segunda-feira, 23 de março de 2009
MENOS SAMBA, MAIS TRABALHAR
Logo nas primeiras conversas, descobri que os espanhóis se parecem tanto com a gente quanto os italianos, que cada região de lá tem seu sotaque, que morar em um país de primeiro mundo tem suas vantagens – embora elas não sejam nem um décimo da maravilha que alguns imaginam, pois na Espanha também há crises e dificuldades de todo tipo –, que nossos futebolistas de exportação estão com o filme muito queimado porque só pensam em dinheiro e que o Lula, lá fora, vende a imagem de homem preocupado, que está salvando o país do terceiro mundismo – tá bem na foto, hein, presidente?
Mas o que me impressionou mesmo foi o esclarecimento dos espanhóis, assim como a boa educação dos mesmos. Se o Lula dá uma de herói, eles desconfiam, querem saber nossa opinião. Perguntam sobre trânsito, poluição, meio ambiente e sobre como estamos lidando com tudo isso. Não conseguem compreender como pode existir vida em uma cidade do porte de São Paulo, com seus 18 milhões de habitantes. Por que não fazemos como eles, que moram em pacatas cidades do interior, com mais qualidade de vida, a 200 km do trabalho, e vão e voltam todos os dias em confortáveis trens de alta velocidade? Porque no Brasil não tem isso não. Campinas? Como uma cidade que fica a uma hora da zona metropolitana pode ser tão grande? Xiii, meus amigos, vocês não viram nem a metade...
Os espanhóis do grupo entendiam de arte, tinham todo tipo de opinião sobre o assunto e ficavam me pedindo para revelar os segredos do contemporâneo. Se fossem simples assim, eu contava, juro.
Você é vegetariano? Como podem existir vegetarianos num país com tanto churrasco? Pois é, um dos problemas do Brasil é o excesso. O outro, a falta. Na Espanha, come-se muita carne, muito peixe, muito vinho. Me disseram que o pão de lá é uma delícia, tenho que provar. As frutas também. Qual é o prato típico daqui? Não sei, não tem. Aliás, tem muitos, porque cada região do Brasil é de um jeito. O país é grande, sabem?
Os espanhóis, assim como os italianos, comem dois pratos diferentes a cada refeição e desperdiçam à vontade, coisa que mamãe nunca me deixou fazer porque é feio, tanta fome que tem no mundo! Mas eles estão mesmo preocupados é com a saúde, dizem que deixar de lado 30% da comida pode salvar as artérias daqui uns anos. Será que não tem outro jeito de fazer isso? Eu comi muito na Itália, limpei o prato. Aliás, os dois.
Fiquei com vontade de conhecer o país deles. Já disse que para as touradas não vou de jeito nenhum, porque aquilo é judiação demais. Eles chamaram de tradição e quiseram saber dos nossos rodeios. Vou dizer o quê?
E para o Brasil, querem vir? Que nada! Nem manifestaram interesse. Perguntaram, perguntaram – desenhei até um mapa no guardanapo! –, mas eles preferiram ficar no papel mesmo. Achei tão estranho... Sempre pensei que todo mundo queria conhecer o Brasil. O Rio, pelo menos, terra do carnaval, das mulatas e das praias, mas que nada, como diria o Jorge Ben Jor. Senti que eles não eram de samba e tentei remediar: o Brasil tem muitos brasis. Tem o norte, o sul, o centro, o dentro e o fora. Tem muita coisa legal para ver, nem tudo é festa!
Não adiantou. Os mais evasivos disseram que é longe. Os econômicos, que é caro. E eu não quis fazer muita propaganda não. Olha que sou publicitário!, mas levantei as características do produto e achei bastante difícil de vender. Se não é o samba, qual é o mote? Infelizmente, o Brasil só tem um tipo de público.
Minha campanha foi por água abaixo antes mesmo de começar. Teve uma colega mais jovem que até perguntou do carnaval de Salvador, mas, quer saber?, às favas com isso. Fiquei com a sensação de não querer convidar os amigos porque sei que a casa está bagunçada. Vou fazer o quê, esconder a poeira embaixo do tapete? Por aqui ainda tem muita sujeira para limpar. E, para piorar, eles ficavam repetindo, tirando um barato: “Menos samba, mais trabalhar! Menos samba, mais trabalhar!” É mole?
domingo, 22 de março de 2009
UMA NOITE NA D.P.
Acabo de voltar da delegacia, onde infelizmente tive que passar a noite na companhia da estúpida burocracia do nosso sistema policial. Por volta das 21 horas de ontem, quando terminava de preparar o que deveria ter sido um jantar relaxante, recebi um telefonema inesperado. Naquele momento, só poderiam ser más notícias. Era um dos vizinhos da minha avó, falecida há poucos anos, dizendo que duas pessoas tinham arrombado a casa dela e que ainda estavam lá – se eu corresse, conseguira pegá-los com a mão na massa. Ele já tinha avisado a polícia, então larguei a comida como estava e corri para o lugar, chegando junto com a viatura.
Eram dois policiais. Expliquei como a casa é e levei um puxão de orelha por causa das placas de imobiliária no portão, belos chamarizes para a malandragem. Eles acenderam suas lanternas e, lá dentro, tudo estava calmo. O cadeado do portão tinha sido forçado, mas não cedera. Comecei a acreditar que o susto não passara daquele ponto.
Parecia cena de filme. Chovia. A rua estava deserta. Só que, se observássemos melhor, dava para ver que todas as janelas das outras casas tinham uma fresta aberta, por onde os vizinhos espiavam. Eu não tinha as chaves – é meu pai que toma conta delas e, na pressa, não consegui localizar nenhum dos dois –, de modo que ficamos procurando alternativas para verificar se houvera mesmo um arrombamento.
Foi nesse instante que ouvi um “Psiu!” me chamar. O vizinho de muro apareceu na janela e disse que os ladrões estavam fugindo pelos fundos. Um dos policiais correu imediatamente para a viela lateral enquanto o outro entrava na viatura para dar a volta no quarteirão. Fiquei lá, plantado no meio da rua, sem saber o que fazer. Não demorou um minuto para uns curiosos revelarem as caras.
O policial da viela voltou com um ladrão, o mais gordo ou mais chapado da dupla, não sei dizer. Enfim, foi o que não conseguiu correr. Ele tentou fugir carregando um botijão de gás e uma enceradeira velha.
Resumindo, fomos todos até a delegacia fazer o B.O., onde descobri que o pior da noite ainda estava por acontecer. A começar pela má vontade do investigador, que deu a entender que uma enceradeira não era motivo bom o bastante para interromper o último capítulo da novela. Depois, pelo delegado, que queria ter certeza de que a porta tinha sido arrombada e, na ausência das chaves – e dos responsáveis pela perícia –, sugeriu que eu pulasse o muro da casa.
Neguei-me, obviamente. Queria terminar aquilo logo, pegar as coisas que pertenceram à minha avó e voltar para casa. Não gostaria que alguém visse a comida fria na mesa e se preocupasse à toa. Sentei no banco e esperei, esperei e esperei mais um pouco. Os policiais que prenderam o ladrão, ao invés de voltarem às ruas, tiveram que me fazer companhia, pois também deveriam assinar a papelada. Eles me explicaram o processo. Primeiro, como o bandido não estava com o RG, coletaram suas impressões digitais e enviaram por fax ao instituto responsável pela identificação, onde nada é informatizado e um técnico fica com uma lupa comparando aquelas às originais, que nem Sherlock Holmes faria dois séculos atrás. Não fiquei surpreso, já tinha ouvido poucas e boas do sistema brasileiro. Enquanto isso, preenchi fichas, dei meu depoimento e esperei, com longos intervalos entre uma coisa e outra. A fome me deixou tonto, já que não comia nada desde o almoço.
Nesse meio-tempo, muitas outras vítimas se apresentaram devido a furtos, batidas de trânsito etc. e foram encorajadas pelo investigador a fazer o B.O. via internet, porque na delegacia demoraria muito. Não que ele estivesse ocupado, claro. Ao sentir o cheiro de má-vontade, muitos desistiam e iam embora, descrentes. Coisa triste de se ver.
Meu caso se resolveu às duas da manhã, quatro horas depois de ter chegado à delegacia, quando assinei o depoimento e pude enfim recuperar as coisas roubadas. O delegado me recusou uma cópia do documento. Achei um absurdo, mas não era hora de arrumar confusão, então simplesmente fui embora. O resultado das digitais ainda não tinha chegado. Os policiais militares foram muito gentis e prestativos até o último instante. É uma pena que, como confessaram depois, em breve estarão correndo atrás do mesmo ladrão novamente.
Não tenho intenção de ir muito a fundo neste assunto. Quem leu até aqui, deve ter percebido que as críticas transpareceriam até mesmo seu eu não quisesse. Se você já passou por situação semelhante, sabe melhor ainda do que estou falando. O que me consola, no final das contas, é a recompensa por agir sempre o mais honestamente possível, pois, num caso como este, em que fui obrigado a passar uma noite na D.P., pelo menos fiquei do lado de fora das grades.
sábado, 21 de março de 2009
O QUILO DA MASSA CINZENTA ESTÁ UM ABSURDO!
Vem chegando o fim do mês e começam as preocupações com a magreza da conta bancária. Afinal, ainda tem tanta coisa boa para fazer! Tantos filmes para ver, livros para ler... Pois é sempre nesses dias críticos que percebo como cultura no Brasil é cara.
