Pesquise aqui

Mostrando postagens com marcador resenha crítica. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador resenha crítica. Mostrar todas as postagens

terça-feira, 14 de setembro de 2010

SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE CRÍTICA DE ARTE

Dias 16 e 17 de setembro haverá seminário da Associação Brasileira de Críticos de Arte em São Paulo. Os assuntos são interessantes, confira a programação:


Clique na imagem para ampliá-la.

Mais informações: ABCA

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

HISTÓRIAS QUE VIERAM PARA FICAR

Um livro-reportagem sobre rodoviárias não parece exatamente interessante. Só que, no caso de O livro amarelo do terminal, o preconceito acaba na primeira página. Até porque não se trata de um livro comum – o projeto gráfico, desenvolvido por Elaine Ramos e Maria Carolina Sampaio, da editora Cosac Naify, se destaca pela irreverência: impresso em papéis tão peculiares quanto aqueles dos bilhetes de viagem, fininhos, ele apresenta design sofisticado e intervenções ao longo do texto que propõem uma nova experiência de leitura. Tampouco falamos de uma rodoviária qualquer, mas do Terminal Tietê, o segundo maior do mundo, que se conecta a milhares de cidades do Brasil e da América do Sul. Para completar, não foi escrito por alguém que telefonou e fez uma entrevista de trinta minutos com o assessor de imprensa, mas pela então estudante de jornalismo Vanessa Barbara, que passou meses visitando o local, conhecendo pessoas, infiltrando-se no espaço físico e espiritual, observando, vivenciando e anotando tudo num bloquinho cor-de-rosa. O resultado é um apanhado interessantíssimo de “causos”, selecionados de algo muito maior, que se confunde com a própria cidade de São Paulo e seus habitantes. Quando a gente se dá conta, já se foi meio livro e ainda não deu vontade de largar.

Vanessa escreve com humor, ironia e clareza. Soube encontrar a alma da rodoviária naqueles que trabalham ali ou que apenas transitam, que aguardam ansiosamente parentes e amigos, que suam a camisa para comprar uma passagem e celebrar o Natal com a família a mais de três mil quilômetros da capital. Depois, ela cruza isso tudo com trechos de música, literatura e propaganda, enriquecendo a sensação apreendida durante a exploração.

São relatos de amor, luta e persistência, vividos por um povo que não conhecemos a fundo, mas do qual fazemos parte. Em outras palavras, a história do Terminal Rodoviário do Tietê é também a nossa história.

Os capítulos centrais, impressos em folha de papel carbono, são frutos da pesquisa que a autora realizou com mais de sesssenta reportagens da época da implementação, além de documentos, entrevistas e muita cultura popular. Atravessam a ditadura militar, resgatam nomes icônicos como Paulo Maluf e Romeu Tuma, dá vontade de rir e de chorar, tudo ao mesmo tempo. É impressionante por diversos motivos: pelos valores astronômicos gastos na construção e reforma, pelo jogo político, pela desordem, pelos conflitos de interesses, pelos debates arquitetônicos, pelas promessas mentirosas, pelo povo ficar sempre em segundo plano. Impressionante também por ter dado certo no final, coisa que nem Nostradamus previa e nem Freud explicaria. Típico de Brasil.

Desde que o livro foi escrito, em 2003, até a publicação, em 2008, muita coisa mudou. Novos capítulos surgiram e outros terminaram, não dá para saber com certeza ou atualizar tantos dados. Assim, o jornalismo-literário adquire aquela onipresença da ficção pura, coisa que não o anula, claro, apenas fornece novos valores. O capítulo seis, por exemplo, torna-se um conto perfeito, sem tirar nem pôr. Difícil dizer o que tem de reportagem. Tudo e nada ao mesmo tempo. Delícia de ler.

Vanessa Barbara provou que, com perspicácia e boa redação, até mesmo um assunto pouco atrativo como a história de uma rodoviária pode se transformar num livro muito bacana, que informa e diverte inclusive os leitores pegos de surpresa, como eu. A obra carrega adjetivos que muitos romancistas vêm procurando, normalmente em vão: inteligência, simplicidade e relevância. Os prêmios recebidos em 2008 e 2009, com destaque para o Jabuti, foram mais do que merecidos. Esse livro amarelo não tem como não agradar.


