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sábado, 4 de abril de 2015

ISTO NÃO É. NADA É, AFINAL

A traição das imagens (1928-9), René Magritte


Mas o que é isto?
Um cachimbo.
Não, cachimbo é como o chamamos.
Um objeto com forma de cachimbo?
A forma é também o homem que dá. Não é a essência disto. Não é o “isto” propriamente dito.
Um feito? Produto do ato? Uma solução?
Fazer é sim um ato, proveniente da vontade ou da necessidade. Não é bem disso que se trata.
Resta o quê, então? A imagem?
Feche os olhos.
Continuo a ver o cachimbo!
Imagine uma pintura. Uma obra de arte.
É uma pintura? O cachimbo é uma pintura, essa é a sua dedução?
Não. Cachimbo é o que resta. E, no caso, não resta nada, somente o homem que enxerga o cachimbo ou a pintura. Sempre ele.
Então o cachimbo não é nada. Sequer existe.
Eu não disse isso. Talvez o cachimbo seja o homem em si.


“A semelhança se identifica com o ato essencial do pensamento: o de assemelhar-se, tornando-se aquilo que o mundo lhe oferece e restituindo aquilo que lhe é oferecido ao mistério, sem o qual não haveria nenhuma possibilidade de mundo nem de pensamento.”
René Magritte, L’art de La ressemblance, 1967

Os dois mistérios (1966), René Magritte

"Isto não é um cachimbo, mas o desenho de um cachimbo", "Isto não é um cachimbo, mas uma frase dizendo que é um cachimbo", "a frase: 'Isto não é um cachimbo' não é um cachimbo"; "na frase: 'Isto não é um cachimbo', isto não é um cachimbo: este quadro, esta frase escrita, este desenho de um cachimbo, tudo isto não é um cachimbo".
Michel Foucault, Isto não é um cachimbo

terça-feira, 30 de setembro de 2014

DISSOLUÇÃO | FELIPE GÓES

O texto abaixo foi escrito na ocasião da mostra Dissolução, individual de Felipe Góes realizada pela Central Galeria de Arte entre 3 de outubro e 8 de novembro de 2014. Ele se originou na entrevista concedida pelo artista durante os preparativos da exposição.

Pintura 204 (2013)

 A pintura de Felipe Góes é um fazer que por vezes se confunde com desfazer. Que revela ausências. Pois as camadas de tinta, de tão sutis, acabam por remover parte do que já estava antes. Esse gesto delicado desemboca num embate árduo, em que incluir é retirar, pintar é apagar, criar é desconstruir, recordar é esquecer.

Suas paisagens são inventadas. “Ideias de paisagem”, como o artista costuma dizer. São sugeridas e sugestivas. Não partem de um esboço ou de uma imagem pré-concebida – elas se fazem diretamente na tela, no gesto poético, no ato criador. Não existe objetivo a ser alcançado; a finalidade é o próprio percurso, o próprio fazer da arte. Essa profusão de pensamentos e sentimentos que se materializam na pintura não termina, ela continua na seguinte, como se todas fossem uma única, dividida em etapas, numa pesquisa não linear, numa errância.

Pintura 195 (2013)

Esta mostra na Central Galeria apresenta criações recentes, produzidas durante o último ano. Elas enfatizam o processo de dissolução da tinta, das imagens e da própria atitude do pintor nos tempos atuais. Em vez de imagem definitiva, resta nelas um registro de intenções, ou seja, um instante do processo criativo que o artista decidiu preservar. Algumas intenções se concretizam, outras ficam sugeridas, muitas se esgotam e desaparecem.

As pinturas habitam esse território ambíguo, frágil e poético da efemeridade. Ao invés de afirmarem verdades, dispõem-se como espaço para incoerências. Paisagens abertas onde o espectador pode se perder; que põem em questão a cultura e a natureza, procurando não as diferenças entre elas ou as exclusões, mas suas ambiguidades, seus pontos de contato e embaçamento.

Pintura 205 (2014)

É difícil apreendê-las. No sentido de que não cabem numa definição, não significam nada exatamente. A apreensão é tão difícil quanto indesejada – elas preferem ser experimentadas, vivenciadas.

Quando percebemos nelas uma paisagem, imediatamente somos afastados da matéria pictórica; quando nos atentamos à tinta que escorre pela tela, a paisagem se esvai, levando com ela toda pretensão de certeza.

Pintura 208 (2014)

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Convite para exposição DISSOLUÇÃO, de Felipe Góes

Todos estão convidados para a abertura da mostra Dissolução, de Felipe Góes, na Central Galeria de Arte, para a qual eu dei uma singela contribuição. Na próxima quinta-feira, a partir das 19h. Encontro vocês lá!


"A tinta diluída. A memória difusa. O significado que quase vem à tona antes de mergulhar novamente no desconhecido. Figuras que se desfazem até flertarem com a abstração, até revelarem do que são constituídas: manchas de cor, pinceladas imprecisas, criações e dissoluções. As pinturas de Felipe Góes habitam esse território ambíguo, frágil e poético da efemeridade. Quando percebemos nelas uma paisagem, imediatamente somos afastados da matéria pictórica; quando nos atentamos à tinta que escorre pela tela, a paisagem se esvai, levando com ela toda pretensão de certeza, instigando quem se dispõe a olhar." Eduardo A. A. Almeida

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

CHARLES BAUDELAIRE: CONTEMPORÂNEO DO PASSADO, DO PRESENTE E DO FUTURO



Texto meu na POIÉSIS (v. 1, n. 20). É relativamente antigo, mas só agora foi publicado e... não custa nada dar uma olhada!

Aqui: Poiésis 20
Para download, clique aqui.

RESUMO: Este artigo procura discutir, a partir de uma afirmação de Charles Baudelaire escrita em 1863, o conceito de contemporâneo que permeia as criações artísticas recentes. Isso é possível por meio de um diálogo com autores – filósofos, críticos, artistas, entre outros – que se dedicam ao tema, procurando identificar semelhanças e desacordos, em especial no que diz respeito ao regime de pensamento e sua relação com o passado. O contemporâneo, no caso, não se reduz a uma apreensão cronológica do espaço-tempo, mas ao conjunto de questões que permanecem relevantes para o melhor entendimento das pessoas e do contexto sócio-estético-político em que atuam, criam, pensam e transformam. Questões que têm origem na modernidade de Charles Baudelaire e que ainda hoje produzem ressonâncias.

