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quarta-feira, 30 de abril de 2014

O AMOR É UMA CONSTRUÇÃO

Na imaturidade do amor, imaginava situações de perigo, querendo ser herói, querendo que a bravura conquistasse a mulher amada. Como nos filmes de Hollywood ou nos romances de cavalaria. Todo homem já quis ser herói. Todo homem sonhou que, num ato de bravura, conquistaria a frágil dama em perigo, sua princesinha trancafiada na torre. E algo me diz que toda mulher também já quis ser princesa. Coisa de criança que às vezes persiste a vida inteira. [Fantasia?] Como se a mulher viesse até nós por conta de um mal que a aflige. Como se precisasse de nós. No fundo é um pensamento machista. Mas na superfície é só ingenuidade mesmo. O heroísmo do dia a dia é muito diferente. Ele existe de maneira tão sutil que nem sempre se faz notar.

Quando conheci você não havia King Kong, prédio em chamas, floresta sem fim. Nenhum risco iminente a meu favor. A fantasia se assumiu como realidade e me enganou. Fiquei inerte, sem saber como agir. Não tinha sido instruído a lidar com os desafios do cotidiano. As fábulas não eram tão literalmente banais. Nós trabalhávamos juntos. E só.

Se o desafio não era salvá-la da torre, qual seria? Como eu poderia ser herói? Precisava descobrir as suas fantasias. Torná-las realidade. Pois todos se permitem ficcionar, ainda que nem sempre se deem conta.

Suas fantasias diziam respeito a conquistar independência, sucesso profissional, constituir família. Você não queria – não precisava – de um príncipe encantado, mas de um companheiro de carne e osso. Talvez nem soubesse que era assim. Fez a bravura ganhar outro significado. A coragem se mostrar nas questões mais simples. Era um desafio maior do que eu imaginava. Topei porque acreditava no desconhecido, naquilo ainda por se fazer. Você também topou. Nós.

* * *

Em nossa relação, nunca vi motivo para deixar de ser o que sou. O que fui. Seria fácil chegar aqui e dizer que mudei, aprendi, tomei outro rumo depois que lhe conheci. Aconteceu, admito. Foi bom. Mas eu mudei sem que existisse tal cobrança. No geral, não existiu. De nenhum dos lados.

O que sempre me fez apostar nessa relação é que um respeita o outro e o outro respeita o um do jeito que somos. Já lhe disse uma porção de vezes. Quase nos confundimos sem desperdiçarmos nossa individualidade. Discordamos quase sempre de quase tudo. Somos nem iguais nem diferentes.

Poder discordar e ainda assim sustentar a relação é muito bonito. E muito difícil. Só dá certo porque não queremos que o outro mude pelo um – ou às vezes até queremos, humanos que somos, porém não exigimos. A vontade de um não pode ser condição.

Nas entrelinhas desse acordo silencioso, as coisas foram se transformando a seu bel-prazer. Acontecendo. A relação foi se reformulando. Porque o amor não é uma solidez, uma entidade inerte, superior a todas as outras. Isso é fantasia. Enquanto o amor é uma construção. Não está pronto nunca; ele se faz no dia a dia. Não pertence a nós; ele depende de nós. Existe por nossa causa, por tudo o que fazemos; através de nós, dentro e fora, numa troca incessante.

Mudei muito nesses últimos anos. Não porque você exigiu, mas por sua causa, em sua causa, para fazer você feliz. Para me adaptar àquilo que inventávamos, num improviso só. Por vontade nossa. Misturei-me às suas fantasias, fiz de algumas delas minhas também. Seus planos começaram a me constituir. E as minhas ficções tinham você no elenco. O espetáculo já não poderia se realizar sem a sua companhia.

Juntos aprendemos que o amor não precede. Primeiro vem um desejo, uma disposição. Depois vem a dedicação, o esforço, a mão na massa. E assim o amor cresce todo dia. A gente mistura, sova, espera crescer, sova de novo, põe no forno, sente o prazer de fazê-lo, o aroma, o sabor. Usufruímos do amor.

Não tem nada a ver com cavalo branco, predestinação, metade da laranja, vestido de noiva. Isso tudo é ingenuidade. Faz parte de uma fantasia instituída distante do afeto, do sentimento e da vontade de construção. A bravura do amor está no dia a dia, no esforço para estar junto, tomar café da manhã; está nos emoticons de celular, na preocupação, nas compras de supermercado, nas surpresas, nas conversas sérias e nas levianas, nos desabafos, risos e saudades. No silêncio confortável. Em sustentar tensões e tesões. Está no abraço acolhedor, no beijo de boa noite, na presença. Concessões e consentimentos. Habitar e ser habitado. Movimentação entrosada. Nessas pequenas coisas que vamos construindo cotidianamente. Porque a gente quer. Porque optamos por fazer assim. Porque você me ama e eu sei. Porque eu amo você.

* * *

Eduardo A. A. Almeida e Juliana L. Andrucioli se casaram no último 26 de abril. Este texto é dedicado a todos os casais que tomaram a mesma decisão. Simplesmente porque acreditam que vale a pena.

sábado, 26 de abril de 2014

Da série "O que não é?"

37ª questão:
O QUE NÃO É ENVOLVIMENTO?

sexta-feira, 25 de abril de 2014

quarta-feira, 23 de abril de 2014

HIPOCRISIA MIDIÁTICA

O sujeito atira para matar, as câmeras mostram tudo ao vivo, e os jornais, revistas, rádios etc. o chamam de 'suspeito'. Criminoso não, bandido não, é suspeito. Ao mesmo tempo em que alguém vai para uma manifestação qualquer, quebra uma coisa qualquer e, mesmo sem saber de quem se trata e de por que quebrou, a mídia o chama de vândalo. Acho esse comportamento muito suspeito.

domingo, 20 de abril de 2014

sábado, 19 de abril de 2014

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Da série "O que não é?"

 33ª questão:
O QUE NÃO É APRENDIZADO?

quinta-feira, 17 de abril de 2014

quarta-feira, 16 de abril de 2014

TUDO QUE PENSO

tenho vontade de escrever
tudo que penso
e essa impossibilidade
angustia

por quê?
a fim de quê?

é uma vontade boba
pois tudo que penso
está cá registrado
nalgum lugar
todinho meu

lugar aberto
a quem quiser
visitar,
revisitar

na porta, a poética
dos livros de ouro
recebe os chegados,
marca a passagem

onde público e privado
se misturam
em gentilezas
literalmente
faladas,
pensadas,
compartilhadas

ainda assim escrevo
minhas vontades
a fim de quê
não sei

não saber
é bom também
escrever, impreciso
Da série "O que não é?"

31ª questão:
O QUE NÃO É CRÍTICA?

terça-feira, 15 de abril de 2014

segunda-feira, 14 de abril de 2014

domingo, 13 de abril de 2014

sábado, 12 de abril de 2014

Da série "O que não é?"

27ª questão:
O QUE NÃO É CORRUPÇÃO?

sexta-feira, 11 de abril de 2014

quarta-feira, 9 de abril de 2014

A constante possibilidade de violência já é uma violência em si.

domingo, 6 de abril de 2014

sábado, 5 de abril de 2014

sexta-feira, 4 de abril de 2014

quinta-feira, 3 de abril de 2014

quarta-feira, 2 de abril de 2014

terça-feira, 1 de abril de 2014


"Todos os hospitais psiquiátricos eram semelhantes, prédios vitorianos de aparência discreta, nos quais o instrumento terapêutico era indistinguível do equipamento de punição. Uma prisão, um hospício, um quartel – cada uma dessas instituições podia converter-se rapidamente em outra. Um programa de tratamento era um programa de correção. Qualquer um daqueles prédios era um hospício em potencial."

Geoff Dyer, Todo Aquele Jazz (referindo-se à esquizofrenia de Bud Powell)
Da série "O que não é"

20ª questão:
O QUE NÃO É IRONIA?

