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domingo, 28 de agosto de 2011

LOGO ALI, DO OUTRO LADO DA RUA

Devo ter levado uns dois ou três minutos até levantar da cadeira e ir lá olhar, na janela do escritório. Eu estava concentrado na leitura do jornal e foi a repetição daquilo que me chamou a atenção, não o barulho em si. Tem feito tanto barulho nessa cidade que aprendi a ignorá-lo. E também a tosse, cada vez pior, não me deixava prestar atenção em nada. Mas aquela pancada inicial e a subsequente chuva de vidro, a pancada e a chuva, de novo e de novo... era isso que me parecia, até eu ir lá olhar.

Tinha um trator no quarteirão de trás, demolindo uma casa antiga. Moro no alto de uma ladeira, no topo do morro, então dava para ver bem. Ele primeiro erguia a pá escavadeira, assim, meio de lado, depois corrigia a posição e descia com força no telhado da casa. Com força, veja bem, não com velocidade. Era até bastante lento, daquele jeito bronco e desengonçado dos tratores. E as telhas iam todas ao chão, um monte de telhas por vez, provocando aquele barulho de vidro.

O muro de pedras da casa tinha agora um buraco com a largura exata do trator. Ele passou por ali, derrubou o muro com um encontrão só, com as esteiras laterais, aquelas de tanque de guerra, vencendo o obstáculo facilmente. Não há como impedir o progresso, mesmo. Depois da capital e do centro, são os bairros mais afastados que começam a crescer para cima. Ninguém precisava anunciar nada; para mim, estava muito claro que iam subir um prédio ali.

Quando me aproximei da janela, ainda com o jornal na mão, a nuvem de poeira já havia tomado quase tudo. Só de ver aquilo já me veio uma nova crise de tosse, que passou logo. Apoiei no umbral. O trator espantara de vez meu sossego. Eu estava tentando ler as notícias do dia anterior com aquilo tudo acontecendo bem na minha frente, e acabei indeciso sobre o que seria mais interessante. Era uma questão de circunstância. A circunstância e tudo o que ela sugere de eterno.

Era uma casa antiga, bem posicionada no centro de um terrenão, com quintal e até umas árvores ao redor. Deveria estar ali há uns cinquenta anos, talvez sessenta. Sim, com certeza, foi uma das primeiras desse lugar, veio antes mesmo de mim. Uma casa bonita, de construção sólida, feita para durar. No mínimo dois anos de construção, tijolo por tijolo... essas coisas demoravam para ser feitas direito. E agora vinha o trator e derrubava tudo com uma facilidade assombrosa, nem aí para o passado. Com movimentos laterais, assim, o braço da escavadeira punha abaixo um pilar em seguida do outro. Paf... paf... paf... Mais e mais telhas caíam, aos montes, mais barulho de pratos se quebrando, de louça se espalhando pelo ladrilho da cozinha quando a gente, meio distraído, deixa escorregar. A mão cheia de espuma, na beira da pia, a água vertendo e os cacos correndo pelos cantos, fugindo dos olhos.

Nuvens e nuvens de pó, cada vez mais densas. Quando elas esconderam o trator inteiro pela primeira vez, dei uma olhada ao redor. Eu moro no alto, então consigo vigiar o bairro bastante bem. Aguardando do lado de fora do muro de pedra, havia uns cinco ou seis homens vestidos com uniforme laranja. Eles provavelmente iam limpar o terreno depois que a demolição fosse concluída. Por isso, de vez em quando, davam uma espiada pelo buraco que o trator deixou. Eu via também um rapaz de terno, talvez o arquiteto ou algum manda-chuva da construtora, que gesticulava enquanto falava com eles. O barulho ali devia ser insuportável.