Palavras-chave: contemporaneidade, modernidade, estética e política, arte, literatura

Confira também os números anteriores da revista: http://www.poiesis.uff.br/

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

PINTURA ENCARNADA

Estudo a partir no retrato do Papa Inocêncio X, de Velázquez – Francis Bacon

"Desde essa época de juventude, sua pintura não se afastou mais de mim. Ela agarra na gente, vive na gente. Seus 'personagens em crise generalizada' – crise moral, crise física –, como escreveu o crítico inglês John Russell, vivem ao nosso lado e nos lembram incessantemente que a vida é essa corda esticada entre nascimento e morte. Essa vida que nos traz visões exacerbadas, um vizinho de hospital, de asilo, às vezes de nós mesmos. O terror está presente, instalado em personagens que berram em silêncio. Uma crueldade veemente e visível, revelada por homens emparedados numa moldura espacial. A qualquer momento podemos nos deparar com o atroz, um acidente nos reduz a um pacote de músculos abertos. Na expectativa, possível, de uma ressurreição."

Franck Maubert, Conversas com Francis Bacon

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

PINTURAS, PENSAMENTOS

Folhas e flores se espalhavam pela superfície inteira. Era uma cerejeira enorme, rica em detalhes, fiquei bastante tempo observando-a. Um trabalho de nanquim e cores sobre papel, disposto na Pinacoteca do Estado de São Paulo na exposição intitulada Seis Séculos de Pintura Chinesa. De perto, era possível observar os traços do lápis, depois preenchidos com pigmentos coloridos. Um projeto que exigiu semanas, talvez meses, para ser executado. Um bom exemplo da dita sabedoria – e paciência – oriental. Estava claro que, desde o início, o artista tinha consciência do que desejava pintar. É possível que tenha copiado, por observação, alguma planta de seu jardim. Seja como for, ele sabia o que fazer. Dedicou-se, colocou seu talento à prova e obteve, ao fim, uma imagem aproximada daquela suposta a princípio. A obra estava pronta. Um ou dois séculos depois, pendurada na parede do museu, contava sua história para mim.

Chamou-me a atenção porque, naqueles dias, eu estava trabalhando nos textos da mostra Dissolução, de Felipe Góes, inaugurada há pouco no Centro Municipal de Educação Adamastor, em Guarulhos/SP. Para a ocasião, optamos por tratar, justamente, do seu processo criativo, que é bem diverso do observado no retrato da cerejeira. Porque Felipe não parte de uma ideia pré-concebida que deseja traduzir em pintura. Quer dizer, quando se coloca diante da tela em branco, ele não sabe o que vai pintar. Seu pensamento se manifesta por meio do gesto, faz-se e se desfaz a todo instante entre as pinceladas. Sua interioridade se materializa – anseios, arrependimentos, ilusões, satisfações, desapontamentos, alegrias etc. ganham forma com a tinta, ficam implicados na matéria pictórica.

A tela acumula um complexo registro de intenções, das quais temos apenas uma leve suspeita. Indícios das linhas de força, das manchas de expressão e das camadas de sentimento que passam a habitá-la durante o trabalho. Camadas que se sobrepõem e se escondem dos nossos olhos, embora continuem presentes. Horizontes que não conseguimos apreender, ao menos não com exatidão; eles se estendem por trás dos morros, para além dos mares e dos acúmulos de cor... ao infinito. Sempre um novo horizonte após o outro.

Quando uma pintura dessas está terminada? Ao contrário do que vimos com o artista chinês, que podia dar seu projeto por cumprido assim que tivesse diante de si a imagem da planta conforme a previra, a pintura de Felipe Góes é um fluxo de pensamento. A cada instante é uma nova criação. Portanto, aquela forma "final" que se apresenta a nós é, dos embates vividos, somente uma etapa que o artista decidiu preservar.

Pintura 147, de Felipe Góes

No vernissage, alguns amigos observaram que os trabalhos não são assinados. Fiquei pensando se não seria mais uma sugestão do seu suposto "inacabamento".

Não sei. Por ora, só posso dizer que, enquanto selecionava as telas para a exposição, vi a fotografia de uma que evidenciava muito bem o conceito de "pensamento em processo" que queríamos desenvolver. Ela mostrava uma cerca de madeira separando o primeiro plano de uma imensa paisagem difusa, como se um forte nevoeiro impedisse as figuras de se revelarem. Eu quis exibi-la na mesma hora. Até Felipe contar, com certa frustração, que a pintura já não existia, ao menos não daquela forma – após a foto, ele continuou a trabalhar e acabou por "estragá-la".

Foi nesse momento que o título Dissolução me pareceu perfeito para a mostra. Pois, na concepção de um pensamento, muitos outros se fragmentam, diluem, deixam de existir – estão sempre sujeitos a transfigurações positivas ou negativas. Toda verdade é frágil.

Quem se coloca diante da cerejeira chinesa, na Pinacoteca, pode admirar o apuro técnico do artista, deixar-se sensibilizar por sua delicadeza e ler a história acumulada ao longo dos séculos. Por outro lado, quem se coloca diante de uma tela de Felipe Góes é convidado, a partir dela, a criar suas próprias imagens, a inventar histórias e a dar continuidade àquele pensamento em constante devir.

Nesta nossa época automatizante, em que passamos o dia inteiro executando trabalhos sem tempo excedente para refletir, em que esgotamos todas as energias numa produção quase sempre burocrática, é bom saber que a pintura contemporânea dá margem ao pensamento. Mais do que relaxar diante das belezas naturais ou artísticas, vale a pena ser provocado, arrancado da zona de conforto e instigado a recriar o mundo da maneira como acreditamos que ele deve ser.


Saiba mais sobre a mostra Dissolução aqui.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

PENSAMENTO EM DEVIR

Este texto é complementar à apresentação da mostra DISSOLUÇÃO, de Felipe Góes, no Centro de Educação Municipal Adamastor (Guarulhos/SP). Se você não leu o primeiro texto, está aqui.