"Queriam que eu fizesse esculturas aqui. E, vendo que não conseguiam, me impuseram todo tipo de aborrecimento. Nestes momentos de festas, penso sempre em nossa querida mamãe. Eu não a revi desde aquele dia quando vocês tomaram a funesta resolução de me enviar a um asilo de alienados."

Carta de Camille Claudel ao irmão Paul (dezembro de 1939)

segunda-feira, 31 de março de 2014

ETC.


Vira e mexe ouvimos falar de mundo plural, sociedade conectada, diminuição de distâncias, reformulação do tempo e das relações interpessoais. As gerações recentes estão mais interessadas numa oportunidade de futuro imediato, tecnológico em especial, do que em sustentar tradições. São ávidas pelo novo. Nem certa nem errada, essa característica tem pontos positivos e negativos, e aos poucos uma espécie de equilíbrio oscilante se põe em operação. O desafio consiste em fluir/fruir com eles sem efetuar uma "divisão policial do sensível" (Jacques Rancière).

Um daqueles pontos, que acredito ser positivo, é a desformação do "especialismo", levado a extremos tão afunilados que resultou em pessoas aptas a exercer uma tarefa específica, excludente e limitada. Em outras palavras, forma-se profissionais embrutecidos por uma lógica de dominação do assunto, desejando se tornarem singulares. Com efeitos colaterais: o médico especialista em ortopedia que não reconhece um problema de pele; o técnico especialista que se torna desnecessário quando um software passa a executar seu trabalho, abandonando-o sem possibilidade de adaptação. Um foco tão acurado, tão aproximado, que impede a visão do redor – quem dirá do universo!


No contemporâneo, essa lógica se esfacela. E para pensar a respeito gosto de me apoiar no que Ricardo Basbaum chama de "artista-etc." A proposta pode ser ampliada a toda atividade profissional, campo do saber ou prática cotidiana; não deve ficar restrita à arte. As "pessoas-etc." são aquelas que não se moldam facilmente em categorias, e por isso não devem ser rotuladas, com risco de diminuí-las, de não fazer jus às suas qualidades. É da multiplicidade – e na multiplicidade – que sobrevivem, conectam-se, produzem. Em vez de fadadas a uma especialidade, elas estão abertas a experiências diversas, que atravessam territórios nem sempre bem relacionados. Irrompem não-lugares, expressam-se a partir da fronteira, das tensões e das ambiguidades da interface.

Um exemplo prático ajuda a esclarecer a ideia: neste semestre, trabalhamos o "etc." com uma turma de graduação em Terapia Ocupacional da USP. Além de aprender o que o terapeuta sabe e fazer o que o terapeuta faz, propomos que eles se permitam agregar outras funções, não necessariamente úteis. Que se expandam na direção da vida comum em vez de entalarem num gargalo da carreira.

Que se façam terapeutas-enfermeiros, terapeutas-artesãos, terapeutas-esportistas, terapeutas-amigos, terapeutas-gestores, terapeutas-cozinheiros, terapeutas-etc. Tudo ao mesmo tempo, tudo misturado. Por quê? Para lidarem com situações da prática terapêutica com desenvoltura, criatividade e atitude transformadora. Para que o conhecimento não fique restrito àquele da própria área, sustentando a mesma lógica, resistindo às demandas inéditas sem qualquer argumento senão o do tradicionalismo per si. E também para que se permitam experimentar, simplesmente, sem a sombra do sentido, da explicação racional, da justificativa exigida, da neurose de ter, na ponta da língua, o "para quê serve", o "para quê sirvo".

Terapeuta-inventor, engenheiro-filósofo, fotógrafo-arquiteto, advogado-músico, químico-místico, jornalista-cavaleiro, matemático-escritor, médico-mecânico, publicitário-cineasta. E assim por diante. Esses profissionais ampliam suas redes, adaptam-se com maior facilidade às situações impostas, desmancham fronteiras, deparam-se frequentemente com o novo, provocam, surpreendem, reinventam modos de ser, de agir e de pensar.


Como formar esse tipo de pessoa? É uma questão importante. Porque elas não se formam – no sentido iluminista de "dar forma", que adota como fundamento a perfectibilidade do espírito, a unidade do gênero humano, a universalidade dos valores e o aprimoramento infinito do homem e do mundo (Celso Favaretto), numa espécie de escala/escola evolutiva. Não se pressupõe uma forma final, um acabamento, como se a educação pudesse ter uma finalidade esclarecida e pré-determinada.

Não se ensina ninguém a ser "etc.", muito menos se especifica que múltiplo o constituirá. O desafio está, justamente, em não impor um sistema, mas desformá-lo, desenformá-lo, destituí-lo. Ao invés de ensinar o pré-formulado – a doutrina –, a proposta é oferecer condições para que cada pessoa encontre sua aptidão, desenvolva suas conexões, alargue seus limites na direção que achar conveniente, sem receio de errar. Trata-se de provocar a construção de um pensamento crítico. "Um modo de problematização que não procede por efeitos de ultrapassamento, de superação e nem de progresso, mas antes, de reativação da atitude crítica do permanente da atualidade" (Favaretto).

Fazemos isso multiplicando linguagens. Porque o terapeuta sabe que a razão não dá conta do humano. Existem muitas camadas embaixo dela que operam num regime de sensibilidade. Pois é incentivando esse sensível, apreendendo linguagens e criticando o redor que se pode desenvolver uma atitude condizente com o contemporâneo.

Tal desenvolvimento exige dedicação, acolhida e nutrição – precisa ser cuidado com carinho para que seu potencial esteja livre. Um tipo de curadoria – no lugar da disciplina, que é um termo importuno, principalmente quando associado à educação. É preferível o descaminho, a destituição, o desfazimento. O dissenso no lugar do ensino moralista, pautado na transmissão de valores.

Aquilo que está soterrado pela lógica embrutecedora aos poucos emerge na busca por emancipação (Rancière). E é como lugar de agenciamento que a arte pode contribuir.

Não sei dizer até que ponto os especialistas continuarão operando. Posso afirmar apenas que, no contemporâneo, é para os "etc." que devemos olhar. Tudo o que de mais interessante está por vir tende a brotar dali.

*Diagramas de Ricardo Basbaum ilustram este texto.
Da série "O que não é"

19ª questão:
O QUE NÃO É VIOLÊNCIA?

domingo, 30 de março de 2014

sábado, 29 de março de 2014

sexta-feira, 28 de março de 2014

quinta-feira, 27 de março de 2014

Da série "O que não é"

15ª questão:
O QUE NÃO É CORRETO?

OS SISTEMAS IDEOLÓGICOS SÃO FICÇÕES

“Os sistemas ideológicos são ficções (fantasmas de teatro, diria Bacon), romances – mas romances clássicos, bem providos de intrigas, crises, personagens boas e más (o romanesco é coisa totalmente diversa: um simples corte instruturado, uma disseminação de formas: o maya). Cada ficção é sustentada por um falar social, um socioleto, ao qual ela se identifica: a ficção é esse grau de consistente que uma linguagem atinge quando pegou excepcionalmente e encontra uma classe sacerdotal (padres, intelectuais, artistas) para a falar comumente e a difundir.

‘[...] Cada povo tem acima de si um tal céu de conceitos matematicamente repartidos, e, sob a exigência da verdade, entende doravante que todo deus conceitual não seja buscado em outra parte a não ser em sua esfera’ (Nietzsche): estamos todos presos na verdade das linguagens, quer dizer, em sua regionalidade, arrastados pela formidável rivalidade que regula sua vizinhança. Pois cada falar (cada ficção) combate pela hegemonia; se tem por si o poder, estende-se por toda a parte no corrente e no quotidiano da vida social, torna-se doxa, natureza: é o falar pretensamente apolítico dos homens políticos, dos agentes do Estado, é o da imprensa, do rádio, da televisão; é o da conversação; mas mesmo fora do poder, contra ele, a rivalidade renasce, os falares se fracionam, lutam entre si. Uma impiedosa tópica, regula a vida da linguagem; a linguagem vem sempre de algum lugar, é topos guerreiro.”