Foi curioso. Percebi também que eu não era o único vizinho a observar a movimentação. No conjunto logo ao lado da obra, num desses prédios baixinhos, de três andares, cabeças se colocavam para fora da janela. Eu não conhecia ninguém dali, e a posição não ajudava muito, eles precisavam se esticar ao máximo e imaginar o resto. Não dava mesmo. Uns pedestres que passavam pela rua também ficaram olhando. E, por fim, havia a dona Cleide. Essa sim, na laje do sobrado localizado bem na frente da casa, tinha até se debruçado na mureta, com o cachorro se agitando ao lado. Olhos atentos e orelhas em riste. Aquele cachorro imenso e bobo, como era mesmo o nome dele? Chocolate, Bombom... sei lá, um nome de doce. Dona Cleide tinha uma visão boa dali, estava quase num camarote. Devia estar pensando no inferno que iam fazer da sua vida, por causa do barulho, da poeira e dos assovios dos pedreiros. Ela está com uma filha bem na idade, sabe como é. Em compensação, ia ter assunto durante meses.

Eu via tudo isso acontecer na janela do escritório. Mesmo assim, passada a surpresa inicial, resolvi deixar aquela história para lá. Era uma cena peculiar, verdade, porém muito repetitiva. Não gosto dessas coisas. A casa ruindo, depois sumindo de vez... Vi quando a escavadeira acertou a caixa d'água lá no alto, quebrando a casca fina de amianto como se fosse casca de ovo. Ela estava seca, nada vazou de dentro. Foi estranho. Fina, frágil, um corpo sem alma. Ficou só o esqueleto. Aquilo me incomodava. Não sei explicar por que, mas a destruição é sempre incômoda para quem já passou dos sessenta, sessenta e seis. Ainda mais assim, ao vivo e a cores. As novidades se aproximam como quem não quer nada, pedem licença e nos empurram um pouquinho mais para longe.

A tosse não me deixava em paz. Tosse seca. Depois de outra crise, daquelas de tirar o fôlego, levei o jornal de volta para a escrivaninhatrator, bem ali, no outro lado da rua, abrindo um novo buraco na terra, pondo fim a uma coisa para outra nascer no lugar. Tudo no seu devido tempo, fosse ele qual fosse.

Durou mais dez minutos, no máximo. Digamos que, num total de quinze, a casa foi inteirinha posta abaixo. Uma casa grande, de estrutura sólida, dessas feitas para durar. Quinze minutos, não mais do que isso. Foi o quanto ela resistiu.

No momento em que percebi que a demolição terminara, larguei o jornal de uma vez por todas e voltei à janela para averiguar o estrago. Cheguei a tempo de ver dona Cleide se levantar e deixar seu posto na mureta, com o cachorro correndo em círculos ao seu redor, todo contente, abanando o rabo sem entender nada. Não havia mais cabeças esticadas nas janelas do condomínio ao lado, elas devem ter desistido bem antes, dada a posição pouco privilegiada. Os pedestres também tinham retomado o rumo e os peões de laranja agora escalavam com dificuldade os montes de entulho feitos pelo trator, averiguando o entorno. Teriam que limpar tudo aquilo. Daria um trabalhão, mas uma parte permaneceria soterrada ali para sempre, tenho certeza.

Dois caminhões-caçamba encostaram na calçada, um atrás do outro. O terreno era largo o bastante para acolhê-los com tranquilidade. Um ótimo terreno, como disse.

A poeira mal havia abaixado e já dava para ver várias montanhas de entulho. O trator foi deixado no alto de uma delas, imponente, para observar a região recém-conquistada. O rapaz de terno, que eu supunha ser o arquiteto ou o dono da construtora, estava ao lado dele, com uma mão apoiada na esteira e a outra na cintura. Também observava, quieto, com um sorriso no rosto. Havia muita coisa para fazer ali, muitos planos para aquele lugar. Era impressionante! A poeira mal havia assentado, os escombros da antiga casa ainda tinham que ser recolhidos. Ia dar um trabalhão, com certeza. Ia levar tempo. Que coisa. Do alto, eu via lascas de porta, tijolos com argamassa e tinta grudados, telhas quebradas, o perfilado todo retorcido. Eu via as pedras do muro, os pilares tombados, o antigo dono chegando do trabalho, as crianças correndo no quintal, trepando nas árvores. Via a rede balançando lentamente depois do almoço do domingo, a limonada servida geladinha nas tardes abafadas de verão. Via a bola bater na parede e voltar no pé do garotinho, que cresceu e começou a namorar escondido. Eu via montanhas de entulho sob entulho, via tudo isso bastante bem. Tudo aquilo ali, na minha frente, agonizando.