Clique no convite para ampliá-lo.
“O limite último que o pensamento pode atingir não é um ser, não é um lugar ou uma coisa, mesmo despojados de qualquer qualidade, mas a própria potência absoluta, a pura potência da própria representação (...). Apenas a matéria, apenas a potência do pensamento”, escreveu o filósofo Giorgio Agamben sobre Damáscio, que no século VI quis encontrar uma espécie de verdade final, única e absoluta. Até que a percebeu, quem diria!, na folha em branco que aguardava seus escritos. Em forma de potência. A única forma que a sustentaria.

O mesmo vale para a pintura de Felipe Góes: o pensamento, sempre por se fazer, encontra sua força máxima na tela virgem, aberta a um enorme campo de possíveis. Deve se sustentar por si mesmo, encontrar seus próprios meios de existência. A potência é tanto criativa quanto destrutiva; seus resultados podem ser bons ou maus. No limite: trata-se de um lugar arriscado, porque também é frágil, pode se desfazer com a mesma intensidade, pode se dissolver até desaparecer por completo.

Por sua vez, a tela pintada conserva algo daquela brancura inicial, especialmente quando o inacabamento é assumido como poética. A brancura que se dispõe à recepção do público, que abre espaço para sua contribuição, para linhas e cores singulares. Onde termina o projeto de Felipe se inicia o do outro.

Nenhuma dessas brancuras de que falamos são puras. Quer dizer, por um lado, toda tela virgem está sempre impregnada de conceitos do artista e da própria história da arte. Uma profusão de pensamentos já a habita antes mesmo de ser dada a primeira pincelada. Por outro lado, de maneira análoga, toda tela pintada é recebida por nova profusão de conceitos e expectativas que já existem antes mesmo de ela ser vista; pensamentos que habitam cada expectador e que independem da vontade do artista.

Todas essas aberturas são potências sensíveis que não se conhece de fato, e que são dadas para serem experimentadas.

Pois Agamben diz ainda que, “conhecendo a incognoscibilidade do outro, conhecemos não alguma coisa dele, mas alguma coisa de nós”. Assim, ao reconhecermos que há nessas pinturas algo que não pode ser completamente compreendido, ativamos descobertas potenciais a respeito de nós mesmos. O público da arte se coloca no lugar da obra, percebendo a realização do seu próprio ser naquilo que observa sem que esteja dado nas pinceladas, naquilo que ajuda a pintar.

Essa força que instiga o autoconhecimento é uma das características mais marcantes no trabalho de Felipe Góes.
     Para que serve a pintura
a não ser quando apresenta
     precisamente a procura
daquilo que mais aparenta,
     quando ministra quarenta
enigmas vezes setenta?

Paulo Leminski
La vie en close, 1971
[grifo nosso]

sexta-feira, 26 de julho de 2013

DISSOLUÇÃO: NOVA EXPOSIÇÃO DE FELIPE GÓES EM GUARULHOS

Eis o convite para a abertura de mais um trabalho que realizei em parceria com o artista Felipe Góes. Quem puder comparecer será muito bem vindo. Quem não puder, dê uma passada depois, ficou bem bacana.
Por fim, abaixo do convite há uma breve leitura das obras expostas, escolhidas porque evidenciam uma questão muito presente no trabalho do artista e, de certo modo, no pensamento artístico contemporâneo.
Clique na imagem para ampliá-la.


Certa vez, Felipe Góes contou que quatro vacas se materializaram em uma de suas telas, o que sugeria um pasto no lugar da grande mancha verde que já estava pintada. Uma delas sumiu logo, a segunda demorou mais, a terceira e a quarta se foram em seus próprios tempos. Nenhuma vaca restara quando o artista deu a obra por terminada; tampouco o pasto permanecera o mesmo – podia ser um brejo, um lago, um acúmulo de tinta. Não se tinha certeza de mais nada. Exceto de que havia ali um complexo registro de intenções.

Porque o pensamento do artista se manifesta na tela, faz-se e se desfaz a todo instante entre as pinceladas. Não parte de um projeto já estruturado, não tem uma ideia pré-concebida que deseja traduzir em pintura. Tudo se processa no gesto poético, no ato criador da prática artística. Linhas de força, manchas de expressão, camadas de sentimentos: anseios, vontades, rancores, arrependimentos, ilusões, desapontamentos, alegrias, ambiguidades... O assunto se transforma, ganha corpo e se dissolve diante dos olhos para reaparecer adiante, não exatamente igual nem completamente diverso, implicado na matéria pictórica – ou desaparece sem voltar jamais. Assim se realiza o processo criativo de Felipe Góes.

Quando sabemos disso, fica evidente que esta forma apresentada pela pintura é, dos embates vividos, apenas uma etapa que o artista decidiu preservar. Tal suposto inacabamento, por sua vez, inspira a vontade criativa de quem entra em contato com a obra e passa, a partir dela, a criar suas próprias imagens, a inventar suas próprias histórias, a dar continuidade àquele pensamento em constante devir.


Algumas das ideias acima estão desenvolvidas num texto complementar, que você lê aqui: Pensamento em Devir

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Clique na imagem para ampliar.
Olha só que surpresa boa! O Anuário Dasartes recém-publicado tem uma página sobre o artista Felipe Góes e cita um trecho do texto que escrevi para sua exposição em Porto Alegre. Já nas bancas, rs!

Site oficial: Dasartes 2013

sábado, 30 de março de 2013

O EU E O OUTRO

Comecei a ler mais um livro sobre o artista suíço Alberto Giacometti. Já é o quinto ou sexto, nem sei dizer. Sua obra inspira, em especial porque é também sua própria vida, seus amigos e familiares, o ateliê e as questões de forma e expressão que ele remoeu dia após dia, até seu falecimento em 1966. Identifico-me com Giacometti. Não porque somos parecidos, mas justamente pela diferença que existe entre nós. Eu admiro sua obsessão, a profundidade de suas investigações estéticas e seu desprendimento em relação à obra pronta. Eu queria ser um pouco assim, transformar minha leviandade em projeto, concretizar as flutuações, abrir mão dos compromissos e me enfiar de cabeça na poética para nunca mais ser arrancado de lá. Claro que não poderei jamais fazer isso. Não sou Alberto Giacometti, não vivo como ele vivia, não penso como ele pensava nem nada disso. Tampouco tenho um projeto tão bem estruturado, tão consistente. O que me agrada na comparação é simplesmente descobrir o que não sou naquilo que ele foi, e do mesmo modo descobrir a mim mesmo nas lacunas que Giacometti deixou por preencher.