Roland Barthes
O prazer do texto

quarta-feira, 26 de março de 2014

segunda-feira, 24 de março de 2014

domingo, 23 de março de 2014

sábado, 22 de março de 2014

Da série "O que não é"

11ª questão:
O QUE NÃO É COMPARTILHAR?

sexta-feira, 21 de março de 2014

quinta-feira, 20 de março de 2014

quarta-feira, 19 de março de 2014

terça-feira, 18 de março de 2014

quinta-feira, 13 de março de 2014

quarta-feira, 12 de março de 2014

"Se até mesmo de um artista se cobram 'mensagens' e 'posicionamentos', quanto mais de um professor! (E o que parece não passar pela cabeça dos que cobram 'posicionamentos' é o quanto essa cobrança tem de imobilizante, de ordenadora, de controladora – portanto, de antiprogressista.)

(…) O discurso de Barthes, não sendo uma fala magistral mas uma escritura, nunca é uma ameaça de opressão, mas um convite ao jogo."

Leyla Perrone-Moisés
(a respeito da Aula, de Roland Barthes)
Da série "O que não é"

4ª questão:
O QUE NÃO É MANIFESTAÇÃO?

terça-feira, 11 de março de 2014

segunda-feira, 10 de março de 2014

MUSEUS: TRADIÇÃO / REINVENÇÃO

Clique na imagem para ampliá-la

Adorei este comparativo entre 'tradição' e 'reinvenção' dos museus. É assunto para muito debate.

Dá para ver a imagem original, entre outras matérias, aqui: Revista Select [ano 4, ed. 16, fev./mar. 2014]
Da série "O que não é"

2ª questão:
O QUE NÃO É AMOR?

quinta-feira, 6 de março de 2014

O QUE NÃO É?

Penso em começar uma série de questões. Batizada "O que não é?" Porque é costume definir as coisas, botar cada uma em sua gaveta, no tal "devido lugar". Arte é isso, amor é aquilo, política é assim, pessoas são assado. Será possível pensar pelo inverso? Será que ele leva às mesmas conclusões?

1ª questão: O QUE NÃO É PRECONCEITO?

quarta-feira, 5 de março de 2014

A MINHAS OBRIGAÇÕES

Este trecho seria perfeito para a manhã de hoje, quarta-feira de cinzas. Só que eu estava trabalhando e não podia lê-lo, o que é uma pena. Também uma doce ironia.

A todos tenho que dar algo 
a cada semana e cada dia, 
um presente de cor azul, 
uma pétala fria do bosque, 
e então de manhã estou vivo 
enquanto os outros mergulham 
na preguiça, no amor, 
eu estou limpando minha redoma, 
meu coração, minhas ferramentas.

Pablo Neruda, Navegações e Regressos

BOLO DE ROLO

Na última vez que comprei bolo numa dessas casas especializadas, era sexta-feira e o lugar estava movimentado. Enquanto aguardava na fila, ouvi a atendente explicar para um homem que não havia mais bolos em estoque, apenas encomendas.

"Quanto você quer por um desses bolos encomendados? Eu pago", disse o cidadão. A atendente demorou um tempo para entender a proposta e, quando caiu em si, explicou que os bolos não estavam à venda, e ficaria feliz por fazer uma encomenda para ele na próxima vez. O homem bufou e saiu da loja batendo o pé feito criança contrariada.

Não me surpreenderia se esse cliente fosse o primeiro a querer ver os mensaleiros presos pelo resto da vida.

Isso não significa que desejo a liberdade para aqueles criminosos. Alguém duvida que o STF fez uma manobra política lastimável para livrar a cara deles? Desejo, sim, que todos os corruptos e corruptores sejam devidamente condenados pela falta de ética de seus atos. Inclusive aqueles que os praticam em lojas de bolo.

domingo, 2 de março de 2014

GENTE DE BEM

Casa de Brodowski (1943), de Candido Portinari

A vizinha tinha certeza de que havia uma família naquela casa, porém não sabia o que ruíra primeiro. Que tenha sido a família!, disse com certa compaixão. Mas logo deu de ombros, preocupou-se com a panela no fogo e encostou a porta. Ouvi dois trincos serem acionados e averiguados para evitar novo incômodo.

Outro vizinho mencionou parentes no exterior. Eles poderiam me ajudar. Exterior onde? Não sabia. Deve ser Estados Unidos, muita gente quer ir pra lá. Quem pode vai. Ainda mais nesses tempos de agora, essa confusão toda acontecendo. Perguntei da família que morava ali. Ele não tinha muita informação, e a maior parte era inventada. Diziam que havia brigas, parece que o casal não se entendia direito, descontavam tudo nos moleques, coitados. Parece que o marido não era muito chegado no batente, veja só o estado que a casa ficou, um desleixo só, nem se aguentou de pé! Parece que a mulher era da vida, andou de graça com um sujeito do bar ali debaixo, foi o que disseram. Ficou desmoralizada. Parece também que os moleques nunca iam pra escola, ficavam à toa por aí. Esse negócio de ficar à toa não dá certo não. Não é coisa de gente de bem. Onde já se viu?

Um jornal da época estampava, na primeira página, a casa no chão, do mesmo jeito que estava hoje, como se tivessem acabado de fotografar. Tragédia: casa desaba e moradores permanecem soterrados. O texto dizia que até o fechamento da edição as buscas permaneciam sem sucesso, e que os bombeiros trabalhavam duro com auxílio de cães sem jamais abandonarem a esperança. Dava para ver também um monte de curiosos ao redor dos escombros.

Nos dias seguintes veio uma atriz de novela gravar publicidade no coreto da central, aquilo mexeu demais com a cidade, todos ficaram alvoroçados. Depois começou o Carnaval e não encontrei qualquer outra notícia sobre o ocorrido.

Segundo o registro na delegacia, a casa desabou sem ninguém dentro. Não havia detalhes. Cidade pequena, sem peritos para investigar, ficou por isso mesmo. Ninguém tampouco apareceu para reivindicar seus direitos, coisa que não surpreendia; muita gente larga a vida aqui pra se arranjar na capital. O policial começou a desconfiar do meu interesse no assunto e preferi recuar antes que encontrasse suspeito de um crime que sequer existiu.

A dona do mercadinho chamou o casal de excêntrico. Vinham pouco, compravam rapidinho, não puxavam assunto. Pagavam direitinho, nunca pediram fiado. Deviam ter muito dinheiro. Achava que tinham vindo para tratar alguma doença, essas coisas de cidade grande, sabe? Pra repousar. Tinham ficado maluquinhos com a correria, a violência, o trânsito. Ela via TV, sabia como era. Uma loucura, não tem como aguentar muito tempo. A moça era bonita. Não sorria muito, tadinha. Mas era bonita mesmo assim. Perguntei da casa. Não sabia, nunca tinha ido lá ver. Diziam ser uma casa muito engraçada, não tinha nada. Talvez meu marido possa ajudar, ele deu um pulinho ali e já volta. Se você quiser esperar, à vontade.

Na última vez que voltei à rua, um velho lavava a calçada com sua mangueira molenga. Logo se pôs a papear. Eram boa gente, sabe? Nunca incomodaram, nunca fizeram escândalo, ficavam vivendo a vida deles. Gente discreta, só isso. Gente de bem. Dizem que tinham uns probleminhas aí, mas isso todo mundo tem, certo? Se cada um cuidasse do próprio umbigo, a vida seria mais fácil.

