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terça-feira, 24 de maio de 2011

ÁGUAS BARRENTAS

Durante as reuniões preparatórias da expedição Rio Pinheiros Vivo, me indicaram o documentário abaixo, que só consegui assistir há pouco. Foi uma pena não ter visto antes, porque ele poderia ter colaborado muito com a oficina literária que propusemos lá.

São vinte e cinco impressionantes minutos, que contam a história da cidade de São Paulo pelo ponto de vista dos rios. O mais surpreendente nisso tudo talvez seja descobrir que as enchentes são coisa antiga, já acontecem há quase um século. E que, apesar de serem produto da urbanização descontrolada, às vezes elas parecem ter sido muito bem planejadas por uma sucessão de administradores incompetentes.

Sugiro que você também assista a esse documentário, de preferência agora, para não correr o risco de deixar para depois e se arrepender, como aconteceu comigo. Vale a pena.



Aproveitando, fica aqui outro trabalho bacana do Coletivo Santa Madeira, que também fala dos rios de São Paulo:



Mais informações: As margens do progresso

terça-feira, 17 de maio de 2011

O ACHADO DO SUMIÇO DO RIO*


Então, um dia, o rio secou. Simples assim, sem explicação. Num dia ele estava, no outro já se tinha ido. Sem explicação, o povo teve que se conformar. "É a vida", disseram. É a morte, sabe-se que um dia ela vem sem aviso ou explicação. Só resta se conformar. Só que, no caso do sumiço do rio, restou algo mais. Ficou no lugar o esqueleto. O esqueleto do rio.

Sabe-se lá quem descobriu. Quando perguntaram, ninguém sabia de nada. Depois, passado o primeiro susto, suspeitas à parte, todos reivindicavam o achado.

Restara o esqueleto, mas ele não se parecia muito com o corpo d'água que costumava sustentar. Eram traços diferentes, faltavam curvas; era uma verdade pouco maleável. O povo ficava olhando e perguntando se aquela coisa seca seria o esqueleto do mesmo rio que já não corria mais.

Pouco se conhecia daquele rio, pouco se prestava atenção. Era parte da paisagem. "Era só mais um rio, diacho. Tava ali e cabou-se". Um rio como qualquer outro. Por isso ficava difícil reconhecer o morto no esqueleto. Podia ser o esqueleto de qualquer outro rio. Só que, se os restos sobraram e o corpo já não restava mais, a lógica imperava. Não havia outra explicação, o rio secou. Só restava se conformar.

O povo se acumulou nas margens, transbordando de curiosidade e aflição. Não demorou muito, alguém mergulhou no rio seco, catou um teco do esqueleto, meteu no bolso e foi-se embora. Serviu de exemplo para a onda de gente que logo veio abaixo roubar o espólio do rio. Foi a maior corredeira. Em minutos, já não restava mais nada; nem morto, nem vestígio, nem suspeita. O rio se fora para nunca mais voltar.

Em casa, as relíquias ganharam lugar de destaque. Tinha quem se ajoelhasse diante delas e fizesse uma oração. "Santo rio, água benta, molhai por nós, pescadores. Que falta que faz. Me ajuda?"

O rio virou mito. O rio que foge sem parar, dia após dia, água após água. O rio fantasma que se ouve quando anoitece, nas noites sem luar. O rio das águas mágicas de imortalidade. O rio que correu para bem longe dali. De onde vem, para onde vai? Sabe-se lá... não tem explicação. "É a vida", dizem uns. É a morte, sabe-se que um dia ela vem assim mesmo, sem aviso ou explicação.

Um rio que, de repente, ganhou consciência e se foi para nunca mais voltar. Um rio do qual só restou a memória, a relíquia como prova de fé, a esperança da ressurreição. Um rio que voltará – um dia, quem sabe – para a nossa salvação.

***

*Esse conto foi escrito durante a oficina literária que tive o prazer de comandar ao lado de Marcelino Freire. Éramos um dos trinta grupos que o evento Rio Pinheiros Vivo reuniu em prol da recuperação do rio, totalizando mais de mil participantes e promovendo as mais diversas atividades, de caminhadas exploratórias a acrobacias aéreas.

A proposta de Marcelino era refletir – e escrever – a partir da seguinte situação: o rio Pinheiros secou. O que encontramos em seu leito? O que sobrou para contar a história?

Cada um dos participantes elegeu três temas e, após votação do grupo, escreveu sobre ele. Eu encontrei no fundo do rio o esqueleto do próprio rio, ideia inspirada no mapa que ilustra o conto. Se você olhar atentamente, verá que ele sobrepõe o traçado original do Pinheiros (azul e sinuoso), tal como era em 1930, e o atual (pontilhado e retilíneo), exatamente como o deixamos após a canalização. [clique no mapa para ampliá-lo]

Essa imagem foi produzida pela Associação Águas Claras do Rio Pinheiros, promotora do evento, e nos ajuda a entender por que as intervenções do homem na natureza às vezes acarretam desastrosas intervenções da natureza no homem. As enchentes deste ano não me deixam mentir.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

AÇÃO E REDAÇÃO

Quantos já leram um texto que mudou sua vida? Aposto que muitos. A leitura tem esse poder – com sorte, acaba por se revelar uma experiência transformadora. O que nos leva à segunda questão: quantos já escreveram um texto que mudou a própria vida e também a vida dos outros? Ontem, um grupo de expedicionários se propôs a tentar: refletiram e escreveram sobre o rio Pinheiros, em São Paulo, numa oficina literária coordenada por mim e encabeçada pelo grande Marcelino Freire.

