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terça-feira, 21 de setembro de 2010

ADVOGADOS ANTIQUADOS ANTIQUADROS




Os desenhos de Gil Vicente escolhidos para participar da 29ª Bienal de São Paulo exibem, de maneira clara, o sentimento de grande parte dos brasileiros em relação aos nossos governantes e também em relação à política mundial como um todo. Os advogados da OAB, que não entendem nada de arte, mas que adoram uma polêmica, fizeram um pedido formal para a retirada das obras. Segundo eles, trata-se de uma apologia ao crime. Na última vez em que vi algo semelhante, eram tempos de ditadura militar. Não é o caso de hoje, ainda bem, só que tem gente que ainda pensa com aquela cabeça. Minhas perguntas:

1) Sobre entender as coisas ao pé-da-letra: depois de ver esses desenhos, você sairá matando políticos Brasil afora?
2) Sobre a novidade: mesmo antes de ver esses desenhos, você já não tinha pensado em algo semelhante?
3) Sobre a expressão "é melhor ouvir isso do que ser surdo": devemos dar atenção à OAB?

A Fundação Bienal decidiu que não. Portanto, os quadros permanecerão à mostra. Achei ótimo, até porque eles já tinham sido exibidos em outras quatro cidades. Pelo jeito, nossos advogados não têm o hábito de visitar exposições de arte. Então, querem dar chilique agora? Me poupem.





Leia mais:
Artista 'mata' Lula, FH e outros políticos na obra mais polêmica da Bienal de SP

RIO - Ninguém foi mais assediado na segunda-feira do que o pernambucano Gil Vicente, por enquanto a grande estrela da 29ª Bienal de São Paulo. Na última sexta-feira, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo fez uma nota de repúdio e ameaçou processar a Fundação Bienal por expor a série de desenhos em carvão "Inimigos", em que Vicente se autorretrata matando personalidades como o presidente Lula, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, a rainha da Inglaterra Elizabeth II e o papa Bento XVI. A Bienal já afirmou que não vai retirar a obra, exposta anteriormente em quatro outras cidades.

- Parece que voltamos à ditadura. A OAB alegou que a obra incita o crime. Qual é o crime maior, criar essa ficção ou o roubo de dinheiro público dos nossos políticos? - questionou Gil Vicente.

O curador Agnaldo Farias criticou a ação como "tacanha e mesquinha":

- Dizer que a obra incentiva a violência é o mesmo que dizer que "Édipo rei" incentiva o incesto. Só chamará mais atenção para o artista, cujo trabalho tem muito mais qualidade do que essa polêmica.

Retirado de: O GLOBO

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

PRÊMIOS E CRITÉRIOS DA CRÍTICA

Estive olhando uma apresentação digital da Associação Brasileira de Críticos de Arte – pois é, tem gente que faz coisas assim – e me surpreendi com alguns prêmios concedidos. Não porque mereceram ou desmereceram, nem quero entrar no mérito, até porque isso exigiria um estudo muito mais aprofundado e, de qualquer maneira, não mudaria o passado. O que me deixou surpreso de verdade foram as diferenças entre obras vencedoras, formalmente falando, em curtos espaços de tempo. Especialmente essas que reproduzo abaixo, que têm dois e um ano entre elas, respectivamente. Não parecem feitas em décadas ou mesmo séculos diferentes? Que maluquice...


Alberto da Veiga Guignard
Paisagem de Ouro Preto, 1960 – Óleo s/tela

Prêmio da Crítica, 1960


Rubem Valentim

Sem título, 1989 – Serigrafia colorida s/papel

Prêmio da Crítica 1962


Emiliano di Cavalcanti 

Mulher e Paisagem, 1931 – Óleo s/eucatex.
Prêmio da Crítica, 1971


Alfredo Volpi
Bandeirinhas, 1970 – Têmpera s/tela

Prêmio da Crítica, 1972

domingo, 19 de setembro de 2010

O FIM DE UMA ILUSÃO



A Bienal de Arte de São Paulo está de volta pela vigésima nona vez e com ela vem também uma série de dificuldades de recepção por parte do público, às quais eu gostaria de pôr um fim. Seria muita pretensão mudar o comportamento do milhão de visitantes esperados com apenas uma crônica, mas eu já ficaria satisfeito se conseguisse ajudar pelo menos meia dúzia a aproveitar ao máximo esse que é o principal evento de arte do país e, talvez, um dos "top 3" do mundo. A começar pela seguinte revelação: as obras que você gostaria de ver por lá, tipo Van Gogh e Monet, com paisagens bucólicas coloridas e belas flores repousando num jarro em cima da mesa não estarão presentes. Aliás, já tem mais de meio século que sequer vemos quadros tradicionais pendurados nas paredes, quem dirá pinturas daqueles gêneros. Não fique triste, dá para contemplar essas obras-primas em diversos outros museus da cidade, tais como o MASP e a Pinacoteca, sem contar as constantes retrospectivas que se organizam em galerias, institutos culturais etc. A questão é que a Bienal tem outro propósito: reunir produções relevantes que estão sendo desenvolvidas atualmente ao redor do mundo, em geral escolhidas segundo tema específico. Isso não significa que só há no pavilhão trabalhos com até dois anos de idade – alguns possivelmente são mais velhos do que você, mas foram produzidos a partir de conceitos artísticos vigentes ainda hoje e que, portanto, pertencem àquilo que chamamos de arte contemporânea. Que conceitos seriam esses? Bom, são muitos, porém posso afirmar que a ideia da "obra como janela", ou seja, aquelas tentativas de criar uma ilusão e transportar você a uma nova realidade, já não existe mais. Em outras palavras, ninguém verá pinturas contendo um universo isolado, capturado e emoldurado, tampouco tentará entrar nelas para chegar à realidade do artista. Agora, é a obra que vem até você, que salta da parede e tenta penetrar a sua realidade. Parece esquisito, só que, na verdade, é muito mais legal. É por isso que os trabalhos raramente ficam pendurados nas paredes – eles venceram o confinamento das molduras e querem interagir com o público. O que nos leva a outro conceito importante da arte contemporânea: você, espectador, foi promovido à coautor do artista. Eita. Isso significa que eu, mero curioso, posso interpretar as obras à minha maneira e criar as minhas verdades a respeito delas? Até certo ponto, sim. Quer dizer, você não precisa mais quebrar a cabeça para desvendar a intenção do artista. No contemporâneo, ele sugere uma ideia e você a completa com sua própria experiência de vida. Por exemplo, o desenho de uma suástica. Com certeza, ele estimulará sentimentos diferentes se o visitante for judeu ou não. Mas, se a suástica é a mesma para ambos, o que muda? O visitante, ora. Percebe a liberdade de apreensão? Porém, como eu disse antes, você pode interpretar a obra como bem entender até certo ponto. Porque a Bienal ficará muito mais interessante se você conhecer a história do artista. Aproveitando o exemplo da suástica, você concordaria que a obra se transforma completamente quando descobrimos que o seu criador não é judeu, ateu ou praticante de qualquer outra religião, mas neonazista, certo? Pode acontecer... Isso nos leva a outro preceito importantíssimo da arte contemporânea: devemos conhecer o contexto da obra, pois normalmente ele é revelador. Só que a Bienal é enorme, como farei para descobrir a particularidade de cada artista? Não dá. A melhor saída é fazer uma visita guiada, pois a equipe de educadores passou meses estudando a exposição e vai adorar explicá-la a você. Eles estão lá para isso, então não tenha vergonha de perguntar tudo, por mais óbvio que possa parecer. Porque arte deve ser simples e prazerosa, e não um tormento inacessível. As obras de hoje costumam ter apelos conceituais, ou seja, nem sempre são o que parecem ser à primeira vista. Para explicar melhor, vou citar o Parangolé, do brasileiro Hélio Oiticica. Trata-se de uma capa de tecido, que deve ser utilizada para dançar. É uma das obras mais importantes da nossa história da arte. Mas você a verá exposta e sabe o que vai parecer? Um retalho de pano, "que até meu sobrinho de dois anos faria igual". Porque a obra não é a capa em si, mas o uso dela, aqueles movimentos ritualísticos que, ao ritmo da música, provocam uma experiência maior, que mistura cor, som e emoção, que nem o Carnaval. Mas como você vai descobrir isso? Tem que perguntar aos educadores, porque não dá para colocar um grupo de pessoas dançando o tempo todo na Bienal, né? Imagina a disposição! Eu quis citar o Oiticica porque haverá algumas obras fundamentais dele por lá, porque elas foram criadas há décadas e porque ele nos ajuda a deixar a tentadora ilusão da arte antiga de lado e adentrar esse rico universo de possibilidades do presente. Além do mais, ele chamava o espectador de um jeito muito mais carinhoso: participador. Portanto, deixo aqui o convite: vamos visitar a 29ª Bienal de São Paulo sem preconceitos, porque muita gente trabalhou sério durante pelo menos dois anos para proporcionar essa experiência física e intelectual. É uma oportunidade única que, se você permitir, acabará com uma série de ilusões ingênuas e lhe apresentará uma nova e maravilhosa realidade artística: a realidade de agora.