Perguntei se o casal trabalhava, o que faziam na cidade, como era a rotina. Sei não. Nunca falei com eles. Ficavam aí, saíam pouco, acho que trabalhavam em casa mesmo. Tinham dois filhos, dois meninos. Eles brincavam no quintal. Acho que tinham problema de dinheiro, talvez dívida no banco. Ouvi mais de uma vez os dois discutirem, gritaram alto, essas coisas de marido e mulher. Só que com essa distância não dava pra saber do que falavam, e eu também não ia me intrometer. Acho que era dívida porque a casa foi deteriorando e eles não davam jeito. Teve um vendaval aí que arrancou as telhas e eles deixaram assim mesmo, tudo esburacado. Teve o muro que cedeu ali do lado, tá vendo?, e ficou caído lá. O mato cresceu, os meninos deixaram de bagunça. Pelo menos eu não vi mais. A pintura mofou, o portão todo enferrujado. Lâmpada que não acendia mais, parede trincada por todo canto. Até que aquela noite fez um barulho danado e, quando eu cheguei aqui, a casa tava no chão. Vieram os bombeiros, teve gente que chorou, tinha carro de imprensa, foi uma coisa de doido. Uma balbúrdia. Todo mundo muito triste. Pensar que gente tão boa podia morrer desse jeito?

Sim, é verdade, não encontraram nada. Eu disse pra eles, na ocasião, que não tinha mais ninguém morando ali. Ninguém tinha certeza, mas só podia ser. Fazia tempo que não via nem ouvia ninguém. Acho que se mudaram. É difícil fazer mudança sem ninguém ver, né? Mas acho que fizeram sim. Sei lá. Tem gente que diz que a família morreu junto com a casa, que morreu antes, que morreu depois. Tem gente que fala em milagre, outros falam em assombração. Eu não acredito nessas bobagens não. O povo fica inventando coisa. Se as autoridades disseram que tá tudo certo assim é porque tá tudo certo mesmo, isso é fato. Quem sou eu pra duvidar?


Ps.: Não tem nada a ver com o texto, mesmo assim aproveite e visite o site do Projeto Portinari [de onde tirei a imagem acima], que é excelente: www.portinari.org.br

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

“A ‘inocência’ moderna fala do poder como se ele fosse um: de um lado, aqueles que o têm, de outro, os que não o têm; acreditamos que o poder fosse um objeto exemplarmente político; acreditamos agora que é também um objeto ideológico (...). E, no entanto, se o poder fosse plural (...)? Adivinhamos então que o poder está presente nos mais finos mecanismos do intercâmbio social: não somente nos Estados, nas classes, nos grupos, mas ainda nas modas, nas opiniões correntes, nos espetáculos, nos jogos, nos esportes, nas informações, nas relações familiares e privadas, e até mesmo nos impulsos libertadores que tentam contestá-lo: chamo discurso de poder todo discurso que engendra o erro e, por conseguinte, a culpabilidade daquele que o recebe.”

AULA
Roland Barthes

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

FEITO

cidadão de bem

muito lugar
comum

muitos lugares
como
se muitos
fossem
bons

como se
muito fosse
bem

muito bem, muito bem

tapinha nas costas
tapa na oreia

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

A IMAGEM INTOLERÁVEL


"É preciso pôr em causa a opinião corrente segundo a qual esse sistema nos submerge numa vaga de imagens em geral - e imagens de horror em particular -, tornando-nos assim insensíveis à realidade banalizada desses horrores. Essa opinião é amplamente aceita porque confirma a tese tradicional de que o mal das imagens está em seu número, na profusão que invade sem possibilidade de defesa o olhar fascinado e o cérebro amolecido da multidão de consumidores democráticos de mercadorias e imagens. Essa visão pretende ser crítica, mas está perfeitamente de acordo com o funcionamento do sistema. Pois os meios de comunicação dominantes não nos afogam de modo algum sob a torrente de imagens que dão testemunho de massacres, fugas em massa e outros horrores que constituem o presente de nosso planeta. Bem ao contrário, eles reduzem o seu número, tomam bastante cuidado para selecioná-las e ordená-las. Eliminam tudo o que possa exceder a simples ilustração redundante de sua significação. O que vemos, sobretudo nas telas de informação de televisão, é o rosto de governantes, especialistas e jornalistas a comentarem as imagens, a dizerem o que elas mostram e o o que devemos pensar a respeito. Se o horror está banalizado, não é porque vemos imagens demais. Não vemos corpos demais a sofrerem na tela. Mas vemos corpos demais sem nome, corpos demais incapazes de nos devolver o olhar que lhes dirigimos, corpos que são objeto de palavra sem terem a palavra. O sistema de Informação não funciona pelo excesso de imagens, funciona selecionando seres que falam e raciocinam, que são capazes de 'descriptar' a vaga de informações referentes às multidões anônimas. A política dessas imagens consiste em nos ensinar que não é qualquer um que é capaz de ver e falar. E essa lição é confirmada de maneira prosaica pelos que pretendem criticar a inundação das imagens pela televisão."

Jacques Rancière
O ESPECTADOR EMANCIPADO
[A imagem intolerável]


EQUAÇÃO DOS AFETOS

o que se mede
não tem fim
que se define
assim

mate-
mática

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

POT-POURRI (À MODA DA CASA)

Pot Pourri (1897), Herbert James Draper

cenas cruéis
com requintes
de humanidade

cenas vulgares
com pitadas
de piedade

cenas finais
com leves toques
de eternidade

cenas irônicas
recheadas
de ambiguidade

cenas profanas
à moda
da artificialidade

cenas picantes
apinhadas
de religiosidade

cenas poéticas
apuradas
na ociosidade

cenas imperdíveis!
bem passadas,
da pior qualidade

cenas banais
com fervor
de realidade

cenas póstumas
em repouso
por arbitrariedade

cenas improváveis
seguidas à risca
e leviandade

cenas rocambolescas
pré-aquecidas
por cretinidade

cenas imprestáveis
defumadas
com naturalidade

cenas inspiradoras
congeladas
com especificidade

cenas impossíveis
salpicadas
de passividade

cenas grandiosas
ensopadas
de moralidade

homem
manjar dos deuses

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

DISSENSO

"Longe de buscar um consenso cretinizante e infantilizante, a questão será, no futuro, a de cultivar o dissenso e a produção singular de existência."

Félix Gattari, em AS TRÊS ECOLOGIAS


"Dissenso quer dizer uma organização do sensível na qual não há realidade oculta sob as aparências, nem regime único de apresentação e interpretação do dado que imponha a todos a sua evidência. É que toda situação é passível de ser fendida no interior, reconfigurada sob outro regime de percepção e significação. Reconfigurar a paisagem do perceptível e do pensável é modificar o território do possível e a distribuição das capacidades e incapacidades. O dissenso põe em jogo, ao mesmo tempo, a evidência do que é percebido, pensável e factível e a divisão daqueles que são capazes de perceber, pensar e modificar as coordenadas do mundo comum. É nisso que consiste o processo de subjetivação política: na ação de capacidades não contatadas que vêm fender a unidade do dado e a evidência do visível para desenhar uma nova topografia do possível. A inteligência coletiva da emancipação não é a compreensão de um processo global de sujeição. É a coletivização das capacidades investidas nessas cenas de dissenso. É a aplicação da capacidade de qualquer um, da qualidade dos homens sem qualidade."

Jacques Rancière, em O ESPECTADOR EMANCIPADO

domingo, 2 de fevereiro de 2014

TODOS POR UM

Você sai às ruas para exigir um país mais digno. Vem um policial militar e passa por cima de toda dignidade. Refiro-me ao caso brutal do soldado da ROCAM que, após espancar uma garota completamente desarmada de más intenções, subiu com sua moto na calçada e passou por cima da vítima, colocando abaixo qualquer protocolo, bom senso ou moralidade. Em entrevista posterior, ela confessou que nem se lembrava do atropelamento, tão atordoada que estava pelos socos e pontapés. Uma estudante do ensino médio que saiu às ruas para pedir dignidade. Pois bem. Esse PM volta para sua casa, na periferia, com a farda na mochila para não chamar atenção. Ele tem medo. Ele gostaria de viver num país mais digno, em que as pessoas, inclusive policiais, fossem respeitadas. Em que todos estivessem seguros de verdade.