A oficina era um dos trinta grupos do evento Rio Pinheiros Vivo, organizado pela associação Águas Claras do Rio Pinheiros, que teve ainda visitas à usina Henry Borden, expedições fotográficas, caminhadas, bicicletadas e até acrobacias aéreas. Ao todo, foram aproximadamente mil pessoas se movimentando em prol da recuperação do rio.

As grandes mudanças começam assim mesmo, com um desejo que se manifesta na prática e, aos pouquinhos, vai conquistando o apreço de outros. Pode ser um texto, uma foto, um abraço, qualquer coisa.

Quem quiser conferir parte do que foi produzido ontem por esses pioneiros pode visitar o site da expedição. O material ainda está sendo processado, então vejam e retornem para ver de novo mais tarde. Haverá sempre algo novo querendo transformar você.

Confira também algumas fotos que fiz durante a expedição literária:

Rio à vista.

O grupo de expedicionários literatos.

Marcelino Freire em ação.

Assunto em pauta.





O texto e suas diversas leituras.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

LEITURAS MÚLTIPLAS

O bibliotecário (1566), de Giuseppe Arcimboldo

“Um livro é produzido, evento minúsculo, pequeno objeto manejável. A partir daí, é aprisionado num jogo contínuo de repetições; seus duplos, a sua volta e bem longe dele, formigam; cada leitura atribui-lhe, por um momento, um corpo impalpável e único; fragmentos de si próprio circulam como sendo sua totalidade, passando por contê-lo quase todo e nos quais acontece-lhe, finalmente, encontrar abrigo; os comentários desdobram-no, outros discursos no qual enfim ele mesmo deve aparecer, confessar o que se recusou a dizer, libertar-se daquilo que, ruidosamente, fingia ser. A reedição numa outra época, num outro lugar, ainda é um desses duplos: nem um completo engodo, nem uma completa identidade consigo mesmo.”

Michel Foucault, no prefácio de História da loucura

quinta-feira, 5 de maio de 2011

ANTES E DEPOIS


Ok, vou fazer só mais um comentário sobre o fechamento polêmico do Cine Belas Artes:
é um dos poucos casos em que eu prefiro a foto com a legenda "antes".

sábado, 30 de abril de 2011

O ANJO DO FUTURO

Angelus Novus (1920), de Paul Klee

"Minhas asas estão prontas para o voo,
Se pudesse, eu retrocederia
Pois eu seria menos feliz
Se permanecesse imerso no tempo vivo."
   Saudação do anjo, de Gerhard Scholem

"Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso."
   Walter Benjamin, 1940

O texto acima faz parte das chamadas teses Sobre o conceito da história, último escrito do filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940). Considerado uma das suas maiores obras, foi publicado somente após a trágica morte do autor – Benjamin cometeu suicídio na cidade de Port Bou, na fronteira da França com a Espanha, enquanto tentava escapar das tropas nazistas.

O título da pintura de Paul Klee que inspirou essa reflexão fala de um anjo do futuro, embora o filósofo diga que seu rosto está voltado para o passado. "Uma catástrofe única", como ele diz. Curiosamente, o anjo de Klee está olhando diretamente para nós, espectadores. Essa relação entre os tempos idos e os vindouros sempre volta à tona. Sem dúvida, é um dilema do homem que provavelmente jamais será solucionado.

Recomendo a leitura dessas teses de Benjamin a todos que se interessam por história. Recomendo-as também a todos que, mesmo preferindo ignorar o passado, queiram compreender melhor o presente e até prever o futuro. Porque, para mim, tudo sempre pareceu ser uma coisa só. Pertencemos a um tempo vivo que, justamente por isso, está em constante mutação. Tudo é passado, presente e futuro consecutivamente. Qualquer solução que lhe dermos, valerá apenas para agora. E o agora é tudo que nos resta.

Ps.: A citação do também filósofo Gerhard Scholem consta no original.

domingo, 24 de abril de 2011

A condição humana (1935), de René Magritte

Tenho refletido muito sobre sonho e realidade, é o que me interessa no momento. Estou cada vez mais convicto de que ambos são a mesma coisa.

A realidade nada mais é do que um sonho. O sonho de um indivíduo em um momento determinado. Uma ilusão, um ideal.