Não é novidade para ninguém que a média salarial por aqui é baixa, para não dizer desigual e injusta. Nem preciso dos números da renda per capita, salário mínimo, IR nem nada do tipo, basta subir na cadeira e gritar: “Quem ganha bem aí levanta a mão!”
Veja o índice de endividados. Um absurdo! É difícil exigir discernimento de pessoas assim. Voto consciente, contestação da mídia, debates, protestos e moral, nem se fala. Como exigir inteligência de um povo que não consegue pagar um mínimo de cultura?
É verdade que nos últimos tempos têm surgido diversas alternativas baratas para quem está interessado em adquirir massa cinzenta. Vira e mexe temos nas bancas de jornal boas coleções de arte, literatura, culinária e música, entre outras. Quem procura também encontra ingressos para shows interessantes a preços populares. Dou-me como exemplo: ainda este ano, assisti à cantora Céu, no Teatro Municipal de São Paulo, por apenas dez reais! Foi lindo. Quer programa melhor? Fui também à Pinacoteca do Estado várias vezes, aos sábados, de graça. Lá tem sempre novidades e, quem estiver disposto, leva de brinde passeios pelo Parque da Luz, Museu da Língua Portuguesa, Estação da Luz, Estação Júlio Prestes e Estação Pinacoteca, tudo na faixa.
Quem gosta de teatro também consegue boas peças a preços acessíveis. As unidades do Sesc, por exemplo, têm excelente programação em ambos os sentidos, vale a pena pesquisar. Outras tantas trupes se enquadram nas categorias de baixo custo e não são nem um pouco difíceis de encontrar.
Fato é que toda cidade com um pouco de estrutura costuma oferecer entretenimento a seus habitantes, embora nem sempre seja divulgado, o que acaba resultando em tristes salas vazias. Pois todos temos obrigação de procurar saber. E de freqüentar, claro.
Em outros casos, antecedência é fundamental. A FLIP, Festa Literária de Parati, por exemplo, tem sido um grande sucesso e oferece palestras por apenas oito reais. Vem gente do mundo inteiro participar. Tudo bem que Parati não é das cidades mais acessíveis, mas, para você ter uma idéia, os ingressos deste ano se esgotaram em poucas horas.
Aproveitando a deixa, esqueça as livrarias convencionais! Livros no Brasil custam um absurdo. Até mesmo as edições de bolso são raras e caras. Minha dica para quem gosta de ler são os sebos. Sem falar nas bibliotecas, que hoje em dia estão até no metrô. E não vá pensando que o acervo é ruim. Não, não. Estive olhando as vitrines delas e só vi livros novos, alguns caríssimos, prontos para quem quiser pegar e ler.
Em contrapartida, noto que muito do que deveria ser popular está virando artigo de luxo. Revistas, por exemplo, principalmente se consideramos a intermitência da maioria. Ora, para que serve aquele monte de anúncio, se não é para bancar o custo da produção?
Cinema com pipoca também se tornou impraticável. Acabei virando rato de locadora. Não é a mesma coisa, mas não dá para pegar um cinema no fim de semana e depois não fazer mais nada durante o resto do mês. CD é outra coisa caríssima e, mesmo com a moda da pirataria, os preços dos originais continuam lá em cima. Só compro promoção.
Existem muitos outros absurdos que não consigo engolir. O MASP é um deles – está cambaleando há tempos e o ingresso ainda custa quinze reais. Provavelmente é o museu mais caro de São Paulo, quando deveria ser o mais freqüentado.
Enquanto isso, quem quiser assistir à OSESP, uma das melhores orquestras do mundo, numa das melhores e mais belas salas de concerto, vai às apresentações matinais, aos domingos, e paga apenas dois reais.
Acredito que, em qualquer canto do país, é possível fazer bons programas culturais sem gastar muito. Os interessados precisam apenas perguntar, pesquisar na internet, ler os guias publicados nos jornais etc.
Porém, isso não significa que cultura por aqui é barata. Se fosse, não estaria eu aqui, indicando alternativas. E, obviamente, nem sempre queremos ficar com as alternativas. Eu também tenho vontade de ver o Cirque du Soleil, as corridas de Fórmula 1 ou, no mínimo, pegar um cinema de vez em quando.
O pior é que o alto preço das programações culturais gera todo tipo de problema. Um que me incomoda bastante é o das tais carteirinhas de estudante, que muita gente tira por meios ilícitos, tentando contornar a exploração. Aí, as instituições aumentam os preços para cobrir o orçamento, caímos num círculo vicioso e, no final, quem se dá mal são os honestos, como sempre.
Enfim, resta assunto para muitas outras crônicas. Gostaria de finalizar insistindo: é válido procurar sempre as alternativas e aproveitar as maravilhas do mundo da cultura. Deixe a TV descansar e dê uma volta. Senão, a massa cinzenta, assim como os animais nas notas que pagam por ela, entra em extinção.
sexta-feira, 20 de março de 2009
DAS COISAS NASCEM COISAS
Sua repercussão foi bastante positiva. Vários leitores me escreveram em resposta e, inclusive, fui convidado para publicá-la na revista Linha Mestra, uma interessante fonte de cultura na internet. Quem quiser conhecê-la, pode partir deste link, que leva diretamente ao meu texto: http://www.alb.com.br/revistas/revista_11/ret_11.asp. Ou, ainda, acessá-la por meio do site da Associação de Leitura do Brasil: http://www.alb.com.br.
Muito mais do que um amontoado de volumes, minha biblioteca significa, para mim, uma reunião de memórias. Isso porque cada livro na prateleira tem uma história, que extravasa linhas, palavras e idéias para influenciar minha vida à sua maneira. Quase sempre me recordo de quando o comprei, dos motivos que me levaram a isso e da sensação que ele deixou. Cada pessoa coleciona seu passado de um jeito. Acho que o meu é esse. Quando olho para a biblioteca que toma conta do quarto, estou olhando para dentro de mim mesmo, onde cada livro representa uma experiência de vida.
Sou um assíduo freqüentador de sebos. Descobri-os na época da faculdade e desde então tenho comprado muita coisa neles. Não nego que os livros novos têm seus atrativos, como o cheiro gostoso de papel recém-saído da gráfica; mas os usados possuem um estilo todo especial, um tipo de “aura” própria que lhes foi sendo imbuída pelos antigos donos. Quem é apaixonado por leitura deve compreender. Gosto de pegá-los com cuidado, observar os sinais deixados em suas páginas e tentar descobrir a quem pertenceu. É emocionante ter em mãos um pedaço da história de alguém. Afinal, como ele veio parar aqui?
Algo bastante curioso aconteceu nesta semana. Perto de onde trabalho, existe uma porção de bons sebos, que costumo visitar na hora do almoço. Para meu deleite, um novo acabara de abrir as portas e, naquele mesmo instante, fui xeretar.
Já na vitrine vi um livro de arte, sobre o movimento impressionista, que estive namorando em outra loja vizinha, mas que não comprei porque custava caro demais. De qualquer modo, por curiosidade, perguntei o preço: 45 reais. Fiquei espantado. Era 25% do valor da tabela, por um livro que sequer tinha sido folheado! Uma grana que provavelmente me faria falta, nesta época de vacas magras, mas não podia deixar uma oportunidade como aquela passar e me propus a levá-lo. O ruim é que eu tinha no bolso apenas o troco do almoço. Assim, reservei o volume para o dia seguinte.
Acontece que passei por lá na mesma noite, quando caminhava para o ponto de ônibus, e me deparei com a loja aberta. Entrei e disse o que viera buscar. O vendedor ficou sem graça, pediu desculpas e explicou que errara o preço – o livro custava 145 reais, muito além das minhas possibilidades. Fui embora decepcionado.
Minha namorada, especialista em marketing, comentou que, uma vez dito o preço, o vendedor deveria mantê-lo. Também achei ser o correto. Porém, fiquei pensando que, se soubesse do erro dele, jamais conseguiria pagar mais barato e deixá-lo no prejuízo.
Pois ontem à noite, três dias depois, encontrei o sebo aberto novamente. O vendedor estava na porta e me chamou a atenção, estendeu o livro e disse: “Ainda está com a grana? É seu.” Tentei explicar que não queria prejudicá-lo, mas ele foi enfático: “Eu já havia dado minha palavra e não conseguiria dormir se não vendesse o livro para você. Faça bom proveito.” Fiquei sem saber o que falar. Agradeci, paguei os 45 reais e fui embora.
A dignidade do vendedor me fez lembrar de uma outra história que meu pai costuma contar, de quando se confundiu e colocou o dinheiro recebido por uma venda na sacola da cliente, junto com o produto comprado.
Era uma senhora muito humilde, que freqüentava a loja uma vez por mês e cujo sacrifício feito em cada compra ficava evidente. Ele só soube do erro quando, no mês seguinte, a cliente quis lhe devolver a quantia. Ela ainda se desculpou por não ter ido antes e explicou que não tinha sido possível. Meu pai tem certeza de que, entre as duas visitas, a senhorinha passou por dificuldades, mas não tocou no dinheiro que não lhe pertencia. É emocionante vê-lo contar. Em recompensa pela honestidade, ele se recusou a receber o valor, fazendo questão que ficasse com ela.