Trechos (ou aperitivos):

“A rodoviária do Tietê é uma cidade de coisas perdidas. ‘O caça-níqueis está aqui há dois anos’, informou a funcionária, mostrando uma lista que enumerava o esquecimento de espingardas (duas), motocicletas (duas), um banco de kombi, uma máquina de serrar azulejos, camas, muletas, motores de moto, pneus, dentaduras e uma mão mecânica. ‘Às vezes vem gente procurando amigos desaparecidos. Mostram a foto e perguntam se já encontraram’, conta Andréia, que trabalha no setor de Achados e Perdidos.” (p. 11)

“– Moça, onde é que eu faço inscrição para ir pro Iraque?
– … Desculpe?
– Pro Iraque. Eu quero ir pra guerra, buscar o meu filho.
– Ahn… senhora, nós não oferecemos esse tipo de serviço.
E a mulher foi embora, bastante brava com a incompetência das atendentes. Ora, que disparate. Como, não sabe responder a pergunta? I-N-F-O-R-M-A-Ç-Õ-E-S – é o que está escrito na placa.” (p. 37)

“Escreveu todas as instruções mais uma vez. Agora, em minúcias. ‘Ir até a rampa tal, comprar um bilhete de integração, entrar no metrô com destino a…’ Ele saiu com o papelzinho estendido na palma da mão, como se fosse uma bússola. No final do dia, antes de voltar para casa, ainda passou no balcão, agradeceu pelas informações e comprou um pão de queijo para Rosângela.” (p. 45)

“Certo dia, ele sentiu cheiro de fumaça e viu uma luz forte vinda de dentro de um dos armários Malex. Chamou um segurança e eles passaram algum tempo pensando, tentaram imaginar o que havia ali, concluíram que era muito suspeito e decidiram abrir o armário. Lá dentro, havia nada menos que uma vela acesa. ‘U-m-a-v-e-l-a-a-ce-sa! Pode?’
– Daí o segurança foi lá e fez ‘fuuuu’: apagou a vela. Então veio a mulher dona da vela e fez o maior fuzuê.” (p. 93)


Sobre o projeto gráfico e a reação da autora ao vê-lo (muito legal): Originalidade e ousadia em O livro amarelo do Terminal


Este texto também foi publicado em: Revista Psicanalítica

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

"ELE VIA O MUNDO DO JEITO QUE UM SANTO SEM CABEÇA O VERIA"

Como um esquizofrênico percebe o mundo? É algo que me pergunto desde que comecei a pesquisar a relação entre arte e espectador, segundo aspectos psicológicos, onde o assunto vive dando as caras. Porque o mundo é sempre o mesmo. Se parece diferente para mim ou para você, é porque nós somos diferentes, temos vidas diferentes, conhecemos pessoas diferentes e temos interesses diferentes. Os esquizofrênicos também têm suas peculiaridades, porém não tantas quanto se supõe – são pessoas como eu e você, que, no entanto, não separam muito bem o consciente do inconsciente, como se vivessem no mundo dos sonhos. Pelo menos é assim que Freud explica. Quando descobri que esse era o mote do romance Afluentes do rio silencioso, fiquei curiosíssimo. O que estaria me esperando ali?

A história se resume às perambulações de um garoto, conhecido como Lowboy (um tipo de cômoda baixa, título original do livro), que foge do hospital psiquiátrico em que trata sua esquizofrenia paranóica e se embrenha nos túneis do metrô nova-iorquino. Ele quer salvar o mundo do aquecimento global. Para encontrá-lo, a mãe e o policial responsável pelo caso devem reconstituir seu percurso – uma frágil linha de raciocínio que, tal como o metrô, se cruza com uma infinidade de outras.