O velho debate a respeito do que a arte é leva-nos a um número infinito de respostas, nenhuma delas conclusiva. Podemos elencar uma série de coisas que não parecem arte para, quem sabe, encontrar a resposta no que restará. Duvido que funcione, seria fácil demais, porém ainda assim é uma estratégia de ação. Arte, para mim, é tudo o que chamamos de arte e tudo o que os homens um dia chamaram de arte, entre outras possibilidades. A exclusão é um risco, enquanto a inclusão não ameaça; basta deixar a poética livre para se manifestar. Vejo arte em todas as pessoas, em todas as coisas e em todos os lugares, seja na forma de obra ou na de potência. Mas existe um porém a esse respeito que soa plausível: a obra requer o outro para ser arte. Quer dizer, não existe arte sem que haja alguém para vê-la, ouvi-la, lê-la etc. Ela não existe para si; esse é o limite da sua dita autonomia. Pintura não exibida, música não tocada, livro não publicado... longe das pessoas, as obras não conseguem se manifestar e permanecem inertes em si mesmas, na materialidade banal do mundo. 

O que chama atenção nas criações de Giacometti é esse cruzamento de olhares. Sua obsessão por retratar uma pessoa da maneira como a via produziu séries de obras feitas e refeitas umas sobre as outras, criadas, destruídas e recriadas novamente. Os relatos do crítico James Lord reunidos no livro Um retrato de Giacometti nos apresentam esse método angustiante, é uma leitura que recomendo a todos que se interessam por processo criativo e trabalho de arte. O livro fala de um retrato encomendado ao artista, cuja produção não demoraria mais do que uma tarde, mas que se estendeu ao longo de meses e meses, até esgotar a paciência do retratado. Porque, na medida em que o pintor o conhecia melhor, mudava a imagem que fazia dele, mudava a percepção do sujeito, a qual se refletia na impressão pictórica. Giacometti queria pintar a verdade fundamental de seus modelos, um idealismo inalcançável tornado insuficiência e sofrimento. Terminava a sessão feliz com o resultado, a missão quase cumprida, bastariam uns poucos retoques. Só que na manhã seguinte tanto ele quanto o outro estavam diferentes, então a tela era apagada e recomeçada; de novo, de novo e de novo.

Nessas obras, os retratados olham para nós, que nos colocamos diante da tela. Nós devolvemos o olhar. Mas o que vemos, na verdade, é o olhar do artista sobre o assunto; sua expressão manifestada na expressividade daquelas figuras. Descobrimos, desse modo, o próprio Giacometti por meio das obras que deixou. Suas pinturas e esculturas são também retratos do próprio artista. Ele está contido nelas de maneira tão intensa que o termo "contido" não é justo – o artista se expande para além da superfície da obra. Vemos claramente suas questões estéticas, suas crises e suas vontades.

Percebo também a mim mesmo. Não no que Giacometti pintou, mas nos espaços em branco, no que não há de mim na obra, no que não está dado. Descubro minha identidade pela diferença, olhando o que não sou, imaginando como gostaria de ser. Converso com Giacometti por meio de suas criações; descubro a arte como um campo necessariamente intersubjetivo. O outro não é o meu limite, como se costuma dizer, mas a experiência que me faz existir como eu mesmo, consciente de mim. Um corpo reflexivo que olha e é olhado, que toca e é tocado. "Quando o outro reflete a minha imagem espelhada, é às vezes ali onde eu melhor me vejo", cita o psicanalista João A. Frayze-Pereira. E completa: "é na diferença sensível existente entre o eu e o outro que se afirma a identidade".

Leio mais uma vez sobre Alberto Giacometti. A obra é sempre aprendizado. Entre as linhas, nas fissuras abertas por sua vida e arte, descubro a mim mesmo, leio a história do meu próprio ser, que também se faz e refaz a cada dia pelo gesto poético de existir, de estar no mundo, de me colocar à disposição da alteridade. Descubro minha vocação no que falta ao mundo, e o mundo em tudo aquilo que falta a mim. É por conta disso que ele é tão grande, tão rico, tão entusiástico e misterioso.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

FAZER(-SE) E DESFAZER(-SE)

O homem empurra um grande bloco de gelo pelas ruas da cidade, fazendo-o deslizar com algum esforço. Deve pesar cinquenta quilos, talvez mais. Empurra com as costas arqueadas e deixa para trás um rastro de água que lembra o muco dos caracóis. Algumas pessoas olham sem interesse, uma criança aponta mas logo se distrai com outra curiosidade qualquer, ninguém vê nada de errado. Afinal, ele está fazendo alguma coisa, e manter uma atividade é socialmente bem aceito, seja ela tão estranha quanto levar um bloco de gelo para passear. Deve ser o seu trabalho, coitado. E, se trabalha, é um homem de bem, melhor deixá-lo em paz.

A lógica engana. "Às vezes, fazer algo não leva a nada". Este é o título que Francis Alÿs, artista belga radicado no México, escolhe para a experiência descrita acima. Trata-se de um ensaio visual sobre os meios de produção dominantes, que se apoiam na ideia de estar sempre fazendo alguma coisa na esperança de ter o esforço recompensado, seja financeira ou reconhecidamente. Homens e mulheres na "idade ativa", não é assim que se diz?

A proposta é clara: o trabalho de empurrar o gelo pelas ruas se desfaz com ele próprio, até que não reste mais nada, nem gelo nem trabalho nem produto, com exceção do vídeo em si. É uma afronta a todo regime de produção que opera nos dias atuais, seja orientado por princípios capitalistas ou socialistas. No primeiro caso, tem-se a necessidade de produzir e consumir em larga escala como maneira de impulsionar a economia; no segundo, a mão de obra e o produto gerado por ela entendidos como ferramentas construtoras do coletivo. São regimes aos quais a própria arte está sujeita – e que às vezes provocam reações críticas como aquela.

Francis Alÿs chama a atenção para certos elementos constitutivos das nossas atividades cotidianas que acabam ignorados, mas que de alguma maneira são importantes no processo e se deixam entrever no produto final. Quer dizer, quando estamos implementando um projeto no escritório, quando queremos reformar a loja, oferecer um serviço diferente, acrescentar um curso de aperfeiçoamento ao currículo ou pesquisar uma nova oportunidade – qualquer atividade se enquadra –, estamos sujeitos a uma série de frustrações, becos sem saída e "desperdícios" de tempo. São aqueles modos de "fazer algo" que aparentemente não levam a nada, mas que estarão contidos no resultado da empreitada, mesmo que não sejam tão fáceis de identificar.

