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sexta-feira, 20 de junho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (4)

É curioso falar de sonho porque traz à tona outro amor breve da minha adolescência; amor fugaz e inseguro como eu era na época. Falo de uma amiga num grupo de amigos em que os amores e as desilusões se revezavam. Amávamos e nos desamávamos tanto que o grupo se desfez assim que chegamos à faculdade, e cada um seguiu seu próprio rumo sem remorso ou coisa do tipo.

Mas eu falava de sonho. Foi mais um pesadelo, na verdade, que me acordou com uma sensação esquisita. Eu estava na cobertura de um prédio muito alto; tão alto que só enxergava as luzes da cidade à distância lá embaixo. As ruas eram como rugosidades num tapete. Até o sol estava baixo, deixando tudo numa atmosfera crepuscular. Não havia outros prédios como aquele, talvez sequer houvesse prédios naquela cidade que se esticava além do limite dos meus olhos. O que havia era gente. Muita gente comigo, no topo da torre, e eu não conhecia ninguém, eram tão estranhos quanto o contexto. Estavam todos em pânico e eu não sabia o motivo, mas também ficava em pânico por causa deles. Eu também tinha medo. Do quê? Lembro de olhar para baixo e ver fumaça. O prédio pegava fogo e nós estávamos refugiados no topo sem ter como ir mais para cima. Esperávamos socorro num lugar que o socorro jamais alcançaria. Estávamos no limite entre o céu e a terra.

Reclinado no parapeito, vi outro prédio igualzinho àquele em que eu me encontrava. Tão alto quanto. Não sei se já estava ali ou se apareceu de repente. Então não era apenas um, mas dois prédios maiores do que a humanidade; duas torres isoladas do mundo, da realidade profana das ruas.

O prédio vizinho também tinha fogo, eu podia ver um buraco enorme bem no meio dele, por onde saíam labaredas e uma espessa coluna de fumaça.

No sonho, eu conseguia ver mais um monte de gente na cobertura do prédio vizinho, na mesma situação desoladora. Apesar da distância, eu podia ver Paloma, uma das amigas do grupo do colégio, sozinha no meio daquela gente toda, tal como eu. Tentei gritar, ela não ouviu. Uma, duas vezes. Não deu para fazer mais nada.

Logo em seguida o chão cedeu sob meus pés e eu caí com ele; uma queda interminável. Passavam pessoas, blocos de concreto, estilhaços de vidro, fogo. Tudo voava em torno de mim enquanto caíamos. As pessoas gritavam; eu permanecia impassível, com enorme frio na barriga enquanto o prédio se desmanchava. Uma cena dantesca. Ainda sinto frio na barriga só de pensar.

Lembro também de olhar para o lado e ver o prédio vizinho repetir os movimentos do meu, como um mergulho sincronizado em direção ao inferno. Acho que foi ao vê-lo que compreendi o que acontecia comigo.

Por algum milagre, eu sobrevivia. Caminhava pelos escombros, branco de pó, respirando fuligem em meio a uma escuridão de pedras, ferro retorcido e objetos quebrados. Procurava Paloma. Por algum milagre eu a encontrava. Estava meio inerte, meio soterrada. Completamente atordoada. Eu a resgatava. E o pesadelo terminava.

Acordei com uma sensação esquisita, como disse. Ignorei-a por uns dias, esperando passar. Não aconteceu. Eu sabia que não passaria. Alguma coisa me dava esse pressentimento Chamei então Paloma num canto, expliquei que só contaria o sonho porque ela estava nele e eu não sabia direito o que significava. Fiz isso num tom muito sério. Até demais para um adolescente. Ela ouviu sem dar a menor bola. Me devolveu a mesma mistura de tristeza e receio que se oferece a um lunático. Voltei para casa angustiado. Era tudo o que podia fazer.

Cerca de três meses depois, um ataque terrorista derrubou as Torres Gêmeas de Nova York. Vi os prédios queimarem e desabarem na TV. Fiquei em choque. Nunca mais esqueci a sensação. Nunca deixei de senti-la quando o assunto retornava.

Lembro-me de ir até Paloma e descarregar nela toda a minha aflição. Não disse que aconteceria? Eu sabia. Avisei você. Eu sabia que se realizaria.

Não fui grosso, apenas um pouco afetado. Falei baixo para ninguém ouvir. De qualquer maneira, nenhum colega prestava atenção em outra coisa que não o noticiário.

Paloma também ficou assustada. Não sei o que pensava. Não voltou a falar comigo, embora tenhamos estudado juntos durante o resto do ano. Eu não queria falar tampouco. Sequer na formatura nos cumprimentamos.

Jamais soube se ela contou a história para outra pessoa. Eu a guardei todinha para mim. Até agora.

terça-feira, 17 de junho de 2014

UM PONTO ALÉM DO CONTO

Uma coisa aparentemente chata muito me fascina: a trajetória da Estética no século XX. Trajetória conturbada, que começa com a ingenuidade das vanguardas europeias e sua crença na transformação do mundo por meio da arte, no sentido de "melhorá-lo". Fosse pela negação da beleza clássica, fosse pela pesquisa das formas, das impressões da natureza no homem ou das expressões da natureza humana. Essa ingenuidade acabou dilacerada pelas guerras, quando descobrimos os horrores de que nossa própria natureza é capaz. Tanto que, ao término do primeiro conflito mundial, apareceram as manifestações dadaístas: provocadoras, absurdas, de certo modo até violentas. Estavam em desalinho com os valores clássicos e também com os revolucionários; sem chão, sem esperança, perdidas nas brumas da desilusão. Porque a "missão" do Modernismo falhara – seus esforços foram subjugados. Não havia salvação moral para quem matava sem piedade. Muito menos salvação por meio da arte.

O pouco que restou daquela vontade transformadora sobreviveu menos de duas décadas, sucumbindo de vez nos campos de concentração, nos bombardeios maciços e nas frentes de batalha da segunda grande guerra. "É isto um homem?", pergunta Primo Levi no título do livro em que relata sua passagem por Auschwitz, de onde só era possível sair por um lugar: a chaminé.

Aqueles traumas, entre tantos outros, interromperam o que havia de criativo e jovial na humanidade. Isso nunca pôde ser retomado.

Quando o artista pop Roy Lichtenstein anuncia, na década de 1960, que a arte "não transforma, apenas forma", ele revela outra concepção de Estética, então em voga. Não se acreditava mais no potencial transformador da arte, mas no construtivo, no sentido de que ela poderia erigir numa nova realidade. Estamos falando dos Estados Unidos pós-guerra, da sua chamada Era de Ouro; país vitorioso, pleno de dinheiro e oportunidades, que desde aquela época fabricava cultura em enormes corporações e a exportava para o mundo inteiro. Nós, brasileiros, compramos toneladas do estilo de vida americano. Sonhamos o American Dream. Trouxemos para cá seus automóveis, fizemos estradas para eles transitarem; construímos Brasília inspirados na razão matemática, nas técnicas de engenharia recém-desenvolvidas, na ordem como método de obter progresso. O trabalho estético, por sua vez, afastou-se da natureza do homem e se direcionou à forma plástica; o espiritual na arte perdeu espaço para superfícies modulares, minimalismos e equilíbrio visual pela repetição de padrões.

Alegra-me saber que, no contemporâneo, esse ideal não se sustenta mais. Filósofos e artistas dedicados a compreender nossos modos de existência não acreditam em transformação ou formação pela arte, mas em desformação. Quer dizer, trabalham o esfacelamento dessas estruturas sólidas que foram sedimentando ao longo do século XX, multiplicando-as em singularidades infinitas. Estrutura familiar, social, governamental, militar, religiosa; hierarquias de todo o tipo, cânones, verdades absolutas que, sacralizadas como estão, já não servem mais, ou seja, não condizem com o nosso dia a dia. Pertencem a outro plano. E, dada sua incompatibilidade com a vida contemporânea, precisam ser revistas, reinventadas, desfeitas, profanadas; reorganizadas para voltarem a operar, se ainda forem pertinentes. Destituir as instituições. Deixar a rigidez mais elástica. Manipular o intocável conforme melhor convier.

Há resistência, entretanto. Embrutecimento. Teimosia. Inclusive nas vontades de mudança. Porque muitas vezes essas vontades apenas retomam procedimentos obsoletos e dão outra volta às mesmas reviravoltas. Quando, na realidade, o que se deseja é sair do circuito; linhas de fuga, trajetos de errância em vez do conforto das certezas.

Exemplo dessa resistência está no filme Malévola [se você não viu, talvez seja melhor interromper a leitura para não ter o final revelado]. Quando o vilão morre, o mal é extirpado e os heróis viverão felizes para sempre – conforme protocolo da Disney –; a princesa é coroada e o povo se reclina a seus pés. Povo que não era povo. Reino que não era reino. Quem se lembra do início da história? Quando os seres mágicos viviam felizes e saltitantes, antes da chegada do homem, que os corrompeu e os infligiu os horrores da sua estrutura sociopolítica. Até então, as fadas e seus amigos viviam com harmonia, pois ninguém era mais privilegiado. Depois, conheceram a ambição, a tentadora ascensão social, a possibilidade da dominação do outro.