Essas e várias outras histórias muito me ensinaram. Histórias que ficaram enraizadas em meu caráter e que, aos pouquinhos, dão seus frutos, transformando meus modos de pensar e de agir.
Ontem, quando cheguei em casa com o livro na mão, pretendia registrar em suas primeiras páginas o ocorrido no sebo. Porém, logo me dei conta de que isso não seria necessário. Percebi que, ao olhar para ele em uma das prateleiras de minha biblioteca, vou sempre trazer à tona tudo o que aprendi antes mesmo de abri-lo.
Então transformei o registro numa crônica. Fiquei repassando o episódio e tentando colocar em palavras o que ele significou para mim. Nesse sentido, os livros da biblioteca servem para ajudar a manter vivas em minha memória algumas das pessoas que conheço por aí e também suas histórias. Acho incrível como apenas umas poucas sementinhas podem fazer brotarem grandes experiências de vida! Pois olho para meus livros, penso no vendedor do sebo, na cliente de meu pai e, num momento de profunda introspecção, fico perguntando a mim mesmo: “O que você tem plantado ultimamente?”
quinta-feira, 19 de março de 2009
O IDIOTA DA ARTE
Há anos vou com amigos de outras áreas a exposições de arte contemporânea e sempre nos deparamos com o mesmo drama: eles não entendem praticamente nada do que se passa com aquele monte de porcaria empilhada, este interminável filme fora de foco e essas caixas de madeira dispostas cartesianamente pelo chão, como resquícios de um fim de feira organizados por alguém com muita falta do que fazer. Pois não considero meus amigos uns insensíveis, que não compreendem as possibilidades do contemporâneo. Longe disso. Na verdade, sinto pena de que eles não encontrem hoje uma arte à altura de sua curiosidade.
Imagino que essa sensação de desconforto venha acontecendo há mais de um século. Desde os modernistas; talvez do cubismo em diante. Enfim, ainda hoje enfrentamos a problemática que as artes plásticas propuseram a si mesmas lá atrás e que ainda não conseguiram solucionar: o sentido da sua existência.
Ora essa, quando modernistas como Picasso, Matisse, Breton etc. se estapeavam querendo comprovar que era a sua visão de arte a mais apropriada, eles não buscavam apenas a imposição de um conceito – queriam estar na moda. Pois falem mal, mas falem de mim.
Não há dúvida de que seus experimentos, entre tantos outros, foram valiosíssimos. Naquele momento, a arte vivia uma crise tão complexa que se instituiu a novidade como parâmetro de qualidade. Bom mesmo era quem conseguia se reinventar a cada pincelada. Mas a grande questão que, no nosso caso, vem se impondo há anos e para a qual pouquíssimos têm arriscado uma resposta é: será que um século de invenções e reinvenções não bastou para a arte reencontrar seu lugar na vida das pessoas?
Nesse sentido, admiro muito o Ferreira Gullar, que dá a cara a tapa não apenas porque tem coragem, mas porque tem conteúdo para enfrentar quem fica em cima do muro. Segundo ele, “a instituição da novidade como valor fundamental da arte tornou-se uma espécie de terrorismo que inibe o juízo crítico e garante a vigência impune de qualquer idéia idiota”.
Pois hoje vivemos a era da arte idiota, onde vale tudo. Que coisa! Estou cansado de experimentalismos meramente formais e acredito que já está na hora de usar toda essa pesquisa para a construção de algo útil.
É difícil generalizar, mas, depois que o artista largou a tela com vergonha de parecer ultrapassado, vemos por aí incontáveis projetos monumentais, caríssimos, que muitas vezes só chegam até nós por meio de fotos ou filmes e que não contêm uma só idéia que valha todo esse esforço. O belo de hoje, ao menos uma linha dele, é o grandioso, o espetacular, que atrai mídia e causa polêmica.
Ora, me poupem dessa arte estapafúrdia. De que adianta gastar milhões, atrair uma multidão de interessados e não dizer praticamente nada?
(estive também pensando nas obras pequenas, que tendem a ser amontoados de quinquilharias agrupadas desta ou daquela forma, com custo baixo, mas creio que, se hoje o grande é igual ao belo, pior ainda para o pequeno, que se torna o feio – este fica para uma próxima crônica)
Restam os comentários. “Grande, né?” “Legal.” “Como será que ele fez isso?” E ponto, traga a próxima obra, por favor.
Sem dúvida, o artista ganha fama. Muitos começam a estampar bugigangas, são chamados para programas de TV e tentam se manter na mídia o maior tempo possível com seus “escândalos”. Mas, cá entre nós, que diferença isso faz em nossas vidas?
Sou muito mais a Monalisa, que é pequenininha em sua redoma de vidro e movimenta o mundo em seu redor. Cinco séculos depois, ela ainda dá o que falar. Quer mais? Estou certo de que, se for com meus amigos ao Louvre, todos vão se emocionar, e ela mudará um pouco nossas vidas.
Pode me chamar de passadista, não me preocupo. A história da arte tem se encarregado, desde os primórdios, de decidir quem sobrevive e quem fica condenado ao esquecimento. Eu só queria viver mais uns cem anos para descobrir o que vai restar da arte de hoje. Se os artistas persistirem em não fazer muita diferença na vida de seu público, o movimento atual será conhecido como “nadismo”. Nada para cá, nada para lá, noves fora, nada.
Nas palavras do próprio Ferreira Gullar, “foi o próprio curso seguido pela sociedade e pela arte que gerou os problemas de agora. Resta saber se essa evidência é justificativa suficiente para que o artista persista em seguir um rumo que destrói os seus próprios valores”.
Quer saber? Se as bienais, feiras e exposições contemporâneas já não interessam a quase ninguém além dos iniciados e/ou investidores, pego meus amigos e vamos dar uma volta na rua. No meio do caminho tem sempre uma pedra, objet trouvé, para se admirar, discutir e, por que não?, se emocionar.
quarta-feira, 18 de março de 2009
ARQUITETE VOCÊ, ARQUITETO EU
Gosto particularmente desta crônica. Ela busca provocar alguma discussão sobre um assunto que raramente vem à tona: a arquitetura da cidade. Aproveitei o gancho da Lei Cidade Limpa para emendar idéias que o filósofo Alain de Botton colocou em minha cabeça. Aliás, tive uma fase em que devorei a maioria dos livros dele e, sinceramente, recomendo vários. Trata-se de um texto acessível, inteligente e prático. Em outras palavras, ótimo para quem busca uma filosofia típica do dia-a-dia.
Quer coisa mais banal que andar pelas ruas da sua cidade? Só que o importante não é apenas andar, mas aprender a observar, questionar, buscar perguntas e respostas. Tem tanta coisa espalhada por aí que foi feita sem pensar e que afeta drasticamente nossa vida! Proponho um exercício: dê uma volta no bairro e comece a prestar atenção no estilo das casas, nos ornamentos, nos jardins e nas calçadas. Comece a se perguntar por que são assim. Estou certo de que, com um olhar crítico, vai ficar cada vez mais fácil fazer suas próprias escolhas.
Sempre considerei as casas reflexos de seus habitantes. Olhe as pessoas à sua volta. Como é o lugar em que elas moram? É um sobrado, um apartamento ou uma construção térrea? Fica em condomínio fechado, bairro residencial, periferia ou região central? O que o jeito dessas pessoas lhe diz? Vamos, não é difícil imaginar seus móveis, a cor de suas paredes, os bibelôs da sala de estar e a claridade da cozinha. Há jardins nessa casa? Os muros são altos ou baixos? Existem grades nas janelas?
Para mim, pessoas simples e verdadeiras têm casas acolhedoras, enquanto as mal-educadas, mesquinhas e individualistas moram em lugares frios, intimidadores, que parecem vazios mesmo quando cheios de coisas, como os castelos das bruxas nos contos-de-fada.
Nos últimos tempos, venho tentando ampliar um pouco essa visão, de modo a abranger toda uma cidade. Será que existe diferença entre a arquitetura dos povos oprimidos, a dos decadentes, a dos tradicionalistas e a dos economicamente desenvolvidos? Ao analisarmos classes sociais equivalentes, a história mostra que sim, essa diferença existe, basta ver o que diferentes civilizações construíram em igual período de tempo, ainda que separadas por mares ou montanhas.
Há também a influência de fatores externos que não podem ser desconsiderados, como o clima, o material de construção disponível e as técnicas desenvolvidas até então. Tudo isso determinou a arquitetura dos antigos e, em conseqüência, influenciou a atual. Pois eu pergunto: se o passado está contido nas paredes que levantamos, qual é o poder que a arquitetura exerce sobre nós? Prestando atenção em nossa cidade, o que ela nos diz hoje?
O crítico John Ruskin propôs que busquemos duas coisas em nossos prédios: que eles nos abriguem e que falem conosco, ou seja, que ajam como portadores daquilo que queremos dizer.
Alain de Botton, filósofo contemporâneo, retoma esse pensamento no ótimo livro A arquitetura da felicidade. Segundo ele, “A noção de que as construções falam nos ajuda a colocar no centro das nossas charadas arquitetônicas a questão dos valores segundo os quais queremos viver – e não meramente como queremos que as coisas pareçam”.
Isso me leva a crer que estamos numa dialética constante com as paredes ao nosso redor. Somos tanto filhos delas quando elas provêem de nós.