Quando escrevo este texto, alguns dias antes da publicação, as notícias dizem que a Corregedoria da Polícia Militar recolheu outros vídeos além daquele que originou a denúncia, gravado a partir de uma janela alta. O investigador explicou que as câmeras de segurança dos prédios vizinhos mostram a vítima sozinha, indo embora da manifestação, quando é alcançada por uma tropa e espancada covardemente, sem esboçar qualquer reação. Foram oito ou mais policiais fardados e armados contra uma garota de 18 anos. Depois de a atropelarem com a moto, os agressores continuaram a chutá-la no chão, e a abandonaram sem prestar qualquer socorro. As testemunhas que filmaram o crime resgataram a vítima com vida, e por sorte ela agora está se recuperando.

O atropelador é um criminoso, sem dúvida. Ele agiu com cúmplices. O mínimo que se espera é que sejam identificados e punidos conforme a Lei. A PM não precisa desse tipo de gente. A sociedade tampouco.

Existe outra questão aí: eles se aproveitaram da situação suscetível da moça para aplicar as "medidas corretivas" a que gostariam de submeter todos os manifestantes. Do mesmo modo, ao praticaram seu crime, colocaram em xeque a corporação inteira, suas falhas e inaptidões. Um por todos.

"O desafio consiste em não ser polícia", Eduardo Sterzi publicou no Facebook. Claro que ele não se refere à profissão somente, mas às atitudes de todos nós, em geral, que tendemos a reprimir, julgar, querer justiça com as próprias mãos, fazer mau uso do poder, violentar pessoas física e moralmente. O desafio consiste em resistir a isso tudo. Porque fomos, de alguma maneira, doutrinados a acreditar que a ordem deve ser mantida a qualquer custo. A preservar "os bons costumes" (quais mesmo?). A acreditar que o castigo resolve problemas, que a vingança deve ser buscada, que a PM deve atacar ao invés de proteger o povo manifestante. Somos doutrinados a emitir opiniões condenatórias sem conhecer o caso, sem compartilhar dele – porque, na prática, todos são culpados, exceto nós mesmos, não é assim? Nós somos santos, o inferno são os outros.

"Ao invés de acionar incansavelmente procedimentos de censura e de contenção, em nome de grandes princípios morais, melhor conviria promover uma verdadeira ecologia do fantasma, que tivesse como objeto transferências, translações, reconversões de suas matérias de expressão", propõe Félix Guattari. Ao invés de sustentar esse sistema violento e presunçoso, é sempre a hora de revê-lo, reinventá-lo, adequá-lo às novas realidades. A tradição da PM, caso seja o empecilho, deve ser revistada e transformada, provavelmente abandonada, se é de interesse da corporação não cair em desuso. Sua pertinência no contemporâneo depende disso.

O medo da farda não opera mais conforme a princípio. Porque o povo tem medo da farda que deveria protegê-lo, porém oprime. Os soldados têm medo da farda porque denuncia sua profissão, expondo-o ao crime, e também porque é mais forte do que suas próprias convicções, obrigando-o a agir contra a vontade, quando esta existe, em prol de uma corporação falida. Por outro lado, os criminosos, fardados ou não, não têm qualquer medo, ao menos são o suficiente para impedir suas ações.


A polícia precisa morrer. Não no sentido literal, mas no trágico. Conforme escreve Sterzi em Aleijão: "Foram tantos / que me mataram / Não tenho bocas / para agradecer". Morrer como ideal ultrapassado, rever princípios e protocolos, proteger o povo durante as reivindicações, que é uma das mais importantes provas de democracia. Entender que elas buscam um bem maior, do qual todos, policiais inclusive, poderão usufruir.

"A noção de interesse coletivo deveria ser ampliada a empreendimentos que a curto prazo não trazem 'proveito' a ninguém, mas a longo prazo são portadores de enriquecimento processual para o conjunto da humanidade", escreve Guattari.

Por sua vez, os manifestantes não podem agir como fazem as forças opressoras, sustentando o sistema que criticam. A estratégia deve ser outra. Nesse sentido, os rolezinhos foram eficazes: usaram do banal, da facilidade de mobilização e da legalidade para denunciar preconceitos, truculências e falta de estrutura em diversos níveis. Expuseram questões graves, antes reprimidas, e nos puseram a pensar nelas. Expuseram a insuficiência das instituições e a incapacidade dos gestores.

Concordo com Jacques Rancière, para quem "política não é, em primeiro lugar, exercício do poder ou luta pelo poder. (...) É a atividade que reconfigura os âmbitos sensíveis nos quais se definem objetos comuns. Ela rompe a evidência sensível da ordem 'natural' que destina os indivíduos e os grupos ao comando ou à obediência, à vida pública ou à vida privada, votando-se sobretudo a certo tipo de espaço ou tempo, a certa maneira de ser, ver e dizer. (...) A política é a prática que rompe a ordem da polícia".

Gostaríamos de contar com o apoio da PM, não com o ódio. Nós, povo brasileiro, policiais inclusive, temos coisas mais urgentes para odiar e melhorar.


Obs.: Vale a pena ouvir a entrevista com o pai da menina atropelada à rádio Band News. Fica mais fácil entender o que aconteceu e o que está acontecendo: entrevista com Boechat

sábado, 1 de fevereiro de 2014

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

o que é vivo
é finitivo
definidamente
sou oco
porém são
loucos?
quem não és?
são
foram tantos
que me mataram
foram-se
todos

DESEJO PUERIL

queria morar numa rua
com nome de poeta
onde errar fosse coisa certa


rua de tripla mão
para ir, vir, devir

      não julgue vazio
      meu desejo pueril

nessa minha rua
todos que passassem
deixariam um rastro
de boa recordação

de presente
levariam sentimento
sem matéria
nem razão

uma rua de gente
justa e honesta
em que todas as memórias
fossem pura invenção

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

CHARLES BAUDELAIRE: CONTEMPORÂNEO DO PASSADO, DO PRESENTE E DO FUTURO



Texto meu na POIÉSIS (v. 1, n. 20). É relativamente antigo, mas só agora foi publicado e... não custa nada dar uma olhada!

Aqui: Poiésis 20
Para download, clique aqui.

RESUMO: Este artigo procura discutir, a partir de uma afirmação de Charles Baudelaire escrita em 1863, o conceito de contemporâneo que permeia as criações artísticas recentes. Isso é possível por meio de um diálogo com autores – filósofos, críticos, artistas, entre outros – que se dedicam ao tema, procurando identificar semelhanças e desacordos, em especial no que diz respeito ao regime de pensamento e sua relação com o passado. O contemporâneo, no caso, não se reduz a uma apreensão cronológica do espaço-tempo, mas ao conjunto de questões que permanecem relevantes para o melhor entendimento das pessoas e do contexto sócio-estético-político em que atuam, criam, pensam e transformam. Questões que têm origem na modernidade de Charles Baudelaire e que ainda hoje produzem ressonâncias.

Palavras-chave: contemporaneidade, modernidade, estética e política, arte, literatura

Confira também os números anteriores da revista: http://www.poiesis.uff.br/

AFIA A DOR

assovia,
      afiador,
            assovia

sua gaita me lembra os tempos
de casa,
quando pertencia ao chão
e o dividia
com quem não merecia

saudade, sim
tristeza,
      é verdade

afia!
      a dor

Fiu-ru-lin
Fiu-ru-lon
a pele
expele
o ex

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

VELÓRIO

Protestos recentes em Kiev

"Numa noite fria do inverno passado aconteceu um incêndio na casa de um homem que, poucos dias antes, havia matado seu cachorro a pauladas. Ele era um homem forte e por isso conseguiu salvar todos seus pertences sozinho, carregando-os da casa para o jardim. Assim que terminou, uma centena de cachorros de todos os tamanhos e formas correu diante da luzes oscilantes, vindos das trevas ao redor, e prontamente sentaram em cima de cada eletrodoméstico e de cada móvel restantes como se fossem os donos. Além de não deixarem o homem chegar perto e rosnar ferozes quanto ele tentava bater neles, ficavam estáticos, olhando impassivelmente para as chamas. (...)"