No dito "final feliz", os produtores optaram por recriar o conflito principal – o jogo de poder – que provocou todo o drama, envelopando-o de "sonho de princesa". Os personagens não precisavam de governantes, porém os aceitaram, mesmo sabendo que renderiam futuras crises. No geral, é o que costumamos fazer em nossas vidas: permanecer atados ao círculo vicioso que se critica, opõe e autoalimenta.

Perguntaram se gostei do filme. Essa revisão inteira passou pela minha cabeça e a resposta foi negativa, claro. Não gostei. Achei uma pena que não reinventaram a fábula de modo que fizesse sentido no contemporâneo: que provocasse deslocamentos, ruídos; que correspondesse às questões mais urgentes.

A Estética segue seu rumo pelos caminhos mais imprecisos. Enquanto o filme encalhou num daqueles pontos retrógrados em que os blockbusters adoram se firmar.

segunda-feira, 16 de junho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (3)

Tive muitos amores quando criança, naquele período mágico de descoberta do mundo. A cada nova descoberta um novo amor. É fácil apaixonar-se quando se é inocente. Depois fica tudo mais complexo, mais difícil. Inclusive amar.

O amor de que me lembro agora ficou retido na segunda ou terceira série do primário. Menina branquinha, de olhos levemente puxados e cabelo curto. Linda. Todo amor é lindo enquanto dura.

Não me lembro de ter falado com ela sobre minhas intenções. Claro que não; nem mesmo eu sabia quais eram. Lembro-me apenas de ter relatado um sonho:

Ela, uma espécie meio robótica, com rodinhas nos pés, braços estendidos à frente do corpo, mãos prontas para agarrar e não soltar jamais. Eu, vítima acuada, assustada. Com medo de amar.

Havia uma sirene em sua cabeça, isso foi marcante. Aliás, sirene não, era uma luz giroscópica; uma só, igual nos filmes dos anos 1980, nos carros de detetive à paisana que, de uma hora para outra, entravam em missão e tinham uma luz alaranjada acoplada ao capô.

As rodinhas nos pés davam à Karina ritmo constante, e naquela velocidade baixa, angustiante, ela vinha atrás de mim, chegando cada vez mais perto; não importava o quanto eu corria ela se aproximava mais e mais. A perseguição se dava numa escuridão infinita, sem paredes nem pessoas. Apenas o desconhecido para além de nós dois. Apenas solidão. Eu corria, suava, em pânico. Ela vinha atrás, incansável, impassível. Até que despertei.

Não sei dizer qual foi a reação dela ao sonho. Hoje eu jamais o contaria, por mais que sonhar seja meigo. Ainda que o bizarro seja afeito ao mundo dos sonhos, nem todos o aceitam. Comigo seria diferente? Não sei... seja como for, Karina se foi, e o sonho permaneceu por décadas.

Eu tinha um carrinho de pilhas na época, uma viatura policial futurista. Era azul, e quando batia ficava todo amassado. Pois bastava apertar um botão e a lataria retomava a forma original. Eu adorava. Lembrando dele agora, acho que desvendei a associação feita pelo meu inconsciente enquanto eu dormia. Incrível como nunca tinha me dado conta.

Não saberia dizer se gostava mais do carrinho ou de Karina. Essas coisas não se mediam assim, na época.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

quinta-feira, 12 de junho de 2014

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Da série "O que não é?"

42ª questão:
O QUE NÃO É RESISTÊNCIA?

terça-feira, 10 de junho de 2014

Da série "O que não é?"

41ª questão:
O QUE NÃO É DISSIDÊNCIA?

segunda-feira, 9 de junho de 2014

Da série "O que não é?"

40ª questão:
O QUE NÃO É VALOR?

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (2)

O primeiro amor de que lembro remonta à minha pré-história; a pré-escola, antes mesmo de apreender a ideia de amor. Mocinha sorridente, dividia comigo o balanço do parquinho, na hora do recreio. Nosso caso ia e vinha sem sair do lugar. Ela nunca percebeu. Eu jamais quis que alguém soubesse. Diziam, meus amiguinhos, que o pai dela era dono do açougue, e cortaria fora a graça de quem se engraçasse com Fabiana. Eu tinha pavor de perder a graça, claro. Meus amiguinhos riam. Mais ligeiros, estavam preocupados com proteger outros interesses. Quando entendi a piada, meu primeiro amor estava distante; distante demais para o tamanho da minha precoce liberdade. Talvez no outro período, talvez na escola ao lado, talvez no quarteirão de cima. Enfim, longe de toda possibilidade de germinar; além de qualquer ilusão em meu remoto deserto de experiências.

domingo, 8 de junho de 2014

Da série "O que não é?"

39ª questão:
O QUE NÃO É ENTRETENIMENTO?
ser
no limite
da incerteza

estar
no fundo
do infinito

mergulhar
no exato
do mundo

deixar
para trás
a indiferença

na superfície
flutuante
do ser

sábado, 7 de junho de 2014

Da série "O que não é?"

38ª questão:
O QUE NÃO É CURA?

COINCIDENTE

o passado
aqui
e agora

o futuro
já – não muito –
adiante

tudo junto e misturado
– com-temporâneo –
num embrulho
só;

pacote inconsistente
dado de presente

sexta-feira, 6 de junho de 2014

"A resistência não se dá de forma frontal, unilateral, nem age na negatividade ou na reação tardia. A resistência é um modo de ser. É uma forma/força de estar imerso no movimento, é perceber-se como acontecimento corporal ativo, é a única possibilidade de tornar-se ação criativa de arte. A resistência é a dobra do ser. E essa dobra é a insistência na diferença, no outro, na produção de singularidades múltiplas."

Ericson Pires
As produções de artes atuais
(em Ensaios Fundamentais: Artes Plásticas – editora Beco do Azougue)

terça-feira, 3 de junho de 2014

LEMBRANÇAS DE MEUS AMORES (1)

Lembro como se fosse hoje daquela menina magrela do colégio. Tinha se tornado um mulherão, enquanto eu continuava com jeito de adolescente. Dei a ela uma carona, estiquei a viagem querendo saber mais. Fazia o quê?, quatro ou cinco anos que a gente não se via? Talvez nem tanto, não lembro bem. Acho que permaneci no mesmo colégio, e ela foi cursar um técnico. Disse que namorava, trabalhava, essas coisas que só fui descobrir mais tarde. Eu ia pra faculdade e dirigia o carro de minha mão no outro meio período, para cima e para baixo, e só.

Foi assim também nosso papo, cheio de altos e baixos. Estranho. Ela com receio da carona – estava na cara que eu a desviava do caminho; eu curioso, cheio de expectativa – ela ficava muito bem naquele uniforme.

Disse que estava resolvida. O namorado era do interior, filho de gente bem de vida, eu soube depois. Queria transferir para lá seu emprego de professora da prefeitura, pré-escola. Dava aula para criancinhas, adorava. Imaginei a cena repetidas vezes, sem acreditar na veracidade dela. Seu sonho era casar, fazer uns filhos e viver com a família longe da loucura da capital.

Achei um absurdo, mas não disse nada. Como uma garota de vinte anos sonha assim? Eu queria enrolar a faculdade, sem pressa, mochilar seis meses pela Europa, ficar rico e fazer qualquer coisa legal durante o resto da vida, quando desse vontade, caso desse vontade. Ela queria filhos e uma casinha no interior. Só isso. E tinha certeza.

Uns tempos depois, descobri que o tal namorado era gente muito rica. Mais velho, talvez uns dez anos, filho de fazendeiro, devia ser algo assim. Não vi filhos nem casinha, vi fotos do Mediterrâneo. Estados Unidos também. Caribe, acho. Ela postou no Facebook. Eu virava noites num estágio cujo 'salário' não pagava transporte nem alimentação. Morava com meus pais. Tinha vinte e cinco, vinte e seis anos, se me lembro direito. Ela viajava o mundo às custas do maridão. Tirava fotografia com taça de champanhe. Grécia, Itália, Turquia. Tudo de barco. O cara tinha jeito de cafajeste, desses que têm esquema com polícia. Careca, um porre. Ela continuava linda, mais linda ainda sem o uniforme de tactel. Só que, não sei... perdeu o encanto. Acompanhei as fotos durante uns meses. Depois a deletei dos meus amigos.

(DES)FORMAÇÃO CONTEMPORÂNEA

Masterpiece (1962), de R. Lichtenstein

Roy Lichtenstein acreditava, nos anos 1960, que a arte não deveria transformar nada, no sentido de "mudar o mundo", conforme o ideal modernista que sucumbiu nas guerras mundiais. Isso não seria "função" da arte, se é que ela pode ter finalidade além de si própria. Para ele, a arte não transformava, apenas formava.

