das secas chegar e dizer que os problemas de enchente são águas passadas. Que triste... Talvez, nos últimos tempos, não esteja apenas chovendo. Talvez seja o céu chorando por nós.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

PUXE UMA CADEIRA, SIM?


A cadeira de Van Gogh (1888), de Vincent Van Gogh

Eu estava com uma amiga no Parque da Luz, em São Paulo, caminhando por entre as esculturas e jogando conversa fora. Não entendi, ela me disse. Não entendeu o quê? O que o artista quis dizer. E isso importa? Ela fechou a cara, deve ter me achado um grande mal educado, todo metido a saber de arte e ignorando a ignorância alheia. Quem eu penso que sou, hein? Vixe, deixa pra lá, esqueça. Vamos entrar na Pinacoteca e dar uma olhada na exposição do Matisse? Ok. Minha amiga botou os olhos na primeira tela e exclamou: é linda! E o que Matisse quis dizer?, perguntei. Sei lá. Ah, vai falar que agora não importa?! Enfim, era para refletir sobre o que acabávamos de viver, mas a verdade é que quem quase acabou de viver ali mesmo fui eu – a amiga ficou P. da vida com o comentário. Difícil, né? Às vezes, é mais fácil entender de arte do que entender de gente.

Aí eu pego um livro do Merleau-Ponty e as palavras me saltam à cara; ele me diz que só existe arte através da gente. O que eu faço, Mer? Vá entender de gente!

Fui me consultar com Matisse. O cara é mesmo danado de bom, até minha mãe aprova essa amizade. Ah, se ela soubesse o quanto o coitado foi mal dito na juventude, quando se meteu a sonhar com uma arte que acalmasse a mente bem no instante em que todo mundo queria ver o museu pegar fogo e a revolução tomar conta das galerias. O taxaram de bundão. E agora o bundão estava aí, com uma individual vinda diretamente do resto do mundo, com obras que custam os dois olhos da cara e sendo visitado por milhares. Tem pior: caindo na graça da mulherada.

Um tempo atrás, num papo com Duchamp, descobri que nenhum artista tem plena consciência do que cria. E que o bonito da arte é isso mesmo, interpretá-la à sua maneira, mergulhar com profundidade e desvendar segredos que muitas vezes nem estão nela, mas em você mesmo. Se o artista conseguiu ou não dizer o que queria, isso é problema dele, a gente não precisa se deixar influenciar. Pôxa, é com isso que Matisse sonhava: com pinturas que levassem a outros mundos. Para que complicar se podemos simplificar? Faça simples, faça de um modo que agrade ao coração e não intimide um pensamento ou dois. Ele não pintava para assustar, mas para atrair as pessoas, puxar uma conversa mais longa e menos superficial. Oi, você vem sempre aqui?, etc.

Quando comecei a me cansar daquele blá, blá, blá – história de artista é mais fantasiosa do que as de pescador –, veio Paul Klee com as cadeiras do Feuerbach. Sei lá de onde ele as tirou, mas a verdade é que minhas pernas estavam mesmo doendo. Aquela amiga do começo da crônica já reclamava há duas salas e umas tantas telas. Tinha medo de jogar a toalha bem em cima de uma obra-prima e a dois passos da lojinha! Klee explicou: não deixem o cansaço perturbar o espírito. O artista demora um tempão para criar as obras. Faz parte por parte, junta conceito e desenho, problema com solução, como se estivesse construindo uma casa. Tá achando que é fácil fazer simples? Que nada, dá o maior trabalhão, queima um neurônio atrás do outro. Aí vocês vêm visitá-lo, passam os olhos pela tela e querem esgotá-la assim, de relance? Vocês têm sorte é de ele não esfregar seus narizes nela! Portanto, acomodem as nádegas e valorizem um pouco nosso trabalho, ok? Arte não é publicidade, não tenta vender uma ideia quando vocês menos esperam. Tem que pedir com carinho, sugerir um relacionamento. É muito fácil andar pelo museu como quem passeia no parque e sair dizendo que não entenderam nada. Se vocês têm o moral de dizer que pinto igual criança, aposto que são adultos inteligentes o bastante para me compreenderem. E não precisam ficar sem graça, vou aceitar o comentário como elogio. Só me façam um favor, não se esqueçam mais disso: para entender um quadro, é necessário uma cadeira. Com essa correria diária atrás de sabe-se lá o quê, só é fácil dizer aonde não vamos chegar: a um conhecimento mais profundo das coisas. Então puxem uma cadeira. Vamos prosear.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

JOÃO E OS PÉS DE FEIJÃO

Ando fazendo coisas bastante esquisitas na Universidade de São Paulo. Algumas semanas atrás, por exemplo, fui incumbido de plantar três feijões em algodão umedecido e registrar seu crescimento com desenhos e notas. Não, não me enganei de classe, não assisti à aula do primário. A tarefa era puramente científica. Meus objetos de estudo não seriam apenas os feijões – eu também deveria me colocar do lado de lá da prancheta, observando, uma vez por semana, meu próprio jeito de observar. Esquisito, eu disse. Mas pouquíssimas pessoas têm consciência da força que as coisas exercem sobre nós.