* * *
Como muitos devem saber, na cidade de São Paulo está em vigor a Lei Cidade Limpa, que regulamenta a exploração de espaços publicitários e que até hoje tem gerado bastante polêmica. Não quero discutir aqui o modo como essa lei chegou até os cidadãos, mas, tendo em vista que as eleições estão próximas e que os boatos sobre sua possível descontinuação já estão circulando, gostaria de dizer o que ela tem significado para mim.
Como publicitário, sou até hoje questionado sobre as conseqüências da nova lei. Sempre respondi que a acho ótima e, ao contrário do que muitos pensam, nem um pouco ameaçadora à maioria dos profissionais da área, pois as adversidades permitem à publicidade se renovar. Os anúncios estavam crescendo descontroladamente, quase que envelopando a cidade. São Paulo estava oculta. Feia. Suja. Digo mais: acreditar que, quanto maior a exposição, mais o produto vende, é uma imensurável ingenuidade. Na briga entre a lei e a propaganda, continuo apostando que só a criatividade sobreviverá.
Na época da votação do projeto, quando ninguém sabia ao certo a viabilidade de tamanha mudança, conversei com um colega arquiteto. Ele expressou sua aprovação afirmando que, retirados os outdoors, placas e fachadas exageradas, os paulistanos descobririam como a cidade é linda e, ao mesmo tempo, como está malcuidada.
Vejo que suas palavras se concretizaram. A lei revelou a beleza eclética de um centro obrigado a se desenvolver de um dia para o outro, a ambição dos novos arranha-céus comerciais e a incoerência – para não dizer mal-gosto – do falso “estilo neoclássico”, que teima em dar às caras sempre que se pensa em subir uma construção séria, imponente, refinada.
A cidade de São Paulo talvez seja o reflexo da diversidade de seus habitantes. Imagino que o mesmo deve acontecer com todas as outras cidades do país: elas são um pouco do que suas pessoas são. Assim, é nossa a responsabilidade por esses lares, por seu crescimento e desenvolvimento, e precisamos ter consciência disso. Cada atitude que tomamos de nossa parte afeta o todo; do mesmo modo que o todo nos influencia as vidas com seus cheiros, barulhos, rotinas e, por que não?, fachadas, pontes, praças etc. Quem se sente em casa quando caminha pela cidade a que pertence? Como é essa casa? Fria ou aconchegante? Organizada ou bagunçada? Limpa ou suja? O que queremos para ela? Não é difícil imaginar. Acredito que basta olhar para dentro de nós mesmos. Um pouco do que está à nossa volta vem daí. E alguns cantos da cidade, por menores que sejam, definem perfeitamente quem realmente somos. Talvez estes sejam apenas tópicos a serem considerados na bonita ação de construir. “Apenas”, mas essenciais.
terça-feira, 17 de março de 2009
CULTURA DOCUMENTADA, CULTURA COMENTADA
Lembro-me que, quando esta crônica foi publicada em junho de 2008, eu vivia uma euforia por documentários. Notei que aí estava um mercado emergente e fiquei feliz ao perceber que os brasileiros de um modo geral buscavam algo além do cinema hollywoodiano.
Hoje, vejo muita coisa bacana sendo comercializada em bancas de jornal, a preços mais ou menos populares. Se você quer uma dica, procure os filmes da BBC que a Editora Abril tem levado a público.
Além deles, gostaria de aproveitar para indicar alguns outros títulos:
>> Santiago – o cineasta João Moreira Salles fala sobre seu mordomo
>> Quem somos nós? – física quântica acessível a todos
>> Sob a névoa da guerra – depoimento de um ex-Secretário de Defesa dos Estados Unidos, mostra como o fim do mundo quase aconteceu algumas vezes
Existe um outro, muito raro, chamado A revolução não será televisionada, feito por uma equipe de TV irlandesa, se não me engano, na ocasião em que o presidente Hugo Chávez foi deposto por golpe militar e logo em seguida recolocado no governo pelo povo. Ele traz um ponto de vista muito diferente da ocasião e pode ajudar a entender o que acontece hoje na Venezuela. É difícil de achar, até porque foi proibido no país durante a ditadura militar e acho que se espalhou somente por meios pouco lícitos, com gente duplicando VHS. Ainda assim, se conseguir encontrar, recomendo!
“À noite, do morro / descem vozes que criam o terror / (terror urbano, cinqüenta por cento de cinema, / e o resto que veio de Luanda ou se perdeu na língua geral). / Quando houve revolução, os soldados se espalharam no morro, / o quartel pegou fogo, eles não voltaram. / Alguns, chumbados, morreram. / O morro ficou mais encantado.”
Acho praticamente impossível ler essa primeira estrofe de Morro da Babilônia e não associá-la à violência social e política que aflige a população do Rio de Janeiro. Mas o poema – assim como os problemas que ele expõe – não é de hoje: faz parte do livro Sentimento do mundo, de Carlos Drummond de Andrade, publicado pela primeira vez em 1940, e diz respeito a nós, às nossas vidas e às atitudes que definem nosso meio.
Pois esse livro prova que a arte há tempos não apenas representa, mas também denuncia, propõe debates e, muitas vezes, encontra soluções. Infelizmente, no Brasil do século XXI, a poesia se tornou uma “coisa de elite”, cultura para poucos iniciados (ou interessados), e duvido que 10% da população conheça os versos citados acima.
Isso acontece também com muitas outras vertentes da arte: plástica, dança, teatro etc. Cada uma sofre à sua maneira com o distanciamento da sociedade – distanciamento que sempre existiu, sendo apenas maior ou menor de acordo com a época.
Esse movimento de vai e vem não cessa. Como revelou o 13º Festival É Tudo Verdade, que aconteceu em março e abril deste ano em São Paulo, Rio de Janeiro, Campinas, Brasília e Recife, um outro braço da tal cultura de elite está se popularizando no país: o cinema documental.
Sempre tido como “o lado chato do cinema”, o gênero atingiu seu auge por aqui com o filme Tropa de elite, uma “ficção documental” assistida por alguns milhões e um dos maiores sucessos de bilheteria do cinema nacional – na verdade, trata-se de uma ficção baseada em relatos reais de ex-soldados do BOPE, tida muitas vezes como documentário, talvez, pelo tom de denúncia que tanto se aproxima do nosso dia-a-dia.
Pois o festival deste ano foi o maior da América Latina. Exibiu cerca de 130 filmes (entre os quais 18 tupiniquins inéditos) e pagou o prêmio de valor mais alto já concedido a produções brasileiras: 100 mil reais.
O mais importante, em minha opinião, não são os números, mas o que eles representam: a crescente popularização de um gênero até então fadado a duros preconceitos.
A chegada dos documentários a outras camadas da sociedade brasileira tem seus motivos. Acredito que o aprimoramento da linguagem está, aos poucos, mostrando que é possível unir informação e entretenimento em uma única película. Afinal, ninguém agüenta horas de um blá, blá, blá tedioso se não estiver extremamente interessado nele, enquanto cultura documentada com talento e criatividade é sempre bem-vinda.
Por exemplo: outro filme a que assisti recentemente e que me sinto na obrigação de recomendar é Uma verdade inconveniente, no qual o político americano Al Gore trata de complexos estudos científicos acerca do aquecimento da Terra em 96 minutos bastante didáticos. Depois dos dois Oscar recebidos e dos elogios da crítica, Al Gore me faz acreditar que o cinema documental finalmente está deixando de ser pouco atraente para conquistar públicos cada vez maiores.
Esse é o poder da popularização, e ele não tem nada a ver com abrir mão da qualidade ou da profundidade das produções. Tropa de elite e Uma verdade inconveniente foram vistos por muita gente e, com certeza, renderam muitas boas reflexões. A importância deles tem várias facetas. A primeira, a desmistificação do gênero. A segunda, a relevância dos temas tratados. A terceira, a característica de atestado: ambos desenvolvem assuntos que qualquer pessoa com o mínimo de informação sabe que existem e que estão em pauta; porém, depois de vistos, não há mais desculpas para continuar ignorando os problemas do mundo atual, estejam eles nos morros cariocas, estejam nos gases atmosféricos. Esses filmes são arte e denunciam, debatem e dão soluções – eles nos mostram todas as razões para começarmos a agir.
O de Al Gore, por exemplo, me fez buscar mais informações no livro A vingança de Gaia, de James Lovelock, que desenvolve uma importante tese a respeito do futuro do planeta e, conseqüentemente, do nosso também. No prefácio, o cientista Crispin Tickell escreve: “Somos perigosamente ignorantes de nossa própria ignorância”. Quando vejo o crescente envolvimento da sociedade brasileira com os documentários, fico feliz que esta frase talvez esteja, aos poucos, perdendo seu sentido.
Desejo sinceramente que a cultura se popularize sem se vulgarizar. Afinal, não é a cultura de elite que deve cair, mas é o conhecimento e a atitude crítica da sociedade que deve ascender. De baixo para cima. Isso sim é cultura popular!
segunda-feira, 16 de março de 2009
EVOLUÇÃO SELETIVA COM BORBOLETAS
Borboleta do Ódio
Borboleta do Lixo
Borboleta do Ar
Borboleta do Amor
Borboleta da Terra
“Dentro de nós, Basil, temos o céu e o inferno.”