Hoje não cabe afirmar o mesmo. Essa espécie de vontade construtiva se esgotou. Nem transformação nem formação; o interessante, no contemporâneo, é a desformação. O desvio. O dissenso. A errância. A transversalidade. A transgressão. A profanação. A possibilidade de experimentar, por meio da obra – seja ela do tipo que for –, a experiência em si. O ato. O gesto. Experimentar a vida, a proximidade da vida com a arte que por vezes as torna indiscerníveis.

Desconstruir conceitos, desfazer estruturas tradicionais, esfacelar verdades absolutas. Revelar possibilidades. Inventar atitudes pertinentes às demandas de agora. Estabelecer diálogos. Colocar novas formas em operação. Sem razão ou brutalidade, sem informação ou conformismo.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

SP PRETO E BRANCO

Fotografia de Carlos Moreira, publicada pelas Edições Sesc em livro que leva o nome do autor
e reproduzida na revista do Sesc de maio de 2014

terça-feira, 20 de maio de 2014

ROMANCE SINCERO

Se eu escrevesse um romance sincero, começaria com uma frase lida em Formas de voltar para casa, de Alejandro Zambra (p. 60): "Este romance devia ser escrito por outra pessoa. Eu gostaria de lê-lo".

Com isso, isentaria a mim próprio – ou ao menos mostraria intenção de me isentar – de tudo aquilo que o autor dissesse. Não quero participar das ocorrências, não quero ser cúmplice de meus algozes.

É sobre isso que gostaria de escrever, sobre um romance que não deveria ser escrito – ou melhor, sobre um romance que não deveria ter sido escrito por mim.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

ANTES DE ATIRAR UMA OPINIÃO CONVÉM SABER:

Rero [trabalho exposto na Caixa Cultural de SP]

Quem é? De onde veio? O que faz? Como faz? O que deseja? Como gostaria que fosse? Para onde vai? Como se sente? Do que precisa? Do que gosta? O que tem? Como obteve? O que falta? Como se chama? Como é chamado? Como se vê? Como os outros o veem? Como pensa que é visto? Como compartilha? Por que é assim? Como se define sua situação? Quais preconceitos estão implícitos nisso? Essa definição serve para alguma coisa? O que está em volta? Onde vive? Que território habita? Que coisas possui? Que coisas o possuem? Qual é o sentimento? Quem está junto? Quem se afasta? Quem não veio? Quem já se foi? De quem sente saudade? Como pode? O que pode e o que não pode? Por que não pode? O que pode mas não consegue? O que não pode mas se dá um jeitinho? Quem é [você] que olha? Por qual ponto de vista / perspectiva? Qual é a relação que se estabelece? Que ideias já vieram formadas antes do encontro? Quais delas permaneceram? Quais ideias se desfizeram? Quais processos estão em operação? O que está dado? O que está implícito? O que foi soterrado? Que corpo é esse? Que gesto produz? Como se expressa? Escreve, pinta, canta, dança? Como se coloca no mundo? Em que situação se impõe? Que situação é imposta a ele? Quando é ignorado? Qual é a sua cor? Qual é o seu cheiro? Como é tocá-lo, qual é a sensação? Como se sente quando tocado? Que vontade surge quando está por perto? Do que lhe faz lembrar? O que sente quando se distancia? Onde está sua força? Onde está o seu olhar? O que pensa do mundo? Como administra a vida? Em que lugar dorme? Em que lugar acorda? Com quem? O que comeu ontem? O que bebeu? De que alimentos gosta mais? Tem mãe, pai, filhos, irmãos, animais de estimação, família de qualquer gênero, raça, cor, imaginação? Qual é o seu bicho favorito? Com o que sonha? Quais são os seus medos? Como se imagina daqui a dez anos? Já dirigiu um carro? Já andou de moto? Avião? Navio? Já pescou? Pratica esporte? Torce para algum time? Como foi parar ali? Vive do quê? Trabalha? Qual é o seu talento? Para que coisa não leva o menor jeito? Tem apelido? Conta bancária? Sabe cozinhar? Toma conta de alguém? Alguém cuida dele? Como se sustenta? O que aprendeu? Frequenta ou frequentou escola? Quais assuntos mais interessam? O que gostaria de saber? É bom de matemática? Português? Geografia? Filosofia? Para que lado fica o seu norte? Quais são as suas condições? O que pensa quando vê as estrelas? Qual é a sua cor favorita? Gosta mais de calor ou de frio? Conhece o mar? Sabe nadar? Visitou o zoológico? Sabe andar de bicicleta? Patins? Cavalo? Qual é a sobremesa preferida? E prato salgado? Aliás, prefere salgado ou doce? Sorvete de massa ou picolé? Gosta de ler? Qual foi o livro mais marcante? Vai ao cinema? Drama, comédia, ação ou suspense? Documentário? Com que frequência? Qual é o seu melhor amigo? Como se sente em dias nublados? Quando foi ao médico pela última vez? Dentista? Sente-se bem? Alguma queixa? Conhece os parques da cidade? Os museus? Qual é o seu favorito? Gosta de algum artista em particular? Cantor? Frequenta teatro? Já assistiu a uma peça de Shakespeare? Gosta de música? De que tipo? Qual canção arranca suspiros toda vez que se ouve no rádio? Qual banda ainda quer ver ao vivo? Qual foi a última vez que viu uma? Qual foi a mais legal? Dança sozinho ou em par? Em grupo, talvez? Sabe o que é amor? Ama? É amado? Foi amado? Faz amor? Qual foi a última vez? Que tipo de amor? Gosta de flores? Quais? Gostaria de enviar algum recado, tem algo a manifestar? Tem vontade de quê? Como se veste? Já usou gravata borboleta? Tem religião? Acredita em Deus ou coisa similar? Qual? Como? Por quê? Acredita em vida após a morte? Gostaria de ser cremado ou enterrado? Doará órgãos? Já tomou banho em banheira? E banho de rio? Para onde vai quando quer se esconder, pode dizer? Ou quando vai descansar? Para onde gostaria de ir? Onde costuma passear? Que cidades gostaria de visitar? Qual celebridade gostaria de conhecer pessoalmente? Mesmo? Por quê? O que diria na ocasião? Sabe contar piadas? Qual é a sua lembrança mais feliz? Qual é a mais triste – fique à vontade para não responder, se preferir. Está à espera de quê ou de quem? Já infringiu alguma Lei? Acredita em ética? Já arrancou um dente do siso? Qual é a cor dos olhos? Dos cabelos? São lisos ou crespos? Admira alguém? Algum ídolo? Por quê? Gostaria de ser mais feliz? Já morou fora do país? Em outra cidade? Outro bairro? Gostaria de experimentar? Onde? Está apaixonado? Cadê a poesia? Como o seu sensível se manifesta? Qual é o aspecto político? Por sinal, o que pensa da política? Como participa? Como se sente na sociedade? Pertencente? Quais são os encontros e as conexões? Tem algo a propor? Algo de que reclamar? O que produz? O que se perde? O que resta? O que gostaria de dizer, de livre e espontânea vontade? O que prefere deixar subentendido? O que não pode ser dito?

[para ajudar na construção de um pensamento crítico]

sábado, 17 de maio de 2014

DEVIR = INVOLUIR

Não há passado nem presente nem futuro.
Agora não há ideia de história. Não há História.
Não há hierarquia. Somente historietas, contos, causos.

Devir diz repeito a desfazer.
Escapar dos excessos. Das finalidades. Da objetivação.
Esfacelar as exigências do sistema de produção.
Resistir, transpassar, refratar.

Há potência da suspensão de sentido.
Uma vontade muito grande de acolhê-la.
Acolher essa potência, esvaziar o mundo.
Aceitar e respeitar seus buracos.
As fendas, as lacunas.

Provocar curto-circuitos. Desvios. Errâncias.
Vagar por linhas erráticas, linhas de fuga.
Rastrear o campo. Suspender o tempo.
Silenciar.

*Palavras apropriadas de Peter Pál Pelbart. Que se apropriou das palavras de Fernand Deligny. Que se apropriou das palavras de quem não precisava delas para existir.

quarta-feira, 30 de abril de 2014

O AMOR É UMA CONSTRUÇÃO

Na imaturidade do amor, imaginava situações de perigo, querendo ser herói, querendo que a bravura conquistasse a mulher amada. Como nos filmes de Hollywood ou nos romances de cavalaria. Todo homem já quis ser herói. Todo homem sonhou que, num ato de bravura, conquistaria a frágil dama em perigo, sua princesinha trancafiada na torre. E algo me diz que toda mulher também já quis ser princesa. Coisa de criança que às vezes persiste a vida inteira. [Fantasia?] Como se a mulher viesse até nós por conta de um mal que a aflige. Como se precisasse de nós. No fundo é um pensamento machista. Mas na superfície é só ingenuidade mesmo. O heroísmo do dia a dia é muito diferente. Ele existe de maneira tão sutil que nem sempre se faz notar.