Ao propor uma leitura psicanalítica das obras de arte, o professor João Augusto Frayze-Pereira diz que “pensar psicanaliticamente implica escutar”, ou seja, abrir-se para o mundo e prestar atenção no que ele nos diz. O mesmo pode ser visto no romance Sidarta, de Hermann Hesse, em que o barqueiro Vasudeva sugere ao ex-monge que escute os ensinamentos do rio. “Sem cessar, Sidarta aprendia dele. Antes de mais nada, aperfeiçoava-se na arte de escutar, de prestar atenção, com o coração quieto, com a alma receptiva, aberta, sem paixão, sem desejo, sem preconceito, sem opinião”.

Nesse sentido, meu experimento com os feijões revelou coisas interessantíssimas, entre as quais gostaria de destacar a dificuldade de separar o lado humano do científico. Ou, em outras palavras, a emoção da razão. Pois, no começo, tentei ser o mais técnico possível, registrando a incidência da luz, o formato dos utensílios etc. Com o tempo, no entanto, meu vínculo com a plantinha se fortaleceu, e os relatos foram ficando cada vez mais emotivos. Vê-la se desenvolver, criar raízes, abrir-se em duas metades e revelar folhinhas verde-escuras foi um pouco como criar um filho, guardadas as proporções. Fiquei angustiado com a demora do primeiro broto, que levou dias para aparecer; depois, me realizei ao ver o caule se elevando acima da borda do copo. No final, não apenas a replantei em um vaso maior, como acabei comprando outras para lhe fazerem companhia.

Sabe quem foi o responsável por essa mudança em minha percepção? O tempo.

Isso não é novidade. O grande escritor Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), ícone do Romantismo alemão e autor dos famosos O sofrimento do jovem Werther e Fausto, era também cientista, embora pouca gente conheça – e reconheça – essa sua faceta. Ao longo da vida, Goethe estudou diversos assuntos, tais como a luz e os fenômenos óticos, chegando a propor uma nova teoria das cores, em oposição à de Newton. Mas, veja só, foi estudando plantas que ele chegou a uma das suas conclusões mais importantes: a de que o tempo é um elemento primordial na busca do conhecimento. Segundo Goethe, só é possível chegar à verdade científica por meio de uma profunda observação da natureza, livre de preconceitos e ao longo do tempo. Isso porque, para compreender a essência do ser, precisamos analisar seu processo de formação.

O pintor modernista Henri Matisse (1869-1954) chegou a conclusões semelhantes ao refletir sobre a arte. Segundo ele, para superar a simples imitação da natureza e chegar a uma linguagem pessoal, o pintor deveria desenvolver uma relação profunda com os objetos que pretende representar, observando-os atentamente, fazendo com que lhe revelem sua essência. Essa percepção jamais seria imediata. Tal como pensava Goethe, ela seria obtida apenas através do tempo. Só assim Matisse conseguia incutir seu sentimento na pintura, o que acreditava ser indispensável.

Matisse também disse outra coisa interessante, dessa vez a respeito das composições pictóricas. Para ele, um simples ponto de tinta, quando acrescentado a uma tela, modifica todo o resto que já estava lá, pois eles passam a se relacionar imediatamente. Por isso, apenas o essencial deveria constar numa pintura – todo o excesso é desprezível.

Se traçarmos um paralelo entre essas ideias e o nosso cotidiano, perceberemos que todos os objetos ao redor nos influenciam, relacionando-se conosco e modificando nossas vidas à sua maneira. Quais deles são realmente essenciais? Quais são excesso e atrapalham a percepção da realidade?

O professor João Frayze afirma que a junção da psicologia com a arte ajuda a compreender melhor o ser humano, “num certo momento de sua história e em determinado círculo de civilização”. Ambas nos propõem reflexões, colaboram para tornar nossas ações mais conscientes e rendem um conhecimento mais profundo. O outro João, dos contos de fadas, me lembrou que coisas simples como pés de feijão podem nos levar às alturas, permitindo observar a vida por outro ponto-de-vista. Tudo através dos nossos sentidos e das relações com o mundo que eles nos proporcionam. Com o tempo, nossa sensibilidade cresce e passamos a nos sentir parte de algo muito maior: a natureza. Pois é, como pude verificar, os feijões são mesmo mágicos. Basta a gente olhar bem de perto, com o cérebro e o coração.