CONTOS DE LUGARES DISTANTES, de Shaun Tan


Veja mais fotos impressionantes dos protestos em Kiev.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

UM DOS MELHORES POSTS DESTE BLOG

Encontrei, no mesmo livro, grandes exemplos de um dos maiores e mais costumeiramente empregados VÍCIOS DE LINGUAGEM da imprensa e crítica brasileiras. E li apenas a contracapa e as orelhas, por enquanto.

Será que apenas eu me incomodo com isso, que é uma das mais relevantes necessidades de pompa e diferenciação dos últimos séculos?

1. "As entrevistas (…) constituem um dos textos mais significativos sobre a pintura do século XX."

2. "O resultado é um acesso privilegiado à mente de uma das principais figuras artísticas do século XX."

3. "(…) um dos críticos ingleses mais influentes de sua época."

4. "(…) análise precisa da obra e do pensamento de um dos mais criativos pintores do século XX."

Trechos retirados das Entrevistas com Francis Bacon, de David Sylvester, publicadas pela editora Cosac Naify. Mas poderiam ser de qualquer outro livro. Faça o teste.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

PRODUÇÃO FEMININA

Vi o clipe no mesmo dia em que li o poema. Adoro essas obras do acaso.



porque uma mulher boa
é uma mulher limpa
e se ela é uma mulher limpa
ela é uma mulher boa

há milhões, milhões de anos
pôs-se sobre duas patas
a mulher era braba e suja
braba e suja e ladrava

porque uma mulher braba
não é uma mulher boa
e uma mulher boa
é uma mulher limpa

há milhões, milhões de anos
pôs-se sobre duas patas
não ladra mais, é mansa
é mansa e boa e limpa

* * *

uma mulher muito feia
era extremamente limpa
e tinha uma irmã menos feia
que era mais ou menos limpa

e ainda uma prima
incrivelmente bonita
que mantinha tão somente
as partes essenciais limpas
que eram o cabelo e o sexo

mantinha o cabelo e o sexo
extremamente limpos
com um xampu feito no texas
por mexicanos aburridos

mas a heroína deste poema
era uma mulher muito feia
extremamente limpa
que levou por muitos anos
uma vida sem eventos

* * *

uma mulher sóbria
é uma mulher limpa
uma mulher ébria
é uma mulher suja

dos animais deste mundo
com unhas ou sem unhas
é da mulher ébria e suja
que tudo se aproveita

as orelhas o focinho
a barriga os joelhos
até o rabo em parafuso
os mindinhos os artelhos

* * *

era uma vez uma mulher
e ela queria falar de gênero

era uma vez outra mulher
e ela queria falar de coletivos

e outra mulher ainda
especialista em declinações

a união faz a força
então as três se juntaram

e fundaram o grupo de estudos
                  celso pedro luft

Uma Mulher Limpa, de Angélica Freitas
[do livro UM ÚTERO É DO TAMANHO DE UM PUNHO]

Página oficial da artista: www.boggieofficial.com

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

ESTÉTICA & POLÍTICA

Torso Belvedere, nos Museus Vaticanos

“A ruptura estética instalou, assim, uma singular forma de eficácia: a eficácia de uma desconexão, de uma ruptura da relação entre as produções das habilidades artísticas e dos fins sociais definidos, entre formas sensíveis, significações que podem nelas ser lidas e efeitos que elas podem produzir. Pode-se dizer de outro modo: a eficácia de um dissenso. O que entendo por dissenso não é o conflito de ideias ou sentimentos. É o conflito de vários regimes de sensorialidade. É por isso que a arte, no regime da separação estética, acaba por tocar na política. Pois o dissenso está no cerne de política. Política não é, em primeiro lugar, exercício do poder ou luta pelo poder. Seu âmbito não é definido, em primeiro lugar, pelas leis e instituições. A primeira questão política é saber que objetos e que sujeitos são visados por essas instituições e essas leis, que formas de relação definem propriamente uma comunidade política, que objetos essas relações visam, que sujeitos são aptos a designar esses objetos e a discuti-los. A política é a atividade que reconfigura os âmbitos sensíveis nos quais se definem objetos comuns. Ela rompe a evidência sensível da ordem ‘natural’ que destina os indivíduos e os grupos ao comando ou à obediência, à vida pública ou à vida privada, votando-os sobretudo a certo tipo de espaço ou tempo, a certa maneira de ser, ver e dizer. Essa lógica dos corpos tem seu lugar numa distribuição do comum e do privado, que é também uma distribuição do visível e do invisível, da palavra e do ruído, é o que propus designar com o termo polícia. A política é a prática que rompe a ordem da polícia que antevê as relações de poder na própria evidência dos dados sensíveis. Ela o faz por meio da invenção de uma instância de enunciação coletiva que redesenha o espaço das coisas comuns. Tal como Platão nos ensina a contrario, a política começa quando há ruptura na distribuição dos espaços e das competências – ou incompetências. Começa quando seres destinados a permanecer no espaço invisível do trabalho que não deixa tempo para fazer outra coisa tomam o tempo que não têm para afirmar-se coparticipantes de um mundo comum, para mostrar o que não se via, ou fazer ouvir como palavra a discutir o comum aquilo que era ouvido apenas como ruído dos corpos.” (p. 59-60)

Jacques Rancière
O Espectador Emancipado

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

HÁ TEMPOS

Ano novo, novos tempos. Pode o tempo ser novo ou antigo? Ou somos nós que envelhecemos e rejuvenescemos? Parece que há uma inversão de lugares. Afinal, o tempo foi inventado como método de organização das nossas atividades, só que na maioria dos casos é a vida que acaba por ser formatada de acordo com uma escala de tempo exterior a ela. Ficamos escravos da própria criação. O feitiço se volta contra o feiticeiro. Ora, não se trata de feitiço e sim de relógio, agenda, prazos a cumprir. Uma rigidez antinatural que se impõe, com toda a sua ordem racionalista, em busca do progresso da nação, da evolução do homem. É assim que deve ser? Espero que não. Melhor continuar esperando.

Dear Photography - Molly
* * *

O último romance que li em 2013 foi Barba Ensopada De Sangue, escrito por Daniel Galera. Demorei quase seis meses até terminá-lo, e nesse meio-tempo li outros livros. No início, a demora incomodou, fazendo acreditar que nada acontecia na história. Foi após cem ou duzentas páginas que entendi: estava acontecendo sim. Estava acontecendo nada. O que é muito diferente. O nada já é alguma coisa. Na correria do contemporâneo, o nada irrita, mais do que entedia. A hora que não passa.

A propósito, a história trata do tempo lento de um personagem que deseja escapar das grandes ondas que carregam todo mundo junto para um buraco perigoso à beira-mar, onde ocorre a rebentação. Um tempo individual de solidão, reflexão, revelação. Quando percebi isso, aceitei. Logo depois, o nada encontrou um rumo. E as últimas cem ou duzentas páginas foram alucinantes. É mesmo um ótimo livro, muito bem escrito. Cheio de pulso vital.

* * *

Meus melhores textos – ou ao menos aqueles de que gosto mais – não são escritos num ímpeto criativo, num único afluxo de inspiração. São aqueles que de início eram notas esparsas, sem qualquer relação proposital, e que vão aos poucos se aglutinando, ganhando consistência, tomando jeito. Na sequência, são revisitados uma porção de vezes, escritos e reescritos, cortados e acrescidos. Palavras sobrevivendo ao tempo, produzindo sincronia.

Os textos que me agradam mais são aqueles que jamais deixam de serem escritos. Se fosse necessário classificá-los, esse seria o critério.

* * *

Dear Photography - Dawn
"Lá em casa tem um poço. Mas a água é muito limpa."

Letristas como Renato Russo fariam do Brasil um país melhor. Nem precisaríamos de muitos; dois ou três já seriam uma diferença enorme.

