segunda-feira, 23 de julho de 2012
PAUSA PARA LITERATURA
Começaram a surgir, nos embalos da Festa Literária de Paraty (FLIP), uma série de eventos promovidos por editoras e livrarias em outras cidades do país. São lançamentos de livros, debates, sessões de autógrafo etc. Acho ótimo, é sinal de que a ideia surtiu efeito e está se proliferando. Mas tem uma coisa que torna a FLIP incomparável a qualquer outro evento de literatura no Brasil e no mundo, algo impossível de substituir, que aparece discretamente representado na sigla pela letra P: a cidade de Paraty.
Este ano, a festa completou 10 anos. Li uma matéria publicada no último 4 de julho, dia da abertura oficial, em que diversos críticos e jornalistas discutiam seu futuro, listando prós e contras, sugerindo novos caminhos. É fato que se encontrou uma fórmula de sucesso. Seria a hora de mudar para não sucumbir à mesmice?
Chegaram a sugerir que a FLIP fosse transferida para uma cidade maior, já que Paraty mal comporta o contingente de visitantes. Sabe, eu aceitaria várias mudanças numa boa, sou a favor de experimentar. Mas jamais trocaria aquele local. Porque, para mim, Paraty traduz perfeitamente a essência da literatura, que é viver outra vida em outro mundo.
Quem participou alguma vez da FLIP entende o que estou dizendo. Tentarei explicar, em poucas palavras, para quem nunca foi.
A festa começa sempre numa noite de quarta-feira, com solenidades e show de abertura. Até esse momento, já li a programação inteira, acompanhei as notícias no site, comprei ingressos para uma ou outra mesa, enfim, estou ansioso. Quando soam as primeiras notas no palco, ainda estou em São Paulo, trabalhando. Chegarei a Paraty apenas no sábado, quando muita coisa já aconteceu. Infelizmente, é o máximo que posso fazer.
Tudo bem, não tem problema, entro no carro e parto cedinho. A estrada oferece paisagens maravilhosas. O frio vai ficando para trás, o sol do Rio de Janeiro começa a dar as caras, sei que estou perto.
Este ano, havia obras na estrada. Trânsito parado, sensação de que não vai dar tempo. Até aqui? Ai, ai...
Chego em cima da hora, estaciono onde dá e aperto o passo para alcançar a tenda onde ocorrem os debates. Então, acontece. Sou dominado pela magia que só a cidade de Paraty tem. Ao pisar nas ruas do centro histórico, pavimentadas com aquelas pedras enormes e irregulares, as casinhas pintadas de branco, os batentes coloridos, um monte de gente papeando com alegria no rosto e sacolas na mão... a realidade se transforma. É a tal essência literária de que falei. Sou imediatamente transportado para outro mundo. Diminuo a velocidade, respiro fundo, sinto cheiro de praia e livro no ar. Cedo à ficção.
O tempo se espreguiça em Paraty. Vira página por página, vagueia sem compromisso pelas linhas. Conheço a cidade desde criança, mas ainda me perco em suas ruas. Elas foram feitas para isso. É fabuloso.
Assisto aos debates, que têm sempre um tom gostoso de informalidade. Os autores falam de seus livros, do método de escrita, do que têm lido ultimamente. Falam também da gozada – e perigosa – experiência de beber caipirinha e depois sair para um passeio. Invariavelmente alguém se perde. Ou acaba virando o pé, perdendo o chinelo e caindo de bunda. Ouvi isso da boca de diversos estrangeiros.
Diz a lenda que a cachaça é que dá o molejo para pular de pedra em pedra sem se machucar. Pode ser verdade, não faltam cachaçarias por ali. Ainda assim, prefiro deitar os olhos no chão.
A plateia faz perguntas e, terminado o bate-papo, saio à caça de um lugar para almoçar. Tem sempre um restaurante charmoso à espera. Aproveito para dar uma volta, ver as crianças brincarem com os livros que pendem das árvores, na praça, e com os bonecões feitos com papel machê, inspirados em faz-de-conta.
Depois do almoço, a sobremesa vem trotando pelas ruas em carrinhos de doces típicos. Pé-de-moleque, quebra-queixo, cocada, bolo de mandioca. Bate um sono danado. E também uma vontade de pertencer ainda mais àquilo tudo, de ficar ali para sempre.
Tem muito mais na FLIP. Lojas, estandes de editoras, shows, bares animados, cafés, saraus, artistas de rua... Programação para todas as idades. O que eu mais gosto, no entanto, é deixar o mundo real durante algumas horas para participar daquela fantasia coletiva, em que as pessoas se divertem em torno de um bem comum: o amor à literatura.
Assim que voltei para casa, li um artigo em que Liz Calder, criadora do evento, se dizia muito satisfeita e que não pretende fazer mudanças drásticas. Para ela, a FLIP atingiu o tamanho certo, não precisa crescer mais. O que precisa haver é outras festas similares no Brasil.
Reconheço o esforço de quem lê em tempos de internet, TV, congestionamentos e horas extras. Quem contraria a falta de paciência, a ansiedade por informação, o conhecimento objetivo, a velocidade acelerada do mundo real. A ficção tem seu próprio tempo, assim como Paraty. Também como Paraty, ela exige que você se deixe envolver, que entre no ritmo. Caso contrário, você tropeça e cai de volta na banalidade do dia a dia.
terça-feira, 3 de julho de 2012
AQUECIMENTO FLIP 2012: PENSAMENTO
“Dizem as estatísticas que as editoras [brasileiras] produziram em 2010 23% mais livros que em 2009. Mas a perplexidade continua: tirante os best-sellers, que têm uma dinâmica específica, as edições dos livros ‘normais’ continuam em torno de 2 mil a 3 mil exemplares. Se lembrarmos que quando o país tinha 30 milhões de habitantes (lá por 1920) as edições eram de 500 exemplares, veremos que há algo errado no nosso ‘progresso’. Naquele tempo cerca de 60% da população eram de analfabetos, hoje se diz que são 9%. Façam a conta com os quase 200 milhões de habitantes hoje. Portanto, há algo errado não apenas com a produção de livros mas com a ‘produção’ de leitores.”
O leitor, onde está o leitor?, de Affonso Romano de Sant’Anna, Jornal Rascunho, ed. 140, dezembro de 2011.
O leitor, onde está o leitor?, de Affonso Romano de Sant’Anna, Jornal Rascunho, ed. 140, dezembro de 2011.
quinta-feira, 21 de junho de 2012
VERGONHAS À MOSTRA
Várias estátuas, na verdade, espalhadas pela cidade de São Paulo, a maioria delas no alto dos prédios. Suas silhuetas observam os passantes formigarem com indiferença pelas ruas. Elas compõem a exposição Corpos Presentes, em cartaz no Centro Cultural do Banco do Brasil.
Quando percebe a farsa, a multidão se dispersa. A nova realidade já não tem tanta urgência. Brincadeira sem graça! Cada pessoa segue seu rumo. Mas há quem vire para dar uma última conferida. Para ter certeza. Porque nunca se sabe, né?
Por sua vez, quem adentra o CCBB se depara com diversos outros homens peladões, feitos de ferro fundido, pesando cerca de 630 quilos cada. Estão caídos no chão, amontoados no saguão, pendurados de cabeça para baixo por cabos de aço que descem do andar superior.
As crianças fazem a festa, imitando as posições retorcidas das estátuas, sem preconceitos com a arte, sem grandes expectativas para frustrar. Os adultos também participam, claro, tirando fotos, relutando e fazendo piada. A mostra provoca a imaginação. Porém, quando se descobre que as estátuas são cópias moldadas diretamente no corpo do artista, há quem o julgue um pervertido. Precisa mostrar tudinho assim?
(Porque uma deusa grega pode, mas o inglês contemporâneo não.)
Já devo ter escrito meia dúzia de vezes no Correio Popular sobre o complicado embate entre realidade e ficção. Porque a ficção é algo bem próprio da arte. Antes, porém, está infiltrada em nosso cotidiano de maneira tão profunda que sequer a percebemos. Sim, toda verdade não passa de uma ficção bem apresentada, na qual a gente escolhe acreditar.
Não tem nada a ver com mentira. A ficção não possui o mesmo teor pejorativo, tampouco se opõe à ideia de verdade. "Em vez de falsificar, ela alarga e potencializa o mundo. Em vez de mentir, ela inventa novas maneiras de dizer as coisas do real", escreveu José Castello no jornal literário Rascunho. É verdade, nós ficcionamos o tempo todo. Quando contamos aos amigos uma peripécia de adolescente, quando damos um parecer na reunião da empresa, quando ensinamos nossos filhos que é errado colar na prova. Trata-se de uma característica inerente ao ser humano, simplesmente um registro distinto de compreensão do mundo. Tanto que, para o filósofo Jacques Rancière, a realidade precisa ser ficcionada para ser compreendida. É por causa disso que a arte, em geral, consegue lidar com questões fundamentais da nossa existência sem recorrer à tarja preta ou aos grupos de controle. Um romance, uma música ou uma escultura possibilitam descobertas tão ricas quando qualquer experimento científico. Talvez até mais.
Só que, às vezes, somos muito racionais para perceber a infinita ironia da ficção. Queremos a verdade incontestável, tintim por tintim, sem digressões, como se isso fosse possível. É só ela que aceitamos. Juro, temos necessidade de significado imediato, racional, explicado, comprovado e justificado. Números! Pesquisas! As emoções não valem nada quando comparadas à lógica esclarecida. Assim, o mundo passa despercebido por nossos sentidos.
No texto anterior, falei sobre o artista Hervé Fischer que, vestido de farmacêutico, conversava com transeuntes numa praça de São Paulo e receitava pílulas para todo tipo de problema, por mais absurdo que fosse. Pílulas para obter um bom emprego, para aprender a dançar, para reaparecer cabelo na careca. Eram bolinhas de isopor, embaladas num saquinho plástico e etiquetadas com a frase "A vida está nas pílulas!" Só que muita gente acreditou. Foi difícil, Hervé precisou explicar que era apenas uma provocação artística, com objetivo de fazer o sujeito refletir sobre os próprios problemas e buscar uma solução. Porque a realidade deve ser ficcionada para ser compreendida.
Ainda assim, tenho certeza de que alguns acabaram tomando as bolinhas de isopor. Nunca se sabe, né? Talvez até arranjaram emprego, aprenderam a dançar e recuperaram o cabelo. Eu acredito. É o tal efeito placebo, que, para desespero dos médicos, às vezes cura desenganados. Porque a ficção age misteriosamente dentro de nós, nesse corpo tão incrível e desconhecido que acabamos considerando indecente; que banalizamos e rechaçamos por receio de lidar com a realidade nua e crua.
Aqui tem um making of interessante da mostra, para quem não pode vê-la pessoalmente:
terça-feira, 12 de junho de 2012
segunda-feira, 4 de junho de 2012
“E mesmo que em nossa história, num desenrolar mais otimista, Machado de Assis tivesse dado uma resposta concreta ao nosso leitor, sim Capitu traiu, ou não, Capitu não traiu, o caso é que isso não daria ao livro uma leitura correta ou uma interpretação inquestionável. Seria apenas mais uma opinião, uma opinião importante, a do autor, mas não a única, nem a definitiva. Isso porque, no processo da escrita, o escritor nunca tem controle total do resultado, há sempre algo que lhe escapa, algo que ele diz e não sabe que diz, algo que não depende dele, mas de quem lê. Por isso um livro pode ter inúmeras leituras, muitas até contraditórias, por isso um clássico é lido de formas diferentes dependendo da época, do idioma, da cultura. Por isso, no caso de um bom livro, a obra é sempre melhor do que seu autor, que é cheio de defeitos e dúvidas e mesquinharias. Ou, como dizem, o poema vale mais do que o poeta.”