Quando conheci você não havia King Kong, prédio em chamas, floresta sem fim. Nenhum risco iminente a meu favor. A fantasia se assumiu como realidade e me enganou. Fiquei inerte, sem saber como agir. Não tinha sido instruído a lidar com os desafios do cotidiano. As fábulas não eram tão literalmente banais. Nós trabalhávamos juntos. E só.

Se o desafio não era salvá-la da torre, qual seria? Como eu poderia ser herói? Precisava descobrir as suas fantasias. Torná-las realidade. Pois todos se permitem ficcionar, ainda que nem sempre se deem conta.

Suas fantasias diziam respeito a conquistar independência, sucesso profissional, constituir família. Você não queria – não precisava – de um príncipe encantado, mas de um companheiro de carne e osso. Talvez nem soubesse que era assim. Fez a bravura ganhar outro significado. A coragem se mostrar nas questões mais simples. Era um desafio maior do que eu imaginava. Topei porque acreditava no desconhecido, naquilo ainda por se fazer. Você também topou. Nós.

* * *

Em nossa relação, nunca vi motivo para deixar de ser o que sou. O que fui. Seria fácil chegar aqui e dizer que mudei, aprendi, tomei outro rumo depois que lhe conheci. Aconteceu, admito. Foi bom. Mas eu mudei sem que existisse tal cobrança. No geral, não existiu. De nenhum dos lados.

O que sempre me fez apostar nessa relação é que um respeita o outro e o outro respeita o um do jeito que somos. Já lhe disse uma porção de vezes. Quase nos confundimos sem desperdiçarmos nossa individualidade. Discordamos quase sempre de quase tudo. Somos nem iguais nem diferentes.

Poder discordar e ainda assim sustentar a relação é muito bonito. E muito difícil. Só dá certo porque não queremos que o outro mude pelo um – ou às vezes até queremos, humanos que somos, porém não exigimos. A vontade de um não pode ser condição.

Nas entrelinhas desse acordo silencioso, as coisas foram se transformando a seu bel-prazer. Acontecendo. A relação foi se reformulando. Porque o amor não é uma solidez, uma entidade inerte, superior a todas as outras. Isso é fantasia. Enquanto o amor é uma construção. Não está pronto nunca; ele se faz no dia a dia. Não pertence a nós; ele depende de nós. Existe por nossa causa, por tudo o que fazemos; através de nós, dentro e fora, numa troca incessante.

Mudei muito nesses últimos anos. Não porque você exigiu, mas por sua causa, em sua causa, para fazer você feliz. Para me adaptar àquilo que inventávamos, num improviso só. Por vontade nossa. Misturei-me às suas fantasias, fiz de algumas delas minhas também. Seus planos começaram a me constituir. E as minhas ficções tinham você no elenco. O espetáculo já não poderia se realizar sem a sua companhia.

Juntos aprendemos que o amor não precede. Primeiro vem um desejo, uma disposição. Depois vem a dedicação, o esforço, a mão na massa. E assim o amor cresce todo dia. A gente mistura, sova, espera crescer, sova de novo, põe no forno, sente o prazer de fazê-lo, o aroma, o sabor. Usufruímos do amor.

Não tem nada a ver com cavalo branco, predestinação, metade da laranja, vestido de noiva. Isso tudo é ingenuidade. Faz parte de uma fantasia instituída distante do afeto, do sentimento e da vontade de construção. A bravura do amor está no dia a dia, no esforço para estar junto, tomar café da manhã; está nos emoticons de celular, na preocupação, nas compras de supermercado, nas surpresas, nas conversas sérias e nas levianas, nos desabafos, risos e saudades. No silêncio confortável. Em sustentar tensões e tesões. Está no abraço acolhedor, no beijo de boa noite, na presença. Concessões e consentimentos. Habitar e ser habitado. Movimentação entrosada. Nessas pequenas coisas que vamos construindo cotidianamente. Porque a gente quer. Porque optamos por fazer assim. Porque você me ama e eu sei. Porque eu amo você.

* * *

Eduardo A. A. Almeida e Juliana L. Andrucioli se casaram no último 26 de abril. Este texto é dedicado a todos os casais que tomaram a mesma decisão. Simplesmente porque acreditam que vale a pena.

sábado, 26 de abril de 2014

Da série "O que não é?"

37ª questão:
O QUE NÃO É ENVOLVIMENTO?

sexta-feira, 25 de abril de 2014

quarta-feira, 23 de abril de 2014

HIPOCRISIA MIDIÁTICA

O sujeito atira para matar, as câmeras mostram tudo ao vivo, e os jornais, revistas, rádios etc. o chamam de 'suspeito'. Criminoso não, bandido não, é suspeito. Ao mesmo tempo em que alguém vai para uma manifestação qualquer, quebra uma coisa qualquer e, mesmo sem saber de quem se trata e de por que quebrou, a mídia o chama de vândalo. Acho esse comportamento muito suspeito.

domingo, 20 de abril de 2014

sábado, 19 de abril de 2014

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Da série "O que não é?"

 33ª questão:
O QUE NÃO É APRENDIZADO?

quinta-feira, 17 de abril de 2014

quarta-feira, 16 de abril de 2014

TUDO QUE PENSO

tenho vontade de escrever
tudo que penso
e essa impossibilidade
angustia

por quê?
a fim de quê?

é uma vontade boba
pois tudo que penso
está cá registrado
nalgum lugar
todinho meu

lugar aberto
a quem quiser
visitar,
revisitar

na porta, a poética
dos livros de ouro
recebe os chegados,
marca a passagem

onde público e privado
se misturam
em gentilezas
literalmente
faladas,
pensadas,
compartilhadas

ainda assim escrevo
minhas vontades
a fim de quê
não sei

não saber
é bom também
escrever, impreciso
Da série "O que não é?"

31ª questão:
O QUE NÃO É CRÍTICA?

terça-feira, 15 de abril de 2014

segunda-feira, 14 de abril de 2014

domingo, 13 de abril de 2014

sábado, 12 de abril de 2014

Da série "O que não é?"

27ª questão:
O QUE NÃO É CORRUPÇÃO?

sexta-feira, 11 de abril de 2014

quarta-feira, 9 de abril de 2014

A constante possibilidade de violência já é uma violência em si.

domingo, 6 de abril de 2014

sábado, 5 de abril de 2014

sexta-feira, 4 de abril de 2014

quinta-feira, 3 de abril de 2014

quarta-feira, 2 de abril de 2014

terça-feira, 1 de abril de 2014


"Todos os hospitais psiquiátricos eram semelhantes, prédios vitorianos de aparência discreta, nos quais o instrumento terapêutico era indistinguível do equipamento de punição. Uma prisão, um hospício, um quartel – cada uma dessas instituições podia converter-se rapidamente em outra. Um programa de tratamento era um programa de correção. Qualquer um daqueles prédios era um hospício em potencial."

Geoff Dyer, Todo Aquele Jazz (referindo-se à esquizofrenia de Bud Powell)
Da série "O que não é"

20ª questão:
O QUE NÃO É IRONIA?

"Queriam que eu fizesse esculturas aqui. E, vendo que não conseguiam, me impuseram todo tipo de aborrecimento. Nestes momentos de festas, penso sempre em nossa querida mamãe. Eu não a revi desde aquele dia quando vocês tomaram a funesta resolução de me enviar a um asilo de alienados."

Carta de Camille Claudel ao irmão Paul (dezembro de 1939)

segunda-feira, 31 de março de 2014

ETC.


Vira e mexe ouvimos falar de mundo plural, sociedade conectada, diminuição de distâncias, reformulação do tempo e das relações interpessoais. As gerações recentes estão mais interessadas numa oportunidade de futuro imediato, tecnológico em especial, do que em sustentar tradições. São ávidas pelo novo. Nem certa nem errada, essa característica tem pontos positivos e negativos, e aos poucos uma espécie de equilíbrio oscilante se põe em operação. O desafio consiste em fluir/fruir com eles sem efetuar uma "divisão policial do sensível" (Jacques Rancière).

Um daqueles pontos, que acredito ser positivo, é a desformação do "especialismo", levado a extremos tão afunilados que resultou em pessoas aptas a exercer uma tarefa específica, excludente e limitada. Em outras palavras, forma-se profissionais embrutecidos por uma lógica de dominação do assunto, desejando se tornarem singulares. Com efeitos colaterais: o médico especialista em ortopedia que não reconhece um problema de pele; o técnico especialista que se torna desnecessário quando um software passa a executar seu trabalho, abandonando-o sem possibilidade de adaptação. Um foco tão acurado, tão aproximado, que impede a visão do redor – quem dirá do universo!