* * *

Apenas por curiosidade, selecionei algumas das anotações que fiz ao observar os feijões e as publiquei abaixo. Como não pude digitalizar os desenhos, talvez alguns trechos fiquem meio obscuros, mas dá para ter noção do que estou falando.

DOMINGO, 9H21
Só pude iniciar o exercício hoje. Escolhi os materiais pensando sempre em como eles melhor se adequariam aos meus objetivos. O copo, por exemplo, precisava ser baixo e largo, oferecendo bastante superfície para o algodão e facilitando os desenhos. (...) Fiquei curioso para saber como a umidade faz brotar os feijões. Deixei tudo no chão, bem próximo da janela, de modo que o experimento tenha claridade durante o dia. (...) Considero este um lugar estratégico, pois basta eu posicionar a cadeira nas proximidades para obter sempre o mesmo ângulo de visão.

SEGUNDA-FEIRA, 9H
O algodão continua úmido, o que me surpreendeu; achei que teria que regar meus feijões diariamente. (...) Acredito que os feijões devem receber claridade, mas não luz direta, então fechei as persianas. (...) De ontem para hoje, dá-me a impressão de que tudo mudou, exceto as sementes. Imagino que algo muito maravilhoso esteja acontecendo dentro delas, e que seja tão maravilhoso que elas não podem me mostrar.

TERÇA-FEIRA, 22H25
Nenhuma mudança. Estou achando que meus feijões vão me deixar na mão. O algodão continua bastante úmido. Será que preciso colocá-lo por cima dos grãos? Vou esperar mais um dia. Se nada acontecer, tentarei um plano B.

QUARTA-FEIRA, 22H25
Nada aconteceu, mais uma vez. Se é que “nada” pode acontecer mais de uma vez, assim, consecutivamente. (...) Será que devo enterrar meus feijões no algodão? (...) Até mesmo me cansei de desenhá-los nesta posição. Será que, se eu escolhesse outro ângulo, alguma coisa mudaria?

QUINTA-FEIRA, 22H15
Surgiu um pequeno broto, finalmente. (...) Trata-se apenas de uma pequena ponta amarela que rompeu a casquinha e começa a descer na direção do algodão molhado. Também notei uma lista branca no feijão de cima. (...) Fico feliz que o experimento tenha tomado este rumo.

SEXTA-FEIRA, 22H54
(...) Desconfio que um outro ramo tenha brotado por baixo, fazendo o papel da raiz. Seria uma surpresa interessante. E significaria que eu estava errado: os brotos teriam começado a surgir antes que eu pudesse vê-los. (...) Agora, estou ansioso para ver as folhinhas verdes surgirem no copo.

SÁBADO, 8H46
(...) Percebi que observar o crescimento destes brotos me faz pensar em muitas outras coisas, e fica difícil manter a concentração somente no experimento. Quer dizer, é difícil ser cientista sem deixar de ser humano. Tratar a ciência como algo artificial é esquecer a sua origem e os seus objetivos. Por isso, olho para meus feijões e vejo em seu desenvolvimento as fases da minha própria vida.

DOMINGO, 11H
(...) Estou começando a ter pena destes grãos, brotando no algodão. (...) Ontem, fui mexer nos vasos que tenho na sacada do apartamento e passei bons momentos com a mão na terra. (...) Meus olhos têm visto mais do que feijões brotando num copo. Sinto que, de algum modo, estou começando a enxergar melhor.

SEGUNDA-FEIRA, 21H39
O feijão 3 me surpreendeu enormemente. Em aproximadamente 36 horas, ele criou raízes e se suspendeu no ar. Fiquei maravilhado. É muito bom poder acompanhar o crescimento deles. (...) Ontem à tarde, fui a uma loja de plantas e comprei um pequeno musgo. (...) Suas folhas são minúsculas.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

A CURA PELA ARTE


Quadrado branco sobre fundo branco (1918), de Kazimir Malevich

De um tempo para cá, a arte tem revelado possibilidades cada vez mais interessantes, que vão de descobertas históricas a trabalhos educativos em prol de comunidades carentes. Todas elas, no entanto, têm algo em comum, uma espécie de propriedade curativa que age diretamente sobre os males da humanidade, sejam eles de cunho pessoal ou social. Seus princípios ativos têm eficácia reconhecida desde a antiguidade, tais como concentração, reflexão e autoconhecimento, entre tantos outros. Grandes mestres utilizaram a arte para vencer vícios, superar traumas ou suportar angústias. Van Gogh foi um deles. Encontrou na arte um caminho para conhecer melhor a si próprio e a natureza ao seu redor, liberando a cada pincelada conflitos interiores e emoções reprimidas, numa atitude que mais tarde ficaria conhecida como “expressionismo”.