John Lennon é outro exemplo. Minha música favorita dos Beatles chama-se A Day In The Life. Um dia na vida. Caso houvesse um disco apenas com ela, seria completo. Mas eles gravaram o maravilhoso Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band para acompanhá-la – não satisfeitos, foram além da expectativa. É por esse motivo, entre outros, que permanecem relevantes. Que perduram.

Sinto falta de vozes sensíveis, sinceras, desbocadas. Fora de protocolo. Que se fazem música pela potência poética/política dos seus dizeres.

Gosto da expressão Há Tempos, que dá nome a uma canção famosa da Legião Urbana. Porque ela traz uma ideia imediata de passado distante, e acaba por bagunçar essas relações. Gosto também porque sugere a existência de tempos diversos, muitos deles consecutivos, acontecendo ao mesmo tempo. Como as estrelas, que morreram há uma infinidade de anos e ainda são vistas no céu. Porque sua luz chega a nós apenas agora. Observá-las é o mesmo que observar o passado acontecer bem diante dos nossos olhos.

* * *

Escrevo com caneta-tinteiro em época de wi-fi e tablets. Deus, como sou retrógrado! Escrevo com pena e observo a tinta, ainda líquida, na superfície do papel. Ela demora a ser absorvida. Parte evapora e se perde no mundo; parte fica retida, incorporada. Assim é o tempo da descoberta, do aprendizado, do conhecimento. Tempo de apreensão.

Uma terceira parte daquela tinta é entrevista quando viro a página e começo a escrever do outro lado. Onde as sombras do que já escrevi me espreitam. Não consigo compreendê-las direito, já não me pertencem mais.

Se derramo água, o texto borra e se mistura, transborda, espalha pela mesa, mancha tudo o que toca. Está sempre à disposição do acaso para resignificá-lo. E para ser resignificado.

* * *

Meus pais fizeram o pedido na lanchonete de uma pequena cidade de Minas Gerais. Talvez por acaso, ouviram o garçom gritar ao cozinheiro: vai rápido porque o cliente é paulista!

O tempo corre diferente em diferentes lugares. Em alguns ele anda. Em outros se espreguiça e dorme.

Dear Photography - Rebecca

* * *

O relógio é um acordo entre os homens. Quando a maioria concorda, adiantamos ou atrasamos uma hora de verão. Para criar ou dispensar tempo. Acho isso incrível.

* * *

Se o tempo não for exato, cronológico, na medida do relógio, como será? Sensível, na medida do homem. Na medida do ser. Claro, a tarde demora a passar para o entediado, porém é curta demais para o atarefado. Os minutos sofridos na angústia, o deleite da infância que já não fazem mais.

Se não estivermos em acordo com o tempo, estaremos em desalinho. Deslocados, de modo que se possa olhar para ele e perceber o que ainda opera e o que já não serve mais. Melhor assim. Ao invés de inseridos numa escala de tempo exterior, podemos nos posicionar com o tempo; estar sem a ele pertencer. Com-temporâneos.

Não ser sujeitos do tempo. O tempo é nosso, é de cada um à sua maneira. O tempo nos pertence e com ele fazemos o que convier. Ou assim seria.

* * *

Tive um professor baiano na faculdade que dizia: tudo que é gostoso é pra ser feito devagar. Eu ria, na época. Precisei de mais de década para compreendê-lo.


Obs.: As fotos que ilustram este texto foram surrupiadas do site Dear Photography, que reúne imagens do passado sobrepostas a cenas do presente feitas por quaisquer pessoas. Em outras palavras, trata-se de um site colaborativo. Você também pode participar com suas fotos. Basta acessar o link para verificar o procedimento.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

ESTÉTICA DO NU

A noiva posta nua por seus celibatários, mesmo (vulgo O grande vidro),
1915-23, de Marcel Duchamp
"O que o nu revela é que não há nada a revelar, ou melhor, que ele é somente a própria revelação, o revelador e o revelado ao mesmo tempo; é o gesto que desnuda. O divino nu (das estátuas gregas), o pecado nu (da inquietude cristão em relação à carne) e a pele nua – esses três aspectos do nu ocupam de muitas maneiras o pensamento atual." (p. 12)

"Foi a partir do corpo como imagem que a noção de integridade pôde ser pensada. O corpo é reinventado mediante um ideal que lhe é externo e que o deslocará da natureza para a pólis: o corpo do cidadão era um artifício a ser criado, que deveria ser treinado e aprimorado. Por isso, todas as figuras humanas do Pathernon são jovens; o corpo belo e nu não é dádiva da natureza, ao contrário, é uma conquista da civilização. Compreende-se, dessa maneira, que o nu artístico é relacionado a características morais, tornando-se modelo de virtudes e qualidades subjetivas que marcam toda a arte europeia ocidental. O nu faz abstração da dimensão do particular e do próprio ao manifestar fixidez fora do tempo: a beleza. É precisamente por causa dessa vontade obstinada do homem de dar forma visível ao humano que o nu seria o signo distintivo da sociedade ocidental, de sua metafísica milenar à procura de uma imagem sensível do ideal. As estátuas gregas representam o ideal mais elevado, uma vez que elas são o signo tangível do poder de uma cultura capaz de extrair o ideal abstrato da humanidade. O nu não representava um corpo, mas uma ideia: a ideia de homem." (p. 14)

Viviane Matesco
Corpo, Imagem e Representação

sábado, 21 de dezembro de 2013

DES-PROPOSITADA-MENTE

O olho cacodilato (1921), de Francis Picabia

Penso que deveria escrever um conto de Natal. Este ano haveria tempo hábil. Historinha breve, só para dizer que escrevi. Pelo menos isso. Já faz tanto desde o último! Não é apenas questão de tempo, claro. Foi uma espécie de desencanto. Sem vontade não há ideias. Sem boa vontade não há solução. Fui resolvendo minhas inquietações de outras maneiras. Além do mais, o Natal se tornou um feriado qualquer, do qual só me dou conta uma semana antes, quando decidem as tarefas de cada familiar. Tarefas de ceia: peru, tender, essas coisas. Sempre as mesmas. O que mais me irrita na tradição é também o que mais conforta. Natal é um período melancólico, de baixa produção, de vontade de nada. Vou escrever sobre o quê? Fábulas e sonhos não cabem mais, o mundo cresceu, acordou. Realismo também não cabe. Para que vou escrever sobre a "realidade" se a vida lá fora é mais interessante? Alguém quer ler no Natal? Essa é uma pergunta que cabe. Alguém tem paciência? Tenho impressão de que ninguém mais lê nada, ninguém além do meu círculozinho de amigos. Nada há para dizer a eles que já não tenha dito antes. Não vale escrever sobre isso.
      Deixo, então, a pena deslizar sobre o papel. Deus, como sou retrógrado!, uso caneta-tinteiro em época de wi-fi e smartphone. Mero fetiche. Não tenho espaço, menos ainda teria a droga do meu conto de Natal. Fico sem ideias, desconstruindo um personagem qualquer. Que, no fim das contas sou eu mesmo, disfarçado de ficção. Os pensamentos se esvaem, vou junto deles. Alguém estaria interessado nesse eu mesmo, super sem graça, banal, entediado? Precisa ler muito para entender, sabe?
      Foi o que imaginei.
      Os pensamentos se esvaem, vou junto. Um conceito se desfaz. Um sujeito se fragmenta. Escrevo com pena e observo, sozinho, a tinta ainda líquida na folha de papel. Ela demora a ser absorvida. Fico olhando. Isso sim vale. Parte evapora e se perde no mundo, parte é incorporada. Parte da tinta se vai, a outra fica retida, uma terceira se conecta às demais páginas do caderno numa ambiguidade só. Vejo as sombras do que já escrevi espreitarem do outro lado da folha. Porém não consigo compreendê-las. Não me pertencem mais.
      Derramo água sobre este texto. Despropositadamente. Um copo cheio de otimismo. A tinta se dilui, borra, espalha por toda a superfície do papel, escorre na mesa, mancha a madeira, suja os dedos, tinge a roupa, preenche as falhas, estraga tudo, põe tudo num estado de urgência. Esfrego a tinta no meu corpo inteiro. Pego a água suja de texto e espalho no rosto. Me parece bem melhor assim. Eh... agora sim.