No contemporâneo, essa lógica se esfacela. E para pensar a respeito gosto de me apoiar no que Ricardo Basbaum chama de "artista-etc." A proposta pode ser ampliada a toda atividade profissional, campo do saber ou prática cotidiana; não deve ficar restrita à arte. As "pessoas-etc." são aquelas que não se moldam facilmente em categorias, e por isso não devem ser rotuladas, com risco de diminuí-las, de não fazer jus às suas qualidades. É da multiplicidade – e na multiplicidade – que sobrevivem, conectam-se, produzem. Em vez de fadadas a uma especialidade, elas estão abertas a experiências diversas, que atravessam territórios nem sempre bem relacionados. Irrompem não-lugares, expressam-se a partir da fronteira, das tensões e das ambiguidades da interface.

Um exemplo prático ajuda a esclarecer a ideia: neste semestre, trabalhamos o "etc." com uma turma de graduação em Terapia Ocupacional da USP. Além de aprender o que o terapeuta sabe e fazer o que o terapeuta faz, propomos que eles se permitam agregar outras funções, não necessariamente úteis. Que se expandam na direção da vida comum em vez de entalarem num gargalo da carreira.

Que se façam terapeutas-enfermeiros, terapeutas-artesãos, terapeutas-esportistas, terapeutas-amigos, terapeutas-gestores, terapeutas-cozinheiros, terapeutas-etc. Tudo ao mesmo tempo, tudo misturado. Por quê? Para lidarem com situações da prática terapêutica com desenvoltura, criatividade e atitude transformadora. Para que o conhecimento não fique restrito àquele da própria área, sustentando a mesma lógica, resistindo às demandas inéditas sem qualquer argumento senão o do tradicionalismo per si. E também para que se permitam experimentar, simplesmente, sem a sombra do sentido, da explicação racional, da justificativa exigida, da neurose de ter, na ponta da língua, o "para quê serve", o "para quê sirvo".

Terapeuta-inventor, engenheiro-filósofo, fotógrafo-arquiteto, advogado-músico, químico-místico, jornalista-cavaleiro, matemático-escritor, médico-mecânico, publicitário-cineasta. E assim por diante. Esses profissionais ampliam suas redes, adaptam-se com maior facilidade às situações impostas, desmancham fronteiras, deparam-se frequentemente com o novo, provocam, surpreendem, reinventam modos de ser, de agir e de pensar.


Como formar esse tipo de pessoa? É uma questão importante. Porque elas não se formam – no sentido iluminista de "dar forma", que adota como fundamento a perfectibilidade do espírito, a unidade do gênero humano, a universalidade dos valores e o aprimoramento infinito do homem e do mundo (Celso Favaretto), numa espécie de escala/escola evolutiva. Não se pressupõe uma forma final, um acabamento, como se a educação pudesse ter uma finalidade esclarecida e pré-determinada.

Não se ensina ninguém a ser "etc.", muito menos se especifica que múltiplo o constituirá. O desafio está, justamente, em não impor um sistema, mas desformá-lo, desenformá-lo, destituí-lo. Ao invés de ensinar o pré-formulado – a doutrina –, a proposta é oferecer condições para que cada pessoa encontre sua aptidão, desenvolva suas conexões, alargue seus limites na direção que achar conveniente, sem receio de errar. Trata-se de provocar a construção de um pensamento crítico. "Um modo de problematização que não procede por efeitos de ultrapassamento, de superação e nem de progresso, mas antes, de reativação da atitude crítica do permanente da atualidade" (Favaretto).

Fazemos isso multiplicando linguagens. Porque o terapeuta sabe que a razão não dá conta do humano. Existem muitas camadas embaixo dela que operam num regime de sensibilidade. Pois é incentivando esse sensível, apreendendo linguagens e criticando o redor que se pode desenvolver uma atitude condizente com o contemporâneo.

Tal desenvolvimento exige dedicação, acolhida e nutrição – precisa ser cuidado com carinho para que seu potencial esteja livre. Um tipo de curadoria – no lugar da disciplina, que é um termo importuno, principalmente quando associado à educação. É preferível o descaminho, a destituição, o desfazimento. O dissenso no lugar do ensino moralista, pautado na transmissão de valores.

Aquilo que está soterrado pela lógica embrutecedora aos poucos emerge na busca por emancipação (Rancière). E é como lugar de agenciamento que a arte pode contribuir.

Não sei dizer até que ponto os especialistas continuarão operando. Posso afirmar apenas que, no contemporâneo, é para os "etc." que devemos olhar. Tudo o que de mais interessante está por vir tende a brotar dali.

*Diagramas de Ricardo Basbaum ilustram este texto.
Da série "O que não é"

19ª questão:
O QUE NÃO É VIOLÊNCIA?

domingo, 30 de março de 2014

sábado, 29 de março de 2014

sexta-feira, 28 de março de 2014

quinta-feira, 27 de março de 2014

Da série "O que não é"

15ª questão:
O QUE NÃO É CORRETO?

OS SISTEMAS IDEOLÓGICOS SÃO FICÇÕES

“Os sistemas ideológicos são ficções (fantasmas de teatro, diria Bacon), romances – mas romances clássicos, bem providos de intrigas, crises, personagens boas e más (o romanesco é coisa totalmente diversa: um simples corte instruturado, uma disseminação de formas: o maya). Cada ficção é sustentada por um falar social, um socioleto, ao qual ela se identifica: a ficção é esse grau de consistente que uma linguagem atinge quando pegou excepcionalmente e encontra uma classe sacerdotal (padres, intelectuais, artistas) para a falar comumente e a difundir.

‘[...] Cada povo tem acima de si um tal céu de conceitos matematicamente repartidos, e, sob a exigência da verdade, entende doravante que todo deus conceitual não seja buscado em outra parte a não ser em sua esfera’ (Nietzsche): estamos todos presos na verdade das linguagens, quer dizer, em sua regionalidade, arrastados pela formidável rivalidade que regula sua vizinhança. Pois cada falar (cada ficção) combate pela hegemonia; se tem por si o poder, estende-se por toda a parte no corrente e no quotidiano da vida social, torna-se doxa, natureza: é o falar pretensamente apolítico dos homens políticos, dos agentes do Estado, é o da imprensa, do rádio, da televisão; é o da conversação; mas mesmo fora do poder, contra ele, a rivalidade renasce, os falares se fracionam, lutam entre si. Uma impiedosa tópica, regula a vida da linguagem; a linguagem vem sempre de algum lugar, é topos guerreiro.”

Roland Barthes
O prazer do texto

quarta-feira, 26 de março de 2014

segunda-feira, 24 de março de 2014

domingo, 23 de março de 2014

sábado, 22 de março de 2014

Da série "O que não é"

11ª questão:
O QUE NÃO É COMPARTILHAR?

sexta-feira, 21 de março de 2014

quinta-feira, 20 de março de 2014

quarta-feira, 19 de março de 2014

terça-feira, 18 de março de 2014

quinta-feira, 13 de março de 2014

quarta-feira, 12 de março de 2014

"Se até mesmo de um artista se cobram 'mensagens' e 'posicionamentos', quanto mais de um professor! (E o que parece não passar pela cabeça dos que cobram 'posicionamentos' é o quanto essa cobrança tem de imobilizante, de ordenadora, de controladora – portanto, de antiprogressista.)

(…) O discurso de Barthes, não sendo uma fala magistral mas uma escritura, nunca é uma ameaça de opressão, mas um convite ao jogo."

Leyla Perrone-Moisés
(a respeito da Aula, de Roland Barthes)
Da série "O que não é"

4ª questão:
O QUE NÃO É MANIFESTAÇÃO?

terça-feira, 11 de março de 2014

segunda-feira, 10 de março de 2014

MUSEUS: TRADIÇÃO / REINVENÇÃO

Clique na imagem para ampliá-la

Adorei este comparativo entre 'tradição' e 'reinvenção' dos museus. É assunto para muito debate.

Dá para ver a imagem original, entre outras matérias, aqui: Revista Select [ano 4, ed. 16, fev./mar. 2014]
Da série "O que não é"

2ª questão:
O QUE NÃO É AMOR?

quinta-feira, 6 de março de 2014

O QUE NÃO É?

Penso em começar uma série de questões. Batizada "O que não é?" Porque é costume definir as coisas, botar cada uma em sua gaveta, no tal "devido lugar". Arte é isso, amor é aquilo, política é assim, pessoas são assado. Será possível pensar pelo inverso? Será que ele leva às mesmas conclusões?

1ª questão: O QUE NÃO É PRECONCEITO?

quarta-feira, 5 de março de 2014

A MINHAS OBRIGAÇÕES

Este trecho seria perfeito para a manhã de hoje, quarta-feira de cinzas. Só que eu estava trabalhando e não podia lê-lo, o que é uma pena. Também uma doce ironia.