Quer saber mais sobre os Parangolés? O vídeo abaixo mostra uma experimentação da obra na Praça da República, Belém/PA.


29ª BIENAL DE SÃO PAULO
Parque do Ibirapuera - Portã​o 3
Pavilhão Ciccillo Matarazzo (Pavilhão da Bienal)

De 2ª a 4ª feira das 9 às 19h
5ª e 6ª feira das 9 às 22h
Sábado e domingo das 9 às 19h
(entrada admitida até uma hora antes do fechamento)

De 25 de setembro a 12 de dezembro
Entrada gratuita
Mais informações: http://www.29bienal.org.br/

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

POLÍTICA E, TALVEZ, ARTE



A 29ª Bienal de Arte de São Paulo está chegando – estreia dia 25 de setembro – e já se fala muito dela, basta abrir qualquer jornal ou revista especializada. O tema escolhido está diretamente relacionado com arte e política e, neste estranho ano eleitoral, parece bastante pertinente. Na verdade, espera-se que as discussões não o tomem ao pé da letra, mas que entendam "política" como uma manifestação social e expressiva, de significação mais ampla. Só que o argentino Roberto Jacoby deixará toda a poesia de lado e fará uma instalação inspirada na paixão que sente pelo PT. Ao que tudo indica, esta será precursora de alguns escândalos.

"Ao longo dos dois meses e meio da megaexposição internacional de arte, Jacoby terá cerca de 25 'cabos eleitorais' argentinos distribuindo panfletos, adesivos e buttons do PT e de sua candidata à Presidência da República", diz a Folha de São Paulo.

Segundo o autor da obra, "tudo é artístico" e a presença de Dilma Rousseff na Bienal é inevitável.

Será possível dissociar sua instalação de uma simples propaganda política?

Não que eu concorde com Jacoby ou aprecie a proposta, mas acho que existe sim uma possibilidade de entendê-la como arte e não como propaganda, e a resposta está num fato simples: ela acontece "no museu", quer dizer, dentro da instituição artística.

Essa solução é antiga. Em 1917, por exemplo, Marcelo Duchamp levou um mictório para dentro da galeria e aquela mudança de ambiente, somada à atitude do artista, o transformou em arte. Se voltarmos um pouco mais no tempo, chegaremos aos famosos Salões, que ditavam o que era arte de verdade e o que poderia ser descartado. Como faziam isso? Selecionando as pinturas que seriam expostas em suas paredes, ou seja, lá dentro, condecoradas e institucionalizadas.

Ao que parece, o PT não tem nenhum envolvimento direto com Jacoby; a manifestação acontece de pura e espontânea vontade, fruto de um fanatismo pra lá de esquisito. Mais esquisitas ainda foram suas declarações à Folha, ao admitir que gosta de Lula, porém não conhece Dilma muito bem: "O que conheço é o que está na internet. Sei que é economista, muito capaz, estudiosa e se transformou em especialista em energia elétrica num país tão grande como o Brasil. De Serra, não sei muito".

Fiquei curioso para ver a instalação. E ansioso pelos debates subsequentes. Porque, nessa proposta de unir arte e política num mesmo espaço – público, diga-se de passagem –, o mínimo que se espera é discussão. A arte está aí para isso. A reação dos visitantes também.


Leia a matéria completa da Folha.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Tem como olhar essa foto e não pensar em milhares de coisas?



Suíte Bahia (sem data), de Mario Cravo Neto (1947–2009)
Prêmio Mário Pedrosa, 2004

ARTE DE VERDADE, NUA E CRUA



A mostra Umbraculum, do belga Jan Fabre, em cartaz no Instituto Tomie Ohtake, não combina com estômagos fracos. São dezenove trabalhos, entre instalações, desenhos e vídeos, que quase sempre fazem referência à morte. Basta um primeiro olhar para sentir o clima: um crânio verde fixado à parede de maneira semelhante a um troféu de caça, mantos sacerdotais flutuantes e bichos pendurados em ganchos que pendem do teto. Só que é o segundo olhar que gera mais repulsa, amplificando aquele sentimento anterior. Isso acontece quando lemos as plaquinhas informativas e descobrimos que o crânio, por exemplo, é verde por conta das cascas de besouro que o envolvem; os mantos são constituídos de ossos humanos finamente cortados e costurados uns aos outros; e os bichos são – ou foram – reais, agora empalhados. Essa mudança na percepção do visitante é, na minha opinião, o mais curioso da mostra.

A opção do artista por materiais “de verdade” transforma completamente a apreensão do conteúdo. Os desenhos de papagaio, por exemplo, adquirem um novo significado quando descobrimos que foram coloridos com esperma. Na parede oposta, há outros, feitos com sangue. Além disso, o visitante ainda encontrará carne apodrecendo, um autorretrato coberto com pregos dourados e motosserras espalhados pelas salas do instituto. Esse aspecto grotesto, macabro, muitas vezes se sobrepõe ao simbolismo dos materiais, tais como a metamorfose do besouro e a transcendência da meditação e do trabalho, que a curadora Beatriz Bustos destaca no texto de apresentação. Mas, vencido o impacto inicial, é possível perceber ali algo além de nossos próprios preconceitos.



A tarefa não é fácil. Pois o artista se aproveita do choque para trazer à tona assuntos que normalmente evitamos no dia-a-dia, ou que preferimos mascarar com mitos, crenças e sentimentos enganosos. Como isso acontece contra a nossa vontade, nos sentimos agredidos, moralmente violados. Parte do mérito de Jan Fabre vem daí.

As obras exibidas abarcam cerca de trinta anos de uma carreira internacional consistente, que só agora recebe a primeira individual no país. Trata-se de uma boa oportunidade para conhecer o trabalho do artista e, de quebra, fazer um teste de resistência a enjoo. Ainda bem que os cérebros utilizados em uma das obras são de resina. Porque, se fossem de verdade, eu também teria colocado algumas entranhas à mostra. Eca!