Talvez a arte os evidencie. Eu me lembro de uma conversa que tive com o pintor Felipe Góes a respeito de um dos seus trabalhos. Ele apontou o centro da tela e comentou que, dali para baixo, era tudo uma porção de arrependimentos. Achei curiosa essa sua maneira de encarar a própria produção e assumir que as frustrações fazem parte do processo criativo, que são intrínsecas a ele. Porque ignorá-las – ou mesmo negá-las – pode ser uma maneira de lidar com elas, porém não impedirá que continuem a nos assombrar.

Observei a pintura durante um longo tempo. A metade de baixo era composta de pinceladas desordenadas; tentativas de dar forma a uma vontade que talvez não tenha se manifestado com clareza, ou que não conseguira solucionar o problema em questão. Ficaram fixadas ali como registro do processo.

Talvez aquelas frustrações signifiquem algo positivo para outra pessoa. O que me faz voltar à proposta de Francis Alÿs, para quem fazer algo pode levar a nada. Agora tenho dúvidas. Ainda que seja meio paradoxal, para mim o "nada" não existe, é somente algo que ainda não conseguimos definir ou compreender devidamente, uma espécie de vácuo conceitual ou ausência de significado.

A propósito, acabei me esquecendo de contar o final do filme. Pois bem, o bloco de gelo se reduz até ficar do tamanho de um sabonete, que o artista chuta despreocupadamente. Sua postura de trabalhador dedicado também se transforma, agora ele parece um vagabundo que caminha sem rumo pela cidade. Por fim, o gelo é abandonado, desfaz-se numa pequena poça e logo não é mais nada, desparecendo por completo. Sumiu, embora a gente saiba que permanece ali, evaporado no ar, habitando a memória de quem o viu, descrito na proposta do artista ou sugerido na mancha que restou no pavimento. Mesmo que não haja nada para ver, o gelo e o esforço de quem o deslocou estão presentes de alguma maneira. Sempre resta uma evidência, sempre existe a possibilidade de um significado que contrarie a aridez do "nada".

Nós fazemos coisas o tempo todo. Trata-se do bem e do mal-estar da civilização. "Não fazer" é uma promessa que tanto se deseja quanto se condena. Veja a integridade, esse valor social tão benquisto, que também está associado ao fazer: pois moral íntegra é aquela bem constituída, que não se desfaz. Porque trabalhar tornou-se sinônimo de existir, é o ato que tenta nos definir. Ao ponto de, quando conhecemos alguém, perguntarmos "O que você faz?" ao invés de "Quem é você?"

Não que seja um jeito "errado" de viver (se por acaso existem certos e errados). Tampouco é o único jeito. Enquanto fazer algo pode levar a nada, fazer nada também poder ser um caminho ou uma maneira de ser. Não?

Para mim, parece errado apenas não pensar a respeito. Trabalhar a vida inteira sem saber aonde vai chegar, sem consciência das escolhas. A arte incentiva essa reflexão. Temos o quadro na parede, o gelo que escorre por entre nossos dedos e desaparece no chão. Temos todas as nossas realizações e arrependimentos que ainda buscam sentido. O esforço valeu a pena? Se a resposta é "sim", já me parece um ótimo motivo para se fazer.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

A PINTURA COMO DISCURSO, PENSAMENTO E PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO

Quando Felipe Góes disse que eu poderia escolher uma ou mais pinturas e levar para casa, eu achei que ele estava ficando maluco. "Pode levar todas se preferir, assim vocês terão um tempo juntos para se conhecerem melhor". Imagine a responsabilidade de andar por aí com obras de arte! E se me roubam o carro? Ou se derrubam água sanitária em cima? Sabe-se lá que tipo de tragédia pode acontecer, é melhor não dar sopa para o azar. Por isso, quando aceitei a proposta e cheguei em casa com uma tela sua debaixo do braço, percebi que aquilo já havia me contagiado também.

Foi mais ou menos assim que iniciamos o trabalho deste ano, que rendeu três exposições individuais em museus e centros de cultura de Porto Alegre, Goiânia e Castro. Eu queria colaborar com Felipe desde que o conheci, portanto fiquei bastante entusiasmado quando surgiu a oportunidade e ele fez o convite.

Estávamos sentados num café no bairro de Pinheiros, São Paulo. Passamos a nos encontrar durante o almoço ou no fim de tarde para ver as pinturas, trocar ideias, estruturar um pensamento que servisse de proposta curatorial para cada exposição e também para entender melhor nossas próprias convicções estéticas, as quais se transformavam no decorrer do processo. Foram diversos encontros, páginas e páginas de anotações, finais de semana inteiros pesquisando, dezenas de e-mails e muita vontade de ambas as partes para colocar os projetos de pé.

O que significa pintar no contemporâneo? Essa era a questão-chave. Cada seleção de trabalhos parecia oferecer uma resposta apropriada, complementares ou divergentes entre si, o que já se mostrava bastante sugestivo. A nossa missão era fazer com que elas ficassem evidentes para os visitantes. Na Usina do Gasômetro, em Porto Alegre, as pinturas chamavam atenção para os estímulos visuais por meio dos quais inventamos o mundo ao nosso redor e que despertam emoções ocultas na memória; o limiar entre o figurativo e o abstrato, a racionalidade do dia e o vago sentimento dos sonhos. No Museu de Arte de Goiânia, tratamos do processo criativo do artista, levando a público experimentos que nunca haviam deixado o ateliê, além de apontar para o espaço expositivo e para a ocupação que tanto a arte quanto as pessoas fazem dele. Por último, na Galeria Ondas do Yapó, em Castro, Paraná, tratamos da experiência sensível dos visitantes, da construção de discurso e pensamento, da transição entre as maneiras de compreender o mundo, que muitas vezes se assemelha ao transitar entre as camadas de tinta de um quadro. Queríamos ver além da superfície, avançando no subjetivo.

Essas três possibilidades, entre tantas outras que gostaríamos de explorar, deixam claro que não há uma resposta exata para a questão que as provocou. Pintar, no contemporâneo, significa muitas coisas. Se podemos afirmar algo, talvez seja apenas que não se trata de um formalismo alienado e tampouco de uma afirmação de verdade com pretensão de ser única. Pintar é um método de produzir conhecimento, de lidar com o múltiplo, criar diferentes conexões e apreensões de tempo, espaço e sociedade.