O sonho, por sua vez, é também uma realidade. "Outra, nova, paralela, fictícia, interior", chame-o como quiser. Ainda assim, ele será real.

sábado, 23 de abril de 2011

"A previsão do tempo só vale para o momento em que é anunciada."
A frase surgiu pela manhã, enquanto eu olhava pela janela durante o banho e tentava descobrir se o dia seria quente ou frio. Quase ouvi a mulher do tempo dizer que faria frio, mas ela poderia voltar em quinze minutos e dizer o contrário. Nunca se sabe.
Escrevi a frase no vapor do box. Ela sumiu logo depois.

Vesti meu velho robe azul. Decidi que só escolheria a roupa depois do café.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

PARA CAMINHAR DE OLHOS FECHADOS*

Tenho ouvido muito esse disco [Chopin: The Nocturnes, de Nelson Freire]. Aliás, desde que o comprei, é praticamente tudo o que tenho ouvido. Ele acalma e ajuda a controlar os nervos – para explicar de maneira racional –, e depois da ansiedade que vivi nos últimos dois meses, em diversos momentos precisei dele para manter a cabeça no lugar. Mas não é só isso, claro. Sempre admirei os Noturnos de Chopin. Acho incrível como um músico e seu piano conseguem nos transportar pelo mundo dos sonhos, e então nos trazer de volta para a noite clara, imprimindo sensações de bailes agitados e também de solidão, desde a inércia contemplativa à ludicidade total. Ouvir os Noturnos é como caminhar livremente pela inconsciência, ou sonhar acordado num outro século, num outro continente, dentro da própria imaginação. Foram minhas melhores fugas da realidade, com certeza, e não há por que me envergonhar delas se acabo sempre por retornar mais forte, mais seguro de mim mesmo, pronto para enfrentar a sólida natureza do dia que vai se impor. Enfim, não basta um músico e um piano para provocar tudo isso, claro, assim como não é possível explicar racionalmente o que Chopin, pelas mãos de Nelson Freire, me possibilitou sentir. Só posso dizer que devo muito a ele. Séculos depois, continuamos todos a dever. Espero sinceramente que, de uma maneira ou de outra, ele também lhe possibilite uma experiência especialmente bela. Já que a explicação racional não basta, é melhor ligar o som, fechar os olhos e mergulhar por si mesmo nessa nova realidade.
Um forte abraço,

*Carta aberta ao amigo João A. Frayze-Pereira.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

O HOMEM INVISÍVEL*

Quando criança, ele via homens de terno e gravata e sonhava com trabalhar assim um dia. Eles estavam nos anúncios dos jornais, no Castelo de Caras, nos programas de entrevistas da TV. Quem usava terno e gravata parecia importante, tinha status, era bem sucedido. "Homens de caráter", bradava seu pai, enquanto apontava para o telejornal, "resistindo ao calor da guerra!" Terno e gravata compunham o uniforme dos homens que mandavam no mundo. Mesmo criança, mesmo sem compreender o significado e as consequências do poder, era fácil identificar seus símbolos. Poder é o que o homem almeja desde cedo. Ele passará a vida tentando dominá-lo, tentando compreendê-lo, tentando obtê-lo de algum jeito. Passará a vida inteira tentando exercê-lo, mas na maioria dos casos acabará vítima dele. São poucos os que podem de verdade.

Agora, caminhando sob um sol escaldante, obrigado a visitar bairros e mais bairros diariamente, ele se lembra de suas fantasias infantis. Não se arrepende, porém. Não se entristece. Reagir ao mundo pressupõe uma ação primeira, ação e reação, só que o mundo não sabe quem ele é, o que faz, o que pensa. Quando passa, o mundo vê através dele. Não reconhece em sua carne o mesmo estofo de que é feito. O mundo está em todo lugar, enquanto ele tem certeza de que não pertence a nenhum. Por isso anda. Simplesmente anda por aí.

Sobe a calçada, dirige-se a mais uma casa, toca o interfone, fala com a parede. Levanta sutilmente a pasta de couro sintético preto que carrega sempre consigo. Ajusta a gravata sem perceber que o faz. Tenta ignorar o suor que teima em escorrer da testa pela lateral do rosto. Muito suor.
  – Sim?
  – Bom-dia, senhora. Se puder me conceder cinco segundos do seu dia, eu tenho aqui uns catálogos de produtos muito
  – Ah, não, não, obrigada. Agora não dá.
  Bip.

A invenção do interfone dificultou ainda mais seu trabalho. Prédios e outros tipos de condomínios fechados também. Ele agora precisa percorrer distâncias maiores para cumprir as metas de sempre. Nada é como antigamente, pensa. Nem mesmo terno e gravata. Os dele vêm com o logotipo da empresa estampado no bolso do peito. Um bolso falso, diga-se de passagem, que apenas finge ser o que não é.

O sol continua forte. O dia está tão claro que mal se permite admirar. Não se tem mais como adivinhar, não existe mais primavera, verão, outono e inverno; não existe mais época do ano fria ou quente, todas são frias e quentes ao mesmo tempo, todas as estações acontecem num único dia, consecutivamente. Tudo muda muito rápido, não se tem como adivinhar. Nada é como antigamente, pensa. O sol continua a bradar e o homem de terno e gravata e pasta de couro sintético preto continua a resistir ao calor da guerra. Outra casa, outra campainha, outra pessoa que não tem cinco segundos de vida para lhe emprestar. Cinco segundos podem transformar uma vida. Às vezes, é tudo de que alguém precisa para não perder as esperanças. Cinco segundos de atenção.