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

O fotógrafo Georges Pacheco preparou o estúdio e deixou o disparador da câmera na mão de modelos cegos, que podiam escolher o momento em que a foto seria feita. Mesmo sem enxergarem, nota-se que alguns se preocuparam com a maneira como seriam vistos. Curioso, não?

Veja as fotos aqui: Le regard des aveugles

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Clique na imagem para ampliá-la

"Método terrorista, radicalidade, transgressão absoluta são normalmente os termos utilizados para qualificar ou aferir o grau de confrontação das obras de [Artur] Barrio com o mundo do trabalho, o mundo cotidiano da conveniência e das normas sociais. As situações com as trouxas ensanguentadas têm a política brasileira como pano de fundo, em alusão a corpos esquartejados. Apesar da alusão a restos de corpos, o trabalho não se resume a uma simbologia da morte; parte, sim, da reação das pessoas diante da morte, diante do inesperado, mas não se restringe ou se deixa enclausurar em mera exemplificação. Não é a analogia entre trouxas e corpos que dá sentido ao trabalho, mas o atravessamento da vida na morte, ou seja, a relação entre erotismo e morte; o que interessa é a detonação de sentido advinda da situação. Barrio lida com a transgressão do interdito da morte, uma vez que ela é redimensionada pela pulsão de vida. É o transtorno desse atravessamento que perturba a consciência ao se experimentar separada do mundo previsível e ordenado." (p. 50)

Viviane Matesco
Corpo, Imagem e Representação

Mais informações: Enciclopédia Itaú Cultural | Blog Artur Barrio

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

ACREDITAR EM NOEL

Não me recordo da época em que acreditava em Papai Noel. Quando escrevia cartinhas, tentando convencê-lo de que, apesar das artices e malcriações, eu me comportaria melhor no ano seguinte, e não me importaria se recebesse um presentinho de incentivo. Suponho que a argumentação fosse mais ou menos essa. Do mesmo modo, não me recordo de quando deixei de acreditar nele. Havia certas suspeitas, compartilhadas entre os primos, quando passamos a observar a lógica impossível do evento. Quer dizer, Papai Noel visita todas as casas do mundo numa única noite? Se dividirmos essas bilhões de pessoas em 24 horas, quantas ele precisa visitar num minuto? Como pode? Além do mais, ele trabalha só um dia por ano? Consegue ler as cartinhas, escritas em tantas línguas diferentes? Por que algumas crianças ganham presentes melhores do que outras? Por que muitas não ganham presente algum? Cadê as renas? Noel mora no Pólo Norte ou no shopping center? Aquela barba é esquisita, quem se arrisca a puxar?

Busto do filósofo grego Sócrates
Já faz tanto tempo! Todavia ainda me recordo de quando voltei a acreditar na bondade do velhinho, e percebi a tolice que foi suspeitar da sua existência. Um despropósito da razão; dessa mesma lógica racional que transforma os homens em padrões de comportamento, dogmas e protocolos. Que só acredita vendo, que exige a verdade absoluta, que toma decisões com base em estatísticas. Que sustenta preconceitos, hipocrisias, burocracias e sistemas obsoletos, ao mesmo tempo em que esvazia símbolos, afetos e intuições. Que desacredita os sentimentos mais naturais do vivo.

Foi ao ler O Brincar e a Realidade, de Donald Winnicott, que me dei conta do que tinha acontecido. Um trecho em que ele comenta o valor simbólico de certos objetos. Assim: “Se considerarmos a hóstia da Sagrada Comunhão, simbólica do corpo de Cristo, penso que tenho razão se disser que, para a comunidade católico-romana, ela é o corpo e, para a comunidade protestante, trata-se de um substituto, de algo evocativo, não sendo, de fato, o próprio corpo. Em ambos os casos, porém, trata-se de um símbolo”. Em outras palavras, determinada coisa pode ser acolhida de maneiras diferentes, dependendo de quem lida com ela e do contexto cultural no qual está disposta. No caso citado pelo psicanalista, a hóstia pode ser uma representação ou o corpo nu e cru; pode existir como realidade ou ficção, conforme seu valor simbólico for evocado.

No caso de Noel, penso que a ordem lógica do mundo nega sua possibilidade de existência. E diminui sua potência simbólica a uma anedota infantil, sustentada enquanto a ingenuidade da fantasia permitir.

Junto isso com um pensamento de Michel Foucault, que propôs a autoria, num contexto mais contemporâneo, não como um lugar estático, mas como uma função assumida e abandonada conforme convier. Nesse sentido, todos podem ser, momentaneamente, autores dos feitos. Trata-se de uma atitude perante eles; um modo de agir. Não uma questão de posse nem de direitos autorais.

Isso significa que Papai Noel não pertence a ninguém específico, mas à comunidade inteira, e somos responsáveis por ele, se concordarmos que é relevante. Compreendi, assim, que sua existência não pode se pautar no raciocínio lógico, mas no simbolismo. Claro, pois não se trata de um velhinho de carne e osso, de roupão e trenó, e sim de uma maneira de ser e estar no mundo, de partilhar desse sensível. Uma função político-social que podemos assumir com intuito de transformar a situação vigente. Isso ocorre numa época determinada – o Natal – porque está de algum modo atrelada à tradição, embora possa operar o tempo inteiro, em todos os lugares.

Penso que é dessa maneira que deveríamos falar de Noel às crianças, quando percebemos os primeiros movimentos para desmascará-lo. Explicando que o disfarce não é uma mentira, mas uma fantasia, uma representação de certa vontade transformadora. A evocação do “espírito natalino”. Ímpeto que independe de religião. Nesse sentido, Papai Noel existe sim. Como uma ficção que criamos para combater a dureza do dia a dia, as desigualdades sociais, a descrença na força afetiva do povo. Se não sobrevive ao avanço da idade, talvez seja porque a ideia de doação como proposta de vida encontra tamanha resistência que se esfacela antes mesmo de adolescer. Imagino que cabe a experiência de tentar mantê-la ativa. E o tempo dirá se vale a pena.

Noel está abandonado à voracidade do capitalismo, deturpado por ações de marketing de todo o tipo, completamente associado ao consumo. Se pudermos reverter esse quadro, me parece que só teremos a ganhar. E não estou me referindo a presentes. Não são eles que importam, afinal. É o ato de se doar.

Quando alguma criança espertinha diz que Papai Noel não existe, respondo que existe sim. Porém não da maneira como a TV ou a “verdade científica” o vendem para nós.

Carl G. Jung explica que, “como diz o cético, símbolos e conceitos religiosos foram, durante séculos, objeto de uma elaboração cuidadosa e consciente. É também certo, como julga o crente, que a sua origem está tão soterrada nos mistérios do passado que parece não ter qualquer procedência humana. Mas são, efetivamente, ‘representações coletivas’ – que procedem de sonhos primitivos e de fecundas fantasias”.

Eu acredito em Papai Noel. E num feliz 2014 a todos.

Ho ho ho.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

PINTURA ENCARNADA

Estudo a partir no retrato do Papa Inocêncio X, de Velázquez – Francis Bacon

"Desde essa época de juventude, sua pintura não se afastou mais de mim. Ela agarra na gente, vive na gente. Seus 'personagens em crise generalizada' – crise moral, crise física –, como escreveu o crítico inglês John Russell, vivem ao nosso lado e nos lembram incessantemente que a vida é essa corda esticada entre nascimento e morte. Essa vida que nos traz visões exacerbadas, um vizinho de hospital, de asilo, às vezes de nós mesmos. O terror está presente, instalado em personagens que berram em silêncio. Uma crueldade veemente e visível, revelada por homens emparedados numa moldura espacial. A qualquer momento podemos nos deparar com o atroz, um acidente nos reduz a um pacote de músculos abertos. Na expectativa, possível, de uma ressurreição."

Franck Maubert, Conversas com Francis Bacon