É muito bacana a maneira como o autor – o norteamericano John Wray – retrata o fluxo de pensamentos do garoto, intercalando-os com capítulos racionais e dedutivos protagonizados pelo detetive. Esses contrapontos nos permitem sentir melhor as diferenças psicológicas existentes entre eles. Em diversos momentos, fiquei me perguntando: "Será que é assim mesmo? Será que é assim que um esquizofrênico pensa? Que vê o mundo?" E tudo que Lowboy inventa, as pessoas imaginárias com quem conversa, os planos conspiratórios de que se sente vítima, tudo é confuso, chega a nos tirar o fôlego e embaralhar a realidade. Verdade ou mentira? Fato ou ficção? Como um escritor são pode descrever o processo cognitivo de um esquizofrênico?

Os capítulos sobre Lowboy são difíceis de entender. Não se sabe ao certo o que está acontecendo, não se tem noção precisa do tempo e não é possível deduzir o próximo passo. Por quê? Porque nossa tendência de racionalizar encontra ali uma barreira. Ora, se nem sempre há sentido lógico em nossas escolhas, imagine nas de um doente mental. Evidencia-se um ponto em comum: somos todos movidos pela emoção.

Isoladamente, as falas do garoto são desconexas, mas, no contexto de seus pensamentos, elas fazem sentido – um sentido que, na maioria das vezes, só ele compreende, mas que é suficiente para decidir e agir.

Durante o romance, outras questões cruciais vão surgindo: os esquizofrênicos conseguem mentir? Por que teriam essa necessidade? Qual é a diferença entre mentira e ficção? Existe imaginação pura? Como sabemos que estamos de acordo com a normalidade? Qual seria o parâmetro? As ideias não viriam de momentos de delírio? Nossos desejos não influenciam nossos pensamentos?

Além do fluxo de informação, que deixa a história com aspecto desordenado, há outros recursos que o autor utiliza para obter a sensação de desconforto mental, tal como perguntas sem pontos de interrogação, vírgulas fora de lugar e falas, pensamentos e narração misturados, sem indicação ou destaque. Deve ter dado um trabalhão para a tradutora, Vanessa Barbara.

Vamos a cada página nos enfiando no lodo contagiante da esquizofrenia, acostumando com a falta de exatidão, com o pouco ou nenhum controle sobre a sequência de fatos. Lemos, imaginamos, percebemos tudo que acontece à nossa volta e, de repente, tudo faz sentido e pode ser experimentado, por mais estranho que seja. Não existe certo ou errado, apenas a verdade entendida à nossa maneira. Todo o poder a que um leitor poderia almejar.


Trechos:

"Lentamente, seus pensamentos também se encaixaram. Mesmo a mente estreita e claustrofóbica de Lowboy sentiu afeição pelo túnel. Afinal, era sua cabeça que o fazia de refém, não o túnel nem os passageiros do trem. Sou um prisioneiro do meu próprio crânio, pensou. Refém do meu sistema límbico. Não há saída além do meu nariz." (p. 9)

"Conforme ela se aproximava, o túnel contraía-se como uma boca e Lowboy começou a ficar preocupado. Havia gente no caminho, mas ele as ignorou. Eu fiz um bom trabalho Rafa, ele gritou. Os grafites me disseram. Vá mais devagar, srta. Covington. O mundo pode parar de acabar. Mas então ele correu direto para o Caveira e o Esqueleto." (p. 293)


Afluentes do rio silencioso, de John Wray
Companhia das Letras, 2010, 304 páginas
Página oficial: Cia das Letras

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

O MENINO QUE TOMOU UM ATALHO NA VIDA



Joãozinho era um menino que gostava de desenhar. Um dia, fez uma porta mágica com aquarela e nanquim, passou por ela e se transformou num cartunista famoso. Tinha apenas catorze anos.

Essa não é bem a história de João Montanaro, mas, se eu contasse a verdade, você provavelmente não acreditaria. Então vamos nos ater aos fatos:
1. João é um cartunista famoso;
2. Acabou de lançar seu primeiro livro;
3. Tem apenas catorze velinhas no bolo.