Cinco segundos são também suficientes para destruir uma vida. O vendedor sabe disso e continua sua caminhada rumo ao improvável. Outra casa, outra campainha. Dessa vez nem o atenderam, fingiram que não tinha ninguém. Mas o vendedor percebeu a silhueta espiando por detrás da cortina. Ele está acostumado com essas coisas. Consegue enxergar a aura da casa. Sabe dizer que tipo de pessoa mora ali, o tamanho da família, os costumes... São ossos do ofício, como se diz. Existem muitas maneiras de saber esse tipo de coisa. Também se diz, por exemplo, que o lixo de uma casa revela tudo que acontece em seu interior. Têm pessoas especializadas em leitura de lixo. Ele é a marca que o homem deixa no mundo, o rastro de sua existência. Só que não é de lixo que o vendedor entende. Ele entende da casa em si, pode revelar seu conteúdo apenas observando a fachada. É um dom muito útil.

O vendedor vê a silhueta, porém não insiste. Prefere que seja assim. O que não percebe é que, sob aquele sol escaldante, morrendo de sede, enclausurado no terno e com a gravata a lhe irritar definitivamente o gogó; vermelho, suado, penitente ainda que aceitando aquilo tudo com discreta indiferença, ele começa a desaparecer. Sua pele fica translúcida, sua sombra se projeta com menos intensidade no asfalto tremeluzente. O sol, aos pouquinhos, também começa a enxergar através dele. A cada passo, a cada campainha, a cada "não" recebido sem que nem mesmo consiga terminar sua apresentação, o homem fica ligeiramente mais invisível.

O suor faz a camisa grudar em sua barriga. É uma camisa sintética barata, toda branca, menos suscetível a amassados. É uma camisa que não absorve o suor. A firma dá essas camisas a todos os vendedores, mesmo sabendo que eles irão transpirar horrores. É uma camisa mais barata, que compõe o uniforme dos vendedores com pretensões de conquistar o mundo por meio de recordes de venda. Se eles não gostarem, que comprem as suas próprias; é o que dizem sem dizerem de verdade.

Debaixo do terno, a sensação é estranha. De vez em quando, o calor fica surpreendentemente frio, quase gelado. O vendedor não sabe o que causa aquilo, talvez seja o corte da roupa, talvez seja o tecido sintético sobre seu couro, talvez seja o suor em contato com alguma área ventilada. Só que é um frio que passa logo e deixa uma sensação esquisita, que nem frio na barriga. O vendedor considera a possibilidade de estar passando mal, de algum problema de saúde ter se manifestado de repente; tipo pressão baixa, pensa, ou talvez alguma coisa mais grave. Não pode ser ventilação, pois o ar está parado, definitivamente. Ao caminhar, o vendedor percebe que o ar se agarra em seus braços e pernas e o obriga a arrastá-lo pelas ruas. O calor frio sobe por dentro da roupa seca molhada e fica preso no colarinho. Não há sombra que alivie aquela sensação. Ainda que o sol atravesse sua pele quase sem tocá-la, o vendedor sente calor. Muito calor.

Ao longe, no fim da rua, talvez a quatro ou cinco quarteirões, ele avista um carrinho de sorvetes. Seus olhos sorriem de leve e ele se propõe um prêmio: depois de percorrer as casas dali, merecerá um sorvete. Um sorvete de limão, bem gelado. Um sorvete que contrarie tudo aquilo que o mundo está lhe propondo, um reconhecimento singelo para mais uma batalha ganha pela força do caráter. Assim, o sorvete afasta todos os outros pensamentos.

O sorveteiro, entretido com uma revista e tentando se proteger do sol debaixo da sombra miúda de uma árvore só percebe a aproximação do vendedor de terno e gravata quando este o cumprimenta com um "bom-dia". Agora dá para ver melhor, não é uma revista, é um desses tabloides de esporte. Há um jogador de futebol bastante suado na primeira capa, sob a manchete que sensacionaliza: "O novo rei?" O jogador está sorrindo, acabara de marcar um gol ou de vencer um jogo. Talvez tenha vencido o campeonato todo. Não importa, aconteceu em outro mundo. O vendedor sorri em resposta. O sorveteiro, por sua vez, levanta as sobrancelhas sem tirar os olhos da matéria.
  – Sim?
  – Tem de limão?
  – Claro.
  – Quero um, por favor.

O sorveteiro continua a ler por um ou dois segundos. Então, levanta a tampa do carrinho junto com o jornal, pega o picolé e recoloca a tampa no lugar, dá o picolé ao homem, pega o punhado de moedas que recebe em troca, chacoalha a mão como se verificasse o peso ou o barulho que fazem e as joga no bolso do avental sem perder o ponto da leitura. Ele sabe que o valor está correto sem ter que conferir as moedas. É um dom muito útil, pensa o vendedor. São os ossos do ofício.