UMBRACULUM para São Paulo.
Um lugar na sombra para pensar e trabalhar.

De 13 de agosto a 10 de outubro.
www.institutotomieohtake.org.br

terça-feira, 14 de setembro de 2010

SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE CRÍTICA DE ARTE

Dias 16 e 17 de setembro haverá seminário da Associação Brasileira de Críticos de Arte em São Paulo. Os assuntos são interessantes, confira a programação:


Clique na imagem para ampliá-la.

Mais informações: ABCA

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

A ARTE DA PAQUERA

O problema do espectador da arte é que ele espera demais dela, então ela se acanha, não se mostra totalmente. Bom mesmo é caminhar pela exposição com certa indiferença e, quanto uma obra despertar o interesse, travar com ela o diálogo típico das conquistas amorosas. Um olhar daqui, uma descoberta dali, um deslumbramento comedido. Quando perceberem, ambos estarão completamente envolvidos. E a magia estará feita.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

HISTÓRIAS QUE VIERAM PARA FICAR

Um livro-reportagem sobre rodoviárias não parece exatamente interessante. Só que, no caso de O livro amarelo do terminal, o preconceito acaba na primeira página. Até porque não se trata de um livro comum – o projeto gráfico, desenvolvido por Elaine Ramos e Maria Carolina Sampaio, da editora Cosac Naify, se destaca pela irreverência: impresso em papéis tão peculiares quanto aqueles dos bilhetes de viagem, fininhos, ele apresenta design sofisticado e intervenções ao longo do texto que propõem uma nova experiência de leitura. Tampouco falamos de uma rodoviária qualquer, mas do Terminal Tietê, o segundo maior do mundo, que se conecta a milhares de cidades do Brasil e da América do Sul. Para completar, não foi escrito por alguém que telefonou e fez uma entrevista de trinta minutos com o assessor de imprensa, mas pela então estudante de jornalismo Vanessa Barbara, que passou meses visitando o local, conhecendo pessoas, infiltrando-se no espaço físico e espiritual, observando, vivenciando e anotando tudo num bloquinho cor-de-rosa. O resultado é um apanhado interessantíssimo de “causos”, selecionados de algo muito maior, que se confunde com a própria cidade de São Paulo e seus habitantes. Quando a gente se dá conta, já se foi meio livro e ainda não deu vontade de largar.

Vanessa escreve com humor, ironia e clareza. Soube encontrar a alma da rodoviária naqueles que trabalham ali ou que apenas transitam, que aguardam ansiosamente parentes e amigos, que suam a camisa para comprar uma passagem e celebrar o Natal com a família a mais de três mil quilômetros da capital. Depois, ela cruza isso tudo com trechos de música, literatura e propaganda, enriquecendo a sensação apreendida durante a exploração.

São relatos de amor, luta e persistência, vividos por um povo que não conhecemos a fundo, mas do qual fazemos parte. Em outras palavras, a história do Terminal Rodoviário do Tietê é também a nossa história.

Os capítulos centrais, impressos em folha de papel carbono, são frutos da pesquisa que a autora realizou com mais de sesssenta reportagens da época da implementação, além de documentos, entrevistas e muita cultura popular. Atravessam a ditadura militar, resgatam nomes icônicos como Paulo Maluf e Romeu Tuma, dá vontade de rir e de chorar, tudo ao mesmo tempo. É impressionante por diversos motivos: pelos valores astronômicos gastos na construção e reforma, pelo jogo político, pela desordem, pelos conflitos de interesses, pelos debates arquitetônicos, pelas promessas mentirosas, pelo povo ficar sempre em segundo plano. Impressionante também por ter dado certo no final, coisa que nem Nostradamus previa e nem Freud explicaria. Típico de Brasil.

Desde que o livro foi escrito, em 2003, até a publicação, em 2008, muita coisa mudou. Novos capítulos surgiram e outros terminaram, não dá para saber com certeza ou atualizar tantos dados. Assim, o jornalismo-literário adquire aquela onipresença da ficção pura, coisa que não o anula, claro, apenas fornece novos valores. O capítulo seis, por exemplo, torna-se um conto perfeito, sem tirar nem pôr. Difícil dizer o que tem de reportagem. Tudo e nada ao mesmo tempo. Delícia de ler.

Vanessa Barbara provou que, com perspicácia e boa redação, até mesmo um assunto pouco atrativo como a história de uma rodoviária pode se transformar num livro muito bacana, que informa e diverte inclusive os leitores pegos de surpresa, como eu. A obra carrega adjetivos que muitos romancistas vêm procurando, normalmente em vão: inteligência, simplicidade e relevância. Os prêmios recebidos em 2008 e 2009, com destaque para o Jabuti, foram mais do que merecidos. Esse livro amarelo não tem como não agradar.


Trechos (ou aperitivos):

“A rodoviária do Tietê é uma cidade de coisas perdidas. ‘O caça-níqueis está aqui há dois anos’, informou a funcionária, mostrando uma lista que enumerava o esquecimento de espingardas (duas), motocicletas (duas), um banco de kombi, uma máquina de serrar azulejos, camas, muletas, motores de moto, pneus, dentaduras e uma mão mecânica. ‘Às vezes vem gente procurando amigos desaparecidos. Mostram a foto e perguntam se já encontraram’, conta Andréia, que trabalha no setor de Achados e Perdidos.” (p. 11)

“– Moça, onde é que eu faço inscrição para ir pro Iraque?
– … Desculpe?
– Pro Iraque. Eu quero ir pra guerra, buscar o meu filho.
– Ahn… senhora, nós não oferecemos esse tipo de serviço.
E a mulher foi embora, bastante brava com a incompetência das atendentes. Ora, que disparate. Como, não sabe responder a pergunta? I-N-F-O-R-M-A-Ç-Õ-E-S – é o que está escrito na placa.” (p. 37)

“Escreveu todas as instruções mais uma vez. Agora, em minúcias. ‘Ir até a rampa tal, comprar um bilhete de integração, entrar no metrô com destino a…’ Ele saiu com o papelzinho estendido na palma da mão, como se fosse uma bússola. No final do dia, antes de voltar para casa, ainda passou no balcão, agradeceu pelas informações e comprou um pão de queijo para Rosângela.” (p. 45)

“Certo dia, ele sentiu cheiro de fumaça e viu uma luz forte vinda de dentro de um dos armários Malex. Chamou um segurança e eles passaram algum tempo pensando, tentaram imaginar o que havia ali, concluíram que era muito suspeito e decidiram abrir o armário. Lá dentro, havia nada menos que uma vela acesa. ‘U-m-a-v-e-l-a-a-ce-sa! Pode?’
– Daí o segurança foi lá e fez ‘fuuuu’: apagou a vela. Então veio a mulher dona da vela e fez o maior fuzuê.” (p. 93)


Sobre o projeto gráfico e a reação da autora ao vê-lo (muito legal): Originalidade e ousadia em O livro amarelo do Terminal


Este texto também foi publicado em: Revista Psicanalítica

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

"ELE VIA O MUNDO DO JEITO QUE UM SANTO SEM CABEÇA O VERIA"

Como um esquizofrênico percebe o mundo? É algo que me pergunto desde que comecei a pesquisar a relação entre arte e espectador, segundo aspectos psicológicos, onde o assunto vive dando as caras. Porque o mundo é sempre o mesmo. Se parece diferente para mim ou para você, é porque nós somos diferentes, temos vidas diferentes, conhecemos pessoas diferentes e temos interesses diferentes. Os esquizofrênicos também têm suas peculiaridades, porém não tantas quanto se supõe – são pessoas como eu e você, que, no entanto, não separam muito bem o consciente do inconsciente, como se vivessem no mundo dos sonhos. Pelo menos é assim que Freud explica. Quando descobri que esse era o mote do romance Afluentes do rio silencioso, fiquei curiosíssimo. O que estaria me esperando ali?