A esfinge diante do próprio enigma,
Carola Saavedra, no jornal Rascunho (março de 2012).
A esfinge diante do próprio enigma,
Carola Saavedra, no jornal Rascunho (março de 2012).
terça-feira, 29 de maio de 2012
ALGO A DECLARAR?
A gente se olha no espelho e, por mais contorcionismo que faça, não consegue enxergar certas partes do próprio corpo. São as partes que somente os outros podem ver. Tem também a questão psicológica: cada pessoa se supõe assim, só que os outros a veem assado. Caso consiga vencer a pretensão, o egoísmo e as verdades individuais, essa pessoa provavelmente se dará conta de que seus semelhantes têm razão. Uns se acham legais, mas são malas sem alça. Outros se acham prestativos, porém os amigos os consideram invasivos. E assim por diante. É a sina que carregamos: ser, no mínimo, duas pessoas diferentes, muitas vezes excludentes. Difícil é reconhecer o lado obscuro. Mais difícil ainda é conseguir mudá-lo.
O desconforto de ser friamente descrito por alguém pode ser também bastante revelador. Vivenciei situação semelhante há poucas semanas, nos seminários que o artista francês Hervé Fischer ofereceu no Museu de Arte Contemporânea da USP. Sua estratégia foi perspicaz: fez uma análise cultural e sociológica do Brasil, colocando a plateia em conflito consigo mesma. Com propriedade, ele apontou aquilo que nosso espelho não revela – ou que preferimos ignorar. Mostrou um país cujo tempo social é orientado para o futuro – o que seria ótimo, caso não fosse sintoma da nossa falta de opção. Porque, segundo Hervé, os mitos fundadores do povo brasileiro são frágeis demais para sustentar sua vontade construtiva.
Faz sentido. A Argentina, por exemplo, tem como herói nacional o general San Martín, o libertador. Não existe uma única cidade por lá que não possua uma praça com esse nome. San Martín é representado com imponência sobre um cavalo alto, com a espada em riste, lembrando a quem passa por ali que os argentinos são herdeiros de imensa bravura e patriotismo. Um sentimento tão vivo que quase podemos tocá-lo.
O brasileiro se apoia em quê? Na corrupta corte portuguesa, no índio preguiçoso, no negro subjugado, na natureza e no Pelé. Uau. Não houve uma grande revolta, uma grande conquista, grandes feitos do povo. Parece que tudo veio fácil demais.
Não me refiro ao que aconteceu de fato, mas à maneira como tudo entrou para a história – ou como nós compreendemos essa história. Já tentaram levantar o moral de Tiradentes, não deu em nada. O recente filme Xingu, de Cao Hamburger, também serve de termômetro: apesar da produção encantadora, obteve bilheteria medíocre. Porque ninguém quer ver história de índio, principalmente quando meia dúzia de super-heróis fantasiados tenta salvar o planeta das forças do mal.
Ao falar de heroísmo brasileiro, lembro da pintura belíssima de Pedro Américo, em que Dom Pedro I proclama nossa independência às margens do riacho Ipiranga. Uma falácia que ninguém comprou. Pois há sempre quem levante a mão para dizer que não foi bem assim, o imperador estava montado numa mula e precisava correr para o mato a cada cinco minutos por causa de uma diarreia comprometedora. Sim, ele rejeitou o trono português almejando outro mais apropriado às suas necessidades imediatas.
Enfim, são mitos, ou seja, histórias que antecedem o presente e nas quais deveríamos nos inspirar. O povo brasileiro não sabe o que é isso – ou não procura saber. Por falta de opção, se coloca como arauto do futuro.
A análise de Hervé Fischer parece uma afronta. Afinal, quem esse francês pensa que é para vir aqui nos esnobar?
Sua proposta foi, aos poucos, ficando evidente: provocar para gerar debate e, com sorte, alguma consciência sobre nossa situação atual. São os princípios da sua "escola interrogativa", nascida do extinto Coletivo de Arte Sociológica. Os seminários de Hervé, mais do que palavrórios, são experimentos artísticos – uma prática com caráter sócio-pedagógico.
Não é a primeira vez de Hervé no Brasil. Na década de 1970, em meio à ditadura militar, ele já havia realizado um ciclo de conferências no mesmo MAC/USP, além de uma performance na Praça da República, em São Paulo, chamada Farmácia Fischer e Cia. A tal performance já mostrava, quase 40 anos atrás, a natureza da sua arte: vestido de farmacêutico, com uma barraquinha armada num dos locais mais movimentados do país, o artista conversava com os passantes, ouvia seus males e receitava pílulas metafóricas de tomada de consciência. Pílulas para aturar o vizinho, para alimentar esperança, para obter sucesso profissional, para arranjar marido, para o Corinthians vencer a Libertadores etc. A farmácia acabou fechada pela polícia, como toda manifestação dita subversiva.
Nos seminários recentes, pude perceber que aquele propósito continua a guiar seu trabalho. Hervé elabora questões para as pessoas refletirem sobre a própria situação e buscar melhorias.
Num livro de 1981, ele escreveu: "Há cada vez menos sentido em transformar o mundo. O que há de novo é questioná-lo". Certo, tudo nos leva a crer que o Brasil é o país do futuro. Pois a única coisa que Hervé Fischer fez foi perguntar: por quê? O que nos incomoda, talvez, não seja a ousadia da questão, mas a percepção de como a nossa resposta é frágil.
O desconforto de ser friamente descrito por alguém pode ser também bastante revelador. Vivenciei situação semelhante há poucas semanas, nos seminários que o artista francês Hervé Fischer ofereceu no Museu de Arte Contemporânea da USP. Sua estratégia foi perspicaz: fez uma análise cultural e sociológica do Brasil, colocando a plateia em conflito consigo mesma. Com propriedade, ele apontou aquilo que nosso espelho não revela – ou que preferimos ignorar. Mostrou um país cujo tempo social é orientado para o futuro – o que seria ótimo, caso não fosse sintoma da nossa falta de opção. Porque, segundo Hervé, os mitos fundadores do povo brasileiro são frágeis demais para sustentar sua vontade construtiva.
Faz sentido. A Argentina, por exemplo, tem como herói nacional o general San Martín, o libertador. Não existe uma única cidade por lá que não possua uma praça com esse nome. San Martín é representado com imponência sobre um cavalo alto, com a espada em riste, lembrando a quem passa por ali que os argentinos são herdeiros de imensa bravura e patriotismo. Um sentimento tão vivo que quase podemos tocá-lo.
O brasileiro se apoia em quê? Na corrupta corte portuguesa, no índio preguiçoso, no negro subjugado, na natureza e no Pelé. Uau. Não houve uma grande revolta, uma grande conquista, grandes feitos do povo. Parece que tudo veio fácil demais.
Não me refiro ao que aconteceu de fato, mas à maneira como tudo entrou para a história – ou como nós compreendemos essa história. Já tentaram levantar o moral de Tiradentes, não deu em nada. O recente filme Xingu, de Cao Hamburger, também serve de termômetro: apesar da produção encantadora, obteve bilheteria medíocre. Porque ninguém quer ver história de índio, principalmente quando meia dúzia de super-heróis fantasiados tenta salvar o planeta das forças do mal.
Ao falar de heroísmo brasileiro, lembro da pintura belíssima de Pedro Américo, em que Dom Pedro I proclama nossa independência às margens do riacho Ipiranga. Uma falácia que ninguém comprou. Pois há sempre quem levante a mão para dizer que não foi bem assim, o imperador estava montado numa mula e precisava correr para o mato a cada cinco minutos por causa de uma diarreia comprometedora. Sim, ele rejeitou o trono português almejando outro mais apropriado às suas necessidades imediatas.
Enfim, são mitos, ou seja, histórias que antecedem o presente e nas quais deveríamos nos inspirar. O povo brasileiro não sabe o que é isso – ou não procura saber. Por falta de opção, se coloca como arauto do futuro.
A análise de Hervé Fischer parece uma afronta. Afinal, quem esse francês pensa que é para vir aqui nos esnobar?
Sua proposta foi, aos poucos, ficando evidente: provocar para gerar debate e, com sorte, alguma consciência sobre nossa situação atual. São os princípios da sua "escola interrogativa", nascida do extinto Coletivo de Arte Sociológica. Os seminários de Hervé, mais do que palavrórios, são experimentos artísticos – uma prática com caráter sócio-pedagógico.
Não é a primeira vez de Hervé no Brasil. Na década de 1970, em meio à ditadura militar, ele já havia realizado um ciclo de conferências no mesmo MAC/USP, além de uma performance na Praça da República, em São Paulo, chamada Farmácia Fischer e Cia. A tal performance já mostrava, quase 40 anos atrás, a natureza da sua arte: vestido de farmacêutico, com uma barraquinha armada num dos locais mais movimentados do país, o artista conversava com os passantes, ouvia seus males e receitava pílulas metafóricas de tomada de consciência. Pílulas para aturar o vizinho, para alimentar esperança, para obter sucesso profissional, para arranjar marido, para o Corinthians vencer a Libertadores etc. A farmácia acabou fechada pela polícia, como toda manifestação dita subversiva.
Nos seminários recentes, pude perceber que aquele propósito continua a guiar seu trabalho. Hervé elabora questões para as pessoas refletirem sobre a própria situação e buscar melhorias.
Num livro de 1981, ele escreveu: "Há cada vez menos sentido em transformar o mundo. O que há de novo é questioná-lo". Certo, tudo nos leva a crer que o Brasil é o país do futuro. Pois a única coisa que Hervé Fischer fez foi perguntar: por quê? O que nos incomoda, talvez, não seja a ousadia da questão, mas a percepção de como a nossa resposta é frágil.
segunda-feira, 28 de maio de 2012
sábado, 26 de maio de 2012
A APARÊNCIA DA MEMÓRIA
Estou contribuindo com as três individuais do artista Felipe Góes planejadas este ano. A primeira delas será em Porto Alegre, de 15 de junho a 15 de julho. Abaixo estão o convite para a abertura, reproduções das pinturas exibidas e o texto que escrevi para o folder.
Tive o prazer de acompanhar o desenvolvimento artístico de Felipe Góes desde suas primeiras explorações do campo da cor até as pinturas mais recentes que foram trazidas para esta exposição. Pois daqueles campos floresceram paisagens que se põem no limiar entre o figurativo e o abstrato, entre a racionalidade do dia e o sonho difuso, entre as certezas do momento presente e o vago sentimento da memória. Pintar, no século XXI, pressupõe lidar com pensamentos contemporâneos, entre os quais está a relação com o espectador – uma vez que as interpretações deste se tornam parte integrante da obra, a despeito das intenções do artista.