Oscar Wilde em “O retrato de Dorian Gray”
NOMES
domingo, 15 de março de 2009
GIRAMUNDO
A proposta é que a leitura seja feita em voz alta para uma criança. Espero sinceramente que quem tenha filhos, sobrinhos, netos ou simplesmente conheça algum pequeno interessado se divirta bastante. Tentei ser o mais musical possível para deixar a leitura dinâmica e, no final, acho que deu certo.
Foi uma experiência ótima, pois jamais tinha me aventurado no universo dos textos infantis. Sempre admirei muito as publicações do gênero que, em minha opinião, são riquíssimas. Os escritores e ilustradores brasileiros, principalmente, merecem meus parabéns, pois têm se superado cada vez mais. Sorte dos pequenos, que podem crescer na companhia de histórias tão maravilhosas.
A idéia é que este texto receba ilustrações em breve. Assim que estiverem prontas, prometo que atualizo a postagem.
Enfim, espero que gostem e, se não for pedir muito, escrevam-me contanto a reação dos ouvintes. E as suas também, claro.
Quando começaram a chamar a girafa Joana de “Jô”, ela não gostou. Achava que o apelido soava baixo e gordo, enquanto ela, na verdade, era alta e magra como toda girafa costuma ser. Na escola onde estudava, era a mais alta da turma. As andorinhas, para agradá-la, chamavam-na de “Joaninha”, mas o resto da classe ria, pois sabia que as verdadeiras joaninhas praticamente desapareceriam se ficassem ao seu lado.
Os problemas de ser uma girafa no meio de animais baixinhos não ficavam por aí. Primeiro porque nada estava adaptado para ela. Os lustres, por exemplo, ficavam sempre pendurados no meio do caminho e Jô vivia batendo a cabeça neles. Precisava se dobrar inteira para caber no elevador e achava que a camiseta do uniforme escolar a deixava muito pescoçuda. Quando se olhava no espelho, então, era uma decepção do tamanho do mundo, pois enxergava apenas seus pés. Também, em lugar algum havia espelho grande como ela.
Se normalmente ninguém lhe dava atenção, bastava surgir alguma necessidade de altura que corriam atrás da sua ajuda. Os tatus, por exemplo, só saíam da toca para pedir que ela pegasse uma pipa presa na árvore. O gatinho não sabe descer do telhado? Chamem a Jô. O bebê pardal caiu do ninho e precisa de um empurrãozinho para voltar? Chamem a Jô que ela ajuda de bom grado, tem um grande coração. O que ninguém sabia é que a girafinha vivia triste, pois pediam sua ajuda mas ignoravam sua amizade.
Jô se sentia solitária lá em cima. Nas famosas festas de aniversário da galinha Maristela, no galinheiro de teto baixo, dava para entender perfeitamente a situação: enquanto as marias ficavam de cocota, Jô acabava sozinha num canto, com a cabeça nas nuvens, sem poder se divertir com os outros animais.
De vez em quando, acontecia uma situação ainda mais embaraçosa: Jô errava o passo, dava um nó nas pernas e desabava no chão. Era difícil não se atrapalhar, comprida daquele jeito. Mais difícil ainda era escapar da chacota das hienas, que desatavam a rir às suas custas.
Apesar de tudo, Jô era uma girafa especial. Inteligente, dedicada e muito curiosa, sabia um pouco de tudo. Na hora de inventar brincadeiras, sempre enxergava mais longe do que os amigos e o resultado era diversão na certa.
Uma vez, quando a turma saiu para fazer pic-nic no bosque, Jô fora a única que se lembrou de consultar a previsão do tempo. No meio da tarde, quando as águas de março vieram fechando o verão, formou-se uma confusão. “É o vento ventando! É a chuva chovendo!”, gritavam seus amigos. “É o fim do caminho! É o fim do passeio!” Então, de repente, FLOP!, a chuva parou de chover em cima deles e ficou chovendo só em volta. “Que coisa estranha! Que mistério profundo!” Que nada, era a girafa Jô, que abriu seu guardachuva e salvou todo mundo.
Foi ótimo viver esse dia de heroína. A turma da escola, empolgada com a aventura, a contou e recontou durante um tempão, acrescentando detalhes e exagerando aqui e ali para deixá-la mais emocionante. Jô, por alguns instantes, tornou-se o centro das atenções. Mas aos poucos as coisas foram voltando ao que eram antes – elas sempre voltam se a gente deixar. A girafa Jô continuou se achando alta demais, magra demais, desengonçada demais. A tristeza também voltou. Ela fazia Jô pensar: “O que vou fazer? Queria tanto ser como os outros animais! Queria tanto ser baixinha para me encaixar melhor no mundo deles!”
Para se distrair, Jô gostava de caminhar e descobrir coisas novas. Uma arvorezinha aqui, um morrinho ali, uma vista bonita acolá. Um dia, distraiu-se tanto que foi parar bem mais longe que acolá. Quando se deu conta, estava perdida. Sentou-se em uma pedra para pensar no que fazer, apoiou o cotovelo no joelho, a cabeça no punho fechado e ficou apertando as sobrancelhas, criando rugas de preocupação. Foi quando ouviu uma buzina soar ao longe. E depois outra. E depois mais outra. Curiosa como era, esqueceu-se de pensar e correu em direção às buzinadas. Acabou por encontrar uma enorme cidade.
Nunca tinha visto nada assim antes. Como os prédios eram altos! Muito mais altos do que ela. Jô ficou encantada. Saltitou de rua em rua, sentindo-se pequenina em meio a tamanha imensidão.
Deparou-se com um prédio lindo, todo feito de vidro azul, brilhando à luz do sol como uma safira gigante. Jô se aproximou para ver melhor e teve uma surpresa que a deixou de queixo caído – lá dentro estava uma linda girafa, alta e esbelta. Quanta elegância! Ficou observando-a sem piscar até perceber que a outra girafa também olhava para ela. Pintou-se de rosa-vergonha. Meio sem jeito, desviou o olhar e a girafa bonita fez o mesmo. Só que a curiosidade de Jô não estava satisfeita. Ela então foi se aproximando devagar, disfarçando o nervosismo com risinhos tímidos. A outra girafa também foi chegando mais perto, olhando de um lado para o outro, exibindo um ar despreocupado. Seria uma estrela de cinema? Será que gostaria de falar com Jô? Bonita como era, a girafa de dentro do prédio deveria ter um monte de amigos, então, por que perderia seu tempo com uma desengonçada? Não importava, Jô queria pedir conselhos. O que deveria fazer para ser assim? Será que a girafa bonita daria umas dicas? A empolgação era tanta que Jô não se aguentou. Disfarçou mais um pouquinho, cantarolou, deu uns passinhos furtivos e záz!, pulou na direção da outra girafa.
Todo mundo da rua ficou surpreso quando viu uma girafa doida chocar-se contra o vidro azul do prédio. Jô caiu de bunda na calçada e, ainda meio tonta, ficou tentando entender o que tinha acontecido. Cadê a outra girafa? Fugiu? Será que se assustou? Não, péra aí, a girafa ainda está lá dentro, sentada no chão, olhando diretamente para Jô.
Olhando para Jô? Como assim?
Foi então que compreendeu tudo. Não havia nenhuma girafa dentro do prédio, era apenas seu reflexo no vidro. Mas... ela era bonita daquele jeito? Esbelta e elegante também?
Ainda sentada na calçada, Jô abriu um imenso sorriso. Acabara de fazer a maior descoberta da sua vida! E, para confirmar que não estava imaginando coisas, a girafa do prédio lhe sorriu de volta.
Depois disso, Jô pegou a estrada de volta à sua cidadezinha, de volta à pequena casa, à pequena escola, às pequenas alegrias da vida. Apenas uma coisa havia mudado: sua autoestima, que crescera e ficara tão alta quanto a de uma girafa satisfeita com o que era. Jô jamais deixaria que ela voltasse ao normal, pois descobriu que era daquele jeito que o normal deveria ser. A tristeza, por sua vez, foi-se embora para nunca mais voltar. A girafa agora irradiava felicidade e contagiava todos.
Assim que chegou à escola, seus amigos perceberam que ali estava uma nova Jô, mais simpática, mais sorridente, mais legal. Jô estava até mesmo mais bonita. Acabou por se tornar uma companhia agradável da qual todo mundo queria compartilhar. E não era para menos, afinal, quem não gosta de uma girafa de alto astral?
Não demorou muito para que o apelido “Jô” fosse ouvido pelos quatro cantos. Era Jô para cá, Jô para lá, Jô Jô Jô. Ela passou a gostar dele, claro.Seus amigos, quando viram tamanho entusiasmo, sentiram uma pontinha de inveja e pensaram: “O que será que eu preciso fazer para ser como ela?”
sábado, 14 de março de 2009
VIZINHOS QUE SÓ OS INTELIGENTES PODEM VER
Moro no mesmo apartamento há pouco mais de dois anos e, até aproximadamente um mês atrás, não conhecia ninguém do prédio, exceto alguns porteiros. Isso não é nada incomum, considerando que saio de casa todos os dias às 6h45 e raramente retorno antes das 21h (quem habita uma metrópole sabe do que estou falando). Nunca nadei na piscina daqui, usava as áreas comuns apenas para ir até a rua e, como não podia ser diferente, jamais participei de uma reunião de condomínio. Quando encontrava alguém no elevador, ficava sem saber se era visita ou não – talvez fossem eles que decidissem quando meu próprio apartamento seria pintado ou dedetizado e eu nem mesmo os conhecia! Cumprimentava, mas não puxava conversa.