A história se resume às perambulações de um garoto, conhecido como Lowboy (um tipo de cômoda baixa, título original do livro), que foge do hospital psiquiátrico em que trata sua esquizofrenia paranóica e se embrenha nos túneis do metrô nova-iorquino. Ele quer salvar o mundo do aquecimento global. Para encontrá-lo, a mãe e o policial responsável pelo caso devem reconstituir seu percurso – uma frágil linha de raciocínio que, tal como o metrô, se cruza com uma infinidade de outras.

É muito bacana a maneira como o autor – o norteamericano John Wray – retrata o fluxo de pensamentos do garoto, intercalando-os com capítulos racionais e dedutivos protagonizados pelo detetive. Esses contrapontos nos permitem sentir melhor as diferenças psicológicas existentes entre eles. Em diversos momentos, fiquei me perguntando: "Será que é assim mesmo? Será que é assim que um esquizofrênico pensa? Que vê o mundo?" E tudo que Lowboy inventa, as pessoas imaginárias com quem conversa, os planos conspiratórios de que se sente vítima, tudo é confuso, chega a nos tirar o fôlego e embaralhar a realidade. Verdade ou mentira? Fato ou ficção? Como um escritor são pode descrever o processo cognitivo de um esquizofrênico?

Os capítulos sobre Lowboy são difíceis de entender. Não se sabe ao certo o que está acontecendo, não se tem noção precisa do tempo e não é possível deduzir o próximo passo. Por quê? Porque nossa tendência de racionalizar encontra ali uma barreira. Ora, se nem sempre há sentido lógico em nossas escolhas, imagine nas de um doente mental. Evidencia-se um ponto em comum: somos todos movidos pela emoção.

Isoladamente, as falas do garoto são desconexas, mas, no contexto de seus pensamentos, elas fazem sentido – um sentido que, na maioria das vezes, só ele compreende, mas que é suficiente para decidir e agir.

Durante o romance, outras questões cruciais vão surgindo: os esquizofrênicos conseguem mentir? Por que teriam essa necessidade? Qual é a diferença entre mentira e ficção? Existe imaginação pura? Como sabemos que estamos de acordo com a normalidade? Qual seria o parâmetro? As ideias não viriam de momentos de delírio? Nossos desejos não influenciam nossos pensamentos?

Além do fluxo de informação, que deixa a história com aspecto desordenado, há outros recursos que o autor utiliza para obter a sensação de desconforto mental, tal como perguntas sem pontos de interrogação, vírgulas fora de lugar e falas, pensamentos e narração misturados, sem indicação ou destaque. Deve ter dado um trabalhão para a tradutora, Vanessa Barbara.

Vamos a cada página nos enfiando no lodo contagiante da esquizofrenia, acostumando com a falta de exatidão, com o pouco ou nenhum controle sobre a sequência de fatos. Lemos, imaginamos, percebemos tudo que acontece à nossa volta e, de repente, tudo faz sentido e pode ser experimentado, por mais estranho que seja. Não existe certo ou errado, apenas a verdade entendida à nossa maneira. Todo o poder a que um leitor poderia almejar.


Trechos:

"Lentamente, seus pensamentos também se encaixaram. Mesmo a mente estreita e claustrofóbica de Lowboy sentiu afeição pelo túnel. Afinal, era sua cabeça que o fazia de refém, não o túnel nem os passageiros do trem. Sou um prisioneiro do meu próprio crânio, pensou. Refém do meu sistema límbico. Não há saída além do meu nariz." (p. 9)

"Conforme ela se aproximava, o túnel contraía-se como uma boca e Lowboy começou a ficar preocupado. Havia gente no caminho, mas ele as ignorou. Eu fiz um bom trabalho Rafa, ele gritou. Os grafites me disseram. Vá mais devagar, srta. Covington. O mundo pode parar de acabar. Mas então ele correu direto para o Caveira e o Esqueleto." (p. 293)


Afluentes do rio silencioso, de John Wray
Companhia das Letras, 2010, 304 páginas
Página oficial: Cia das Letras

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

DILEMAS DA TELA EM BRANCO

"O conteúdo da tela vazia aumentou à medida que o modernismo avançou. Imagine um museu dessas forças, um corredor do tempo com telas vazias penduradas – de 1850, 1880, 1910, 1950, 1970. Cada uma contém, antes que se passe o pincel nela, presunções implícitas na arte de sua época."

Brian O'Doherty, em O olho e o espectador (do livro No interior do cubo branco)

FAZENDO PINTURA, FRAME A FRAME



Duas coisas me chamaram a atenção quando assisti a esse vídeo. A primeira foi o uso do computador. Sei lá, não esperava ele ali, mas faz todo o sentido, claro. A arte acompanha a tecnologia e as referências de hoje vêm da internet, dos estudos feitos em softwares específicos etc. A segunda foi a aplicação das cores. Que coisa maluca! Parecem atiradas aleatoriamente no papel, mesmo depois de Jackson Pollock ter provado que nada acontece somente por acaso, nem mesmo os respingos. Tanto que, no final, elas se encaixam perfeitamente nos desenhos. Muito bom mesmo.

Ótima dica de MariaThiemy

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

MIRADA_FESTIVAL IBERO-AMERICANO DE ARTES CÊNICAS DE SANTOS

Confira a programação desta edição. Tem atrações de diversos países. Difícil é escolher a melhor.


Clique na imagem para ampliar.

Mais informações: MIRADA

ARTE SEM SE VER, DOR QUE NÃO SE SENTE

Ao saber da mais recente exposição de fotografias do Senac/SP, fiquei me perguntando o que faz um cego escolher essa forma de expressão e como é seu processo criativo. Isso mesmo, o artista, no caso, é o esloveno Evgen Bavcar (1946-), totalmente cego desde os doze anos. Além de ser um nome importante da arte contemporânea, ele é também historiador, filósofo e doutor em estética pela Sorbonne, Paris. Um homem que talvez caminhe contra a natureza e contra todos os preconceitos daqueles que não conhecem sua realidade, mas que está totalmente a favor da arte.

Abaixo estão alguns exemplos de seu trabalho, além de informações sobre a exposição. Ainda não fui visitá-la, embora pretenda fazer em breve.

Bavcar também participou do documentário Janela da Alma (2002), de João Jardim e Walter Carvalho. É um filme que recomendo a todos, além da ficção Ensaio sobre a cegueira (2008), que Fernando Meirelles realizou baseado no romance de José Saramago. Ambos abordam o tema da cegueira por perspectivas bem diferentes – e complementares. Excelentes!