A pintura de Felipe envolve o olhar e clama por nossa participação. Entramos na tela, caminhamos por territórios pictóricos e sensíveis que, de uma hora para outra, se revelam partes constitutivas de nossos corpos e mentes. Uma revelação de mão dupla: a obra em nós e nós na obra.
Imagens que vêm e vão, construções que fazem e se desfazem. Aquela mancha de tinta que exprime um significado, traduz um sentimento, aviva uma lembrança para, em seguida, afundar novamente nas brumas.
Os olhos nos enganam. Pois nossa apreensão do mundo se dá por cores e formas atreladas a significados, ou seja, pela decodificação de estímulos visuais. Uma mancha que se transforma em barco, outra que lembra uma praia com palmeiras. É assim, através da percepção, e da persistência do real para fazer-se e manter-se, que vamos inventando tudo ao nosso redor, produzindo verdades ambíguas.
Ver, lembrar, desvendar e somar são formas de criação contidas em nossa subjetividade. Por se relacionar diretamente com o passado que cada pessoa carrega consigo, a pintura de Felipe Góes é capaz de despertar imagens esquecidas, emoções há muito tempo escondidas, desejos reprimidos. Tudo isso com manchas de tinta sobre tela. Enchendo de cor os contornos sinuosos da memória.
Tive o prazer de acompanhar o desenvolvimento artístico de Felipe Góes desde suas primeiras explorações do campo da cor até as pinturas mais recentes que foram trazidas para esta exposição. Pois daqueles campos floresceram paisagens que se põem no limiar entre o figurativo e o abstrato, entre a racionalidade do dia e o sonho difuso, entre as certezas do momento presente e o vago sentimento da memória. Pintar, no século XXI, pressupõe lidar com pensamentos contemporâneos, entre os quais está a relação com o espectador – uma vez que as interpretações deste se tornam parte integrante da obra, a despeito das intenções do artista.
A pintura de Felipe envolve o olhar e clama por nossa participação. Entramos na tela, caminhamos por territórios pictóricos e sensíveis que, de uma hora para outra, se revelam partes constitutivas de nossos corpos e mentes. Uma revelação de mão dupla: a obra em nós e nós na obra.
Imagens que vêm e vão, construções que fazem e se desfazem. Aquela mancha de tinta que exprime um significado, traduz um sentimento, aviva uma lembrança para, em seguida, afundar novamente nas brumas.
Os olhos nos enganam. Pois nossa apreensão do mundo se dá por cores e formas atreladas a significados, ou seja, pela decodificação de estímulos visuais. Uma mancha que se transforma em barco, outra que lembra uma praia com palmeiras. É assim, através da percepção, e da persistência do real para fazer-se e manter-se, que vamos inventando tudo ao nosso redor, produzindo verdades ambíguas.
Ver, lembrar, desvendar e somar são formas de criação contidas em nossa subjetividade. Por se relacionar diretamente com o passado que cada pessoa carrega consigo, a pintura de Felipe Góes é capaz de despertar imagens esquecidas, emoções há muito tempo escondidas, desejos reprimidos. Tudo isso com manchas de tinta sobre tela. Enchendo de cor os contornos sinuosos da memória.
As imagens se referem, na ordem: 1) Pintura 104 (2010); 2) Pintura 105 (2010); 3) Pintura 106 (2010); 4) Pintura 108 (2011); 5) Pintura 130 (2011); 6) Pintura 136 (2011); 7) Pintura 138 (2011).
terça-feira, 15 de maio de 2012
segunda-feira, 14 de maio de 2012
BREVES NOTAS SOBRE A SP-ARTE
1) Definitivamente, o aspecto mercadológico da arte é o que menos me interessa.
2) O homem já foi à Lua, estamos quase transplantando cérebros, aviões não tripulados podem dizimar um país do outro lado do mundo... e a maior parte da arte contemporânea comercializada ainda é imagem ou objeto – para não dizer pintura e escultura.
3) Se os artistas não venderem, morrem de fome. Se venderem, sustentam as galerias, e às vezes continuam a morrer de fome. Se conhecerem as pessoas certas, matam os outros de inveja. É uma trama perigosa.
4) Para nossa infelicidade, grandes obras de arte estão – ou estarão em breve – trancadas na sala de estar de algum ricaço, que as comprou como investimento.
5) Para comprar arte, é necessário beber Chandon.
6) Para consumir arte – ainda bem! – só é preciso ter boa vontade. E, no caso da feira, mais R$ 30,00 para o ingresso.
Mais informações: SP-ARTE
"Escrever a história e escrever histórias pertencem a um mesmo regime de verdade. Isso não tem nada a ver com nenhuma tese de realidade ou irrealidade das coisas."
"A política e a arte, tanto quanto os saberes, constroem "ficções", isto é, rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer."
Jacques Rancière, em A partilha do sensível: estética e política
"A política e a arte, tanto quanto os saberes, constroem "ficções", isto é, rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer."
Jacques Rancière, em A partilha do sensível: estética e política
segunda-feira, 7 de maio de 2012
O MUNDO MÁGICO DO CCBB
O comentário de Marcelo Mendonça, diretor do CCBB/RJ, a respeito do recorde mundial de público obtido pela exposição O MUNDO MÁGICO DE ESCHER serve de lição para muitos museus. Não é regra, claro. Mas ajuda a repensar diversas outras.
Os espaços interativos, a permissão para uso de máquina fotográfica e a entrada gratuita foram cruciais. "Na exposição, era comum ver jovens se fotografarem diante das obras e colocarem as imagens nas redes sociais. Tivemos uma divulgação espontânea sem precedentes em nossa história".
Revista BRAVO!, nº 177, maio de 2012. Reportagem de Bruno Moreschi.
quinta-feira, 3 de maio de 2012
TEMPO AO TEMPO
A panificação requer paciência, cuidado, carinho e dedicação. Tudo isso modifica o sabor do produto. Fazer pão artesanalmente é, na verdade, fazê-lo e refazê-lo uma série de vezes até que esteja bom o suficiente para ser levado à mesa e servido aos amigos. A partilha do sensível.
O mesmo se aplica a diversas outras práticas, e é por isso que considero a panificação uma ótima referência. Escrever é uma delas. Um grande escritor declarou certa vez que escrever é reescrever. Concordo. A qualidade do texto vem daí. A fluência, a maciez, o sabor, a vontade de ler um pouquinho mais. Escrever e reescrever, sovar e deixar crescer, fazer ajustes, misturar bem para que a alquimia aconteça.
Comentei semanas atrás que estou escrevendo meu primeiro romance. Comecei em dezembro do ano passado, e, na verdade, ele já está todo escrito. Duas vezes escrito. Será uma história breve, que coloquei no papel e depois passei a limpo. Deu um trabalho imenso. Agora, esse segundo rascunho está descansando. Já faz um mês que não mexo nele. Tenho certeza de que, quando for sová-lo de novo, ele terá crescido e revelado todo o potencial que eu não podia ver quando o guardei na gaveta. Para mim, reescrever é essencial. Assim como a paciência entre os intervalos de descanso das provas, quando as ideias fermentam.
Em 1929, o pintor Cândido Portinari embarcou para Paris, onde passaria os dois anos seguintes a visitar museus e galerias. Ele usufruía do Prêmio de Viagem da Academia Nacional de Belas Artes, conquistado após muito trabalho. Os vencedores iam à Europa estudar – beber direto da fonte, como se diz, uma vez que os capítulos da história da arte costumavam começar ali. Portinari, entretanto, optou por não frequentar qualquer tipo de curso. Ele apenas consumia, com olhos vorazes, a obra dos grandes mestres do passado.
Apesar da enorme cobrança por parte do governo e da crítica de arte do Brasil, o pintor voltou de lá com somente três pequenas naturezas-mortas. Trancou-se, então, em seu ateliê e pintou quarenta quadros ao longo de seis meses, muitos dos quais são considerados os seus melhores. Como se os números não bastassem, Portinari deu início à temática social e regionalista em nossas artes plásticas, retratando os retirantes, a miséria, a fome etc. Ao invés do nacionalismo ingênuo e sonhador dos primeiros modernistas, ele revelou aos brasileiros a verdadeira alma do país.
A partir de então, tornou-se um dos artistas mais importantes da nossa história. Obteve reconhecimento internacional, especialmente nos Estados Unidos – novo pólo modernista –, e produziu muito.
A enorme quantidade de encomendas não o impedia de passar três meses do ano em sua cidade Natal, a singela Brodósqui, nos quais visitava amigos, ajudava na reforma da igreja, ficava observando o tempo passar. Isso não quer dizer que ele não fazia nada – na verdade, Portinari aguardava suas ideias fermentarem. Garantia assim, nos meses seguintes, generosas fornadas de arte deliciosamente fresca. Pinturas de que só ele acertava o ponto, recheadas de talento, nas quais, ainda hoje, nós podemos nos esbaldar.
*As imagens de sanduíche que ilustram este texto são paródias criadas pela artista Brittany Powell. Elas se referem, na ordem, a obras de 1) Piet Mondrian, 2) Christo e Jeanne-Claude e 3) Jackson Pollock.
terça-feira, 1 de maio de 2012
A ARTE DO DESAPEGO
Como se livrar da montanha de objetos que fomos acumulando ao longo da vida sem descartar, também, as lembranças atreladas a eles?
O americano Mac Premo propõe uma solução – não exatamente prática, cá entre nós, mas ainda assim uma solução, que cada pessoa pode executar à sua maneira: transformar o lixo em arte.
A ideia surgiu quando Mac teve que se transferir de um espaçoso estúdio em Nova York para um apartamento bem apertado. Na ocasião, ele selecionou cerca de 500 objetos, arranjou-os num contêiner e transformou isso tudo numa instalação aberta ao público. Quem quiser, pode conhecer um pouco da vida do artista por meio de sua tralha.
O contêiner está viajando por diversas cidades dos Estados Unidos. Quem não tiver a oportunidade de visitá-lo pessoalmente pode fazê-lo virtualmente. No site www.thedumpsterproject.com há uma fotografia de cada objeto, acompanhada de uma breve descrição.
A tranqueira que insistimos em guardar não serve apenas como ativadora de memória, ela também ajuda a afirmar nossa identidade. Sim, temos o péssimo hábito de dar aos objetos pessoais a função de dizer aos outros quem somos. Por isso é tão difícil se livrar deles, são como pedaços de nós. O museu de nós mesmos.
O que Mac mostra com seu projeto é que o desapego pode ser uma maneira de descobrir o que resta em nós depois que o excedente vai para o lixo. Se é que sobra alguma coisa.
Seja lá o que for, talvez esteja mais próximo da tão idealizada verdade.
O contêiner de Mac Premo em exibição no Brooklyn, Nova York
(clique nas imagens para ampliá-las)
sexta-feira, 27 de abril de 2012
Annette, 1961
"Não conheço ninguém que seja tanto quanto ele [Alberto Giacometti] sensível à magia dos rostos e dos gestos; observa-os com uma avidez apaixonada, como se fosse de outro reino. Mas, às vezes, enfastiado, tentou mineralizar seus semelhantes: via as multidões avançando sobre ele às cegas, rolando pelos bulevares como pedras de uma avalanche. Assim, de cada uma de suas obsessões ficava um trabalho, uma experiência, um modo de vivenciar o espaço."