A todos tenho que dar algo 
a cada semana e cada dia, 
um presente de cor azul, 
uma pétala fria do bosque, 
e então de manhã estou vivo 
enquanto os outros mergulham 
na preguiça, no amor, 
eu estou limpando minha redoma, 
meu coração, minhas ferramentas.

Pablo Neruda, Navegações e Regressos

BOLO DE ROLO

Na última vez que comprei bolo numa dessas casas especializadas, era sexta-feira e o lugar estava movimentado. Enquanto aguardava na fila, ouvi a atendente explicar para um homem que não havia mais bolos em estoque, apenas encomendas.

"Quanto você quer por um desses bolos encomendados? Eu pago", disse o cidadão. A atendente demorou um tempo para entender a proposta e, quando caiu em si, explicou que os bolos não estavam à venda, e ficaria feliz por fazer uma encomenda para ele na próxima vez. O homem bufou e saiu da loja batendo o pé feito criança contrariada.

Não me surpreenderia se esse cliente fosse o primeiro a querer ver os mensaleiros presos pelo resto da vida.

Isso não significa que desejo a liberdade para aqueles criminosos. Alguém duvida que o STF fez uma manobra política lastimável para livrar a cara deles? Desejo, sim, que todos os corruptos e corruptores sejam devidamente condenados pela falta de ética de seus atos. Inclusive aqueles que os praticam em lojas de bolo.

domingo, 2 de março de 2014

GENTE DE BEM

Casa de Brodowski (1943), de Candido Portinari

A vizinha tinha certeza de que havia uma família naquela casa, porém não sabia o que ruíra primeiro. Que tenha sido a família!, disse com certa compaixão. Mas logo deu de ombros, preocupou-se com a panela no fogo e encostou a porta. Ouvi dois trincos serem acionados e averiguados para evitar novo incômodo.

Outro vizinho mencionou parentes no exterior. Eles poderiam me ajudar. Exterior onde? Não sabia. Deve ser Estados Unidos, muita gente quer ir pra lá. Quem pode vai. Ainda mais nesses tempos de agora, essa confusão toda acontecendo. Perguntei da família que morava ali. Ele não tinha muita informação, e a maior parte era inventada. Diziam que havia brigas, parece que o casal não se entendia direito, descontavam tudo nos moleques, coitados. Parece que o marido não era muito chegado no batente, veja só o estado que a casa ficou, um desleixo só, nem se aguentou de pé! Parece que a mulher era da vida, andou de graça com um sujeito do bar ali debaixo, foi o que disseram. Ficou desmoralizada. Parece também que os moleques nunca iam pra escola, ficavam à toa por aí. Esse negócio de ficar à toa não dá certo não. Não é coisa de gente de bem. Onde já se viu?

Um jornal da época estampava, na primeira página, a casa no chão, do mesmo jeito que estava hoje, como se tivessem acabado de fotografar. Tragédia: casa desaba e moradores permanecem soterrados. O texto dizia que até o fechamento da edição as buscas permaneciam sem sucesso, e que os bombeiros trabalhavam duro com auxílio de cães sem jamais abandonarem a esperança. Dava para ver também um monte de curiosos ao redor dos escombros.

Nos dias seguintes veio uma atriz de novela gravar publicidade no coreto da central, aquilo mexeu demais com a cidade, todos ficaram alvoroçados. Depois começou o Carnaval e não encontrei qualquer outra notícia sobre o ocorrido.

Segundo o registro na delegacia, a casa desabou sem ninguém dentro. Não havia detalhes. Cidade pequena, sem peritos para investigar, ficou por isso mesmo. Ninguém tampouco apareceu para reivindicar seus direitos, coisa que não surpreendia; muita gente larga a vida aqui pra se arranjar na capital. O policial começou a desconfiar do meu interesse no assunto e preferi recuar antes que encontrasse suspeito de um crime que sequer existiu.

A dona do mercadinho chamou o casal de excêntrico. Vinham pouco, compravam rapidinho, não puxavam assunto. Pagavam direitinho, nunca pediram fiado. Deviam ter muito dinheiro. Achava que tinham vindo para tratar alguma doença, essas coisas de cidade grande, sabe? Pra repousar. Tinham ficado maluquinhos com a correria, a violência, o trânsito. Ela via TV, sabia como era. Uma loucura, não tem como aguentar muito tempo. A moça era bonita. Não sorria muito, tadinha. Mas era bonita mesmo assim. Perguntei da casa. Não sabia, nunca tinha ido lá ver. Diziam ser uma casa muito engraçada, não tinha nada. Talvez meu marido possa ajudar, ele deu um pulinho ali e já volta. Se você quiser esperar, à vontade.

Na última vez que voltei à rua, um velho lavava a calçada com sua mangueira molenga. Logo se pôs a papear. Eram boa gente, sabe? Nunca incomodaram, nunca fizeram escândalo, ficavam vivendo a vida deles. Gente discreta, só isso. Gente de bem. Dizem que tinham uns probleminhas aí, mas isso todo mundo tem, certo? Se cada um cuidasse do próprio umbigo, a vida seria mais fácil.

Perguntei se o casal trabalhava, o que faziam na cidade, como era a rotina. Sei não. Nunca falei com eles. Ficavam aí, saíam pouco, acho que trabalhavam em casa mesmo. Tinham dois filhos, dois meninos. Eles brincavam no quintal. Acho que tinham problema de dinheiro, talvez dívida no banco. Ouvi mais de uma vez os dois discutirem, gritaram alto, essas coisas de marido e mulher. Só que com essa distância não dava pra saber do que falavam, e eu também não ia me intrometer. Acho que era dívida porque a casa foi deteriorando e eles não davam jeito. Teve um vendaval aí que arrancou as telhas e eles deixaram assim mesmo, tudo esburacado. Teve o muro que cedeu ali do lado, tá vendo?, e ficou caído lá. O mato cresceu, os meninos deixaram de bagunça. Pelo menos eu não vi mais. A pintura mofou, o portão todo enferrujado. Lâmpada que não acendia mais, parede trincada por todo canto. Até que aquela noite fez um barulho danado e, quando eu cheguei aqui, a casa tava no chão. Vieram os bombeiros, teve gente que chorou, tinha carro de imprensa, foi uma coisa de doido. Uma balbúrdia. Todo mundo muito triste. Pensar que gente tão boa podia morrer desse jeito?

Sim, é verdade, não encontraram nada. Eu disse pra eles, na ocasião, que não tinha mais ninguém morando ali. Ninguém tinha certeza, mas só podia ser. Fazia tempo que não via nem ouvia ninguém. Acho que se mudaram. É difícil fazer mudança sem ninguém ver, né? Mas acho que fizeram sim. Sei lá. Tem gente que diz que a família morreu junto com a casa, que morreu antes, que morreu depois. Tem gente que fala em milagre, outros falam em assombração. Eu não acredito nessas bobagens não. O povo fica inventando coisa. Se as autoridades disseram que tá tudo certo assim é porque tá tudo certo mesmo, isso é fato. Quem sou eu pra duvidar?


Ps.: Não tem nada a ver com o texto, mesmo assim aproveite e visite o site do Projeto Portinari [de onde tirei a imagem acima], que é excelente: www.portinari.org.br

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

“A ‘inocência’ moderna fala do poder como se ele fosse um: de um lado, aqueles que o têm, de outro, os que não o têm; acreditamos que o poder fosse um objeto exemplarmente político; acreditamos agora que é também um objeto ideológico (...). E, no entanto, se o poder fosse plural (...)? Adivinhamos então que o poder está presente nos mais finos mecanismos do intercâmbio social: não somente nos Estados, nas classes, nos grupos, mas ainda nas modas, nas opiniões correntes, nos espetáculos, nos jogos, nos esportes, nas informações, nas relações familiares e privadas, e até mesmo nos impulsos libertadores que tentam contestá-lo: chamo discurso de poder todo discurso que engendra o erro e, por conseguinte, a culpabilidade daquele que o recebe.”