Exposição Estética do (in)visível
De 26/8 a 17/9/2010, de segunda a sexta, das 9 às 21 horas; sábados, das 9 às 16 horas.
Entrada gratuita
Senac Lapa Scipião
Rua Scipião, 67 – Lapa
Tel.: (11) 3475-2200

Mais informações: Senac

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

ELIAS, O GÊNIO


Medusa after Caravaggio, de Vik Muniz


Elias mal completara vinte e três anos quando teve a grande ideia de sua vida: dali em diante, nunca mais tomaria banho. Claro que não foi uma decisão fácil; ele pensara durante um bom tempo antes de finalmente abraçar a causa. A iniciativa tinha que vir de alguém. E para que serve tanto banho, afinal? Neste mundo movido a inovações mirabolantes e sucessos instantâneos, Elias percebeu que o melhor seria radicalizar para se destacar. Punha os motivos nos dedos toda vez que alguém o questionava e acreditava piamente neles. De onde vinha aquela maluquice? Do mesmo lugar de onde vêm todas as outras: da necessidade de satisfazer a ambição.

No começo, todos acharam que era coisa de jovem rebelde, que passaria logo. Onde já se viu alguém deixar de tomar banho? Nem os franceses são tão enfáticos. Porém, quando os primeiros indícios de seriedade começaram a aparecer – dava para sentir de longe –, vieram também as expressões fechadas e os olhares incrédulos. Perplexos. Só que Elias não via maiores problemas na falta de banho, tanto que pregava o costume com a maior convicção.

Já pensou no tempo que se perde diariamente debaixo do chuveiro? Ou, pior ainda, imerso na banheira? Imerso na banheira! Sim, tempo precioso. Tudo é movido a tempo hoje em dia. Agora, some a esse tempo as horas que você desperdiça dormindo. Assusta, né? Então, continuando a somar, considere uma generosa dose de trânsito. Atrasos. Salas de espera. E, já ia me esquecendo: você come, certo? Argh... café-da-manhã, almoço, jantar, lanches. E mais trânsito! Foi aí que Elias resolveu não tomar outro banho. Nenhumzinho, nem daqueles "de gato", com canequinha.

Que maravilha! Muitos minutos extras para os dias conturbados. Muitos minutos extras para os dias sossegados. O tempo de Elias rendia que era uma beleza. Ele produziu mais, ganhou aumento. Leu mais, ficou inteligente. Sua fórmula começou a atiçar a curiosidade dos amigos; afinal, o cheiro não incomodava tanto, principalmente quando comparado àquele sucesso repentino.

Então, os mais chegados começaram a se esquecer do banho também. Ora, não é que o dia se multiplicava mesmo? Não demorou muito para a corrente cair na imprensa e o mundo inteiro deixar o banho para a história. Elias era um marco.

As fábricas de chuveiro faliram, pois é. Mas sempre existem os espertos oportunistas e uma enorme gama de novos produtos invadiu o mercado. Sachês perfumados, lencinhos umedecidos, pregadores coloridos colecionáveis, colônias, desencrustantes. O ser humano se adapta fácil.

O único que odiou a moda foi Elias, pois todos se igualaram a ele novamente. Pior: revogaram seu aumento! Claro, a produção individual se normalizou, todos voltaram ao mesmo nível, era justo que voltassem também ao mesmo barco. Salário mais alto causaria discórdia, veja bem, foi o que disseram. Reconhecimento? Bah. Welcome to the jungle.

Então, certo dia, Elias teve outra ideia genial: deixar de dormir!

Ah, humanidade...

Um mês de olheiras e o salário de Elias tornara a ser digno. Virava noites e mais noites no escritório. Contava vantagem. Estava feliz.

Não quis deixar que seu segredo se espalhasse, não queria que todos o copiassem mais uma vez, mas foi em vão. Era complicado demais esconder a verdade, mesmo debaixo daquele cascão. Tinha que mudar a estratégia e sempre se adiantar, inventar as tendências ao invés de se moldar a elas.

Então, quando as pessoas começaram a passar noites em claro, Elias aposentou a escova de dentes. Na sequência, vieram as roupas. Por fim, a televisão. Inteligentíssimo, ousado e empreendedor, Elias prosperava. Centenas, milhares, milhões. Elias estava sempre um passo à frente, era quem abria a trilha rumo ao futuro. O mundo o proclamava ídolo, celebridade incontestável.

Elias adorava a mídia, embora não conseguisse se dedicar a ela. Seu tempo estava todo concentrado em obter mais tempo.

Porém, como nem tudo são flores – e as flores murcham depois de colhidas –, todos alcançavam Elias rapidamente e ficavam parecidos com ele. Qualquer um tinha as mesmas vantagens a oferecer. Ele ficou bravo. Entrou em depressão, quase enfartou. Como podiam copiá-lo assim, descaradamente? Precisava se diferenciar de alguma maneira, precisava de uma saída inovadora, uma nova ideia genial.

Então Elias deixou de comer.


Publicado originalmente em: CCSP

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

MUITO EXCESSO É DEMAIS


Monalisa aos doze anos de idade (1959), de Fernando Botero

Quando idealizei esta crônica, eu queria falar dos exageros do homem contemporâneo. Só que, na hora de colocar a ideia no papel, eram tantas analogias, referências e citações que não sabia nem por onde começar. Foi assim, por acidente, que também me descobri vítima desse mal. Um mal que nos obriga a saber tudo sem entender nada, a acumular amigos sem conhecer ninguém de verdade, a correr para cumprir missões que poderiam ser postergadas e a exigir informações cada vez mais objetivas. Pois, agora, qualquer tempo usado é tempo perdido.

O fato de ter chegado a este segundo parágrafo já faz de você um(a) vitorioso(a). Tenho certeza de que muitos começaram a ler e pensaram "isso não me interessa", passando rapidamente à próxima coluna, enquanto outros acharam "legal, vou guardar para ler depois" e jamais retornarão àquele velho recorte de jornal. É uma pena, porque vou falar de Epicuro, um interessante filósofo que viveu entre 341 e 270 antes de Cristo e que, naquela época distante, já sabia das coisas. Entre elas, como lidar com os exageros e onde encontrar a felicidade.

Você já deve ter visto por aí o termo "epicurista", embora provavelmente tenha uma noção errada de seu significado original. Fui consultar o dicionário e mesmo lá se usa "materialista" e "sensual" para defini-lo. Só que Epicuro não foi um homem banal, ainda que sua grande contribuição para a história tenha sido adotar o prazer como estilo de vida e, a partir dele, ter formulado seus conceitos filosóficos. "Não sei conhecer o bem", escreveu, "se reprimo os prazeres da mesa, da luxúria e da audição, e se me privo das agradáveis emoções causadas pela visão das belas formas".

Uma leitura superficial pode trazer mesmo a ideia de que a felicidade de Epicuro estava diretamente relacionada com a comilança, o sexo e a preguiça – é aí que tudo se confunde. Na verdade, poucos filósofos foram tão francos em admitir que a vida deveria se voltar ao prazer. Um número ainda menor se preocupou em desvendar o que seria esse prazer e como, em geral, ele é erroneamente associado com fama, poder e extravagâncias. Epicuro estava entre estes últimos.

A pergunta que direcionou todo o seu pensamento foi: "O que me fará feliz?" Ele sabia que a intuição não bastava para obter uma resposta consistente, porque não é realizando desejos como trocar de carro uma vez por ano, comer em restaurantes caros e se relacionar com o maior número possível de pessoas que se atinge a felicidade plena. Esta seria encontrada a partir de um esforço basicamente racional, ou seja, a tarefa da filosofia consistia em ajudar a interpretar nossos impulsos e, desse modo, evitar planos equivocados para a conquista de prazer. Em outras palavras, a felicidade viria da melhor compreensão de nossos desejos e necessidades, ao invés dos exageros que muitas vezes se impõem com a promessa de satisfação.