"O que o incomoda é que esses esboços moventes, sempre a meio caminho entre o nada e o ser, sempre modificados, melhorados, destruídos e refeitos, passaram a existir por si mesmos e, de fato, empreenderam longe dele uma carreira social. Ele os esquecerá. A unidade maravilhosa dessa vida é sua intransigência na busca do absoluto."
"Giacometti nunca fala da eternidade, nunca pensa nela. Gostei do que ele me disse certo dia, a respeito das estátuas que acabara de destruir: "Eu estava satisfeito com elas mas eram feitas para durar só algumas horas"."
Jean-Paul Sartre, em A busca do absoluto
Leia sobre a exposição de Alberto Giacometti na Pinacoteca de São Paulo e conheça também a Fundação Alberto e Annette Giacometti, que zela pela obra do artista.
domingo, 15 de abril de 2012
CADERNO DE NOTAS NA ORIGINAIS REPROVADOS #7
Meu texto Caderno de Notas foi publicado na revista Originais Reprovados número 7, com projeto gráfico criado pela Faculdade de Editoração da ECA/USP. Queria agradecer ao pessoal de lá pela oportunidade. E parabenizá-los pelo trabalho, ficou muito bacana.
Como não dá para girar a tela do computador para ler, aqui vai uma reprodução:
Num velho caderno de notas que tinha ao colo, um jovem escritor, sentado num banco de praça, escrevia sobre um jovem escritor que, sentado num banco de praça, tinha ao colo um velho caderno de notas em que escrevia sobre um banco de praça em que, sentado, um jovem escritor escrevia, num velho caderno de notas que tinha ao colo, sobre o quê escrevia um jovem escritor que, sentado num banco de praça, tinha ao colo um velho caderno de notas em que um jovem escritor, sentado num banco de praça, escrevia, ao colo, sobre um velho caderno de notas de um jovem escritor que, sentado num banco de praça, não mais escrevia notas em seu velho caderno.
Quem quiser saber mais sobre a revista ou baixar as edições gratuitamente pode acessar: Originais Reprovados
quinta-feira, 5 de abril de 2012
FANTASMAS
Estes vídeos me impressionaram bastante. São apenas três de um conjunto bem mais amplo, criados pelo projeto Abandoned Scotland (Escócia Abandonada), cujo intuito, pelo que pude entender, é chamar atenção para edifícios desocupados, alguns deles há décadas.
Foram as imagens capturadas que me impressionaram, assim como a montagem feita posteriormente. Em resumo: a equipe fotografa e filma os locais, depois produz um vídeo curto, com tom contemplativo acentuado pela música de fundo.
É fácil perceber que existe um olhar apurado ali. Tanto no conceito do projeto quanto nas cenas apresentadas. Em uma delas, por exemplo, há um daqueles cavaletes que pede "cuidado, piso molhado", montado no meio de uma enorme poça de inundação. Em outro vídeo, feito numa fábrica, a câmera se atenta à etiqueta colada numa caixa de arquivo, na qual está especificado "não destruir antes de 31 de dezembro de 2012". Quando são recuperadas, os editores inserem também filmes realizados no local quando ele ainda era utilizado.
Esses prédios são fantasmas. Não entidades paranormais, claro. Digo fantasmas no sentido de imagens quase invisíveis daquilo que foram no passado. Uma sombra, resquício de um tempo antigo que pode ser tocado no presente, pode ser penetrado, experimentado, fotografado. São museus de nós mesmos. Dessa civilização antiga que habita o presente e gera um verdadeiro nó temporal. Fantasmas que causam assombro.
Podemos ver o projeto pelos pontos de vista da sociologia e da urbanística, mas não é o meu caso. Eu só posso destacar a poética contida em cada um deles. Foi pensando nisso que selecionei estes três para o blog: um cemitério morto, um hospital desenganado e uma estação de trem que já não leva a lugar algum. Todos os outros podem ser vistos nos links: Abandoned Scotland no youtube
Esses prédios são fantasmas. Não entidades paranormais, claro. Digo fantasmas no sentido de imagens quase invisíveis daquilo que foram no passado. Uma sombra, resquício de um tempo antigo que pode ser tocado no presente, pode ser penetrado, experimentado, fotografado. São museus de nós mesmos. Dessa civilização antiga que habita o presente e gera um verdadeiro nó temporal. Fantasmas que causam assombro.
Podemos ver o projeto pelos pontos de vista da sociologia e da urbanística, mas não é o meu caso. Eu só posso destacar a poética contida em cada um deles. Foi pensando nisso que selecionei estes três para o blog: um cemitério morto, um hospital desenganado e uma estação de trem que já não leva a lugar algum. Todos os outros podem ser vistos nos links: Abandoned Scotland no youtube
domingo, 1 de abril de 2012
RECOMENDADO PARA O FIM DE SEMANA. O FIM DA VIDA. O FIM DO POÇO.
Como é que eu vim parar nesta porra de hotel imundo? Boca quente, boca suja, bico fechado. Tem algo rolando ali. Me ajoelho para espiar o buraco da fechadura. Bate uma vontade de vomitar. Bate forte. Vejo a cena num plano fechado, é o máximo que o buraco permite. É também o máximo que consigo suportar. Um instantâneo da tragédia. De todo tipo de tragédia. "Tem puta. Cafetão. Leitinho quente. Tem sacanagem a cabo. Fita cacete. Tem velho com criança pequena. Que baba de dor. De medo. De tesão. Tem gente levando por fora. Por trás. Por onde. Porque." Não tem explicação. Não é um livro sociológico, não julga, não denuncia, não analisa de fora. Não está nem aí. Melhor fingir que não acontece. Tenho nada a ver com isso.
Troco de fechadura. Faço isso a cada capítulo. Um passo à frente no corredor decrépito do Hotel Trombose, cujo dono, Felipe Valério, está sendo procurado. O diabo fez alguma coisa boa, o que é muito suspeito. Precisa dar depoimento, dar a cara à tapa, ser escorraçado pela mídia. Não pode ficar escondido atrás de escrivaninha de escritório. Ah se ele aparece na minha frente! Corro para lhe apertar a mão até ficar roxa. É mesmo um belo livro, desgraçado.
Suas frases curtas e bem arquitetadas apresentam jogos de palavras, frases-defeito, manipulação inteligente de forma e conteúdo. Cada um apreende dali o que puder. O que puder carregar. Tem que ser rápido. Se bobear, vai em cana. A cada vez que relemos um capítulo – é um romance, um apanhado de contos ou um cortiço? –, vemos melhor, como se a cena fosse se revelando aos pouquinhos. Strip-tease literário. Tesão.
Vamos subindo os andares do Hotel Trombose e o calão vai baixando. Fica ao rés do chão, como um capacho. Limpamos nele nosso falso moralismo. É uma fuga tão intensa da realidade que, quando nos damos conta, já entramos de cabeça em outra muito pior, de onde o difícil é sair ileso.
O livro trata de sacanagem, violência, asco; da tragédia de sobreviver. Uma excursão ao inferno, que nem fica tão longe assim, tem busão a cada dez minutos e sai sempre lotado. Talentoso do caralho! Se tudo o que Felipe Valério põe em palavras choca, é só porque não estamos acostumados, porque nossa vidinha, por acaso, não está encalhada naquele deserto inconsolável. Porque o sol brilha para nós enquanto deixa os outros mundos mofarem. Quem se importa?
Caminhar pelo Hotel Trombose. Espiar a desgraça alheia pelo buraco da fechadura com a curiosidade de um visitante de zoológico. É uma experiência marcante. Os sons, os cheiros, o submundo pegajoso. Nem sabonete importado dá conta. Ele se embrenha no corpo, contamina, vira parte de nós.
Tem momentos em que, de tanta imagem sobreposta, de tanta certeza deslocada, a narrativa fica quase abstrata. Porque não decodificamos aquela linguagem. É gutural. Incompreensível. Uma realidade sem sentido.
O sobe-desce do elevador, as goteiras marcando o compasso, os corredores como veias, o cada um por si, o coração na garganta, tudo entupido de desgraça, de falta de noção, de distorção de caráter. Humanidade em excesso. O sangue pronto para vazar. O sangue não corre, fica parado, botando medo. Quem corre é o leitor. Para onde? Não tem remédio. É a vida. Doença social grave: trombose. Puta livro.
Vai encarar?
Leia. Ok? E assista ao curta abaixo, de Manu Sobral e Felipe Valério, que foi inspirado no livro e exibido pela primeira vez na ocasião do lançamento.
Troco de fechadura. Faço isso a cada capítulo. Um passo à frente no corredor decrépito do Hotel Trombose, cujo dono, Felipe Valério, está sendo procurado. O diabo fez alguma coisa boa, o que é muito suspeito. Precisa dar depoimento, dar a cara à tapa, ser escorraçado pela mídia. Não pode ficar escondido atrás de escrivaninha de escritório. Ah se ele aparece na minha frente! Corro para lhe apertar a mão até ficar roxa. É mesmo um belo livro, desgraçado.
Suas frases curtas e bem arquitetadas apresentam jogos de palavras, frases-defeito, manipulação inteligente de forma e conteúdo. Cada um apreende dali o que puder. O que puder carregar. Tem que ser rápido. Se bobear, vai em cana. A cada vez que relemos um capítulo – é um romance, um apanhado de contos ou um cortiço? –, vemos melhor, como se a cena fosse se revelando aos pouquinhos. Strip-tease literário. Tesão.
Vamos subindo os andares do Hotel Trombose e o calão vai baixando. Fica ao rés do chão, como um capacho. Limpamos nele nosso falso moralismo. É uma fuga tão intensa da realidade que, quando nos damos conta, já entramos de cabeça em outra muito pior, de onde o difícil é sair ileso.
O livro trata de sacanagem, violência, asco; da tragédia de sobreviver. Uma excursão ao inferno, que nem fica tão longe assim, tem busão a cada dez minutos e sai sempre lotado. Talentoso do caralho! Se tudo o que Felipe Valério põe em palavras choca, é só porque não estamos acostumados, porque nossa vidinha, por acaso, não está encalhada naquele deserto inconsolável. Porque o sol brilha para nós enquanto deixa os outros mundos mofarem. Quem se importa?
Caminhar pelo Hotel Trombose. Espiar a desgraça alheia pelo buraco da fechadura com a curiosidade de um visitante de zoológico. É uma experiência marcante. Os sons, os cheiros, o submundo pegajoso. Nem sabonete importado dá conta. Ele se embrenha no corpo, contamina, vira parte de nós.
Tem momentos em que, de tanta imagem sobreposta, de tanta certeza deslocada, a narrativa fica quase abstrata. Porque não decodificamos aquela linguagem. É gutural. Incompreensível. Uma realidade sem sentido.
O sobe-desce do elevador, as goteiras marcando o compasso, os corredores como veias, o cada um por si, o coração na garganta, tudo entupido de desgraça, de falta de noção, de distorção de caráter. Humanidade em excesso. O sangue pronto para vazar. O sangue não corre, fica parado, botando medo. Quem corre é o leitor. Para onde? Não tem remédio. É a vida. Doença social grave: trombose. Puta livro.
Vai encarar?