Uma única vez, ainda quando estava de mudança, falei com meu vizinho de porta. Ele aproveitou que o apartamento estava aberto e veio me conhecer. Foi bastante humano de sua parte. Trocamos algumas palavras, nos certificamos de que ambos eram suficientemente civilizados e nos despedimos com um “Se precisar de algo, estou logo aqui, ok?”
Depois disso, vivi mais ou menos um ano dizendo a todos os amigos que meus vizinhos eram perfeitos: não faziam barulho, não escondiam cachorros no apartamento, não cavalgavam de madrugada com salto alto, respeitavam as vagas do estacionamento e, de certo modo, não causavam problemas. Em outras palavras, eram invisíveis.
Mas o aconchego do lar não durou muito: aquele mesmo vizinho que viera pacificamente me oferecer sua boa educação, assim, de repente, teve um filho! Eu nem sabia que sua esposa estava grávida e, para ser sincero, nem mesmo tinha certeza de que ele era casado.
* * *
Às vezes tenho a impressão de que o garoto começou a chorar no dia em que chegou e que não parou até agora. Com um agravante: depois de completar um ano, ele descobriu que a brincadeira mais divertida do mundo é jogar ao chão as panelas da mãe. Uma gracinha, não?
* * *
Quando tomava café na manhã de um dos últimos sábados, ouvia as panelas caindo e um martelar irritante na porta da cozinha que ainda não descobri como ele faz. Lembrei dos tempos em que não se ouvia nem mosca durante todo o fim de semana e me senti o maior canalha do universo, mas admiti: era tão bom quando meus vizinhos simplesmente não existiam!
* * *
Quem já viu o clássico filme Meu tio (Mon Uncle), se lembrará da divertida crítica que o diretor francês Jacques Tati faz, já em 1956, à fria e solitária vida moderna, comparando-a a uma pequena vila da periferia da cidade onde os vizinhos preservam o calor de uma verdadeira comunidade: todos brigam, riem, fofocam, trabalham e amam juntos, ou seja, compartilham suas vidas e a si próprios. Em sua opinião, envolver-se com os outros à sua volta é a melhor maneira de viver e, acrescentaria eu, de sobreviver.
Pois até um mês atrás eu pediria a Tati que me perdoasse, mas quem desperdiça quatro horas por dia no trânsito, sente-se obrigado a saber tudo que acontece no mundo e luta contra o tempo para entregar cada trabalho só quer chegar em casa, afundar no sofá e ouvir o silêncio da tensão indo embora.
* * *
Acontece que, hoje, estou tentando mudar isso. Às vezes o ato de ignorar a existência dos outros é apenas reflexo da enorme quantidade de “existências” à nossa volta (na Grande São Paulo, o número deve estar batendo os 20 milhões).
Enfim, talvez errado seja o ritmo frenético que escolhemos para nossas vidas e que nos faz passar por ela fingindo viver. Talvez seja o paradoxo de ficar quatro horas preso num engarrafamento e depois correr contra o tempo no trabalho. Ainda não encontrei uma solução prática para esses problemas, mas, pelo menos, depois de muita meditação, concluí que trancar o moleque do vizinho no armário não vai ajudar.
É engraçado perceber que quem antes não me deixava ouvir os próprios pensamentos tenha mudado um pouco minhas atitudes. No último mês, estou tentando ser um pouco como ele. Não tenho atirado minhas panelas ao chão, mas consegui aparecer e me fazer ouvir. Puxei papo no elevador. Dei uma volta em torno da piscina e acabei jogando bola com uma criança. Planejo agora me livrar do trabalho mais cedo e participar da próxima reunião de condomínio. Fiquei sabendo que até pizza eles compram para atrair o pessoal! Mas não vou até lá por causa dela não. Quero entender o que significa essa tal de comunidade e, quem sabe, ser um vizinho que os outros podem ver.
quarta-feira, 11 de março de 2009
QUEM TEM TEMPO PARA MAIS ESSA?
Esta crônica é de 24 de abril de 2008 e fala sobre um assunto que muito me perturba – estou em constante conflito com o tempo. Tenho a sensação de que nunca tenho tempo para nada, tudo é sofrido, tudo é corrido. Mas, quando consigo tempo livre, sempre arrumo alguma coisa para fazer. E arrumo rapidinho, chega a ser cômico. Ultimamente, tenho pelo menos deixado de reclamar. Faço o que dá e pronto, foi o que deu para fazer. O que não deu fica para a próxima. Se não for assim, enlouqueço a mim e os outros ao meu redor.
A respeito da provocação no final, apenas uma leitora conseguiu me responder a tempo. Fez uma bonita reflexão sobre a vida e sou muito grato por ela. Aliás, gosto muito de saber como os leitores recebem meus textos, portanto, escreva sempre que puder. Se tiver tempo, claro.
Quando relia minha última crônica publicada (sobre o trânsito caótico das grandes cidades e os preciosos minutos que nós perdemos com ele) e considerava a possibilidade de uma continuação, recebi o telefonema de um amigo dos idos da faculdade e de repente soube que, coincidência ou não, tudo em nossa vida é uma questão de tempo. Esse amigo foi especialmente importante na minha escola filosófica acerca do assunto, pois sempre representou o oposto da infalível pontualidade britânica e tinha uma teoria bastante curiosa para explicar seus atrasos costumeiros: nascera meia hora atrasado e, conseqüentemente, esse lapso tem se prolongado durante toda a sua vida!
Brincadeiras à parte, a influência do tempo em nossa sociedade é algo que realmente preocupa, por mais assimilada que já esteja e, pior ainda, por mais suscetíveis a ela que sejamos. Quem já reservou alguns minutos para refletir seriamente sobre as razões e conseqüências dessa escravidão voluntária?
Nas últimas duas semanas, estive me perguntando quando foi que a noção de tempo apareceu pela primeira vez e o que teria levado homens e mulheres a desenvolver matemática tão complexa, pois, na minha concepção, o tempo nada mais é do que um cálculo – a busca de um padrão nos estímulos sensoriais à nossa volta e no qual ficamos tentando nos encaixar.
Em outras palavras, acredito que a noção de tempo deve ter sido criada para que esses humanos primitivos soubessem não apenas quando era dia e quando era noite – mesmo porque isso não deveria ser muito difícil de adivinhar –, mas justamente quantos dias e noites eram necessários para as flores desabrocharem, para as árvores darem frutos, para a neve cair e para as mulheres ovularem.
Será que foi assim? Não sei, mas, de qualquer maneira, imagino que deva ter sido por algum motivo ligado à sobrevivência. Aliás, tudo me leva a crer que os homens só pensam, inventam e se põem a buscar soluções quando se sentem realmente ameaçados de extinção.
Eu gostaria que alguém me explicasse como era a vida antes do relógio de pulso, da agenda via web e do despertador. Como os antigos gregos, por exemplo, marcavam seus encontros e não perdiam a hora? Como os romanos, antes mesmo de Cristo, das igrejas e dos sinos, faziam para não chegar atrasados ao trabalho? Como não perder a estréia de uma peça de teatro ou voltar para casa em tempo de impedir a ira dos pais mais rígidos?
Podem parecer ingênuas, mas essas perguntas têm sua importância. Em primeiro lugar, mostram que havia vida antes do relógio e que, se soltássemos as amarras de nossos pulsos, ela continuaria existindo. O controle do tempo é nosso – ou deveria ser –, já que fomos nós que inventamos tal medida.
Para mim, o horário de verão é sua prova mais concreta. Como é que os brasileiros combinam entre si, adiantam ou atrasam seus relógios em uma hora – avançam e retrocedem no tempo –, e continuam obedecendo a suas rotinas normalmente?
Outro ponto: se o mundo for acabar num dia específico – como prevêem muitas religiões –, será que a destruição começará pelo Japão? Afinal, de acordo com nossa idéia de tempo, quando aqui no Brasil é noite, lá já é o dia seguinte, e seria uma grande sacanagem de Deus chegar atrasado ou, ainda, adiantar nossa aniquilação sem nem mesmo deixar um recado após o bip.
Trabalho em um mercado (publicitário) em que os profissionais não têm muita noção do significado da “vida anterior à morte”. A maioria aceita de bom grado trabalhar dias e noites sem descanso, sem horas extras remuneradas, sem fins de semana etc. É um mercado povoado de workaholics que se deixam explorar e vivem brigando por mais prazo, mas não por mais vida útil. Infelizmente, sei que essa demência também se aplica, em maior ou menor grau, a diversas outras profissões.
Pois minha proposta é que todos analisem um pouco essas (suas) atitudes.
Certa vez, conversando com aquele amigo que nasceu atrasado, propus a criação de um teletransporte para que pudéssemos atender aos nossos compromissos sem gastar horas no trânsito e, assim, ter mais tempo livre para aproveitar a vida. Ele me respondeu com uma verdade incontestável: “Se essa máquina fosse inventada, logo estaríamos marcando reuniões com intervalos de trinta segundos entre uma e outra, e novamente não teríamos tempo livre”.