Para você ver como o termo "epicurista" é mal empregado, a casa do filósofo era simples, assim como sua comida. Não havia excessos materiais ou sensuais, como sugere o dicionário. A felicidade se justificava apenas com a presença de amigos e com a liberdade de agir sem vergonha de si mesmo, ou seja, sem a obrigação de provar nada a ninguém. A reflexão era seu único requisito para acalmar a mente e reconhecer o valor das coisas simples, como o alimento, a natureza e a tranquilidade. Sua filosofia era tão visionária que, já naquele tempo, se preocupava com o poder da propaganda. Para ele, a publicidade não influenciaria tanto nossas vidas se não fôssemos sugestionáveis em demasia.

O que me fez lembrar de Epicuro foram alguns fatos decorrentes dos últimos grandes eventos literários do país: a FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty) e a Bienal Internacional do Livro de São Paulo. Na primeira, ganhei um adesivo com os dizeres "Você pode ler mais". Na segunda, me deparei com uma coleção de livros assinada com as palavras de ordem "Leia mais". É verdade que, comparado a outros povos, o brasileiro lê pouco. Mas, vendo todo esse exagero que movimenta nossas vidas, fiquei me perguntando se essa seria a melhor abordagem para incentivar a leitura por aqui. É curioso como aceitamos passivamente essas mensagens, enquanto consideraríamos absurdo um "Você pode comer mais" nas embalagens do McDonald´s, por exemplo, ou um "Fume mais" nos maços de cigarro.

Não dá para levar tudo ao pé da letra, nem mesmo o epicurismo. Um exagero ou outro, aliás, pode ser saudável, porque é testando os limites que demarcamos a área mais segura para se habitar. Como disse um colega de trabalho, alguns excessos fazem parte, são eles que dão emoção à vida e que nos tiram da rotina. Só não podemos abusar sem considerarmos os ensinamentos daquela filosofia, que buscava na razão o sentido de nossos desejos e o equilíbrio verdadeiramente saudável. Pois, como meu colega disse, "a gente só quer ser feliz; porém, até mesmo quando o assunto é felicidade, muito excesso é demais". Percebi na hora que não haveria título mais apropriado para esta crônica.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

O MENINO QUE TOMOU UM ATALHO NA VIDA



Joãozinho era um menino que gostava de desenhar. Um dia, fez uma porta mágica com aquarela e nanquim, passou por ela e se transformou num cartunista famoso. Tinha apenas catorze anos.

Essa não é bem a história de João Montanaro, mas, se eu contasse a verdade, você provavelmente não acreditaria. Então vamos nos ater aos fatos:
1. João é um cartunista famoso;
2. Acabou de lançar seu primeiro livro;
3. Tem apenas catorze velinhas no bolo.

É do item número 2, chamado Cócegas no raciocínio, que quero falar, porque o resto é tão fabuloso que nem se discute. Bom, fiquei sabendo do caso pouco antes da Bienal do Livro de São Paulo e, como bateu aquela curiosidade, fui ao estande da Garimpo Editorial me informar. João não estava – já era hora de criança estar na cama. Conversei com o expositor e ele confirmou toda a história. Comprei um exemplar e fui ler com meus próprios olhos. Adorei.

Como se tivesse atravessado uma porta e chegado à maturidade, João apresenta um trabalho conciso e inteligente. Suas sacadas têm aquele teor crítico e sarcástico que faz das charges uma arte respeitável. O traço é solto e aparentemente despretensioso, e é esse “aparentemente” que o diferencia das meras ingenuidades infantis.



Li o livro inteiro numa só tacada e fiquei feliz por descobrir essa pérola – sem dúvida, foi um dos grandes destaques da Bienal. Trata-se de uma coletânea de tiras e charges publicadas em jornais e revistas relevantes, tais como a Folha de São Paulo e a MAD, além do blog Por João. Tem ainda uma história inédita e homenagens imperdíveis feitas por cartunistas do porte de Laerte e Adão, que se tornaram seus amigos.

Mas como é que ele conquista tanta gente? Talento e técnica à parte, João aproxima o leitor de seu universo fazendo piada do próprio processo criativo. De alguma maneira, ele nos permite conhecer sua intimidade e, como se emprestasse um lápis, nos deixa brincar também. Porque é uma brincadeira para ele, dá para perceber isso na espontaneidade de cada traço. Tomara que continue assim.

Os diálogos com os ídolos também são demais, dá vontade de participar daquele seleto grupo de escolhidos. Sem falar das referências que se descobre em cada tirinha. Nossa, o menino é um poço de cultura! Ouve Beatles em iPod, tudo junto, como se conhecesse as coisas do passado tão bem quanto as do presente. Parece ser mesmo muito mais vivido. Deve ter pego um atalho na vida.

Não vou falar mais para não estragar a piada ou contar o fim da história. Recomendo que todos leiam e tirem suas conclusões. Só queria aproveitar e dizer que, com esse livro, João Montanaro ganhou um fã, que agora quer um autógrafo. Vou correr para providenciá-lo, pois, se João continuar crescendo nesse ritmo, pode se tornar em breve um velho ranzinza à lá Crumb e me negar. Caramba!

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O ÚLTIMO PIO DO ABAPORU


Abaporu (1928), de Tarsila do Amaral

Acabo de reler a matéria abaixo, publicada há quase 15 anos.
Vi o Abaporu no MALBA, em Buenos Aires, no março passado.
Ele mandou lembranças e disse que sente saudades.
Na realidade, o Abaporu nunca entendeu como os brasileiros o deixaram ser vendido. Ele também não se conforma.
"Me leve de volta", pediu.
"Não posso", respondi. "Meu dinheiro não move tantas montanhas".
O Abaporu chorou.
Uma brasileira se aproximou, comentou com o acompanhante que já tinha visto aquele quadro em alguma coleção de canecas e foi embora. Ela ainda me olhou estranho por conversar com a pintura.
Achou que eu falava sozinho.
Talvez estivesse certa.


Tela foi vendida em menos de dois minutos
Daniela Falcão, 22/11/1995 (Folha de São Paulo)

O quadro Abaporu, da pintora brasileira Tarsila do Amaral (1886–1973), que foi arrematado na noite de anteontem pelo colecionador e banqueiro argentino Eduardo Constantini por US$ 1,3 milhão, recebeu o maior valor já pago por um quadro brasileiro em toda a história. (...)

FREUD ESPIRRA

Um homem conversa com o psicanalista:
– Sabe, sou louco por símbolos, metáforas e mistérios.
– Sei.
– Só que ninguém me entende.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

A BIENAL QUE NÃO ESTÁ NAS PRATELEIRAS



É uma vergonha, eu sei, mas até o domingo passado eu nunca tinha ido à Bienal Internacional do Livro de São Paulo. O que mais me instigava era justamente o que mais desanimava: como aquele monte de gente conseguia ver os livros, coisa que demanda tempo, silêncio e atenção? Esbarrando-se uns nos outros? Acotovelando-se para abrir espaço? Tudo para passar os olhos numa capa ou, no máximo, ler as orelhas? Eu queria muito mergulhar no universo mágico das letrinhas, mas tinha um receio danado da multidão. E, no final, a visita sempre ficava para a próxima.

Imagine minha surpresa ao entrar no Anhembi e encontrar corredores tranquilos, estandes espaçosos e expositores cheios de atenção para dar. Era noite e fazia frio, muito frio, o vento congelava as extremidades do corpo e, em pouco tempo, perdi a sensibilidade do nariz. Mas tudo bem, quem se importa com nariz quando tem montanhas de livros pela frente? Bastaria uma caneca de chá e o empecilho estaria superado.

