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quinta-feira, 23 de junho de 2011

PARA PENSAR TUDO AO CONTRÁRIO

Consegui visitar a exposição O Mundo Mágico de Escher, finalmente! Eu tinha tentando uma vez, logo que ela chegou a São Paulo, mas o CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil) estava tão lotado que não dava nem para entrar. Agora entendi por quê: aquilo é superdivertido!

Como as gravuras do artista podem ser vistas em qualquer livro sem que o entendimento seja comprometido, os organizadores da mostra prepararam  instalações especiais para os visitantes experimentarem as ilusões na própria pele.

Tem o quarto de Escher, reproduzido tal como consta em seu autorretrato, e podemos segurar uma bola de metal para ver nossa imagem lá; tem portas que correm sobre trilhos e formam desenhos, tem escadas malucas e muitos jogos de espelhos. Resultado: todo mundo se diverte, até os menos interessados em arte.

O mais legal disso tudo: conseguimos perceber claramente que o maior mérito do artista não estava na sua técnica ou na habilidade com o lápis, que são indiscutíveis, mas na sua maneira de pensar. Sabe-se lá como, Escher conseguia desbloquear o cérebro das convenções e imaginar o mundo de ponta-cabeça, com a ponta vista por um ângulo e a cabeça por outro, com as águas correndo no sentido inverso e com escadas que começam e terminam no mesmo ponto. Obras de arte dignas de um verdadeiro mágico.


Relatividade (1953), M. C. Escher

O mundo mágico de Escher é um ótimo programa para o feriadão de Corpus Christi. Mais informações: CCBB/SP.


Belvedere (1958), M. C. Escher

Site oficial de M. C. Escher: www.mcescher.com

sábado, 18 de junho de 2011

QUANDO A PINTURA REVELA O PINTOR

Autorretrato (1971), de Francis Bacon

Li todos os contos do livro Gran Cabaret Demenzial nos dois ou três dias que sucederam o lançamento. Depois o emprestei à minha namorada, mesmo sabendo que ela o acharia constrangedor. Foi o que aconteceu: suas expectativas puritanas acabaram violentadas pelo linguajar sujo da autora, a amiga Veronica Stigger. Quando nós três nos reencontramos, minha namorada, meio sem jeito, comentou que jamais imaginaria aquilo. Como uma pessoa tão elegante pode escrever tanto palavrão? Veronica riu. Para ela, obra e autor jamais deveriam ser confundidos. Essa é uma tendência que, inclusive, ela parece querer derrubar, pois suas histórias são desconstruções muito bem arquitetadas da ideia de "literatura de entretenimento". Elas incomodam o leitor, deixando-o realmente constrangido. Agora, por mais que Veronica não as queira ver confundidas com sua pessoa, Gran Cabaret Demenzial ainda é resultado de sua pesquisa artística, mesmo que isso não signifique – e nem poderia significar – que livro e autora são uma coisa só. Senão daria medo de chegar perto dela.

Quanto do autor está contido na obra? Essa pergunta alimenta discussões ao redor do mundo e jamais terá uma resposta definitiva. Trata-se de uma daquelas questões primordiais que aceitam diversos resultados, questões do tipo "o que é arte?" e "somos todos um pouco artistas?". Como diz o crítico Frederico Morais, "as questões da arte serão as questões de sempre", e as respostas, sejam elas quais forem, estarão ao mesmo tempo certas e erradas, pois não existe verdade absoluta quando se fala de recepção estética e produção artística. No entanto, existem argumentos que nos levam a acreditar mais em um ponto de vista do que em outro. Isso depende da maneira como cada pessoa aborda o assunto, dos conceitos utilizados e do embate interior entre razão e sensibilidade.

Um belo exemplo disso se encontra no relato O homem que confundiu sua mulher com um chapéu, escrito pelo neurologista Oliver Sacks e publicado em livro homônimo. Ele examina a vida de um músico excelente, professor de universidade, que teve um problema nas regiões do cérebro responsáveis pela visão. Só que, ao invés da cegueira comum, a doença fazia com que o doutor P., como o autor se refere a ele, desenvolvesse uma espécie de cegueira cognitiva, que impedia a compreensão daquilo que era visto, ao ponto de ele afagar hidrantes na rua pensando que fossem crianças e de não ser capaz de distinguir o sapato do próprio pé.

Numa visita à casa do paciente, Oliver Sacks descobriu algo curioso: além de cantar e lecionar, o doutor P. também pintava. Seus quadros, na sala de estar, estavam dispostos em ordem cronológica. Um exame minucioso revelou que as obras iniciais eram naturalistas e realistas; depois, foram se tornando mais abstratas, mais geométricas, até se resumirem a caóticas manchas de tinta.

A esposa do doutor P. entendia aquilo como prova do talento do marido, que renunciara à figuração da juventude e avançara para a arte não-representativa. Para o médico, entretanto, não se tratava de um avanço do artista, mas da sua doença: "Aquela parede de quadros era uma trágica exposição patológica, que pertencia à neurologia e não à arte".

Achei o caso do doutor P. interessantíssimo, pois se tratava de um exemplo claro em que a pintura revelava algo de que nem mesmo o artista tinha consciência. Isso não significa que todo pintor abstrato sofre de agnosia visual, seria um absurdo afirmar coisa assim, basta ver a intensa pesquisa intelectual que impulsionou o modernismo. Só que os quadros do doutor P. poderiam ter sido interpretados dessa maneira pela História da Arte, como a própria esposa o fazia, se não fosse o diagnóstico de Oliver Sacks. É uma questão de ponto de vista que somente se esclarece quando se conhece mais profundamente o autor.