Quando se aplica o primeiro borrão de tinta sobre a tela, ativa-se uma porção de problemáticas, que não é função do artista resolver. Não se espera da arte uma solução, mas sim o questionamento em si. O artista percebe e reúne problemas, apropria-se deles e os transforma, transgride, refaz, de modo que sejam apreendidos sob outro ponto de vista. Às vezes, a construção se dá pela própria desconstrução. O objetivo, entretanto, permanece inalterado: provocar reações e, se possível, reflexões.

Como escreveu o pintor, professor e pesquisador Marco Giannotti no livro Breve História da Pintura Contemporânea, "a pintura cria um campo de experiência, um espaço existencial; não cabe mais ao artista descrever um mundo dado, mas transformá-lo a cada instante".

Eu e Felipe desejamos que o trabalho deste ano tenha contribuído, de alguma maneira, para dar novo fôlego aos problemas do homem com os quais a pintura tenta lidar. Porque uma pincelada, por menor que seja, carrega consigo o potencial para resignificar a composição inteira.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

VOLÚVEL

Pintura 63 (2009)
Eu tento ler as histórias contidas naquelas finas camadas de tinta, que se escondem umas sob as outras, tímidas. A narrativa potencial que hiberna enquanto aguarda a presença do observador para, só então, se revelar. Uma nova relação a cada olhar, um novo espetáculo de sensações. As pinturas de Felipe Góes se fazem e desfazem diante de nós, paisagens emocionais vêm à tona e depois mergulham de volta no desconhecido. As manchas se desmancham. Solidez tornada translucidez. Os devaneios são livres para caminhar por grandes campos de cor, desbravando matas virgens, territórios em formação constante. Vemos a força da cor se sobressair à fragilidade do assunto. A cor como grande potência criadora, disposta na tela em pinceladas sugestivas.

Até os títulos são abstratos, porque determinar uma palavra oprimiria outras conexões, narrativas que jamais germinariam. É algo que o artista não quer. "A paisagem, em sua infinidade de possibilidades, aceita proposições pictóricas das mais implausíveis e abstratas", diz ele. Suas pinturas são assim, abertas à reflexão, prontas para realizar desejos, prontas para ouvir. Basta se colocar diante delas e deixar o pensamento flanar; mergulhar, deixar-se contagiar, permitir que a experiência se realize num afluxo de sensações. Ida e volta.

Pintura 70 (2010)
São imagens lentas, que não se sujeitam à imposição do relógio ou à impaciência do público. Elas têm o seu próprio tempo e, para que possamos nos relacionar, precisamos sintonizá-lo, estar em sincronia. O tempo da pintura de Felipe Góes é aquele da percepção e da apreensão: singular, individual, livre. Inicia-se quando o raciocínio lógico cede espaço à imaginação. As cores são plácidas, quase meditativas, exatamente o oposto da saturação publicitária, cujas imagens se pautam na sedução imediata e na decodificação fácil. O conceito está impregnado naquelas pinturas, porém não se revela a troco de nada. Exige concentração. O pensamento demora a se formar e jamais se completa, está sempre se fazendo e refazendo. Para ser aberta, a obra precisa se manter viva, pulsante. Não pode se deixar reduzir.

Pintura 86 (2010)
Eu tento ler suas histórias, mas elas são volúveis; logo se misturam sem conclusão, não resultam numa moral. Recriam-se. Assim como seus campos de cor se apresentam sem limites discerníveis, suas verdades têm algo de imprevisível. Pois, quando uma ideia se solidifica, quando não pode mais ser permeada por conexões, ser contestada ou se transformar, ela já não serve mais, virou matéria inanimada. Morreu. O pensamento é um organismo em mutação. Tem vida própria, não se sujeita apenas às nossas vontades. Está contido no mundo. Pintar é também uma maneira de pensar. Sempre há espaço para uma nova pincelada, um retoque aqui, outro ali. Se existe uma certeza, uma só, é a de que toda certeza é efêmera. Quando voltamos a ela, já virou outra coisa, já ganhou uma nova cor.



Leia também Translucidez, texto que consta no folder e que dá nome à exposição de Felipe Góes na Galeria Ondas do Yapó (Castro/PR).

TRANSLUCIDEZ

Convite da exposição. Clique para ampliar.
Nas pinturas de Felipe Góes, a palavra translucidez apresenta dois significados. O primeiro é imediato: refere-se às finas camadas de tinta acrílica que, de tão diluída, ganha semelhanças visuais com aquarela. A técnica permite ver além da superfície do quadro. No entanto, não se trata de um retorno àquele campo de representação tradicional que os concretistas brasileiros tentaram superar. Esse "ver além" se direciona à subjetividade, à experiência sensível do observador, que percebe nas obras um mundo particular, contido dentro de si mesmo, do seu "eu" interior. Trata-se de uma realidade paralela, posta em relação com aquela da superfície pictórica. Ela vem à tona porque as pinturas de Felipe propõem sugestões ao invés de afirmações; outro registro de verdade, sem pretensão de ser absoluta. Muitas verdades permeiam a obra, mancham e se desmancham num rápido passar de olhos, vêm "desafiar sua existência em meio a grandes campos de cor", como disse o artista certa vez.

Isso nos leva ao segundo significado possível da palavra translucidez, que se refere à transição ou à transposição de uma lucidez para outra. Aquele sentido ambíguo que não se encontra estagnado numa porção de tinta, mas que é efêmero, que dura o tempo da percepção e nem um segundo a mais. A lucidez que não se encerra em contornos ou fronteiras, pois os territórios são tão profusos que é quase impossível determinar onde termina uma cor e começa outra. As pinturas habitam uma zona de indiscernibilidade muito própria da experiência criativa, onde estão potencializadas infinitas narrativas, aguardando que alguém se ponha diante das telas e permita ao oculto vir à superfície. É possível fazer uma série de conexões a partir daquilo que o artista deixa sugerido; uma crítica à nossa rigidez de pensamento. Metáfora apropriada para mostrar que nossas crenças são baseadas em registros imprecisos e interpretações subjetivas. Toda solidez é permeável. Basta querer ver.