Passados alguns minutos, com o chá em mãos, comecei a perguntar mentalmente o que eu procurava ali. Porque não havia naquelas prateleiras nada muito diferente do que se encontra nas grandes livrarias da cidade. Afinal, ninguém mais segura uma publicação por até dois anos para lançá-la na Bienal, se é que já se fez isso algum dia. As palestras também tinham acabado, assim como as mesas de autógrafo. Comecei então a procurar descontos.

Algumas editoras eram pura tentação, tais como a Objetiva e a Alfaguara, que ofereciam boa parte do catálogo com até 50% de desconto. Outras, em compensação, estavam mais caras do que nas livrarias e, no geral, não vi vantagem. Nesse quesito, sou mais a Feira da USP, em que se vende tudo pela metade do preço usual.


Os grandes destaques da feira ficaram mesmo para os e-readers, que podiam ser experimentados no estande da Imprensa Oficial. O site de compras Submarino também compareceu – levou computadores ao invés de livros e as compras eram feitas pela internet, com descontos exclusivos.

Também tive a oportunidade de conhecer projetos sociais de incentivo à leitura, como o Ler é bom, experimente!, idealizado por Laé de Souza. Ele trabalha com estudantes de todo o país e os resultados são formidáveis, como o livro Melhores crônicas, volume 1, coletânea com cinquenta textos produzidos pelos participantes. O próprio Laé me contou, cheio de orgulho, que esses autores-mirins compareceram à Bienal para autografar os livros, alguns vindos de lugares tão distantes quanto o interior da Bahia. Vide a importância que a literatura tem para eles.


O cartunista João Montanaro em seu estúdio

Se fiz questão de comprar um livro, foi o Cócegas no raciocínio, de João Montanaro. O menino-prodígio de catorze anos, que já publicou no jornal Folha de São Paulo e na revista MAD, tem um trabalho maduro, inteligente e criativo, que acaba de ser lançado pela Garimpo Editorial. Trata-se de um apanhado de cartuns, complementado com material inédito. Dá uma inveja danada, queria ter eu esse talento desde cedo! Por isso, não pude deixar de prestigiar.

Terminei a visita junto com os expositores. Já era tarde, começaram a isolar os estandes e eu corri aos que ainda não tinha visto. Saí satisfeito, porém, com a sensação de que os livros ali são o que menos importa. Pois, com lançamentos que antes já se encontravam nas lojas, poucos descontos e ingresso e estacionamento caros, bacana mesmo é aquilo que não cabe nas prateleiras, como os debates, o contato direto com os autores e os projetos sociais. Isso sim torna a Bienal do Livro imperdível.



Site oficial da Bienal do Livro de São Paulo
Laé de Souza: Projetos de Leitura
Blog de João Montanaro: Por João

sábado, 14 de agosto de 2010

TRÊS VERSÕES DE UMA MESMA HISTÓRIA


O beijo (meu) (2007)

Eu caminhava aos tropeços pelas ruas de Paraty, indo e vindo com a sensação de estar sempre no mesmo lugar, contornando a multidão de frequentadores da FLIP. Foi quando vi a tal mulher. Ela falava com um policial e parecia aflita. Na mesma hora, pensei: "Que coisa chata, roubada bem aqui, num evento literário". O policial gesticulou, apontou para o lado da praia e falou alguma coisa. A mulher balançou a cabeça, positivamente, e se pôs a andar naquela direção. "Ah, era apenas um pedido de informação, não um roubo". Então a mulher parou e voltou atrás. Os dois se aproximaram e, num só impulso, se abraçaram e beijaram ardentemente. Um beijo de tirar o fôlego de qualquer um que estivesse observando.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

APROXIMAÇÕES E DESAFETOS ARTÍSTICOS


J. Miguel e Fabricio Lopez no ateliê de Bezerros, interior de Pernambuco (2010)

Às vezes a gente força uma aproximação entre obras pouco semelhantes e dá certo, veja só, porém muitas outras vezes não dá. Deste último caso, tenho dois exemplos recentes: a exposição Guignard e o oriente, no Instituto Tomie Ohtake, e Aproximações, xilogravuras de Fabricio Lopez e J. Miguel, na Galeria Estação, ambas em São Paulo.

Na primeira, a influência oriental sobre o pintor brasileiro aparece nas obras de maneira muito sutil, talvez na estilização das figuras, na relação pouco realista dos planos e na construção de amplas paisagens montanhosas. A arte e a cultura orientais, em especial chinesa e japonesa, atiçavam a curiosidade de Guignard e o levaram a colecionar uma porção de livros, utensílios domésticos e pôsteres. Só que sua pesquisa artística estava muito ligada à brasilidade mineira, às nossas festas míticas e à nossa natureza. Se existe ali algo de oriental, não passa de detalhes técnicos ou formais, de pouca relevância quando consideramos o lugar que sua produção ocupa na história da arte.


Paysage (1946), de Zhang Daqian e Noite de São João (1961), de Guignard

Quanto à mostra na Galeria Estação, podemos dizer que tudo começou com a vontade de experimentar. A ideia de unir dois gravuristas com estilos bem diferentes numa só exposição, um “regional” e outro “contemporâneo”, ditos “popular” e “erudito”, evoluiu para uni-los no ateliê. Assim, o jovem Fabricio Lopez tomou um avião rumo à pequena Bezerros, no interior de Pernambuco. Na bagagem, levou papéis de todo tipo, entre importados e raros. Além de trabalhar em conjunto, Fabricio tinha esperança de impressionar J. Miguel e transformar sua produção apresentando as novidades do mercado. A ilusão foi tão grande quanto o tombo. “J. Miguel não ficou exatamente empolgado com a possibilidade de produzir xilogravuras a quatro mãos”, escreveu o jornalista Humberto Werneck, que acompanhou a empreitada. Os papéis especiais de Fabricio tampouco tiveram utilidade naquele ambiente precário, onde ainda se empregam técnicas e maquinários antiquíssimos.

Em conferência na galeria, Fabricio confessou alguma arrogância não-intencional nessa sua atitude, pois queria levar a Bezerros a experiência adquirida na metrópole como se ela significasse um passo à frente na evolução da xilografia. “Fui com a ideia de que poderíamos produzir juntos e utilizar novos materiais. Foi ingenuidade de minha parte”.

Naquele duelo com a tradição, o artista residente em Santos, no litoral paulista, percebeu que tal evolução não existe. Com quatro décadas de prática e herdeiro de um hábito familiar que já dura muitas gerações, J. Miguel comprovou a excelência de sua arte, mesmo que jamais tenha pensado em arriscar o inusitado – como sobrepor imagens e cores, ou utilizar outros formatos ou papéis – ou negociar sua gravuras diretamente, ao invés de aplicá-las em subprodutos (cordéis, panos e artigos de decoração).