O sorveteiro faz tudo isso sem notar que o vendedor de terno e gravata logo à sua frente está desaparecendo. Ele só tem olhos para o jornal.
  – Obrigado.
  – Nada.

Sentado no banco da praça, em um dos poucos em que ainda se pode sentar, o vendedor de terno e gravata e pasta de couro sintético preto observa as próprias mãos. Ele as levanta contra o sol, mas elas já não bastam para protegê-lo. Os raios atravessam suas palmas e o atingem no rosto como se as mãos não existissem mais. O vendedor não precisa conferir o resto do corpo para saber que o desaparecimento não é uma exclusividade de suas mãos. Ele inteiro deve estar daquele jeito. Não se entristece, porém. Não reage. O mundo não sabe quem ele é, o que faz, o que pensa. Não vai fazer diferença. O mundo vê através dele.

O vendedor de terno e gravata olha para o sorvete, que sua e pinga no chão entre seus pés. Nem se deu o prazer de prová-lo. Ele próprio sua a ponto de pingar. Não há nada que possa fazer. Não dá vontade de fazer nada. Então, ele fica parado, com os olhos fixos no sorvete que desaparece pouco a pouco em suas mãos. Nem mesmo percebe quando começa a chover.


*O homem invisível não é exatamente um conto, mas um capítulo do livro Ninguém, que estou escrevendo em parceria com Eduardo Usignolo e que ainda não tem data de publicação. Qualquer reprodução, mesmo parcial, sem o consentimento dos autores é proibida. Os direitos autorais são reservados. Quanto à foto que ilustra esta publicação, trata-se de Downtown, New York (1947), de Henri Cartier-Bresson.

terça-feira, 12 de abril de 2011

O LAGO DOS CISNES, OP. 20

Não faz muito tempo, escrevi uma crítica do filme Cisne Negro e depois acabei por citá-lo novamente numa crônica do Correio Popular de Campinas. Ainda assim, aquela trilha não me saía da cabeça. Eu sabia que podia encontrá-la em algum dos meus CDs, porém foi só no último fim de semana que consegui procurá-la devidamente. Como não me permitem disponibilizar um arquivo de áudio aqui no blog, você precisa utilizar o vídeo abaixo para ouvi-la. É só clicar em 'play'.



Aproveitando a deixa, aqui vão algumas curiosidades a respeito:

O lago dos cisnes foi o primeiro dos três balés do russo Piotr Il’yich Tchaikovsky.

• Composto em 1876, é bem mais antigo do que os seguintes – A bela adormecida, de 1889, e O quebra-nozes, de 1892 –, além de ter sido criado em circunstâncias diferentes.

• Enquanto O lago dos cisnes foi feito por iniciativa própria, os outros dois foram encomendados para os Teatros Imperiais de São Petersburgo e aceitos apenas porque o compositor se encontrava em situação econômica difícil – digamos que o gênero não era muito respeitado na época.

• Quando estreou no ano seguinte, em 1877, “foi um tremendo fracasso, não devido à música, mas à interpretação da orquestra e dos bailarinos, assim como à cenografia e à coreografia. Em fevereiro de 1895, depois da morte do autor, voltou a ser encenado no Teatro Marinsky (…) e obteve sucesso enorme”. (RINCÓN, Eduardo. Piotr Il’yich Tchaikovsky: Royal Philharmonic Orchestra. São Paulo: Publifolha, 2005)

Mais informações você encontra no site do museu dedicado ao autor: Tschaikowsky Museum

E também aqui: Coleção Folha de Música Clássica

segunda-feira, 4 de abril de 2011

ILUSÃO E DESILUSÃO



O mágico (L’illusionniste, 2010) não é uma animação 3D, não foi criada pela Disney/Pixar ou por qualquer outra gigante americana, não é uma refilmagem, não é a modernização de uma fábula clássica, seus personagens não são super-heróis, bichos falantes, robôs, extraterrestres ou comida, mas seres humanos como quaisquer outros; ainda assim, é uma animação digna de aplausos. Quantas dessas você viu na última década?

O roteiro e a produção, na verdade, são franceses. A França possui excelentes escolas de animação, pena que poucos filmes cheguem até nós. Mesmo O mágico, que tem roteiro do veterano Jacques Tati e direção de Sylvain Chomet, foi difícil de assistir. Ficou em cartaz apenas durante uma ou duas semanas naqueles mesmos cinemas alternativos de sempre, em São Paulo, e de repente retornou do esquecimento em uma sessão ‘cult’ promovida pelo Cinemark do Shopping D. Consegui assisti-lo numa segunda-feira, às duas horas da tarde, somente porque estava de férias. Inclusive, foi uma cena curiosa, pois nem mesmo os atendentes do cinema sabiam que ele estava em cartaz. Quando pedi o bilhete, me olharam com desconfiança e foram procurar no computador. Nem preciso dizer que a sala estava às moscas, né?