O rapaz de terno, olhando mais de perto, possivelmente via mais. Tinha olhos mais vivos do que os meus, olhos que viam além. Era diferente. Ele devia enxergar, inclusive, o novo prédio começando a ser erguido.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

QUEM SOU EU, AFINAL?

Quando Rodrigo de Moraes, editor assistente do Caderno C, perguntou se eu não teria uma foto minha para estampar esta coluna, desencadeou, sem querer, uma série de pensamentos existencialistas que culminaram na batidíssima questão: quem sou eu, afinal?

Exagero? Ora, um pouco de exagero nunca é demais, e a verdade é que eu não sou muito afeito a exibir o rosto por aí, preferindo sempre me ocultar atrás do codinome Edu Almeida. Por quê? Para ser sincero, não sei. "O que sou e o que escrevo são uma coisa só. Todas as minhas ideias e todos os meus esforços, eis o que sou.", disse C. G. Jung certa vez, e eu sempre levei a sério os pensamentos daquele simpático velhinho suíço, tanto que essa sua frase consta em meu blog desde que o criei. Além do mais, acho que nunca confiei no modo como a imagem lida com o conteúdo, principalmente quando ela precisa sustentar o enorme peso de uma identidade. Não basta, percebe? A imagem reduz tudo a um instante, um ponto de vista, uma gama de cores. Não precisa nem se tratar de uma pessoa, pode ser uma paisagem mesmo, daquelas que você fotografou na sua última viagem de férias – a imagem, no máximo, sugere a sensação do lugar; jamais será o lugar propriamente dito, visto e experimentado.

Convenhamos, nosso comportamento está intimamente atrelado à visão, então é natural que a imagem fale mais alto. Veja só o grau de confiança que uma testemunha ocular recebe, no caso de um crime, por exemplo, enquanto uma testemunha olfativa viraria motivo de piada. Só que os olhos também se enganam. O mesmo vale para os nossos preconceitos. De repente, alguém não vai com a minha cara e deixa de ler a coluna só por causa da foto. Uma imagem, mil palavras, sabe como é... Acontece direto comigo. Se não gosto de um sujeito à primeira vista, ele precisará de muita lábia para me convencer do contrário, ainda mais porque acredito cegamente em meu sexto sentido.

No caso do jornal, havia também uma questão prática: que foto usar? Essa é muito antiga, naquela estou despenteado, naquela estou acompanhado, esta outra tem fundo difícil de recortar, tem sorriso torto, olho fechado... que lástima! Sem contar que eu adoro tirar fotografias e, na maioria das vezes munido de câmera, acabo não aparecendo em nenhuma. Enquanto isso, milhões de anônimos entulham seus perfis de redes sociais com todo o tipo de retrato, sem vergonha de serem felizes. É mesmo um desprendimento admirável.

Vão dizer que é frescura, mas sou publicitário, sei que o poder da imagem é comprometedor. Ele resume você a uma falsa realidade: um instante específico, um olhar perdido, um estilo de roupa, uma luz, um peso e uma altura que, como tudo na vida, estão sempre em mutação. Quer dizer, a imagem é necessariamente uma ilusão. Não se pode confiar nela.