Xilogravuras realizadas em conjunto por Fabricio Lopez e J. Miguel (2010)

“O que estes dois estão fazendo juntos aqui?”, pergunta Humberto Werneck no catálogo da mostra. “A não ser pela arte a que se dedicam, pouca coisa têm em comum”. É fato que essa disparidade de mundos, incluindo aí localização, idade e cultura, revelou-se uma barreira muito mais desafiadora do que se imaginava. No entanto, nesse e também no caso de Guignard, a tentativa é válida, claro. Comparar trabalhos com objetivo de descobrir aspectos comuns, gerar conhecimento e possibilitar novas leituras é, em parte, o que mantém viva a arte do passado e o que cativa a do presente. Pois é a disparidade que nos permite perceber o novo, assim como é o desafio que nos permite criá-lo. Sendo o resultado positivo ou negativo, ele não invalida o resto do processo, e muitas vezes é a isso que precisamos nos atentar.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

OS "PENGUINS" APORTARAM EM PARATY



A FLIP deste ano não trouxe muitas novidades, como já disse em texto anterior. Debateram o futuro do livro de papel, comentaram a obra de alguns autores das antigas e homenagearam – com razão – o grande Gilberto Freyre. Só que isso tudo já tinha sido feito antes. Agora, o que me deixou realmente feliz foi ver o estande da editora Penguin, famosa por publicar clássicos da literatura com preços acessíveis. O melhor: os livros estavam em português!

Trata-se de uma parceria com a Companhia das Letras e, por enquanto, apenas quatro títulos foram publicados. Mas é emocionante ver aquelas capas tão características da Penguin com títulos escritos em minha língua natal.

Acesse o site da editora e fique feliz comigo!

FICÇÕES_GABRIEL BÁ NA FLIP

Essa história foi escrita e desenhada por Gabriel Bá com exclusividade para a FLIP, com objetivo de divulgar o selo Quadrinhos na Companhia, da editora Companhia das Letras. Ela foi distribuída lá gratuitamente e resolvi reproduzi-la aqui para dividir com você, porque achei muito bacana. Clique nas imagens abaixo para ampliá-las e descobrir como a ficção e a realidade se misturam nessa dádiva chamada literatura.


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terça-feira, 10 de agosto de 2010

INTELECTUAIS TAMBÉM FAZEM XIXI FORA DO VASO



Em sua oitava edição, a FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty) continua batendo recordes, seja de visitantes, velocidade de venda de ingressos ou reconhecimento internacional. Estive lá no último sábado para respirar aqueles ares e assistir ao debate entre Robert Crumb e Gilbert Shealton, dois quadrinistas da dita contracultura americana. Foi minha segunda FLIP – já tinha participado em 2008 – e foi diferente, claro, as coisas mudam bastante e em pouco tempo. Sabe o que mais chamou minha atenção? O lugar que a literatura perdeu para as outras atrações.

Sim, na primeira vez, Paraty cheirava a livros, via-se papel pólen por toda parte, jornais e revistas abertas, leitores ávidos por exercerem sua função e exibir os títulos favoritos pelas ruas. Lia-se até manual de instruções e direito autoral de cardápios. Havia também escritores inéditos em busca de editoras, outros vendendo livros publicados do próprio bolso, gente de todo o país divulgando trabalhos como verdadeiros mascates. Só que agora não. A cidade estava abarrotada, é verdade, mas de seguranças, artesãos, camelôs, violeiros, índios, estátuas vivas, fotógrafos, jornalistas, celebridades e curiosos tarados por muvuca. A FLIP agora é pop, sabe, todo mundo quer dizer que esteve lá pagando de intelectual, mesmo que o último livro lido tenha sido da Coleção Vagalume, no ensino fundamental.

Nada contra, claro, a participação é direito incontestável. Só que os números preocupam e, como disse, a FLIP não para de bater recordes. Os restaurantes, por exemplo, não davam conta dos clientes – meu almoço demorou uma hora e meia para chegar. Folhear um romance entre bebericadas de café também era um prazer impraticável, porque as mesas estavam sempre ocupadas e a espera era longa. E os banheiros... esse foi o capítulo verdadeiramente tenso da história, pois toda a água, cerveja e refrigerantes consumidos pelos milhares de visitantes terminavam num reduzidíssimo número de banheiros químicos – falha grave da organização que vai marcar minha biografia para sempre.

De resto, posso dizer que as lojas de cachaça, miçangas e bugigangas estavam bastante concorridas – talvez até mais do que os banheirinhos de plástico –, assim como as festas dos patrocinadores. A única livraria do centro histórico, no entanto, fechou. Livro mesmo, só na unidade temporária da Livraria da Vila, com sede em São Paulo, que montam lá durante esses dias. E depois? Os autores se vão, os volumes se vão e os leitores que sobram ficam órfãos. Muito triste.

Agora, se as exposições de fotografia, artes plásticas e manifestações literárias passavam despercebidas nas instituições culturais, a programação da Flipinha e da FlipZona (para crianças e jovens) arrasou, positivamente falando. Tinha música, pintura e quadrinhos, além de contação de histórias e discussões na língua da moçada. Tenho certeza de que eles se divertiram à beça. Assisti à apresentação de dois jovens músicos da região, que tocaram canções criadas ali mesmo, pelas gerações passadas, e à palestra de Sérgio Martinelli, sobre produção de textos para cinema e TV. Ambas com gente em pé, de tão cheias.

O debate entre Crumb e Shealton foi morno, quase frio, com perguntas genéricas a respeito da época de ouro deles e respostas prontas que se encontra em qualquer entrevista concedida nos últimos quarenta e cinco anos. Eu queria saber a opinião deles sobre as produções contemporâneas, próprias e alheias, e os fãs estavam tão ansiosos quanto eu; porém, exceto por breves comentários acerca das obras recém-publicadas e pela participação inesperada da esposa – também quadrinista – Alice Crumb, pouco se salvou. Dava para perceber a decepção geral pelos murmurinhos na saída.

Mas, como o nome diz, a FLIP é uma festa, não uma feira, e foi divertida como toda festa deve ser. Não quero você pensando que odiei, muito pelo contrário, não tem como odiar Paraty, a não ser que se esteja em cadeira de rodas. A comida estava boa, as pessoas pareciam felizes e a movimentação era, de alguma maneira, cultural. Talvez a falta de estrutura tenha se mostrado apenas no sábado, quando aparece mais gente. Não pude ficar no domingo para averiguar, já que escolheram bem o Dia dos Pais para finalizar o evento – sabe como é, não dava para trocar o almoço com o meu por um Breakfast at Tiffany´s.

Em resumo: não consegui nenhum autógrafo, não adquiri nenhum livro e praticamente não escrevi. Confesso que dei minhas escorregadas não-literárias e comprei lembrancinhas para a família, tudo por culpa daquelas lojinhas charmosas. Tampouco descobri grandes novidades do universo das letrinhas, embora tenha constatado nos banheiros químicos que intelectuais também fazem xixi fora do vaso e, quanto a isso, só posso agradecer por ter nascido menino.

Ao mesmo tempo em que o excesso de celebridades e assuntos aleatórios me incomodou, eles significam que a FLIP têm obtido sucesso e nos resta apenas engoli-los. Afinal, realizações desse porte os atraem, invariavelmente. O ciclo continua, pois os hotéis já estão sendo reservados para a próxima edição. Quem devora livros e não aguenta esperar, pode matar a fome na Bienal de São Paulo, que está começando. Por sua vez, quem adora aquela cidade, encontra em setembro o Paraty em Foco, importante evento de fotografia. Eu, por minha própria vez, vou tirar uma folga e ler a montanha de panfletos, revistas e jornais que acumulei pelo caminho. Haja literatura!


[Também publicado (com algumas modificações) em Colherada Cultural]

LE CAFE

Estresse, correria e pausa(?) para o café. Tudo nessa ótima animação francesa.
(é curtinha, não se preocupe, dá para assistir agora)


Stephanie Marguerite & Emilie Tarascou / music Oldelaf & Mr D / France / 2007