Leia. Ok? E assista ao curta abaixo, de Manu Sobral e Felipe Valério, que foi inspirado no livro e exibido pela primeira vez na ocasião do lançamento.
domingo, 25 de março de 2012
AS MARCAS
Eu estava junto com quatro ou cinco psicóticos, aguardando o médico chegar. Alguns iam e vinham como pessoas absolutamente sadias. Me passou pela cabeça que, se um desavisado cismasse, poderia me internar. Como eu provaria que não sou louco? Pensamento tolo, do qual me envergonho agora, mas que na ocasião pareceu plausível. Até porque não há internação no Espaço Aberto ao Tempo (EAT) – instituição carioca responsável pelo tratamento psiquiátrico de aproximadamente quatrocentas pessoas –, todos vêm para realizar as atividades programadas, comer, tomar remédios, etc., e vão embora ao fim do dia. Eu tinha combinado de conversar com o psiquiatra responsável, que colaboraria com minha pesquisa. Ele chegaria logo.
O problema era esse: Lula Wanderley estava atrasado. E eu estava perturbado, esse era outro problema. Sentado no meio do mato que cresce à porta da instituição, com um cachorro vira-lata averiguando minha procedência enquanto um louco berrava para o além, consultei o relógio. Mal passava das onze e o dia já tinha me chocado de diversas maneiras.
Naquela manhã, eu acordara numa confortável cama de hotel entre Ipanema e Copacabana. Após tomar um café substancioso, caminhei até a estação de metrô e peguei o trem em direção à Central do Brasil. Foi ali que o mundo começou a se transformar. O Rio dos turistas e famosos ficava para trás; seus restaurantes conceituados, as praias badaladas, as roupas de marca. Fiz baldeação para a Supervia, que leva ao subúrbio. Parecia que alguém varrera toda a sujeira da plataforma para dentro do vagão, o que eu sabia não ser verdade, pois o piso lá fora continuava repleto de latinhas, papéis e embalagens plásticas.
Desembarquei no bairro Engenho de Dentro e subi alguns quarteirões em direção ao IMAS Nise da Silveira, onde fui recepcionado por um guarda. Ele me indicou o caminho para o Museu de Imagens do Inconsciente, que contém obras de arte criadas por doentes mentais. Tive que atravessar o hospital inteiro. Coisa mais triste. Tudo abandonado, caindo aos pedaços; portas empenadas, grades enferrujadas, azulejos quebrados, pintura mofada. Marcas do descaso do governo, talvez de má administração também. Vi doentes nas janelas me seguindo com olhos melancólicos e percebi que curar-se, naquele lugar, era o mesmo que sobreviver.
Visitei o museu, cujas obras são impressionantes pela técnica, a fluência da imagem, o poder de sugestão e a biografia de seus criadores. Tão impressionante que a doutora Nise, sua fundadora, foi acusada de levar trabalhos de artistas "de verdade" ao acervo na calada da noite. Pena que hoje ele seja tão subutilizado. Quem se interessa por aquelas marcas de tinta sobre tela?
Chegara a hora de conhecer as salas de terapia e os ateliês do EAT. Depois de quarenta minutos de espera, Lula Wanderley subiu a rampa de acesso do instituto acompanhado de um paciente. Vinham conversando. O clima do lugar mudou por completo, esse é o poder da sua presença; os rostos ficaram mais coloridos, vieram sorrisos, pude respirar de novo.
O doutor, também artista, me conduziu pelos ateliês de pintura, escultura, música e bijuteria, entre outros. Os pacientes me recebiam com alegria, queriam saber quem eu era, o que fazia, tudo. Mostraram suas criações com orgulho de quem as produz com amor e esperança. Me ofereceram o próprio almoço.
A mais tagarela das mulheres foi explicando tudo a seu modo, e mostrou, na parede, uma placa de madeira com dizeres bonitos sobre criação, magia e vida. "Fui eu que escrevi", afirmou. "Escrevi há dezesseis anos".
Ainda hoje o arrepio me percorre o corpo só de lembrar. Dezesseis anos, talvez mais, frequentando aquele lugar?
Também conheci um homem que, com plena satisfação, mostrava aos colegas um crachá de cozinheiro. Tinha sido contratado para exercer a profissão no cais. Faria centenas de refeições por dia. Lula me revelou que, quando chegou ali, o homem sequer podia se mover. Catatônico. Após o tratamento com a Estruturação do Self, proposição terapêutica da artista Lygia Clark, ele voltava ao trabalho.
Caminhamos mais um pouco pelas instalações, depois pelos jardins do hospital. Conversamos sobre a situação de pobreza em que aquela ideia tão rica se encontra. Ela agoniza, na verdade. Difícil dizer quanto tempo ainda sobreviverá. E pensar que foi exatamente naquele lugar, mais de meio século antes, que a reforma psiquiátrica brasileira se tornara referência mundial.
À noite, no hotel, tentei compilar as anotações feitas durante o dia, mas não consegui. Não conseguia fazer nada. As impressões em meu caderno não faziam sentido. Fiquei pensando na realidade das pessoas que conheci, em como são ignoradas por governo, família e sociedade, em como se agarram ao pouco que têm e produzem arte encantadora. Para onde retornam todas as noites? Que tipo de mundo insano lhes aguarda do lado de fora do hospital? O que significa, para eles, deixar o ateliê de criação e adentrar um quadro de desolação?
Eu sabia, logo que o despertador soara, que a excursão seria marcante. Só não imaginava que essas marcas não me deixariam mais.
Links intessantes:
Museu de Imagens do Inconsciente
Reportagem sobre a exposição que visitei (com vídeo ótimo)
Enquanto preparava este post, encontrei por acaso o trailer abaixo. Não assisti ao documentário de Rodrigo Séllos e Rená Tardin, mas já fiquei contente por ele existir. Clique para conhecer, com imagens, um pouco mais sobre o EAT.
O problema era esse: Lula Wanderley estava atrasado. E eu estava perturbado, esse era outro problema. Sentado no meio do mato que cresce à porta da instituição, com um cachorro vira-lata averiguando minha procedência enquanto um louco berrava para o além, consultei o relógio. Mal passava das onze e o dia já tinha me chocado de diversas maneiras.
Naquela manhã, eu acordara numa confortável cama de hotel entre Ipanema e Copacabana. Após tomar um café substancioso, caminhei até a estação de metrô e peguei o trem em direção à Central do Brasil. Foi ali que o mundo começou a se transformar. O Rio dos turistas e famosos ficava para trás; seus restaurantes conceituados, as praias badaladas, as roupas de marca. Fiz baldeação para a Supervia, que leva ao subúrbio. Parecia que alguém varrera toda a sujeira da plataforma para dentro do vagão, o que eu sabia não ser verdade, pois o piso lá fora continuava repleto de latinhas, papéis e embalagens plásticas.
Desembarquei no bairro Engenho de Dentro e subi alguns quarteirões em direção ao IMAS Nise da Silveira, onde fui recepcionado por um guarda. Ele me indicou o caminho para o Museu de Imagens do Inconsciente, que contém obras de arte criadas por doentes mentais. Tive que atravessar o hospital inteiro. Coisa mais triste. Tudo abandonado, caindo aos pedaços; portas empenadas, grades enferrujadas, azulejos quebrados, pintura mofada. Marcas do descaso do governo, talvez de má administração também. Vi doentes nas janelas me seguindo com olhos melancólicos e percebi que curar-se, naquele lugar, era o mesmo que sobreviver.
Visitei o museu, cujas obras são impressionantes pela técnica, a fluência da imagem, o poder de sugestão e a biografia de seus criadores. Tão impressionante que a doutora Nise, sua fundadora, foi acusada de levar trabalhos de artistas "de verdade" ao acervo na calada da noite. Pena que hoje ele seja tão subutilizado. Quem se interessa por aquelas marcas de tinta sobre tela?
Chegara a hora de conhecer as salas de terapia e os ateliês do EAT. Depois de quarenta minutos de espera, Lula Wanderley subiu a rampa de acesso do instituto acompanhado de um paciente. Vinham conversando. O clima do lugar mudou por completo, esse é o poder da sua presença; os rostos ficaram mais coloridos, vieram sorrisos, pude respirar de novo.
O doutor, também artista, me conduziu pelos ateliês de pintura, escultura, música e bijuteria, entre outros. Os pacientes me recebiam com alegria, queriam saber quem eu era, o que fazia, tudo. Mostraram suas criações com orgulho de quem as produz com amor e esperança. Me ofereceram o próprio almoço.
A mais tagarela das mulheres foi explicando tudo a seu modo, e mostrou, na parede, uma placa de madeira com dizeres bonitos sobre criação, magia e vida. "Fui eu que escrevi", afirmou. "Escrevi há dezesseis anos".
Ainda hoje o arrepio me percorre o corpo só de lembrar. Dezesseis anos, talvez mais, frequentando aquele lugar?
Também conheci um homem que, com plena satisfação, mostrava aos colegas um crachá de cozinheiro. Tinha sido contratado para exercer a profissão no cais. Faria centenas de refeições por dia. Lula me revelou que, quando chegou ali, o homem sequer podia se mover. Catatônico. Após o tratamento com a Estruturação do Self, proposição terapêutica da artista Lygia Clark, ele voltava ao trabalho.
Caminhamos mais um pouco pelas instalações, depois pelos jardins do hospital. Conversamos sobre a situação de pobreza em que aquela ideia tão rica se encontra. Ela agoniza, na verdade. Difícil dizer quanto tempo ainda sobreviverá. E pensar que foi exatamente naquele lugar, mais de meio século antes, que a reforma psiquiátrica brasileira se tornara referência mundial.
À noite, no hotel, tentei compilar as anotações feitas durante o dia, mas não consegui. Não conseguia fazer nada. As impressões em meu caderno não faziam sentido. Fiquei pensando na realidade das pessoas que conheci, em como são ignoradas por governo, família e sociedade, em como se agarram ao pouco que têm e produzem arte encantadora. Para onde retornam todas as noites? Que tipo de mundo insano lhes aguarda do lado de fora do hospital? O que significa, para eles, deixar o ateliê de criação e adentrar um quadro de desolação?
Eu sabia, logo que o despertador soara, que a excursão seria marcante. Só não imaginava que essas marcas não me deixariam mais.
Links intessantes:
Museu de Imagens do Inconsciente
Reportagem sobre a exposição que visitei (com vídeo ótimo)
Enquanto preparava este post, encontrei por acaso o trailer abaixo. Não assisti ao documentário de Rodrigo Séllos e Rená Tardin, mas já fiquei contente por ele existir. Clique para conhecer, com imagens, um pouco mais sobre o EAT.
terça-feira, 13 de março de 2012
UM PASSO QUE É UM SALTO
"Hoje se pode viver de tocar só o que se quer. Nem é preciso fazer outros estilos. O tamanho de Tulipa Ruiz e Criolo, por exemplo, é o tamanho que almejo. Tocar no Brasil inteiro sem precisar fazer programa tosco de TV, sem precisar se ídolo popular. No entanto, fora Tulipa e Criolo, não há muitos outros artistas assim. O formato da grande estrela parece ter acabado. No lugar disso, há outro tipo de artista, aquele que pode viver só do que gosta, sem precisar tocar no shopping ou em festas. Essa geração ainda não está grande para viver de trabalhos autorais exclusivos, mas está grande o suficiente para que os artistas transitem por bons projetos."