Se a arte sempre teve este poder, faz pouco tempo, no entanto, que temos consciência dele. E que sabemos explicá-lo de modo mais científico e menos intuitivo. Principalmente se considerarmos que a arte nasceu junto com o homem, lá na época em que descemos das árvores. Pois foi só em uma conferência de 1909 que Freud deu as primeiras indicações daquilo que hoje chamamos de arte-terapia, dizendo que a criação artística tem capacidade de transformar fantasias e reatar nossas ligações com a realidade, minimizando sintomas de neurose. Eram os princípios da psicanálise e também deste remédio inovador que muitos terapeutas têm receitado atualmente para quem chega bufando ao divã.

Pois é, arte cura estresse. Um colega de trabalho, Paulo Vilchez, testou e aprovou. Ele andava meio tenso quando descobriu esta alternativa e obteve um resultado tão positivo que levou a prática adiante, comercializando as obras nascidas daí. Sua tensão agora pode ser vista pendurada em paredes, emoldurada e transmudada em traços e cores. Muito bacana.

Aposto que alguns estão pensando: “Mas eu não tenho a menor aptidão para pintar, ficaria mais angustiado/angustiada ainda”, ao que eu respondo: “Por isso não, tente outras formas de arte”. Vá dançar, é ótimo para melhorar a coordenação motora e aumentar a autoestima. Faça um curso de teatro e perca a timidez. Escreva, nem que seja um diário simples. Poucas linhas por dia obrigarão você a reservar um tempo para refletir sobre a própria vida e a superar fases ruins com mais facilidade. Aprenda a cantar ou a tocar um instrumento. A música amplia horizontes e eleva qualquer pessoa a outro nível de sensibilidade. Fotografe tudo que despertar seu interesse, separe as favoritas e mostre aos amigos. Leia. Deixe as letras guiarem seus pensamentos por realidades distantes.

Quem soube trabalhar maravilhosamente bem esta relação entre arte e cura foi a doutora Nise da Silveira, pioneira no tratamento de esquizofrênicos por meio de terapias artísticas e referência mundial no assunto. Sua biografia é interessantíssima. Ela nadou sozinha contra uma corrente psiquiátrica que administrava choques elétricos e de insulina, mutilava cérebros doentes com lobotomias e atirava pacientes em hospitais tão precários que mais pareciam depósitos de loucos. Isso porque acreditava em um tratamento mais humano. Assim, Nise selou parcerias com artistas plásticos, foi responsável pela criação e administração de órgãos importantes – tais como a Seção de Terapêutica Ocupacional do Centro Psiquiátrico do Engenho de Dentro, o Museu de Imagens do Inconsciente e a Casa das Palmeiras – e descobriu grandes talentos reprimidos em pessoas excluídas da sociedade, curando algumas e recuperando a humanidade de outras. Resumindo, ela mostrou que a arte pode significar a cura para nossas doenças, apresentando uma espécie de salvação para homens e mulheres que vivem perdidos em seus mundinhos pessoais, preocupados com batalhar e vencer acima de qualquer coisa. Graças à sensibilidade, inteligência e força de vontade da doutora Nise, hoje sabemos a diferença que a arte pode fazer em nossas vidas.

Eu arriscaria dizer, inclusive, que sem arte a humanidade não encontraria bases de sustentação para seus sentimentos e desmoronaria em escombros de conflitos mal-resolvidos. Se a vida está difícil agora, sinto ser eu a informar que não há previsão de grandes mudanças nos próximos tempos. As dificuldades sempre existirão e talvez seja daí que venha a vontade de continuar vivendo. É mais ou menos o que Freud pensava do gênio Leonardo Da Vinci, dizendo que o que o interessava num quadro era, acima de tudo, um problema. E poucos conheceram os segredos da vida como Leonardo. Então, ao invés de desperdiçar energia com estresse, por que não fazer como ele, colocando-a na arte e buscando, através dela, a cura?


Obs.: Esta crônica é fruto das recentes pesquisas que tenho realizado a respeito de psicanálise e arte-terapia. Cito o trabalho de um colega, Paulo Vilchez, que pode ser visto com mais detalhes aqui: www.quadrospaulo.blogspot.com. Também comento alguma coisa sobre a vida da doutora Nise da Silveira. Quem se interessar e quiser saber mais, sugiro que leia a breve biografia escrita por Ferreira Gullar, chamada: Nise da Silveira, uma psiquiatra rebelde (Rio de Janeiro: Relume-Dumará: Prefeitura, 1996).