Pois é, acho que somos um tanto injustos conosco. O tempo foi calculado para ser usado em nosso favor, não o contrário. Ainda assim, nós não temos tempo para fazer nada – é o tempo que nos tem. Não sei de vocês, mas eu estou aqui para ser feliz. Sugiro que experimentem também. Quem conseguir um tempinho, pode começar se perguntando o significado da expressão “qualidade de vida”. (agora, desculpe a pressa, mas será que tem como dar a resposta até a hora do almoço?)
terça-feira, 10 de março de 2009
PECADO DA CAPITAL
Com ou sem crise, as montadoras continuam produzindo e vendendo milhares de veículos todo mês. Com ou sem crise, o povo continua comprando. Com ou sem crise, todos ficam parados no trânsito falando sobre a crise.
O que mais me desanima, no entanto, é que fui obrigado a parar com o ioga. Depois de 9 meses de prática, não consegui mais chegar no horário.
Demoro em média duas horas para ir de casa ao trabalho e o mesmo tempo para fazer o percurso inverso. É uma insanidade que só São Paulo explica (a cidade, não o santo). Acordo cedinho, pego ônibus, metrô, faço baldeação, pego outro metrô, caminho três quarteirões, pego um segundo ônibus e vou a pé os últimos quinze minutos. Daria para ir à praia, mas meu bate-e-volta diário é para o escritório mesmo.
Há aproximadamente dois meses, eu e minha namorada inventamos de fazer ioga nas manhãs das segundas-feiras, pertinho do trabalho, o que significaria sair de casa às cinco e meia da madrugada. Achei cedo demais e optei por um dos maiores sacrilégios da cidade: tirar o carro da garagem. Seria apenas uma vez por semana, duas pessoas no veículo e, na minha ingenuidade, acreditei que haveria chance de absolvição.
O início foi tentador: era janeiro, muita gente ainda estava de férias e nós precisávamos de apenas uma hora e dez para chegar lá. A volta demorava um pouquinho mais, hora do rush, sabe como é; mas tudo bem, aceitei a penitência.
No entanto, a primeira segunda-feira após o carnaval revelou a gravidade do meu pecado. Era a releitura mais atual do Inferno, de Dante, com as almas penitentes sofrendo fechadas em seus círculos individuais, engolindo fumaça, suando sob o sol quente do verão, torturadas por buzinações intermináveis.
Minha namorada ficou desconsolada. Queria usar a ioga para curar aquilo: colocar um new age em cada carro, levantar o megafone e fazer todos aqueles motoristas estressados recitarem juntos o mantra Óóóóhuummm...
Percebi que, para continuar chegando no horário, seríamos obrigados a sair de casa ainda mais cedo e retornar ainda mais tarde. Comparando com o tempo de ônibus + metrô, ficava, como dizem, elas por elas.
E a situação só tende a piorar. Qualquer bom-senso consegue imaginar a enorme e assustadora leva de novos motoristas que chega às ruas todo mês. Basta olhar as notícias sobre as montadoras: é um recorde atrás de outro. Em fevereiro, chegamos a seis milhões de veículos licenciados na cidade e uma média de oitocentos emplacamentos por dia. Mesmo o rodízio já não resolve nada há tempos.
No domingo passado, fiz uma experiência: percorri o mesmo trecho que durante as últimas segundas-feiras me tomou uma hora e meia de vida. Precisei de apenas vinte minutos.
Em outras palavras, o carro, que todo mundo tira da garagem para economizar tempo, acaba se revelando um dos grandes problemas da atualidade. E isso vale para a maioria das metrópoles, porque todos nós somos um bando de preguiçosos inconsequentes. Poluímos, gastamos absurdos com combustível, estacionamento e manutenção do veículo e acabamos com nossa própria saúde no meio daquela loucura.
Sempre gostei de transporte público por dois motivos: 1. Não suporto o processo de engatar a primeira marcha, avançar um metro, desengatar, esperar alguns instantes e fazer tudo de novo, e de novo, e de novo, durante uma eternidade; 2. Uso o tempo que passo no ônibus e no metrô para ler, ouvir música, conversar etc. Não é perdido; ao contrário, é tempo bem aproveitado.
Analisando dessa maneira, o carro se mostra cada vez uma economia mais burra. E, acredite, eu adoro dirigir.
Sempre que proponho a outros motoristas convictos largar o volante e tomar um ônibus, ouço que o transporte público é caro e precário. O pior é que é verdade. É ruim e mal-administrado. Mas as avenidas superlotadas, mal-sinalizadas e esburacadas nunca me pareceram muito melhores.
“Este mundo, em que eu suporto tudo o que suporto (...), este mundo moderno, enfim, que diabo querem que eu faça nele?”, já se perguntava André Breton, em 1924, no primeiro Manifesto do Surrealismo.
Pois seu mundo sem nexo ainda tem tudo a ver com a nossa realidade.
Um amigo, por esses dias, me confessou um inconformismo parecido: a frase que mais ouvia das pessoas era “O mundo está assim porque ninguém faz nada”. “Bom, o que você tem feito ultimamente?”, respondia ele.
Quer dizer que os problemas não se resolvem sozinhos?
Cruzar os braços e reclamar também não é a solução.
Outro amigo, grande mestre, aconselharia sabiamente o uso de seu método TBC – Tire a Bunda da Cadeira (no caso, do assento do motorista). Pois é, o único modo de melhorarmos o transporte público é mostrar nosso interesse em utilizá-lo e lutar por melhorias, tais como: maiores frotas, novas linhas e preços mais baixos. “Fazer acontecer”, como diria o publicitário e escritor Júlio Ribeiro. É nosso dever exigir o melhor de um serviço pelo qual estamos pagando. Entenda, ninguém está nos fazendo um favor ao oferecer transporte.
Não sei se, moralmente falando, o processo deveria ser assim. Acho que não, mas é só partindo da população que o transporte público funcionaria aqui no Brasil. Infelizmente, sempre falta o povo. O povo e sua teórica força.
Se formos esperar que as empresas, assim, de repente, tomem a atitude de mudar por si sós, podemos esperar sentados. Em casa. No entanto, se todos preferirem continuar acordando alguns minutos mais tarde, enfrentando horas de trânsito, enfartando aos quarenta e achando que é vantagem, tudo bem, mantenham a bunda sentada, eu os perdoo e à sua estupidez também. Consciência não é algo que se força, que se obriga, e eu não vou catequizar ninguém. Vamos ver no que dá. Se o trânsito for o Juízo Final, todo mundo vai chegar atrasado no além. E terá muita inércia a confessar.
domingo, 8 de março de 2009
TRATADO VEGETARIANO DE NÃO-AGRESSÃO
Uma curiosidade: a palestrante em questão tinha sido minha orientadora na pós-graduação. Coincidência ou não, a brincadeira não foi direcionada a mim, embora no começo eu tivesse ficado um tanto desconfiado.
Um tempo atrás, fui até a Pinacoteca de São Paulo prestigiar uma amiga que lá palestraria, convidada especialmente para a ocasião: a inauguração de uma grande exposição, dessas internacionais.
Estava na platéia com minha namorada e alguns colegas da área; ao todo, não somávamos cinqüenta pessoas e, num ambiente convidativo como aquele, eu me sentia em casa.
O artista em questão, Kurt Schwitters, revolucionou a arte alemã praticamente sozinho e ficou famoso por suas esquisitices: catava “lixinhos” nas ruas (engrenagens, parafusos perdidos, bilhetes usados de trem etc.), purificava-os seguindo um ritual de água e sabão e os incorporava à sua grande obra Merzbau, uma série de colagens esculturais que, aos poucos, tomou conta de sua casa.
Infelizmente, ele acabou incluído na lista de “artistas degenerados” de Hitler e, perseguido, foi obrigado a fugir para morrer isolado na Inglaterra alguns anos depois. Sua casa foi bombardeada pelos aliados e, da Merzbau original, nada restou a não ser umas poucas fotos e breves relatos de amigos que puderam visitá-la.
A palestrante, doutora em história da arte, aproveitou o momento trágico para provocar um outro amigo seu que também estava na platéia: falou sobre a personalidade perturbada de Hitler – algo como “Ele era maníaco e vegetariano” ou “Promovia matanças desumanas e não comia carne”. Não me lembro da frase exata, mas foi engraçado e todo mundo riu.
Mais tarde, nos minutos reservados às perguntas da platéia, descobri que aquela brincadeira deixou indignada uma garota sentada perto de mim. Ela pediu o microfone, disse que o vegetarianismo é coisa séria, não havia motivo para risos, e que o comentário sobre a atitude de Hitler era um tanto impertinente.
A palestrante pediu desculpas, disse que não teve intenção de ofender ninguém e que o vegetarianismo do ditador obviamente não tinha nenhuma relação com as atrocidades que ele cometeu – era apenas uma provocação particular, coisa de amigos que o ambiente intimista permitia. E era mesmo. Duvido que, em algum momento, alguém levou o comentário a sério, exceto a tal garota.
De qualquer modo, com aquele bate-boca bem polido, o clima na sala ficou tenso. Todos estavam desconcertados. Eu, também vegetariano, fiquei sem-graça, tive vontade de pedir o microfone e dizer a ela: “Por favor, não se leve tão a sério. É bom ter uma ideologia e isso é raro hoje em dia. Acredite, lute por ela, mas não faça a bobagem de acreditar que é a única verdade sobre a Terra. Foi exatamente isso que Hitler fez, e veja só os resultados... Então, vamos deixar o mal-entendido de lado e continuar com as perguntas?”
Fiquei pensando no que dizer, nas palavras exatas, e acabei perdendo a oportunidade: a garota se levantou e sumiu.