Romulo Fróes em entrevista para a revista Continuum n. 35 (fevereiro e março de 2012)
Romulo fala acompanhado pelos três integrantes do projeto Passo Torto, que está sendo recebido pela crítica como um passo a mais na história do samba e, como os músicos dão a entender, de toda a MPB, uma vez que ela tem sua origem naquele. São eles: Marcelo Cabral, Kiko Dinucci e Rodrigo Campos.
Cada um dos músicos possui diversos projetos paralelos, contribuem com bandas, acompanham amigos em turnês e, por meio dessa multiplicidade toda, vão compondo a nova música brasileira.
É uma tendência? Parece que sim. Eu sou a favor. Principalmente quando vejo bandas mais antigas insistindo em fazer mais do mesmo que fizeram nas últimas décadas simplesmente porque têm fãs. Sem criatividade, sem renovação, sem fôlego.
Acredito muito em quem salta de galho em galho, ou seja, que experimenta, produz trabalhos diferentes, pesquisa, troca conhecimento, vive numa jam session permanente. Em tempos de multiculturalismo, de informação acessível e rápida, acredito que esse seja o caminho. Vamos acompanhar para ver onde dá.
Que tal começar ouvindo o primeiro - e talvez único - disco do Passo Torto? Está disponível gratuitamente no site oficial da banda: Passo Torto. Basta registrar seu e-mail e baixar.
Baixe o PDF da revista e leia a entrevista completa: Continuum
sexta-feira, 9 de março de 2012
MÉTODO CALCULADO DE PRODUÇÃO DE ACASO
O acaso comparece por si mesmo, mas é necessária uma disposição prévia - pré-disposição - que permita a percepção dele.
Acaso provocado.
Acaso ≠ improvável/imprevisível.
Não é produzido: dedica atenção a tudo o que se concentra fora da expectativa provável.
O acaso proclama a natureza como produtora de sentido quando, na verdade, essa é uma condição humana.
---
O texto acima foi escrito num lampejo, publicado aqui sem nenhuma pretensão e, por acaso, acabou possibilitando um ótimo encontro de ideias. Adorei. Adoro quando as coisas simplesmente dão certo. Mesmo sem planejar. Por acaso, é assim que vou levando a vida.
Acaso provocado.
Acaso ≠ improvável/imprevisível.
Não é produzido: dedica atenção a tudo o que se concentra fora da expectativa provável.
O acaso proclama a natureza como produtora de sentido quando, na verdade, essa é uma condição humana.
---
O texto acima foi escrito num lampejo, publicado aqui sem nenhuma pretensão e, por acaso, acabou possibilitando um ótimo encontro de ideias. Adorei. Adoro quando as coisas simplesmente dão certo. Mesmo sem planejar. Por acaso, é assim que vou levando a vida.
quinta-feira, 8 de março de 2012
DIA INTERNACIONAL DA MULHER
Minha homenagem às mulheres tem inspiração na obra do pintor Amedeo Modigliani, que retratava suas musas com o pescoço alongado. Muito curioso. Por quê? Sabe-se que o pintor apreciava a arte egípcia, na qual as deusas tinham a cabeça alta para simbolizar sabedoria suprema e visão superior. Portanto, podemos dizer que suas mulheres eram endeusadas. Com razão. Modigliani sabia das coisas. Só vim aqui para concordar com ele. Parabéns a vocês.
domingo, 26 de fevereiro de 2012
SR. PAMUK, EU LI TODOS OS SEUS LIVROS. EU O CONHEÇO MUITO BEM.
O mês da vindima (1959), de René Magritte
"Nunca me senti embaraçado quando meus leitores pensavam que as aventuras de meus heróis também haviam ocorrido comigo, porque eu sabia que isso não era verdade. Ademais, eu tinha o suporte de três séculos de teoria do romance e da ficção, que podia usar para me proteger dessas afirmações. E estava bem ciente de que a teoria do romance existia para defender e manter essa independência da imaginação em relação à realidade. No entanto, quando uma leitora inteligente me disse que sentira, nos detalhes do romance, a experiência da vida real que 'os tornavam meus', eu me senti embaraçado como alguém que confessou suas coisas íntimas a respeito da própria alma, como alguém cujas confissões escritas foram lidas por outra pessoa."
Orhan Pamuk, em O romancista ingênuo e o sentimental
"Nunca me senti embaraçado quando meus leitores pensavam que as aventuras de meus heróis também haviam ocorrido comigo, porque eu sabia que isso não era verdade. Ademais, eu tinha o suporte de três séculos de teoria do romance e da ficção, que podia usar para me proteger dessas afirmações. E estava bem ciente de que a teoria do romance existia para defender e manter essa independência da imaginação em relação à realidade. No entanto, quando uma leitora inteligente me disse que sentira, nos detalhes do romance, a experiência da vida real que 'os tornavam meus', eu me senti embaraçado como alguém que confessou suas coisas íntimas a respeito da própria alma, como alguém cujas confissões escritas foram lidas por outra pessoa."
Orhan Pamuk, em O romancista ingênuo e o sentimental
terça-feira, 21 de fevereiro de 2012
COMO É QUE CHAMA O NOME DISSO?
Foi uma coincidência muito bacana. Estávamos conversando sobre literatura e uma amiga disse que tinha vontade de ler o romance Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios, do brasileiro Marçal Aquino, simplesmente porque gostava do título. Eu também. Desde que me deparei com ele na prateleira da livraria, fiquei tentado a levá-lo para casa. É um título com tamanho poder de persuasão que me seduziu de imediato.
Como é que chama o nome disso?, quis saber o filhinho de Arnaldo Antunes. Uma questão tão pertinente que acabou virando título de um dos livros do pai. Tudo tem um nome. Acho incrível essa necessidade de batizar para identificar. Não que seja um problema, claro que não. É apenas curioso.
Algumas vezes, os nomes são pivôs de polêmicas. O artista francês Marcel Duchamp foi mestre em criar títulos assim, que chegaram a gerar mais discussão do que as próprias obras. Por exemplo: nos primórdios do modernismo, ele pintou uma figura robótica multifacetada e a chamou de Nu descendo uma escada. Os organizadores do Salão onde ela seria exibida, em Paris, ficaram horrorizados: o nu era um gênero clássico da arte pictórica. Consideravam aceitável aquela aparência caleidoscópica, que mal permitia uma apreensão lógica da figura – até porque o cubismo já ditara a moda e não convinha se manifestar contra. Pregar um retorno à tradição era batalha perdida. Mas a pintura de Duchamp estava mais para sacrilégio. Porque o nu se reclinava sobre o divã, deixava os raios de sol o acariciarem na relva, purificava-se nas fontes de água cristalina – mas jamais se sujeitaria a algo tão profano quando descer uma escada.
Parece frescura, mas fazia parte das reviravoltas da época. Propuseram então ao jovem artista que "apenas" mudasse o nome da obra. Atiçaram o demônio. Contrariado, ele pôs o quadro debaixo do braço e saiu do Salão dizendo poucas e boas. Em breve, seu Nu descendo uma escada seria aclamado no Armory Show de Nova York. E a arte moderna invadiria de uma vez por todas a América. Sim, Duchamp sabia dar nome aos bois. Começava também a identificar os melhores pastos para criá-los.
Os títulos das pinturas modernistas foram a última coisa que se rendeu ao abstracionismo. Chegávamos ao cúmulo de ver borrões coloridos chamados flores na janela – ou qualquer coisa do tipo – apenas para serem aceitos como arte legítima – e não como produto de insanidade. Dilema que também ficou no passado, para nossa sorte. Pois Kandinsky e Mondrian, entre outros, passaram a batizar seus experimentos, por exemplo, como Composição com branco, amarelo e vermelho ou Improvisação XI. Abstratos em todos os sentidos. Finalmente, tinham vencido a barreira da figuração, que dominara o pensamento ocidental durante milênios.
Dar nome à cria não é tarefa fácil. Os textos desta coluna, muitas vezes, ficam dias aguardando o título adequado. Precisa ser curto, interessante, instigar a leitura sem resolver o assunto numa só tacada, etc. Ser conciso é um problema amplo demais – sim, um verdadeiro paradoxo.
E vai além: tenho um romance em processo de confecção, por assim dizer, cujo primeiro risco já foi concluído e, agora, espera acabamento. Ele recebeu dois títulos por enquanto. Um foi descartado logo, o outro permanece sob avaliação. Parece que serve, este remanescente; entretanto, preciso criar muitos mais para comprová-lo.
Em uma das visitas que fez ao suíço Alberto Giacometti, o crítico James Lord descobriu uma escultura maravilhosa largada com displicência sob a escada, no canto do ateliê, e quis saber como o artista podia fazer aquilo com tamanha obra-prima. "Se for boa mesmo, se tiver essa força expressiva que você diz, ela aparecerá por si própria", respondeu Giacometti. Suponho que o mesmo vale para o título do livro. Se for bom o bastante, sobreviverá. Caso contrário, da mesma maneira como alguns casais grávidos trocam o nome planejado assim que a criança nasce – só porque bateram os olhos na Maria e ela tinha cara de Beatriz –, eu também escreverei um novo título quando a gestação da narrativa estiver concluída. Quem sabe?
Sobre o romance de Marçal Aquino, que iniciou essa divagação toda, confesso que demorei anos até o comprar e ler. Sou facilmente seduzido, só que custo a ceder, não tem jeito. Tais como o título estampado na capa, as páginas subsequentes são poéticas, intrigantes e escritas com muito talento. O nome, no entanto, surgiu de uma passagem breve – meio esdrúxula até –, que nem tem essa relevância toda. Só que ela combina perfeitamente com a história, sugere sentimentos ao invés de explicitá-los, instiga, contém um lirismo tão marcante quanto a sensibilidade do autor ao tratar desse assunto inexplicável chamado amor. Vou repetir porque vale a pena: Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. Um título único, que cumpre o papel com louvor. Uma beleza rara. Faz jus ao romance, justifica a paixão à primeira lida que acometeu a mim e à minha amiga. Dá vontade de ler. Ou seja, é bom como todo título deveria ser. Não à toa, ocupa lugar de destaque. No caso, mais do que merecido.
Imagens, na ordem:
1. Nu descendo uma escada (1912), de Marcel Duchamp
2. Improvisação XI (1910), de Wassily Kandinsky
3. Composição com branco, amarelo e vermelho (1936), de Piet Mondrian
Como é que chama o nome disso?, quis saber o filhinho de Arnaldo Antunes. Uma questão tão pertinente que acabou virando título de um dos livros do pai. Tudo tem um nome. Acho incrível essa necessidade de batizar para identificar. Não que seja um problema, claro que não. É apenas curioso.
Algumas vezes, os nomes são pivôs de polêmicas. O artista francês Marcel Duchamp foi mestre em criar títulos assim, que chegaram a gerar mais discussão do que as próprias obras. Por exemplo: nos primórdios do modernismo, ele pintou uma figura robótica multifacetada e a chamou de Nu descendo uma escada. Os organizadores do Salão onde ela seria exibida, em Paris, ficaram horrorizados: o nu era um gênero clássico da arte pictórica. Consideravam aceitável aquela aparência caleidoscópica, que mal permitia uma apreensão lógica da figura – até porque o cubismo já ditara a moda e não convinha se manifestar contra. Pregar um retorno à tradição era batalha perdida. Mas a pintura de Duchamp estava mais para sacrilégio. Porque o nu se reclinava sobre o divã, deixava os raios de sol o acariciarem na relva, purificava-se nas fontes de água cristalina – mas jamais se sujeitaria a algo tão profano quando descer uma escada.