Voltando à questão principal, o enredo explora a decadência de algumas artes de entretenimento clássicas, que vão aos poucos sendo substituídas por outras mais em voga. Além daquela que dá nome ao filme, vemos a de palhaço, ventríloquo, trapezista etc., as quais desaparecem sem que ninguém perceba, condenadas a uma morte lenta e difícil de reverter. Tratando-se de uma animação 2D, considerando o discreto público que atraiu por aqui e comparando tudo isso à alta demanda de filmes 3D, acho que podemos considerá-la autorreferente – fora de moda, o estilo parece dar seu último suspiro e morrer junto dos próprios personagens que criou.

Não que eu acredite no fim dos desenhos 2D, especialmente dos bonitos como esse, feitos com aquarelas e traços caricatos nos moldes do ótimo As bicicletas de Belleville, também de Sylvain Chomet. Mesmo com as duas indicações ao Oscar que este último recebeu em 2004, além de diversas menções honrosas, o 2D dificilmente recuperará tão cedo o público que obteve anteriormente, nos tempos dos clássicos Disney. Ao menos não enquanto os espectadores continuarem empolgados com as novas possibilidades tecnológicas.

O mágico também é autorreferente quanto ao próprio Tati: além de o protagonista lembrar muito seu famoso personagem Monsier Hulot, uma breve cena do filme Meu tio aparece aqui numa citação discreta e saudosista.



No geral, podemos dizer que se trata de um filme adulto; triste, melancólico e reflexivo, acaba provocando meia dúzia de sorrisos constrangedores. Afinal, estamos falando de artistas rejeitados pelo público, lutando para não abandonarem as profissões pelas quais são apaixonadas.

Em resumo, o mágico protagonista parte da França atrás de novas plateias e acaba por descobrir uma garotinha que, em sua inocência, ainda acredita no ilusionismo. Mas o quadro logo se corrompe e as últimas esperanças se perdem.

“Mágicos não existem”, diz o bilhete que antecede o truque derradeiro. Então o mágico desaparece para nunca mais voltar. Uma inesperada atitude que abre nossos olhos para a realidade.

É mesmo um filme que fala muito, apesar de não ter diálogos explícitos – pois é, toda a comunicação se dá por murmúrios e expressões corporais. Vale muito a pena ver, especialmente quem nunca se deparou animações do gênero.

Talvez, por meio desta preciosa carta na manga, Chomet consiga lhe apresentar um mundo espetacularmente rico em mistérios e possibilidades, que às vezes é chamado de arte, às vezes de poesia e, às vezes, simplesmente de cinema – nomes que lhe cabem muito bem.


Site oficial: L'illusionniste

quarta-feira, 30 de março de 2011

COLEÇÃO NEMIROVSKY: PATRIMÔNIO NACIONAL

Em carta aberta à população brasileira, a Pinacoteca do Estado de São Paulo pede auxílio para continuar a gerir a importante Coleção Nemirovsky, permitindo que ela esteja sempre acessível a todos.

Quem quiser colaborar pode usar o link Pinacoteca de São Paulo e aderir ao abaixo assinado.


segunda-feira, 28 de março de 2011

"Uma noite, eu estava sentado na cama do meu quarto de hotel, em Bunker Hill, bem no meio de Los Angeles. Era uma noite importante na minha vida, porque eu precisava tomar uma decisão quanto ao hotel. Ou eu pagava ou eu saía: era o que dizia o bilhete, o bilhete que a senhoria havia colocado debaixo da minha porta. Um grande problema, que merecia atenção aguda. Eu o resolvi apagando a luz e indo para a cama."

John Fante, em Pergunte ao pó
Um bom texto é uma resposta sincera a uma boa provocação.

sexta-feira, 25 de março de 2011

ENCONTROS COM O PERSONAGEM

Quando assisti ao filme Cisne Negro, fiquei muito impressionado com a maneira pela qual a protagonista se perde em conflitos interiores para incorporar duas personagens essencialmente opostas, simbolizadas pelos tradicionais "bem" e "mal". Maneira esta que não apenas beira a insanidade, mas que a adentra e leva até uma grave neurose. Se você ainda não viu, não se preocupe, não pretendo estragar a experiência revelando detalhes da trama. Acontece que o filme me lembrou de casos anteriores, alguns reais e outros imaginados, em que pessoas se deixaram envolver perigosamente com o universo ficcional – pude constatar, assim, que isso é mais comum do que parece.

Minha namorada, por exemplo, quando conheceu os livros da série Crepúsculo, ficou tão alucinada que não conseguia pensar em outra coisa além de voltar logo para casa e continuar a leitura. Eu diria que até hoje ela continua meio afetadinha pela promessa de amor eterno do vampiro Edward.