AULA
Roland Barthes

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

FEITO

cidadão de bem

muito lugar
comum

muitos lugares
como
se muitos
fossem
bons

como se
muito fosse
bem

muito bem, muito bem

tapinha nas costas
tapa na oreia

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

A IMAGEM INTOLERÁVEL


"É preciso pôr em causa a opinião corrente segundo a qual esse sistema nos submerge numa vaga de imagens em geral - e imagens de horror em particular -, tornando-nos assim insensíveis à realidade banalizada desses horrores. Essa opinião é amplamente aceita porque confirma a tese tradicional de que o mal das imagens está em seu número, na profusão que invade sem possibilidade de defesa o olhar fascinado e o cérebro amolecido da multidão de consumidores democráticos de mercadorias e imagens. Essa visão pretende ser crítica, mas está perfeitamente de acordo com o funcionamento do sistema. Pois os meios de comunicação dominantes não nos afogam de modo algum sob a torrente de imagens que dão testemunho de massacres, fugas em massa e outros horrores que constituem o presente de nosso planeta. Bem ao contrário, eles reduzem o seu número, tomam bastante cuidado para selecioná-las e ordená-las. Eliminam tudo o que possa exceder a simples ilustração redundante de sua significação. O que vemos, sobretudo nas telas de informação de televisão, é o rosto de governantes, especialistas e jornalistas a comentarem as imagens, a dizerem o que elas mostram e o o que devemos pensar a respeito. Se o horror está banalizado, não é porque vemos imagens demais. Não vemos corpos demais a sofrerem na tela. Mas vemos corpos demais sem nome, corpos demais incapazes de nos devolver o olhar que lhes dirigimos, corpos que são objeto de palavra sem terem a palavra. O sistema de Informação não funciona pelo excesso de imagens, funciona selecionando seres que falam e raciocinam, que são capazes de 'descriptar' a vaga de informações referentes às multidões anônimas. A política dessas imagens consiste em nos ensinar que não é qualquer um que é capaz de ver e falar. E essa lição é confirmada de maneira prosaica pelos que pretendem criticar a inundação das imagens pela televisão."

Jacques Rancière
O ESPECTADOR EMANCIPADO
[A imagem intolerável]


EQUAÇÃO DOS AFETOS

o que se mede
não tem fim
que se define
assim

mate-
mática

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

POT-POURRI (À MODA DA CASA)

Pot Pourri (1897), Herbert James Draper

cenas cruéis
com requintes
de humanidade

cenas vulgares
com pitadas
de piedade

cenas finais
com leves toques
de eternidade

cenas irônicas
recheadas
de ambiguidade

cenas profanas
à moda
da artificialidade

cenas picantes
apinhadas
de religiosidade

cenas poéticas
apuradas
na ociosidade

cenas imperdíveis!
bem passadas,
da pior qualidade

cenas banais
com fervor
de realidade

cenas póstumas
em repouso
por arbitrariedade

cenas improváveis
seguidas à risca
e leviandade

cenas rocambolescas
pré-aquecidas
por cretinidade

cenas imprestáveis
defumadas
com naturalidade

cenas inspiradoras
congeladas
com especificidade

cenas impossíveis
salpicadas
de passividade

cenas grandiosas
ensopadas
de moralidade

homem
manjar dos deuses

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

DISSENSO

"Longe de buscar um consenso cretinizante e infantilizante, a questão será, no futuro, a de cultivar o dissenso e a produção singular de existência."

Félix Gattari, em AS TRÊS ECOLOGIAS


"Dissenso quer dizer uma organização do sensível na qual não há realidade oculta sob as aparências, nem regime único de apresentação e interpretação do dado que imponha a todos a sua evidência. É que toda situação é passível de ser fendida no interior, reconfigurada sob outro regime de percepção e significação. Reconfigurar a paisagem do perceptível e do pensável é modificar o território do possível e a distribuição das capacidades e incapacidades. O dissenso põe em jogo, ao mesmo tempo, a evidência do que é percebido, pensável e factível e a divisão daqueles que são capazes de perceber, pensar e modificar as coordenadas do mundo comum. É nisso que consiste o processo de subjetivação política: na ação de capacidades não contatadas que vêm fender a unidade do dado e a evidência do visível para desenhar uma nova topografia do possível. A inteligência coletiva da emancipação não é a compreensão de um processo global de sujeição. É a coletivização das capacidades investidas nessas cenas de dissenso. É a aplicação da capacidade de qualquer um, da qualidade dos homens sem qualidade."

Jacques Rancière, em O ESPECTADOR EMANCIPADO

domingo, 2 de fevereiro de 2014

TODOS POR UM

Você sai às ruas para exigir um país mais digno. Vem um policial militar e passa por cima de toda dignidade. Refiro-me ao caso brutal do soldado da ROCAM que, após espancar uma garota completamente desarmada de más intenções, subiu com sua moto na calçada e passou por cima da vítima, colocando abaixo qualquer protocolo, bom senso ou moralidade. Em entrevista posterior, ela confessou que nem se lembrava do atropelamento, tão atordoada que estava pelos socos e pontapés. Uma estudante do ensino médio que saiu às ruas para pedir dignidade. Pois bem. Esse PM volta para sua casa, na periferia, com a farda na mochila para não chamar atenção. Ele tem medo. Ele gostaria de viver num país mais digno, em que as pessoas, inclusive policiais, fossem respeitadas. Em que todos estivessem seguros de verdade.


Quando escrevo este texto, alguns dias antes da publicação, as notícias dizem que a Corregedoria da Polícia Militar recolheu outros vídeos além daquele que originou a denúncia, gravado a partir de uma janela alta. O investigador explicou que as câmeras de segurança dos prédios vizinhos mostram a vítima sozinha, indo embora da manifestação, quando é alcançada por uma tropa e espancada covardemente, sem esboçar qualquer reação. Foram oito ou mais policiais fardados e armados contra uma garota de 18 anos. Depois de a atropelarem com a moto, os agressores continuaram a chutá-la no chão, e a abandonaram sem prestar qualquer socorro. As testemunhas que filmaram o crime resgataram a vítima com vida, e por sorte ela agora está se recuperando.

O atropelador é um criminoso, sem dúvida. Ele agiu com cúmplices. O mínimo que se espera é que sejam identificados e punidos conforme a Lei. A PM não precisa desse tipo de gente. A sociedade tampouco.

Existe outra questão aí: eles se aproveitaram da situação suscetível da moça para aplicar as "medidas corretivas" a que gostariam de submeter todos os manifestantes. Do mesmo modo, ao praticaram seu crime, colocaram em xeque a corporação inteira, suas falhas e inaptidões. Um por todos.

"O desafio consiste em não ser polícia", Eduardo Sterzi publicou no Facebook. Claro que ele não se refere à profissão somente, mas às atitudes de todos nós, em geral, que tendemos a reprimir, julgar, querer justiça com as próprias mãos, fazer mau uso do poder, violentar pessoas física e moralmente. O desafio consiste em resistir a isso tudo. Porque fomos, de alguma maneira, doutrinados a acreditar que a ordem deve ser mantida a qualquer custo. A preservar "os bons costumes" (quais mesmo?). A acreditar que o castigo resolve problemas, que a vingança deve ser buscada, que a PM deve atacar ao invés de proteger o povo manifestante. Somos doutrinados a emitir opiniões condenatórias sem conhecer o caso, sem compartilhar dele – porque, na prática, todos são culpados, exceto nós mesmos, não é assim? Nós somos santos, o inferno são os outros.

"Ao invés de acionar incansavelmente procedimentos de censura e de contenção, em nome de grandes princípios morais, melhor conviria promover uma verdadeira ecologia do fantasma, que tivesse como objeto transferências, translações, reconversões de suas matérias de expressão", propõe Félix Guattari. Ao invés de sustentar esse sistema violento e presunçoso, é sempre a hora de revê-lo, reinventá-lo, adequá-lo às novas realidades. A tradição da PM, caso seja o empecilho, deve ser revistada e transformada, provavelmente abandonada, se é de interesse da corporação não cair em desuso. Sua pertinência no contemporâneo depende disso.

O medo da farda não opera mais conforme a princípio. Porque o povo tem medo da farda que deveria protegê-lo, porém oprime. Os soldados têm medo da farda porque denuncia sua profissão, expondo-o ao crime, e também porque é mais forte do que suas próprias convicções, obrigando-o a agir contra a vontade, quando esta existe, em prol de uma corporação falida. Por outro lado, os criminosos, fardados ou não, não têm qualquer medo, ao menos são o suficiente para impedir suas ações.


A polícia precisa morrer. Não no sentido literal, mas no trágico. Conforme escreve Sterzi em Aleijão: "Foram tantos / que me mataram / Não tenho bocas / para agradecer". Morrer como ideal ultrapassado, rever princípios e protocolos, proteger o povo durante as reivindicações, que é uma das mais importantes provas de democracia. Entender que elas buscam um bem maior, do qual todos, policiais inclusive, poderão usufruir.

"A noção de interesse coletivo deveria ser ampliada a empreendimentos que a curto prazo não trazem 'proveito' a ninguém, mas a longo prazo são portadores de enriquecimento processual para o conjunto da humanidade", escreve Guattari.

Por sua vez, os manifestantes não podem agir como fazem as forças opressoras, sustentando o sistema que criticam. A estratégia deve ser outra. Nesse sentido, os rolezinhos foram eficazes: usaram do banal, da facilidade de mobilização e da legalidade para denunciar preconceitos, truculências e falta de estrutura em diversos níveis. Expuseram questões graves, antes reprimidas, e nos puseram a pensar nelas. Expuseram a insuficiência das instituições e a incapacidade dos gestores.