Parece frescura, mas fazia parte das reviravoltas da época. Propuseram então ao jovem artista que "apenas" mudasse o nome da obra. Atiçaram o demônio. Contrariado, ele pôs o quadro debaixo do braço e saiu do Salão dizendo poucas e boas. Em breve, seu Nu descendo uma escada seria aclamado no Armory Show de Nova York. E a arte moderna invadiria de uma vez por todas a América. Sim, Duchamp sabia dar nome aos bois. Começava também a identificar os melhores pastos para criá-los.
Os títulos das pinturas modernistas foram a última coisa que se rendeu ao abstracionismo. Chegávamos ao cúmulo de ver borrões coloridos chamados flores na janela – ou qualquer coisa do tipo – apenas para serem aceitos como arte legítima – e não como produto de insanidade. Dilema que também ficou no passado, para nossa sorte. Pois Kandinsky e Mondrian, entre outros, passaram a batizar seus experimentos, por exemplo, como Composição com branco, amarelo e vermelho ou Improvisação XI. Abstratos em todos os sentidos. Finalmente, tinham vencido a barreira da figuração, que dominara o pensamento ocidental durante milênios.
Dar nome à cria não é tarefa fácil. Os textos desta coluna, muitas vezes, ficam dias aguardando o título adequado. Precisa ser curto, interessante, instigar a leitura sem resolver o assunto numa só tacada, etc. Ser conciso é um problema amplo demais – sim, um verdadeiro paradoxo.
E vai além: tenho um romance em processo de confecção, por assim dizer, cujo primeiro risco já foi concluído e, agora, espera acabamento. Ele recebeu dois títulos por enquanto. Um foi descartado logo, o outro permanece sob avaliação. Parece que serve, este remanescente; entretanto, preciso criar muitos mais para comprová-lo.
Em uma das visitas que fez ao suíço Alberto Giacometti, o crítico James Lord descobriu uma escultura maravilhosa largada com displicência sob a escada, no canto do ateliê, e quis saber como o artista podia fazer aquilo com tamanha obra-prima. "Se for boa mesmo, se tiver essa força expressiva que você diz, ela aparecerá por si própria", respondeu Giacometti. Suponho que o mesmo vale para o título do livro. Se for bom o bastante, sobreviverá. Caso contrário, da mesma maneira como alguns casais grávidos trocam o nome planejado assim que a criança nasce – só porque bateram os olhos na Maria e ela tinha cara de Beatriz –, eu também escreverei um novo título quando a gestação da narrativa estiver concluída. Quem sabe?
Sobre o romance de Marçal Aquino, que iniciou essa divagação toda, confesso que demorei anos até o comprar e ler. Sou facilmente seduzido, só que custo a ceder, não tem jeito. Tais como o título estampado na capa, as páginas subsequentes são poéticas, intrigantes e escritas com muito talento. O nome, no entanto, surgiu de uma passagem breve – meio esdrúxula até –, que nem tem essa relevância toda. Só que ela combina perfeitamente com a história, sugere sentimentos ao invés de explicitá-los, instiga, contém um lirismo tão marcante quanto a sensibilidade do autor ao tratar desse assunto inexplicável chamado amor. Vou repetir porque vale a pena: Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. Um título único, que cumpre o papel com louvor. Uma beleza rara. Faz jus ao romance, justifica a paixão à primeira lida que acometeu a mim e à minha amiga. Dá vontade de ler. Ou seja, é bom como todo título deveria ser. Não à toa, ocupa lugar de destaque. No caso, mais do que merecido.
Imagens, na ordem:
1. Nu descendo uma escada (1912), de Marcel Duchamp
2. Improvisação XI (1910), de Wassily Kandinsky
3. Composição com branco, amarelo e vermelho (1936), de Piet Mondrian
sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012
"A descoberta do inconsciente não é necessariamente uma boa notícia. Como disse o próprio Freud, ela é uma das três grandes humilhações sofridas pela humanidade, as outras sendo a descoberta de Copérnico de que o mundo não é o centro do universo e a afirmativa de Darwin segundo a qual seres humanos e primatas têm antecedentes em comum."
Ilha Deserta – Livros, de Moacyr Scliar
quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012
“Sou mais feliz que 97,6% da humanidade, nas contas do professor Schianberg. Faço parte de uma ínfima minoria, integrada por monges trapistas, alguns matemáticos, noviças abobadas e uns poucos artistas, gente conservada na calda da mansidão à custa de poesia ou barbitúricos. Um clube de dementes de categorias variadas, malucos de diversos calibres. Gente esquisita, que vive alheia nas frestas da realidade. Só assim conseguem entregar-se por inteiro àquilo que consagraram como objeto de culto e devoção. Para viver num estado de excitação constante, confinados num território particular, incandescente, vedado aos demais. Uma reserva de sonho contra tudo que não é doce, sutil ou sereno. É o mais próximo da felicidade que podemos experimentar, sustenta Schianberg.
Não sei que nome você daria a isso.
Bem, não importa muito, chame do que quiser.
Eu chamo de amor.”
Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, de Marçal Aquino
Não sei que nome você daria a isso.
Bem, não importa muito, chame do que quiser.
Eu chamo de amor.”
Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, de Marçal Aquino
domingo, 5 de fevereiro de 2012
MELHOR QUE A ENCOMENDA
O livro é melhor que o filme, o filme é melhor que a peça, a peça é melhor que o livro. Como é? Sim, sempre que ouço esses comentários, ouso perguntar por quê. Quero entender o que faz uma pessoa esculhambar e a outra elogiar. Muitas vezes, ambos citam os mesmo motivos, positiva e negativamente. É incrível. Por isso, o gosto se discute sim, foi o que Daniel Piza me ensinou. Todo mundo pode – e deve – criticar. Mas exige-se algum conhecimento para o comentário ser produtivo. "Porque sim" e "porque não" não são respostas, como já esclarecia o personagem de Marcelo Tas às crianças do Castelo Rá-Tim-Bum. Tudo tem explicação. Achismo é bom, mas argumentação é melhor ainda. Quem "gosta porque gosta", na verdade, não conhece a si próprio, enquanto quem "gosta e ponto final" nem merece entrar na conversa. Em matéria de gosto, a discussão não acaba nunca.
Agradar a todos é uma tarefa impossível. Muitos leitores já deixaram esta crônica no primeiro parágrafo. Faz parte. O importante é perceber que sempre é possível aprender com o que nos propomos a experimentar, gostando ou não. "A peça é melhor do que o filme". Por quê? Talvez porque a dinâmica dos atores, ao vivo, acrescenta significado ao texto, ou porque o ambiente do teatro acolhe melhor a proposta. "Mas o livro... é melhor ainda!" Por quê? Pode ser que, na adaptação, o roteirista foi obrigado a cortar passagens complexas ou subjetivas demais. Ou porque o espectador imaginava um personagem assim e o diretor o fez assado. Ou simplesmente porque essa pessoa prefere degustar a história no conforto do seu sofá a engoli-la de uma só vez, no cinema, sentada perto de um grupo de aborrescentes que não para de falar. E sem direito a pausa para xixi.
Adaptar obras de uma linguagem para outra, sejam quais forem, é sempre um trabalho arriscado. Exige cuidado para selecionar o material, entender como ele se comporta no novo formato, excluir cenas ou inventar diálogos para complementar.
No meio do ano, deve estrear um filme nacional chamado E aí, comeu? Um filme de grande circulação, feito com celebridades e boa produção. Foi adaptado de uma peça bastante popular, escrita pelo veterano Marcelo Rubens Paiva. Já deu para perceber o tamanho da encrenca, né? Imagine lidar com a expectativa desse público!
Conversei sobre isso com o roteirista responsável pelo projeto, Lusa Silvestre, que tem no currículo o premiado Estômago. Para o roteiro original render na telona, ele teve que criar novos pontos na trama, aproveitando que o cinema permite saltar entre os cenários com rapidez e, de certo modo, até exige esse vai e vem para evitar a monotonia. Lusa também precisou cortar passagens que o público do teatro aceita numa boa, mas que deixaria constrangido quem busca entretenimento durante a semana, na sessão da tarde. Estamos falando de um blockbuster, então essas escolhas são feitas com critérios bem definidos.
Vale lembrar que a adaptação é sempre uma leitura particular da obra em questão. O filme V de Vingança, por exemplo, foi feito a partir da história em quadrinhos de Alan Moore. Pois este não apenas detestou o filme como saiu falando mal na imprensa. Tudo bem, ele tem o direito. Admito que o filme não alcança a profundidade psicológica da HQ, mas transmite a ideia e é muito mais deslumbrante. Cada linguagem tem seus prós e contras.
O clássico Jules e Jim, de François Truffaut, é também adaptação do romance modernista de Henri-Pierre Roché. O filme começa mais ou menos na página 50 do livro. Por quê? Opção do diretor. Para ele, aquele pedaço renderia um bom filme. Não precisava contar a história toda, ficaria cansativo. Chamamos isso de recorte – a tal leitura particular que privilegia determinado aspecto da obra, podendo agradar o espectador ou não. Isso não significa, por si só, que a escolha está certa ou errada, ou que foi bem ou mal feita. Trata-se de uma adaptação, e toda obra assim lida também com a expectativa de quem conhece a original.
Se você gosta do assunto e quer pesquisar mais a respeito, eu indico o filme A liberdade é azul, do polonês Kieslowski. Nele, a personagem vivida pela atriz Juliette Binoche perde o marido num acidente de carro. Compositor renomado, ele escrevia uma sinfonia para a comemoração do aniversário da Revolução Francesa. Faltava apenas um pouquinho para terminar e o cara bateu as botas. A esposa, junto com o assistente, tentará finalizar a composição em seu lugar. Resta a ela superar os seguintes conflitos: como se modifica a criação alheia? Até que ponto ela lhe pertence? É possível adaptar sem interferir ou desrespeitar a original?
É um filme lindo, sensitivo e delicado. Porém, se ele não agradar, nem pense em me culpar. Pergunte-se o motivo. Como disse antes, o gosto se discute sim, e tudo deve ser questionado se o propósito é aprender. Melhor do que gostar de uma obra é ter disposição para experimentá-la.
A crítica está aí para ajudar, mostrando outros pontos de vista – apesar de muita gente achar que criticar é sinônimo de falar mal, inclusive profissionais da área. Esse tipo de crítica sim é perda de tempo.
Seja como for, assista ao filme que sugeri. Depois, me diga se gostou ou não. E por que, claro.
(imagens, na ordem: ANT73, ANT 64, ANT54 e ANT13, todas de 1960, por Yves Klein)
quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012
ARTE CÍCLICA ARTE
"Que recolha essas informações, que as memorize, que disponha de instrumentos para memorizar essas informações em vários códigos; no código das palavras, no código da imagem, no código do som e, mais tarde, no próprio código das cores."
"E que, uma vez gravadas essas informações, as processe."