Já fui vítima desse poder e tentei ludibriá-lo. Comecei a escrever cedo, jovem o bastante para que não me atribuíssem o devido crédito. Então, eu deixava a barba crescer, para disfarçar, vestia roupas sóbrias, tentava parecer mais velho manipulando a imagem que faziam de mim. Funcionava – ou, pelo menos, eu achava que sim. No escritório, era a mesma coisa: eu tinha subordinados com mais tempo de carreira e, na época, acreditava que hierarquia era determinada pela data de nascimento. Não revelava a idade de jeito nenhum, deixava o povo confabular. Coisas da juventude, não há como ocultá-las.

Não se trata de mania pessoal. Em regra, as pessoas não gostam de aparentar, digamos assim, o "grau de experiência". Tenho amigos e amigas lindos que se acham decrépitos só porque já passaram dos trinta. Ou dos quarenta. Ou dos cinquenta, que seja. Uma pena.

Outro dia, uma dessas amigas fez um ensaio fotográfico para guardar como recordação – ou "para a posteridade", como gosto de pensar. Teve direito a cabelo, maquiagem, figurino e photoshop. Me diverti à beça com os elogios decorrentes: "Nossa, as fotos ficaram lindas. Nem parece você!" Ela estava entusiasmadíssima, preferi não polemizar. Mas achei um paradoxo absurdo alguém ficar linda na foto justamente porque deixou de parecer consigo mesma. É assim que a história da humanidade vai sendo escrita.

Eu ri, na ocasião, e depois sofri do mesmo mal. Na falta de alternativas, resolvi improvisar um retrato novo para esta coluna e, devido ao resultado pouco animador, pedi a um amigo que fizesse leves retoques. Apagar uma espinha, corrigir olheiras, ajeitar uns fios de cabelo que saíram do lugar bem na hora do clique. Coisinhas assim, fugazes. Ele foi lá e, pelo bem da amizade, me recompôs. Portanto, se você quiser saber como sou, de verdade, direi que pareço com o cara aí do alto, só que mais real.

Meu próprio pai, que nunca foi disso, teve que renovar o RG e, quando viu a foto tirada lá, na hora H, ficou desconsolado. Aquele senhor grisalho, de óculos, era velho demais para ele. Calúnia! Cancelou o RG, fez a foto em outro lugar e voltou no dia seguinte rejuvenescido.

Isso me lembrou mais um caso, que conto agora para terminar de vez com o papo furado. Está mais para uma lenda do rock, não sei até que ponto é verdade, mas dizem que Neil Young, depois de gravar um primeiro disco muito bom e assinar contrato para outro, acabou processado pela gravadora porque, no segundo, já não se parecia mais com o Neil Young original. É mole? Sei lá quem ganhou o páreo... Como é que se comprova a própria autenticidade?

Pois bem, eu continuo mesmo acreditando no bom e velho Jung. Sou o que escrevo, muito mais do que aparento, e vou ser um novo eu a cada frase, a cada pensamento, a cada inspiração, mesmo que a foto da coluna permaneça a mesma. Se ela não agradar, peço que coloque o polegar em cima e ignore. Para saber de verdade quem eu sou, continue a me acompanhar aqui, mensalmente. Aos pouquinhos, vou revelando interesses, trocando ideias, puxando papo. Entre o ser e o nada, vamos, juntos, descobrindo nossas verdades mais profundas.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Qual a importância da literatura na vida cotidiana das pessoas?

"Esta pergunta poderia abranger a noite inteira de conversa, porque seria algo relacionado com a filosofia da arte. Para que serve a arte? A literatura, assim como a arte, é uma forma de conhecimento, de perceber o mundo e de expressar essa percepção. Nesse sentido, toda arte teria uma utilidade. Mas não acho que o critério da utilidade deva ser usado em relação à arte. Arte não deve ser vista de uma maneira tão pragmática, tão imediatista. Não se pode negar que a literatura contribui para a maturação e evolução da língua, para a expressividade dessa língua, para a utilização dessa língua, inclusive para a comunicação científica, porque as linguagens se entrelaçam. E como qualquer arte, a literatura é uma forma importante de conhecimento, de ver o mundo e de expressar o mundo através da linguagem. Acho que quem se expõe a um estímulo intelectual, emocional, artístico, está dando a si mesmo uma chance de expansão da sua sensibilidade, da sua humanidade. Se nós nos limitássemos a comer e procriar, tudo seria muito pobre."