Então, as boas e velhas perguntas retornam: quanto do artista está contido na obra? O que é arte? Somos todos um pouco artistas? Um escritor pode publicar palavrões sem que eles lhe pertençam? O que há por trás das vontades artísticas?

Para alimentar debates desse tipo, Frederico Morais reuniu 801 definições de arte no livro Arte é o que eu e você chamamos arte. Talvez algumas delas nos ajudem a decifrar aqueles mistérios, assim como a suscitar outros. Aos pouquinhos, porém, reflexões sobre a prática artística acabarão por revelar algum muito mais inesperado: nós mesmos.

Ps.: Eu adorei os relatos de Oliver Sacks assim que os conheci. Não apenas por seu talento literário, capaz de levar o conhecimento científico a todo tipo de curioso, inclusive aos mais leigos no assunto – esse neurologista de Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, conquistou meu apreço pela sensibilidade com que cuida de cada caso e pela preocupação com tratar o doente e não apenas a doença. Não à toa, o doutor Oliver Sacks assumiu também o posto recém-criado de artista naquela mesma universidade. Seja pela literatura ou pela medicina, ele deixa claro seu objetivo: promover uma ciência mais emotiva.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

"É difícil aceitar, para a arte de hoje, dogmas e diktats ou apegar-se a uma única definição, para, com ela, abranger toda a diversidade da criação plástica. O artista, hoje, é um ser anfíbio, deslizante entre ismos, escolas e tendências. A arte atual é ambígua, híbrida, plural."
Frederico Morais, em Arte é o que eu e você chamamos arte

sábado, 11 de junho de 2011

CIDADE INTERIOR


Desde muito antes do grande imperador Kublai Kahn, as cidades nos fascinam. Elas exercem poder sobre os homens e estão muito além de simples amontoados de pedras; as cidades possuem alma. Elas contêm o espírito de seus fundadores e a força dos que morreram para mantê-las.

Todos estão intimamente ligados às suas cidades de origem. Acontece de ser um sentimento escondido, uma chama congelada num coração frio; mas as amarras não podem ser negadas. Marco Pólo, embora visitasse as maravilhas do mundo, nunca deixou de retornar ao seu imperador, ao seu reino. Ele sofreu tentações, claro; só que tinha orgulho da sua terra e soube vencer o amor à primeira vista que encanta os estrangeiros. Explicou esse sentimento dizendo que os outros lugares são como espelhos em negativo: o viajante reconhece o pouco que é seu descobrindo o muito que não teve e o que não terá.

Enquanto o turista deseja conhecer o todo de uma cidade, o povo percebe que o máximo a lhe ser concedido é uma imagem bela, que reflete aquilo que ele deseja ver. São ilusões. Ninguém além do próprio povo conhece o espírito da sua cidade. Por mais que você se lance ao mundo na tentativa de explorá-lo, só conseguirá encontrar uma versão pessoal dele.

As cidades, como dizia Marco Pólo, não contam o seu passado, elas o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos mastros das bandeiras; cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras. Nada do que se viveu pode ser revivido, exceto quando percebemos as cicatrizes e buscamos as recordações. E não há nada mais interior do que as nossas próprias recordações.

19 de janeiro de 2005.
[Inspirado no livro As cidades invisíveis (1972), de Italo Calvino.]

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Não quero uma vida com raros momentos de prazer, muito pelo contrário; busco a cada momento uma vida de prazeres raros.

terça-feira, 7 de junho de 2011

CULTURA É A REGRA, ARTE É A EXCEÇÃO


Je Vous Salue, Sarajevo (1993), de Jean-Luc Godard

O vídeo acima foi exibido na 29ª Bienal de São Paulo, que teve como tema as aproximações entre arte e política. Não apenas essa política administrativa, organizada em governos, que estamos acostumados a criticar sem entender direito. Falávamos de todo o sistema criado pela vida em comunidade, que, de certo modo, é espontâneo e natural do ser humano. Um sistema que, diga-se de passagem, também estamos acostumados a criticar sem refletir ou procurar entendê-lo mais profundamente.

Arte e cultura ocupam um belo espaço aí. Godard, ao contrário da maioria, é um artista e intelectual que não critica sem conhecer muito bem o assunto. Je Vous Salue, Sarajevo é uma reflexão sobre a cultura europeia, nacionalismos e a guerra da Bósnia, a partir de uma foto dos fotógrafos Ron Haviv e Luc Delahaye.

Aqui estão suas palavras, transcritas e traduzidas:

"De certa forma, o medo é o filho de Deus, redimido na noite de sexta-feira. Ele não é belo, é zombado, amaldiçoado e renegado por todos. Mas não entenda mal, ele cuida de toda agonia mortal, ele intercede pela humanidade.

Pois há uma regra e uma exceção. Cultura é a regra. E arte a exceção. Todos falam a regra: cigarro, computador, camisetas, TV, turismo, guerra. Ninguém fala a exceção. Ela não é dita, é escrita: Flaubert, Dostoyevski. É composta: Gershwin, Mozart. É pintada: Cézanne, Vermeer. É filmada: Antonioni, Vigo. Ou é vivida, e se torna a arte de viver: Srebenica, Mostar, Sarajevo. A regra quer a morte da exceção. Então a regra para a Europa Cultural é organizar a morte da arte de viver, que ainda floresce.

Quando for hora de fechar o livro, eu não terei arrependimentos. Eu vi tantos viverem tão mal, e tantos morrerem tão bem."