"Que construa laboratórios, que construa escolas, que construa centros de reflexão, que faça reuniões como esta, que faça exposições, em suma, que processe essas informações para que disso resultem informações novas."
"Que divulgue imediatamente essas informações, seja materialmente, seja imaterialmente, isto é, seja com suporte de papel, seja com suporte de fita vídeo, seja com suporte de fita filme, seja com suporte de disquete. Que essa divulgação seja feita de maneira que provoque, espontaneamente, feedback do mundo inteiro. Que esse feedback seja de novo recolhido, e de novo memorizado, e de novo processado."
(...)
"Claro que lhes falei uma utopia, mas se não fosse utópico, para que engajar-se?"
Vilém Flusser
(excerto da conferência não publicada Por que a Casa da Cor em São Paulo, de 1988)
"E que, uma vez gravadas essas informações, as processe."
"Que construa laboratórios, que construa escolas, que construa centros de reflexão, que faça reuniões como esta, que faça exposições, em suma, que processe essas informações para que disso resultem informações novas."
"Que divulgue imediatamente essas informações, seja materialmente, seja imaterialmente, isto é, seja com suporte de papel, seja com suporte de fita vídeo, seja com suporte de fita filme, seja com suporte de disquete. Que essa divulgação seja feita de maneira que provoque, espontaneamente, feedback do mundo inteiro. Que esse feedback seja de novo recolhido, e de novo memorizado, e de novo processado."
(...)
"Claro que lhes falei uma utopia, mas se não fosse utópico, para que engajar-se?"
Vilém Flusser
(excerto da conferência não publicada Por que a Casa da Cor em São Paulo, de 1988)
domingo, 29 de janeiro de 2012
MEU CAMINHO SENTIDO
Foi uma das experiências mais incríveis que vivi numa instituição cultural (eu ia dizer "museu", mas não é bem o caso). Me refiro à instalação Seu Caminho Sentido, de Olafur Eliasson, que foi montada no Sesc Pompeia no segundo semestre de 2011 e permanece lá até hoje.
A obra é constituída por uma grande sala retangular cheia de fumaça. Uma das extremidades fica no escuro, enquanto a oposta é iluminada por lâmpadas frias. Andamos ali com passos curtos por receio de esbarrar nas outras pessoas, que estão perto, sim, podemos ouvi-las, porém não conseguimos vê-las. Seus vultos nos perseguem como fantasmas. Aparecem e desaparecem sem que possamos identificá-los. De repente, nos damos conta de que nós também somos vultos como aqueles, à solta na bruma, assombrando os outros visitantes. Ainda assim, não há qualquer sensação de pavor. Passada a angústia inicial de querer e não poder ver, entramos numa linda brincadeira estética.
Olafur Eliasson nos permite experimentar uma nova relação sensorial com o espaço. É mesmo um caminho sentido, como indica o título da obra, percebido pelo som e pelo olfato muito mais do que pelos olhos. Os sons e o cheiro predominam, enquanto a visão fica refém de dois tipos de cegueira, uma escura e outra clara.
O vídeo acima foi feito durante minha caminhada pela instalação (se preferir, assista diretamente no Youtube). Preste atenção nos barulhos - eles criam um interessante efeito com as imagens que se fazem e desfazem a todo instante. Abaixo, você pode ouvir um relato gravado assim que deixei a sala, com os sentidos ainda afetados pela experiência. Quis registrá-lo logo, supondo que, pelo seu frescor, ele esclareceria o "meu caminho sentido" de um jeito mais preciso do que qualquer outra descrição redigida depois.
Saiba mais sobre o artista aqui: Olafur Eliasson (no site, há também registros feito próprio artista na Pinacoteca do Estado de São Paulo e nas unidades Belenzinho e Pompeia do SESC, além de diversas outras exibidas mundo afora).
terça-feira, 24 de janeiro de 2012
COM A MÚSICA ENGASGADA NO PESCOÇO
Há mais ou menos uma semana, o maestro Allan Gilbert interrompeu a apresentação da Sinfônica de Nova York porque um celular não parava de tocar na plateia. Foi a primeira interrupção nos 170 anos da orquestra, e ocorreu durante o último movimento da nona sinfonia do compositor Gustav Mahler.
Segundo o maestro, o aparelho tira a concentração dos músicos e compromete a qualidade da apresentação.
Um exemplo de como isso acontece pode ser visto abaixo. O músico Lukas Kmit se apresentava na Sinagoga Ortodoxa de Presov, na Eslováquia, quando um celular o levou a uma reação inesperada, que caiu no gosto do público e ganhou destaque na internet:
Todo mundo sabe que é falta de educação deixar o celular ligado durante apresentações como essa, do mesmo modo como no cinema ou no teatro. Mas elas persistem. Imagino que o insulto estava engasgado no pescoço desses artistas há tempos. Agora, as reações começam a aparecer.
Fica a questão: qual é a melhor maneira de lidar com o problema?
Saiba mais sobre a interrupção da Sinfônica de NY (Toque de celular interrompe concerto da Filarmônica de Nova York) e do músico Lukas Kmit (Músico reage com bom humor ao ser interrompido por um celular).
Segundo o maestro, o aparelho tira a concentração dos músicos e compromete a qualidade da apresentação.
Um exemplo de como isso acontece pode ser visto abaixo. O músico Lukas Kmit se apresentava na Sinagoga Ortodoxa de Presov, na Eslováquia, quando um celular o levou a uma reação inesperada, que caiu no gosto do público e ganhou destaque na internet:
Todo mundo sabe que é falta de educação deixar o celular ligado durante apresentações como essa, do mesmo modo como no cinema ou no teatro. Mas elas persistem. Imagino que o insulto estava engasgado no pescoço desses artistas há tempos. Agora, as reações começam a aparecer.
Fica a questão: qual é a melhor maneira de lidar com o problema?
Saiba mais sobre a interrupção da Sinfônica de NY (Toque de celular interrompe concerto da Filarmônica de Nova York) e do músico Lukas Kmit (Músico reage com bom humor ao ser interrompido por um celular).
quinta-feira, 19 de janeiro de 2012
domingo, 8 de janeiro de 2012
FELIZ ANO NOVO (COM MARGEM DE ERRO DE 10 ANOS PARA MAIS OU PARA MENOS)
"Quando o mundo estiver acabando, venha para o Uruguai. Aqui ele ainda dura uns dez anos mais". Foi o que me disse o gerente de uma excelente vinícola de lá, localizada nos arredores de Montevidéu. Estávamos passeando pela propriedade. Ele me contava a história da empresa, do sistema de viticultura e de elaboração do vinho. Nas últimas três ou quatro décadas, uma grande quantia de capital estrangeiro chegou às vinícolas do Chile e da Argentina, resultando no salto de qualidade que colocou esses países na elite do circuito internacional, a ponto de competirem com nomes consagrados da Europa. No Uruguai, a tecnologia, os estudos científicos e os especialistas chegaram apenas no começo da década de 1990, e o país ainda está se profissionalizando. A promessa é grande, já que ali se produz vinho em dezesseis das dezenove províncias, ou seja, praticamente no território todo. Eles possuem ainda uma vantagem: a uva Tannat encontrou no Uruguai seu solo e clima favoritos, rendendo os melhores vinhos dessa variedade, que é bastante difícil de produzir.
Tudo isso para dizer que os nossos vizinhos não compartilham da mesma ansiedade política e econômica que sentimos por aqui, em especial nas metrópoles do Estado de São Paulo, de onde falo com maior conhecimento de causa. Aqui, trabalha-se praticamente o tempo todo, a correria diária resulta num trânsito caótico, tudo é lotado, a cultura do excesso impera e, num ciclo infinito de causa e consequência, o estresse, a falta de educação e o canibalismo corporativo se tornaram comportamento padrão. Não, lá eles leem jornais em cafés charmosos no trajeto para o escritório, caminham pela orla, voltam para casa antes de escurecer e saem à noite para papear com os amigos.
A senhora gorda e sorridente que me recebeu nos campos de outra vinícola, no interior do país, olhou para toda aquela tranquilidade natural ao seu redor, entre parreiras e oliveiras carregadas de frutos, e confirmou: não trocaria sua vida por nada. Os tais dez anos de atraso de que o gerente da primeira vinícola falou, de repente, me pareceram dez anos de avanço – uma década a mais de vida muito bem aproveitada.
Foi essa aparente incompatibilidade que me chamou a atenção em Joaquín Torres García, o artista plástico mais influente da história do Uruguai. Nascido em 1874, mudou-se para a Espanha dezesseis anos depois, viveu em diversos países-chave durante a efervescência do modernismo (França, Itália e Estados Unidos) e retornou à então provinciana Montevidéu em 1934, aos sessenta anos de idade, "com a ideia de fundar um importante movimento de arte construtiva que, enraizado numa profunda tradição universal, fosse, também, a expressão de uma arte própria, não apenas para o Uruguai, mas para toda a América". Palavras do catálogo da ótima retrospectiva de sua obra, que se encontra em cartaz na Pinacoteca do Estado de São Paulo.
De volta à origem, Torres García fez exposições, publicou livros, ministrou palestras, editou revistas especializadas e até mesmo criou uma associação de artistas modernistas, a AAC (Associação de Arte Construtiva); em outros termos, tentou sacudir o lugar para colocá-lo no circuito internacional de arte, polinizando conhecimento e incentivando a produção de seus conterrâneos.
Digo "tentou" sacudir porque, uma década mais tarde, em fins de 1940, o artista profere sua conferência de número 500 desde o retorno a Montevidéu. Nela, "expressa seu desânimo diante da impossibilidade de concretizar as ambições com que havia chegado ao Uruguai e decide que a AAC vai ser transformada, simplesmente, num espaço de estudo da Arte Construtiva".
Torres García falece em 1949. Seu legado, no entanto, alcança o sucesso que ele tanto almejara: suas ideias foram o estopim para tudo aquilo que o país vem produzindo desde então, mais ou menos como aconteceu no Brasil com Tarsila do Amaral, Mario e Oswald de Andrade, entre outros dos nossos modernistas.
Torres García apresentou o futuro àquele país que "vive com uma década de atraso". Ele queria estar à frente de seu tempo e levar o Uruguai inteiro consigo, fazendo "do sul o seu norte", como defendia. Talvez, na ocasião de sua morte, ele tenha achado que o projeto fracassara. Hoje, porém, podemos afirmar que a arte contemporânea uruguaia é fruto do seu ímpeto idealista – uma conquista digna das maiores honrarias.
É bobagem afirmar que um país está atrasado em relação a outro assim, de maneira tão generalista; pior ainda é sinalizar a diferença no calendário. A afirmação que ouvi na vinícola era apenas uma piada, ironizando o estilo de vida praticado pelos uruguaios. Afinal, por mais visionários que sejamos, demoramos a nos adaptar às novidades – boa parte das crises existenciais que hoje em dia afetam a humanidade provém desse processo.
Sinceramente, acredito que a obra de Torres García nos ensina muito, não apenas sobre arte, mas também sobre a relação dela com a vida: buscar sempre inovar, crescer, desenvolver... mas também curtir ao máximo o momento presente. São meus planos para 2012.
*As imagens que ilustram esta crônica são do manuscrito New York (1921), de Joaquín Torres García. Clique para ampliá-las.
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