Leia também o texto Volúvel, escrito especialmente para a internet por ocasião da mostra Translucidez.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

A DANÇA DE CRUZ-DIEZ



Já tinha passado por um terço da exposição de Carlos Cruz-Diez quando percebi como aquilo era engraçado. Acontecia uma espécie de dança dos visitantes, tentando não esbarrarem uns nos outros, caminhando para cá e para lá sem tirar os olhos das obras. Não acontecia por acaso, o artista transmite essa inquietação contagiante. Para ele, o simples olhar já é uma experiência interativa. A cor, mais do que um pigmento sobre a tela, é entendida como um elemento de natureza instável que provoca impactos emocionais. "Eu queria comunicar", diz Cruz-Diez em um dos trechos da entrevista adesivada nas paredes da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Essa comunicação se realiza com uma linguagem própria, uma mistura de luz, cor e movimento. É difícil mesmo desviar os olhos, a gente não quer perder nada, nem um compasso.

Cor aditiva 105, 1956 (clique na imagem para ampliá-la). 
Abaixo, detalhe da mesma obra.

Boa parte dessas obras pertence ao grupo intitulado Fisiocromia, algo como "o corpo da cor", que o artista desenvolve desde 1959. Os visitantes caminham de um lado para o outro porque, de acordo com o ponto de vista, a obra revela novas estruturas. Lembra um pouco a brincadeira de "ola" que se faz em estádios. Ou aquelas figurinhas holográficas que contêm diversas imagens num única face. Enfim, é tão difícil de explicar quanto de fotografar, e essa era a segunda coisa engraçada que acontecia na Pinacoteca: as pessoas queriam levar, como recordação, uma fotografia daquela experiência maravilhosa. Só que é impossível fixar numa imagem o fenômeno ótico e a sensação física subsequente. Os fotógrafos saíam frustrados.

Confesso que eu também queria uma foto bonita para colocar no blog, mas não me arriscava. Estava na cara que era impossível. Até eu me dar contar de que, se a questão era o movimento, a solução seria filmar. Fiz isso com o telefone, o que explica a precariedade dos vídeos disponíveis aqui. Seja como for, acho que passam uma ideia do que está exposto no museu.


Tem muitas obras lá, desde pinturas a óleo do início da carreira de Cruz-Diez até instalações com projeção de cores. No geral, todas compartilham da mesma curiosidade: colocar a superfície ou os expectadores em movimento, provocá-los com sensações cromáticas que se multiplicam em diversas outras, modulações óticas com um pé no ilusionismo e outro na ciência. Transitam por persistência retiniana, somatória visual, gestalt, relevo, sombras e arquitetura. Seu trabalho é intenso e consistente. Faz mais de meio século que estuda possibilidades emotivas do uso da cor, seja no quadro, no espaço, na cidade (com intervenções urbanas) ou em veículos. Existe até navio e avião "à lá Cruz-Diez". Em resumo, é uma experiência estética bastante divertida. Vale a pena entrar na dança.


Leia mais no site da Pinacoteca do Estado de São Paulo: Carlos Cruz-Diez

domingo, 26 de agosto de 2012

IMAGEM LENTA, MUNDO VELOZ



Na primeira conversa que tivemos sobre a exposição individual no Museu de Arte de Goiânia, Felipe Góes estava indeciso. Porque sua intenção era levar para lá as pequenas pinturas que produz desde o início da carreira, nas quais o caráter experimental da pesquisa fica mais evidente. "Só que a administração local me concedeu um espaço enorme", disse ele. "Acho que vai ficar vazio demais só com essas telinhas".

A ideia do vazio me pareceu interessante. Na mesma hora, tive certeza de que aquele deveria ser o conceito da mostra: propor uma relação com o espaço expositivo e com o tempo de apreensão das obras. As pequenas telas de Felipe, naquele generoso salão, poderiam surpreender, criar conflitos e retirar o visitante da zona de conforto que se construiu ao longo de séculos de exibição de pinturas em museus. Melhor ainda se estivessem deslocadas da habitual linha do horizonte que costuma orientar a colocação das peças na parede. Assim, poderíamos sugerir uma reflexão sobre o corpo presente – uma vez que o visitante movimentaria mais do que apenas os olhos para observá-las, abaixando-se, aproximando-se, reclinando-se, torcendo o pescoço etc.

A mostra também chamaria atenção para outro aspecto relevante: o tempo da arte. Digo isso não somente em relação à tradição da pintura, mas ao contexto contemporâneo, em que o volume de informação aumentou tão bruscamente quanto se reduziu nossa dedicação para absorvê-la – como se o pensamento humano se desenvolvesse na mesma velocidade dos processadores artificiais.

Sabe-se que, na ansiedade de ver o máximo no menor tempo possível, se gasta, em média, quinze segundos em cada obra de arte de uma exposição. Esse tempo ainda diminui consideravelmente em museus visitados por massas de turistas, tais como o MoMA (Nova York) e o Louvre (Paris). Gasta-se tempo, investe-se tempo, perde-se tempo, ganha-se tempo. O tempo virou moeda de troca na veloz sociedade capitalista, em especial a metropolitana.

Só que há coisas que esse tempo não compra. Sim, numa mostra de arte, muito passa despercebido. Cá entre nós, quinze segundos não bastam nem mesmo para obra e visitante se apresentarem, quanto mais para se conhecerem profundamente e trocarem experiências.

Quando adentramos o Museu de Arte de Goiânia e nos deparamos com telas pequenas dispostas em paredes extensas, percebemos de imediato que elas exigirão outro tempo de experimentação, descoberta, reflexão e criação. Elas querem que as pessoas se aproximem, perguntem, espiem, inventem e ouçam tudo aquilo que sussurram ao pé do ouvido, que se despe aos pouquinhos, numa relação de perfeita intimidade. 

São imagens lentas, que não carregam significado instantâneo. Contrariando o mundo apressado em que estão, pedem silêncio, calma e disposição para se revelarem. Pedem a dedicação de quem cativa. Será assim ou não será nada.