Tentamos voltar ao Schwitters, mas o assunto não engatava e acabamos a palestra rindo com o amigo vegetariano provocado, que tomou posse do microfone e tentava expor sua tese sobre a origem do costume de Hitler, atrapalhando-se mais do que explicando: era alguma coisa sobre Wagner, Nietzsche e uma dieta antiesquizofrênica. Ninguém entendeu nada, mas foi divertido. Devo admitir, o cara era espirituoso. Aliviou a tensão e fechou a palestra com a famosa chave de ouro.
Só mais tarde, quando todos estavam indo embora, descobri que a vegetariana ofendida continuara na sala – tinha apenas mudado de lugar. Fiquei mesmo arrependido de não ter dito a ela que defendesse seus pontos de vista somente quando eles são realmente atacados. Que não fosse tão impulsiva e não se ferisse com tão pouco, porque, no final das contas, duvido que alguém seja contra os vegetarianos e, se forem, como vamos provar que são eles os errados da história? É uma importante questão a ser debatida, porém, acho que o momento não foi oportuno. Quando isso acontece, normalmente dispersamos a atenção dos outros e geramos um preconceito que é difícil derrubar.
Enfim, encarar a vida considerando um único lado (o seu) não me parece muito saudável. Bom mesmo seria poder compreender todos à nossa volta, mas, como isso é praticamente impossível, simplesmente não os leve muito a sério e não se leve tampouco. Essa é a minha filosofia.
domingo, 1 de março de 2009
SOBRE A PINTURA AÍ EM CIMA, COM MEU NOME ESCRITO BEM NO MEIO DELA
Aqui não foi diferente. Escolhi um layout entre os padrões oferecidos pelo Blogger e não demorei muito para perceber que ele era “padrão demais”, quer dizer, um monte de gente por aí teria um blog igual (ou, considerando que o meu era um dos mais recentes, ele é que seria parecido com os outros).
Decidi que pelo menos o cabeçalho poderia ter um pouco mais a minha cara e, talvez, ser um diferencial. Então comecei a pensar com que coisa minha cara se parece. Não literalmente, claro, para sua sorte.
Primeiro, resolvi pegar uma fotografia ou uma pintura que tinha feito nos últimos tempos e sobrepô-la com o título do blog. Escolhi uma pintura. O formato não ajudava muito, as cores tampouco e o resultado foi bizarro. Optei então por uma foto preta e branca, fui escurecendo-a para ser mais fácil de ler o nome e, no fim, quase não dava mais para ver a foto – ficou parecendo uma tarja preta com algumas manchas acidentais.
Foi então que me lembrei do Liu Ding.
Para quem não conhece, trata-se de um artista plástico contemporâneo chinês que tem conquistado espaço mundo afora e construído certa fama. Conheci seu trabalho na primeira (e ótima) exposição de arte chinesa contemporânea realizada no Brasil, no MASP, que ficou em cartaz de novembro de 2008 a fevereiro de 2009 com o nome de “CHINA: CONSTRUÇÃO / DESCONSTRUÇÃO”.
Nesta ocasião, ele apresentou uma obra bastante interessante chamada “Liu Ding’s Store – Take Home And Create Whatever the Priceless Image In Your Heart Is” (algo como “A loja do Liu Ding – leve para casa e crie qualquer que seja a imagem de valor inestimável que esteja em seu coração”). Trata-se de uma série de pinturas não-acabadas, cada uma delas exibindo um trecho de paisagens tipicamente chinesas, elaboradas pelo artista e executadas por dez artesãos do vilarejo de Dafen*. Em outras palavras, cada tela tem um pedaço pintado e todo o resto é deixado propositalmente em branco, com a bonita proposta de que o público a termine como bem entender. Me identifiquei imediatamente e comprei uma das duas últimas telas, que são reproduzidas em série. Não bastasse o conflito proposto entre o original e a cópia – já bastante discutido por teóricos importantes desde Walter Benjamin –, esta obra de Liu Ding fala também do papel do público na arte contemporânea, que precisa cada vez mais dar sua interpretação para que ela possa existir. É um tema que venho pesquisando desde a pós-graduação e que me parece importante, levando-me sempre a aprofundar os estudos.
Teorias à parte, eis que surgiu a boa idéia que tornaria a construção do blog bem mais fácil: resolvi finalizar minha tela transportando-a para este novo projeto, utilizando-a de plano de fundo no cabeçalho que você vê acima. Assim, consegui encontrar algo com que me identificasse sem ficar diretamente preso aos meus próprios trabalhos. Em outras palavras, ao invés de colocar aqui um retalho de foto escurecida e, por isso mesmo, sem graça, optei pela tela do Liu Ding, que me permitiu fazer uma referência às minhas pesquisas de arte e aos textos deste blog – afinal, eles também precisam ser lidos e interpretados para existirem. E, se não fosse por você, leitor, eu não os estaria publicando aqui.
Enfim, é por isso que esta pintura não-acabada está aí em cima. Não esperava me prolongar tanto com uma explicação tão simples, mas, como disse anteriormente, nada é verdadeiramente simples até que o conheçamos de fato.
Que bom.
*O vilarejo de Dafen é hoje um dos principais pólos de produção artística do mundo, onde pintores chineses fazem cópias e as vendem por preços bem mais baixos do que os dos originais.
O dinheiro arrecadado com a venda das pinturas de Liu Ding é revertido para a reconstrução das cidades atingidas pelo Tsunami de 2004, que arrasou boa parte do sudoeste da China, entre outros países da Ásia, além de manter o projeto funcionando. Uma ótima idéia, cá entre nós. E também muito atual, pois alia os conceitos de arte e sustentabilidade de maneira exemplar.
segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009
MINHAS FÉRIAS
O inferno começou quando vieram me dizer que, se fazemos o que gostamos, trabalhar é uma grande diversão. Na ingenuidade de minha adolescência, escolhi uma profissão (sou publicitário). Acho que eu queria concentrar em uma única faculdade várias atividades que me eram agradáveis. Pura ilusão... Nem me dei conta de que os sábios a me darem tão valoroso conselho eram os mesmos que esperavam ansiosamente a redenção de suas férias – uma época de divina felicidade justamente porque nela não precisamos nos execrar pela grande diversão de acordar às quinze para as seis, voltar para a cama à meia-noite e perceber que o melhor momento do dia foi quando, no ônibus, vagou um assento bem na nossa frente e não havia nenhum velhinho por perto para reivindicar a preferência do cochilo.
Enfim, se conselho fosse bom...
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De qualquer modo, caí no conto do vigário e entrei para a turma dos tarados por férias. Conquistei as minhas exatamente um mês atrás, quando estava a ponto de me fazer entender na linguagem do tabefe. Um para “sim”, dois para “não”, cem para “vá encher o saco de outro!” O pessoal andou dizendo que eu estava estressado. Tentei explicar “Não é estresse, é excesso de diversão”.
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Ah, esses 30 dias de alforria foram maravilhosos. Havia sol mesmo quando chovia, os passarinhos cantavam e meu consumo de café caiu aos índices normais, considerando-se um humano que pretende continuar vivo nos próximos anos.
Fui ao cinema numa terça-feira à tarde, entrei no meio da sessão e tinha somente duas outras pessoas na sala. A paz que eu sempre desejei! Fiquei todo animado para compartilhar “Vocês também estão de férias? Bom, né?”, mas achei melhor não interromper o descanso dos coitados.
Voltei para casa e, numa breve recordação do cárcere, disse para mim mesmo “Nãoquerovoltarnãoquerovoltarnãoquerovoltar!”
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E pensar que, segundo a teoria “trabalho é diversão”, as férias não deveriam ser agradáveis, mas tristes: estaríamos afastados daquilo de que realmente gostamos! Uma espécie de descanso forçado.
Mais um paradoxo para a coleção.
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Férias fazem bem para a saúde dos funcionários e da empresa.
Mudar de ares é essencial para a criatividade.
Pensar em outras coisas além do trabalho, por incrível que pareça, é a melhor fórmula para melhorar o desempenho e aumentar a qualidade do próprio trabalho.
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Isso, no entanto, não obstrui minha visão de mundo melhor, onde a oferta de emprego seria grande o bastante para todos poderem mudar de idéia quando quisessem.
Cansei, tchau, vou para outra.
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A rotina conturbada me fez deixar para esses míseros 30 dias tudo que eu deveria ter feito durante o último ano. Sei que reclamo de barriga cheia, porque são pouquíssimos os iluminados que dispõem de tanto tempo contínuo de retiro, mas, sinto muito, não podemos nivelar nossa satisfação por baixo.
Ainda assim, como não poderia ser diferente, todos os meus planos afundaram comigo quando sentei a primeira tarde no sofá e tirei um cochilo.
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Cinco minutos depois já era hoje e amanhã recomeça a contagem regressiva dos próximos longos onze meses. Passei a tarde a arrumar minhas coisas, deixar separada uma roupa como aquela criança que prepara o uniforme certa de voltar à escola com uma redação sobre suas férias.
Já dizia o sábio Minduim “Que puxa...”
Como professor, eu aconselharia “Não estraguem aquilo de que gostam transformando-o em trabalho. Hobby deve continuar hobby!” e ainda “Ao invés de redação, vamos analisar os prós e os contras de cada profissão para que vocês, no futuro, não sejam surpreendidos por uma divertida brincadeira de mau gosto”.
Enfim, se conselho fosse bom...