O escritor João Ubaldo Ribeiro, num bate-papo do Paiol Literário (projeto promovido pelo jornal Rascunho em parceria com a Fundação Cultural de Curitiba, o Sesi Paraná e a Fiep). Leia a entrevista completa aqui: www.rascunho.com.br

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO

Um escritor, tomado por angústia e desilusão, fala sobre a sua dificuldade de escrever um bom romance. Paradoxalmente, ele termina o relato com um romance escrito, que é bom o bastante para desmentir a si mesmo. Parece meio esquisito. Parece também meio clichê – quantos livros você já viu sobre escritores que escrevem sobre outros escritores tentando escrever? Um monte. Pois bem. Quem se lembra de David Foenkinos?, do francês David Foenkinos, é as duas coisas ao mesmo tempo, meio esquisito e meio clichê. Mas é também bastante bom, coisa que só fui perceber quando terminei de lê-lo.

Comprei o livro por acaso, num saldão. Estava tão barato que acabei levando-o por curiosidade, esperando apenas folhear e, quem sabe, encontrar ali alguma coisa interessante. Li as primeiras trinta páginas num pulo. E as outras cento e trinta em outro.

A história é meio deprimente, já vou avisando. O personagem David Foenkinos escrevera um romance de sucesso, seguido por outros cinco que passaram despercebidos tanto pelo público quanto pela crítica. Agora, ele está atrás de uma grande ideia perdida num trem, concebida e esquecida numa viagem entre Genebra e Paris. Por conta dessa obsessão – e da apatia gerada pelos fracassos –, sua vida pessoal desmorona, em especial o relacionamento com esposa e filha. Afinal, é sobre isso que ele escreve.

O livro tem boas passagens. Embora pouca coisa aconteça, a leitura flui rápido. Vamos nos embrenhando na vida de David e experimentando o gosto repugnante da derrota que ele outorga a si próprio.

O mais bacana talvez seja justamente não saber quanto dali foi inventado e quanto foi apropriado da vida real do Foenkinos autor. Fica claro que toda biografia não passa também de mera ficção, e que qualquer história pode ser recontada conforme convier às partes interessadas. Como lemos logo nas primeiras páginas, só as nossas certezas conhecem intimamente as nossas incertezas.

David Foenkinos estava mesmo esquecido? Seus romances anteriores foram tão ignorados quanto o personagem afirma? Sua estreia fez aquele sucesso todo? Sabemos que aqueles livros existem porque está escrito nas orelhas do atual e, suponho, essas orelhas não fazem parte da criação original. Mas posso estar enganado. Sim, claro. Esse é o mérito do autor. Ele nos engana sem que percebamos, justamente porque nos faz acreditar em sua história reinventada.

Na fronteira entre ficção e realidade, David nos leva a refletir sobre o amor, a ansiedade e as relações humanas; sobre tudo que está ao nosso alcance e sobre aquilo que independe da nossa vontade. Ele procura um bode expiatório para sua mediocridade e, como resultado, acaba produzindo um livro nem um pouco medíocre. Um livro sobre o próprio livro, que conseguiu prender minha atenção enquanto rolavam as páginas.

Já próximo do desfecho, o personagem Foenkinos se pergunta: "Pode-se amar mais uma mulher do que confundindo-a com uma ficção?" Imagino que não. O mundo, em geral, existe apenas como uma ideia de mundo. As coisas não existem por si mesmas, mas da maneira como nós as concebemos. Quer dizer, uma casa, para mim, é diferente daquilo que você entende por casa. Uma maçã possui diferentes significados para quem planta e para quem come. Um livro idem. É o que o autor Foenkinos sugere nas entrelinhas: é impossível amar a vida sem escrever, a partir dela, a nossa própria ficção.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Mariana Delfini: Muitas pessoas vêm à peça atraídas pela imagem que têm de você na televisão. Mas, no palco, você adota um tom irônico e até agressivo em relação à plateia. Não teme frustá-la?