*O vídeo acima é uma maquete digital que simula a disposição das pinturas nas paredes do Museu de Arte de Goiânia. Leia mais sobre a exposição aqui: Álbum e Grandiosidade não se mede com régua

GRANDIOSIDADE NÃO SE MEDE COM RÉGUA

O que mais me surpreendeu quando vi as pinturas de Felipe Góes ao vivo e a cores foram as dimensões reduzidas. Não que todas sejam pequenas, pelo contrário, algumas são razoavelmente grandes. Mas foram as menores que me chamaram atenção. Porque muitas delas eu conhecia por meio de fotografias divulgadas na internet, e as imaginava como gigantescas manchas de cor. Na galeria, entretanto, elas eram pouco maiores do que um cartão postal.

A visita ao espaço expositivo tem esse poder de transformar nossa relação com as obras. Tive que rearranjar uma série de pensamento já constituídos, então tirados do lugar por aquela descoberta.

Foi ótimo perceber o mundo em mutação, excedendo os paradigmáticos movimentos de rotação e translação, num tipo de abertura perceptiva muito própria da arte.

Nossa ideia, para a individual no Museu de Arte de Goiânia, era induzir um choque similar. Queríamos que o visitante pusesse os pés no enorme salão concedido à mostra e se surpreendesse com aquelas pinturas reduzidas, dedicando-se ao pequeno num mundo que privilegia os grandes, como alertou o filósofo Walter Benjamin na primeira metade do século passado.

Já nesse primeiro encontro, a proposição estaria colocada. Tudo o que viria a seguir dependeria unicamente do diálogo entre o visitante e as pinturas. Nós desejávamos que logo encontrassem diversas coisas em comum.

Aqui estão algumas das pinturas exibidas no Museu de Arte de Goiânia. Clique nas fotos para ampliá-las:

 







Leia mais sobre a exposição de Felipe Góes no Museu de Arte de Goiânia aqui: Álbum e Imagem lenta, mundo veloz

ÁLBUM

As telas de pequena dimensão acompanham o trabalho de Felipe Góes desde sempre. São quase um projeto paralelo. Entretanto, talvez devido à expectativa do público e das galerias, elas raramente ganham espaço de exibição.

Reunimos aqui cerca de 10 dessas pinturas que, como explica o artista, não são esboços – quer dizer, o objetivo delas não é planejar para depois ampliar. São experimentos. Justamente por não enfrentarem a pretensão das pinturas monumentais, elas permitem que Felipe voe mais alto, arriscando-se sem medo de errar. Nelas, seus pensamentos ficam registrados durante a formação, enquanto ele ainda não sabe aonde pode chegar.

Por conta disso, as telas pequenas revelam um artista mais fresco, livre, instintivo; ocupam um papel importante em seu processo criativo, embora não ostentem qualquer título de nobreza. São segredos de bastidores.

São cartões postais: registros de experiências visuais, plásticas e estéticas, recortadas de um contexto complexo para destacarem um ponto de atenção.

Também são obras em si mesmas, ou seja, adquiriram autonomia na produção de Felipe e caminham com seus próprios pés. Por conta disso, possibilitam outras reflexões, em especial no que diz respeito ao espaço expositivo e ao tempo de olhar do visitante.

Nesse sentido, o Museu de Arte de Goiânia não poderia ser mais apropriado: seu amplo salão desmistifica o paradigma da proporção. Acrescentamos aí a questão do alinhamento feito com prumo e esquadro; pois, deslocando as telas do nível do horizonte – eixo de equilíbrio herdado de séculos de tradição museológica –, fazemos o visitante mover o corpo, e não apenas os olhos, para observá-las, ampliando a sensorialidade proporcionada pela tinta sobre tela.

As paisagens retratadas nesses cartões postais saltam da tela e acabam se revelando no ambiente, nas pessoas ao redor, na cidade e também dentro de nós mesmos. São excertos que carregamos conosco quando voltamos de uma viagem pictórica, que compõem nosso álbum de imagens, nosso diário de bordo. Experiência marcante.

Leia mais sobre a exposição de Felipe Góes no Museu de Arte de Goiânia aqui: Grandiosidade não se mede com réguaImagem lenta, mundo veloz

sábado, 26 de maio de 2012

A APARÊNCIA DA MEMÓRIA

Estou contribuindo com as três individuais do artista Felipe Góes planejadas este ano. A primeira delas será em Porto Alegre, de 15 de junho a 15 de julho. Abaixo estão o convite para a abertura, reproduções das pinturas exibidas e o texto que escrevi para o folder.

Tive o prazer de acompanhar o desenvolvimento artístico de Felipe Góes desde suas primeiras explorações do campo da cor até as pinturas mais recentes que foram trazidas para esta exposição. Pois daqueles campos floresceram paisagens que se põem no limiar entre o figurativo e o abstrato, entre a racionalidade do dia e o sonho difuso, entre as certezas do momento presente e o vago sentimento da memória. Pintar, no século XXI, pressupõe lidar com pensamentos contemporâneos, entre os quais está a relação com o espectador – uma vez que as interpretações deste se tornam parte integrante da obra, a despeito das intenções do artista.

 A pintura de Felipe envolve o olhar e clama por nossa participação. Entramos na tela, caminhamos por territórios pictóricos e sensíveis que, de uma hora para outra, se revelam partes constitutivas de nossos corpos e mentes. Uma revelação de mão dupla: a obra em nós e nós na obra.

Imagens que vêm e vão, construções que fazem e se desfazem. Aquela mancha de tinta que exprime um significado, traduz um sentimento, aviva uma lembrança para, em seguida, afundar novamente nas brumas.

Os olhos nos enganam. Pois nossa apreensão do mundo se dá por cores e formas atreladas a significados, ou seja, pela decodificação de estímulos visuais. Uma mancha que se transforma em barco, outra que lembra uma praia com palmeiras. É assim, através da percepção, e da persistência do real para fazer-se e manter-se, que vamos inventando tudo ao nosso redor, produzindo verdades ambíguas.

Ver, lembrar, desvendar e somar são formas de criação contidas em nossa subjetividade. Por se relacionar diretamente com o passado que cada pessoa carrega consigo, a pintura de Felipe Góes é capaz de despertar imagens esquecidas, emoções há muito tempo escondidas, desejos reprimidos. Tudo isso com manchas de tinta sobre tela. Enchendo de cor os contornos sinuosos da memória.








As imagens se referem, na ordem: 1) Pintura 104 (2010); 2) Pintura 105 (2010); 3) Pintura 106 (2010); 4) Pintura 108 (2011); 5) Pintura 130 (2011); 6) Pintura 136 (2011); 7) Pintura 138 (2011).