Você mesmo deve ter vivido situação semelhante, ainda que não com tamanha intensidade. Pense no romance O código Da Vinci, que gerou uma curiosa crise com a Igreja Católica e seus devotos mais radicais. Na ocasião, discutiu-se o que nele seria verdade, o que seria perjúrio e o que seria excesso de ousadia do autor. Rolou até mesmo uma tentativa de proibição da leitura, disfarçada de conselho episcopal, como uma sombra do abominável Índex do Santo Ofício. Blasfêmia!, gritavam daqui; Liberdade de expressão!, bradavam dali. Muita gente tomou o romance como fato incontestável e levantou armas contra ou a favor. Outros tiraram os olhos do livro e passaram a encarar o dia-a-dia com desconfiança. Cheguei inclusive a presenciar uma discussão sobre o pecado de ler. Agora, o que a maioria jamais considerou é que O código Da Vinci é um romance, uma obra ficcional sem pretensões de promover uma revelação histórica. Uma narrativa inventada para entreter, ainda que baseada numa hipotética realidade passada.



Algumas dessas narrativas, ou mesmo personagens delas, exercem um fascínio tão grande sobre o público que chegam a afetar suas vidas profundamente, levando inclusive à morte. Um caso clássico é o de Os sofrimentos do jovem Werther. Escrito por Johann Wolfgang von Goethe e publicado pela primeira vez em 1774, o romance se tornou símbolo do Sturm und Drang alemão, embora hoje pareça mais um melodrama um tanto quanto fora de moda. Na época, todavia, muitos jovens passaram a se vestir como o protagonista, enquanto outros, contagiados pela melancolia exacerbada, seguiram seu exemplo e deram cabo à própria vida.

Um século mais tarde, quando Arthur Conan Doyle decidiu se livrar de seu personagem mais famoso para conseguir escrever sobre novos assuntos, Londres viveu tempos de pesar e revolta: leitores indignados enviaram reclamações aos editores e saíram às ruas usando braçadeiras de luto. Oito anos depois, Doyle cedeu à pressão – e às generosas ofertas financeiras –, inventou uma lorota bastante discutível e fez reviver o detetive Sherlock Holmes, para alegria geral da nação leitora.

Uma situação bem mais recente é relatada por Stephen King no primeiro dos sete livros de A torre negra. A série demorou três décadas para ficar pronta. Nesse meio-tempo, em uma das longas pausas criativas do autor – em que os fãs chegaram a lastimar que ela jamais fosse concluída –, uma senhora de oitenta e dois anos lhe escreveu: tenho um ano de vida, catorze meses no máximo. O câncer tomou conta de mim. Antes de partir, queria saber o final da trama, prometo não contar a ninguém. Por favor.

De minha parte, só tenho a dizer que, após muita dedicação, terminei de ler todos os volumes da saga Harry Potter. É impossível não se afeiçoar àquele menino que cresceu junto com seus leitores-alvo, mesmo não sendo o meu caso – talvez algo semelhante tenha acontecido comigo durante o seriado televisivo Anos incríveis. Enfim, quando li a última linha do último livro, imediatamente pensei: que coisa sem graça será minha vida sem a bruxaria!

Não muito diferente do que nos casos supracitados, meu encontro com esse personagem se dera de maneira entusiasmante, o que costuma caracterizar uma boa fonte de entretenimento. Passadas algumas semanas, digo sem titubear que retomei a rotina em sã consciência e que agora tudo transcorre normalmente; embora, de vez em quando, eu pense em como seria bom fazer meu carro levitar para fugir de um congestionamento, ou mesmo deseje estuporar alguém que venha encher a paciência no trabalho. Ah, doce ficção!


Notas sobre as ilustrações:
1. Mão com esfera reflectora (1935), de M. C. Escher (autorretrato)
2. Répteis (1943), de M. C. Escher
3. Encontro (1944), de M. C. Escher

terça-feira, 22 de março de 2011

NÃO TEM COMO DESGOSTAR DO DRUMMOND

Comprei por esses dias A rosa do povo, quinto livro de poemas de Carlos Drummond de Andrade, publicado originalmente em 1945 e republicado como tal há pouco tempo, numa coleção da editora Record. Até então, esses poemas só tinham aparecido em coletâneas. Comecei a folheá-lo sem compromisso, lendo trechinhos esparsos. Até que me dei com o título Anoitecer.

Após alguns versos sobre a noite louca da metrópole, movimentada, barulhenta e insone, o poeta diz:

"Hora de delicadeza,
gasalho, sombra, silêncio.
Haverá disso no mundo?
É antes a hora dos corvos,
bicando em mim, meu passado,
meu futuro, meu degredo;
desta hora, sim, tenho medo."

É por essas e muitas outras que me parece impossível não gostar do Drummond. Quem mais, senão ele, seria capaz de criar imagens tão simbólicas como essa dos corvos, bicando o corpo que parou no tempo e que, justamente por isso, virou passado? Um corpo que se modifica a cada bicada, que é sempre uma entidade em formação e que, portanto, também é futuro. Um corpo sem dono, condenado ao degredo e abandonado pela eternidade. Uma imagem que dá medo, claro, mas que também nos coloca para pensar.