Caco Ciocler: A graça do espetáculo é mesmo esta, frustrar qualquer expectativa de quem vai em busca de entretenimento. O fato de eu fazer televisão potencializa esse jogo. Veja bem: não tenho nada contra o entretenimento, mas já existe tanta coisa dando conta dele... Acho uma pena as pessoas virem buscá-lo também no teatro. Sinto que a gangorra pesa muito para esse lado e pouquíssimo para o da arte, que dá espaço à dor – não a dor como objeto de culto, mas a dor da vida, mesmo, a dor diante do vazio. Preencher o tempo com o entretenimento é uma maneira de fingir que esse vazio não existe. A arte deve estimular o movimento oposto: nos fazer parar de mentir sobre ele. Deve dar à existência uma dimensão mais sublime, para além do banal.

Entrevista concedida à revista BRAVO! deste mês, a respeito da peça 45 minutos, em cartaz no Centro Cultural São Paulo.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Eu continuo a escutar Norah Jones. E continuo a cantar Norah Jones. As músicas permanecem em repeat perpetuum em minha cabeça. Mas é um pop disfarçado de jazz, você vai dizer, melancólico e inocente. Também é. Além de pop jazz, é uma porção de outras coisas.

Eu gosto cada vez mais de Norah Jones. A cada disco, descubro uma nova artista. Só que o disco que continua a tocar, nesse momento, é o seu primeiro. Come away with me, vou explicar por quê. Porque gosto tanto dele, apesar dos pesares que a crítica ácida insiste em corroer. Há um lirismo escondido atrás daquela banalidade toda. Um lirismo que, inclusive, ganha forças com a tal banalidade.

Em Feelin’ the same way, letra assinada pelo baixista Lee Alexander, Norah canta: o sol acaba de escorregar sua mensagem por debaixo da porta, e eu não posso me esconder, enterrada em meus lençóis. Eu já li aquelas palavras antes, então agora sei que o tempo chegou novamente para mim. E eu me sinto do mesmo jeito, de novo, eu canto os mesmos versos, de novo, não importa o quanto eu finja que não.

Acho lindo. Se fosse simplesmente banal, ela poderia dizer “vejo o sol na fresta, sob a porta, e eu não posso ficar na cama para sempre”. Mas o lirismo dá as caras, para nossa sorte, e o sol não aparece, ele não se deixa ver, apenas escorrega um bilhete. Um bilhete que ela já leu muitas outras vezes, e que insiste: o tempo está correndo, o novo dia veio lhe buscar, ávido por novidades; não adianta se enterrar, não adianta morrer, é preciso vencer. Dia após dia, é preciso vencer a mesmice de ser sempre você.

Na música que dá nome ao disco, essa sim escrita por Norah, para você não dizer que o mérito é alheio, ela canta o amor do jeito mais banal possível. Porém, ao invés do escorraçado “eu amo você”, que o nosso sertanejo pop esfolou ao limite, até que ele não significasse mais nada, até que não passasse de mera rima, Norah diz: venha comigo, num ônibus; venha para onde eles não podem nos tentar com as suas mentiras. Eu quero acordar com a chuva caindo num telhado de lata, enquanto estou a salvo em seus braços.

Cenas banais, fugazes, porém belíssimas. Belas justamente porque banais.

É possível ser pop, jazz e lírico, tudo ao mesmo tempo? É possível falar a mesma coisa, mas diferente? É possível retirar do banal, da rotina, do dia a dia, algo estupendo? Fazer complexo das coisas simples? Norah acredita que sim. Então eu a deixo tocar.