Concordo com Jacques Rancière, para quem "política não é, em primeiro lugar, exercício do poder ou luta pelo poder. (...) É a atividade que reconfigura os âmbitos sensíveis nos quais se definem objetos comuns. Ela rompe a evidência sensível da ordem 'natural' que destina os indivíduos e os grupos ao comando ou à obediência, à vida pública ou à vida privada, votando-se sobretudo a certo tipo de espaço ou tempo, a certa maneira de ser, ver e dizer. (...) A política é a prática que rompe a ordem da polícia".

Gostaríamos de contar com o apoio da PM, não com o ódio. Nós, povo brasileiro, policiais inclusive, temos coisas mais urgentes para odiar e melhorar.


Obs.: Vale a pena ouvir a entrevista com o pai da menina atropelada à rádio Band News. Fica mais fácil entender o que aconteceu e o que está acontecendo: entrevista com Boechat

sábado, 1 de fevereiro de 2014

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

o que é vivo
é finitivo
definidamente
sou oco
porém são
loucos?
quem não és?
são
foram tantos
que me mataram
foram-se
todos

DESEJO PUERIL

queria morar numa rua
com nome de poeta
onde errar fosse coisa certa


rua de tripla mão
para ir, vir, devir

      não julgue vazio
      meu desejo pueril

nessa minha rua
todos que passassem
deixariam um rastro
de boa recordação

de presente
levariam sentimento
sem matéria
nem razão

uma rua de gente
justa e honesta
em que todas as memórias
fossem pura invenção

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

CHARLES BAUDELAIRE: CONTEMPORÂNEO DO PASSADO, DO PRESENTE E DO FUTURO



Texto meu na POIÉSIS (v. 1, n. 20). É relativamente antigo, mas só agora foi publicado e... não custa nada dar uma olhada!

Aqui: Poiésis 20
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RESUMO: Este artigo procura discutir, a partir de uma afirmação de Charles Baudelaire escrita em 1863, o conceito de contemporâneo que permeia as criações artísticas recentes. Isso é possível por meio de um diálogo com autores – filósofos, críticos, artistas, entre outros – que se dedicam ao tema, procurando identificar semelhanças e desacordos, em especial no que diz respeito ao regime de pensamento e sua relação com o passado. O contemporâneo, no caso, não se reduz a uma apreensão cronológica do espaço-tempo, mas ao conjunto de questões que permanecem relevantes para o melhor entendimento das pessoas e do contexto sócio-estético-político em que atuam, criam, pensam e transformam. Questões que têm origem na modernidade de Charles Baudelaire e que ainda hoje produzem ressonâncias.

Palavras-chave: contemporaneidade, modernidade, estética e política, arte, literatura

Confira também os números anteriores da revista: http://www.poiesis.uff.br/

AFIA A DOR

assovia,
      afiador,
            assovia

sua gaita me lembra os tempos
de casa,
quando pertencia ao chão
e o dividia
com quem não merecia

saudade, sim
tristeza,
      é verdade

afia!
      a dor

Fiu-ru-lin
Fiu-ru-lon
a pele
expele
o ex

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

VELÓRIO

Protestos recentes em Kiev

"Numa noite fria do inverno passado aconteceu um incêndio na casa de um homem que, poucos dias antes, havia matado seu cachorro a pauladas. Ele era um homem forte e por isso conseguiu salvar todos seus pertences sozinho, carregando-os da casa para o jardim. Assim que terminou, uma centena de cachorros de todos os tamanhos e formas correu diante da luzes oscilantes, vindos das trevas ao redor, e prontamente sentaram em cima de cada eletrodoméstico e de cada móvel restantes como se fossem os donos. Além de não deixarem o homem chegar perto e rosnar ferozes quanto ele tentava bater neles, ficavam estáticos, olhando impassivelmente para as chamas. (...)"

CONTOS DE LUGARES DISTANTES, de Shaun Tan


Veja mais fotos impressionantes dos protestos em Kiev.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

UM DOS MELHORES POSTS DESTE BLOG

Encontrei, no mesmo livro, grandes exemplos de um dos maiores e mais costumeiramente empregados VÍCIOS DE LINGUAGEM da imprensa e crítica brasileiras. E li apenas a contracapa e as orelhas, por enquanto.

Será que apenas eu me incomodo com isso, que é uma das mais relevantes necessidades de pompa e diferenciação dos últimos séculos?

1. "As entrevistas (…) constituem um dos textos mais significativos sobre a pintura do século XX."

2. "O resultado é um acesso privilegiado à mente de uma das principais figuras artísticas do século XX."

3. "(…) um dos críticos ingleses mais influentes de sua época."

4. "(…) análise precisa da obra e do pensamento de um dos mais criativos pintores do século XX."

Trechos retirados das Entrevistas com Francis Bacon, de David Sylvester, publicadas pela editora Cosac Naify. Mas poderiam ser de qualquer outro livro. Faça o teste.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

PRODUÇÃO FEMININA

Vi o clipe no mesmo dia em que li o poema. Adoro essas obras do acaso.



porque uma mulher boa
é uma mulher limpa
e se ela é uma mulher limpa
ela é uma mulher boa

há milhões, milhões de anos
pôs-se sobre duas patas
a mulher era braba e suja
braba e suja e ladrava

porque uma mulher braba
não é uma mulher boa
e uma mulher boa
é uma mulher limpa

há milhões, milhões de anos
pôs-se sobre duas patas
não ladra mais, é mansa
é mansa e boa e limpa

* * *

uma mulher muito feia
era extremamente limpa
e tinha uma irmã menos feia
que era mais ou menos limpa

e ainda uma prima
incrivelmente bonita
que mantinha tão somente
as partes essenciais limpas
que eram o cabelo e o sexo

mantinha o cabelo e o sexo
extremamente limpos
com um xampu feito no texas
por mexicanos aburridos

mas a heroína deste poema
era uma mulher muito feia
extremamente limpa
que levou por muitos anos
uma vida sem eventos

* * *

uma mulher sóbria
é uma mulher limpa
uma mulher ébria
é uma mulher suja

dos animais deste mundo
com unhas ou sem unhas
é da mulher ébria e suja
que tudo se aproveita

as orelhas o focinho
a barriga os joelhos
até o rabo em parafuso
os mindinhos os artelhos

* * *

era uma vez uma mulher
e ela queria falar de gênero

era uma vez outra mulher
e ela queria falar de coletivos

e outra mulher ainda
especialista em declinações

a união faz a força
então as três se juntaram

e fundaram o grupo de estudos
                  celso pedro luft

Uma Mulher Limpa, de Angélica Freitas
[do livro UM ÚTERO É DO TAMANHO DE UM PUNHO]

Página oficial da artista: www.boggieofficial.com

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

ESTÉTICA & POLÍTICA

Torso Belvedere, nos Museus Vaticanos

“A ruptura estética instalou, assim, uma singular forma de eficácia: a eficácia de uma desconexão, de uma ruptura da relação entre as produções das habilidades artísticas e dos fins sociais definidos, entre formas sensíveis, significações que podem nelas ser lidas e efeitos que elas podem produzir. Pode-se dizer de outro modo: a eficácia de um dissenso. O que entendo por dissenso não é o conflito de ideias ou sentimentos. É o conflito de vários regimes de sensorialidade. É por isso que a arte, no regime da separação estética, acaba por tocar na política. Pois o dissenso está no cerne de política. Política não é, em primeiro lugar, exercício do poder ou luta pelo poder. Seu âmbito não é definido, em primeiro lugar, pelas leis e instituições. A primeira questão política é saber que objetos e que sujeitos são visados por essas instituições e essas leis, que formas de relação definem propriamente uma comunidade política, que objetos essas relações visam, que sujeitos são aptos a designar esses objetos e a discuti-los. A política é a atividade que reconfigura os âmbitos sensíveis nos quais se definem objetos comuns. Ela rompe a evidência sensível da ordem ‘natural’ que destina os indivíduos e os grupos ao comando ou à obediência, à vida pública ou à vida privada, votando-os sobretudo a certo tipo de espaço ou tempo, a certa maneira de ser, ver e dizer. Essa lógica dos corpos tem seu lugar numa distribuição do comum e do privado, que é também uma distribuição do visível e do invisível, da palavra e do ruído, é o que propus designar com o termo polícia. A política é a prática que rompe a ordem da polícia que antevê as relações de poder na própria evidência dos dados sensíveis. Ela o faz por meio da invenção de uma instância de enunciação coletiva que redesenha o espaço das coisas comuns. Tal como Platão nos ensina a contrario, a política começa quando há ruptura na distribuição dos espaços e das competências – ou incompetências. Começa quando seres destinados a permanecer no espaço invisível do trabalho que não deixa tempo para fazer outra coisa tomam o tempo que não têm para afirmar-se coparticipantes de um mundo comum, para mostrar o que não se via, ou fazer ouvir como palavra a discutir o comum aquilo que era ouvido apenas como ruído dos corpos.” (p. 59-60)

Jacques Rancière
O Espectador Emancipado