Homem de olhar profundo e de versos simples, porém marcantes: esse é o Drummond. Não há como não gostar dele, sempre digo isso. Digo também que, se alguém não gosta de poesia, é porque não conhece o Drummond.

Achei que seria justo fazer essa homenagem, assim como a toda essa maravilhosa arte que ele nos proporciona. Uma homenagem surgida do acaso, porém acolhida com muito carinho. Uma rosa para o povo, outra rosa ao poeta.


A rosa do povo reúne 55 poemas escritos em plena 2ª Guerra Mundial, entre 1943 e 1945, época em que Carlos Drummond de Andrade já tinha se acostumado com as novidades da enorme Rio de Janeiro, então capital do país, e abandonava aos poucos a inocência da sua pequena Itabira, no interior de Minas Gerais. Após o angustiante e ao mesmo tempo deslumbrante primeiro encontro, tão presente no livro anterior – Sentimento do mundo, de 1940 –, o poeta agregou à sua obra os pensamentos politizados daquela época tão conturbada.

segunda-feira, 21 de março de 2011

"Claro que está acontecendo em sua mente, Harry, mas por que isto significaria que não é real?"

J. K. Rowling, em Harry Potter e as Relíquias da Morte

quarta-feira, 16 de março de 2011

PRETO NO BRANCO



"Está tudo ali", diria Freud, "tão claro quanto a soma de 1 + 1". O diretor do balé dá a dica logo no início: ele quer reinterpretar o clássico Lago dos Cisnes e precisa de uma dançarina que incorpore o bem e o mal, que transite com facilidade entre esses dois pontos de vista tradicionalmente antônimos. "Todo mundo possui um lado bom e outro ruim, basta se esforçar para aflorá-los". Dizer é fácil, mas assumir a face oculta da personalidade pode causar transtornos que nem a psicanálise explica. A força do filme Cisne Negro se concentra justamente aí, nesse dilema já bastante explorado no cinema, mas que ainda tem potencial para render ótimos dramas. Basta fazer direitinho, com cuidado e sensibilidade, como conseguiu o diretor Darren Aronofsky.

Repare no cenário e no figurino: tudo é preto ou branco, não existem meios tons. Bem típico do nosso costume maniqueísta de encarar a vida, em que o bem e o mal não ocupam o mesmo lugar no espaço. Bobagem. Quando a personagem interpretada por Natalie Portman – a princesinha que é o cisne branco em pessoa – precisa ser também seu algoz, o conflito se coloca. E contamina todos ao redor.

Na plateia, a gente se confunde, não dá para saber o que é alucinação e o que é real. Enquanto a bailarina luta para arrancar a casca pálida que acoberta seu interior sombrio, as teorias psicanalíticas surgem como as melhores coadjuvantes – tem a questão do duplo, da sombra, dos desejos reprimidos e da sublimação. Tem também algo muito mais forte, que lembra o romance O Retrato de Dorian Gray (1890), de Oscar Wilde: a perigosa mistura de vida e arte.

Para quem não leu, a história trata de um jovem muito vaidoso que, querendo ser – e permanecer – perfeito, amaldiçoa um retrato seu, fazendo-o envelhecer em seu lugar. Acontece que, com o passar do tempo, a visão da pintura corrompe sua sanidade, até que não se distingue mais quem é o verdadeiro Dorian.

Em Cisne Negro, as personagens assumem o papel da bailarina, invadem sua vida pessoal, deixam o palco para ganhar as ruas. Tudo que antes parecia claramente dividido se transforma. Vida e arte, assim como realidade de ficção, passam a ser uma coisa só.



Preste atenção nos detalhes, como o rosto do diretor do balé, que, indeciso entre as concorrentes para o papel principal, é focalizado exatamente na emenda de dois espelhos. E ainda nas sombras no fundo do palco, depois da maravilhosa transformação da bailarina no cisne negro, que permanecem com asas, embora os espectadores não vejam nada além da mera representação artística – o público vê a obra, mas ignora a alma. São detalhes como esses que acrescentam significado às cenas e, antes de tudo, mostram o cuidadoso trabalho de Aronofsky.

"Foi perfeito", diz a bailarina no final da dança. Ser perfeita, assim como Dorian Gray, era tudo que ela desejava. Aquilo que antes parecia fadado a competir eternamente se funde então em uma única entidade, uma mistura de bem e mal, branco e preto. Para que os dois cisnes ganhassem vida num espetáculo sublime, a bailarina agiu como o ambicioso Dorian e abriu mão de sua sanidade. Ao incorporar ambas as personagens, deixou de ser a si mesma; cedeu à pressão, seu conflito interior extravasou e acabou por destruí-la.

Um corpo consegue assumir formas diversas no palco, transformar-se a si próprio é imprescindível à boa atuação. Só que talvez a mente não seja forte o bastante para distinguir a verdade da mentira. O espelho se quebra e, nos cacos que restam, vemos apenas breves indicações da identidade que se perdera. Foi perfeito. Só que o perfeito, como sabemos, é impossível.