É do item número 2, chamado Cócegas no raciocínio, que quero falar, porque o resto é tão fabuloso que nem se discute. Bom, fiquei sabendo do caso pouco antes da Bienal do Livro de São Paulo e, como bateu aquela curiosidade, fui ao estande da Garimpo Editorial me informar. João não estava – já era hora de criança estar na cama. Conversei com o expositor e ele confirmou toda a história. Comprei um exemplar e fui ler com meus próprios olhos. Adorei.

Como se tivesse atravessado uma porta e chegado à maturidade, João apresenta um trabalho conciso e inteligente. Suas sacadas têm aquele teor crítico e sarcástico que faz das charges uma arte respeitável. O traço é solto e aparentemente despretensioso, e é esse “aparentemente” que o diferencia das meras ingenuidades infantis.



Li o livro inteiro numa só tacada e fiquei feliz por descobrir essa pérola – sem dúvida, foi um dos grandes destaques da Bienal. Trata-se de uma coletânea de tiras e charges publicadas em jornais e revistas relevantes, tais como a Folha de São Paulo e a MAD, além do blog Por João. Tem ainda uma história inédita e homenagens imperdíveis feitas por cartunistas do porte de Laerte e Adão, que se tornaram seus amigos.

Mas como é que ele conquista tanta gente? Talento e técnica à parte, João aproxima o leitor de seu universo fazendo piada do próprio processo criativo. De alguma maneira, ele nos permite conhecer sua intimidade e, como se emprestasse um lápis, nos deixa brincar também. Porque é uma brincadeira para ele, dá para perceber isso na espontaneidade de cada traço. Tomara que continue assim.

Os diálogos com os ídolos também são demais, dá vontade de participar daquele seleto grupo de escolhidos. Sem falar das referências que se descobre em cada tirinha. Nossa, o menino é um poço de cultura! Ouve Beatles em iPod, tudo junto, como se conhecesse as coisas do passado tão bem quanto as do presente. Parece ser mesmo muito mais vivido. Deve ter pego um atalho na vida.

Não vou falar mais para não estragar a piada ou contar o fim da história. Recomendo que todos leiam e tirem suas conclusões. Só queria aproveitar e dizer que, com esse livro, João Montanaro ganhou um fã, que agora quer um autógrafo. Vou correr para providenciá-lo, pois, se João continuar crescendo nesse ritmo, pode se tornar em breve um velho ranzinza à lá Crumb e me negar. Caramba!

terça-feira, 17 de agosto de 2010

A BIENAL QUE NÃO ESTÁ NAS PRATELEIRAS



É uma vergonha, eu sei, mas até o domingo passado eu nunca tinha ido à Bienal Internacional do Livro de São Paulo. O que mais me instigava era justamente o que mais desanimava: como aquele monte de gente conseguia ver os livros, coisa que demanda tempo, silêncio e atenção? Esbarrando-se uns nos outros? Acotovelando-se para abrir espaço? Tudo para passar os olhos numa capa ou, no máximo, ler as orelhas? Eu queria muito mergulhar no universo mágico das letrinhas, mas tinha um receio danado da multidão. E, no final, a visita sempre ficava para a próxima.

Imagine minha surpresa ao entrar no Anhembi e encontrar corredores tranquilos, estandes espaçosos e expositores cheios de atenção para dar. Era noite e fazia frio, muito frio, o vento congelava as extremidades do corpo e, em pouco tempo, perdi a sensibilidade do nariz. Mas tudo bem, quem se importa com nariz quando tem montanhas de livros pela frente? Bastaria uma caneca de chá e o empecilho estaria superado.

Passados alguns minutos, com o chá em mãos, comecei a perguntar mentalmente o que eu procurava ali. Porque não havia naquelas prateleiras nada muito diferente do que se encontra nas grandes livrarias da cidade. Afinal, ninguém mais segura uma publicação por até dois anos para lançá-la na Bienal, se é que já se fez isso algum dia. As palestras também tinham acabado, assim como as mesas de autógrafo. Comecei então a procurar descontos.

Algumas editoras eram pura tentação, tais como a Objetiva e a Alfaguara, que ofereciam boa parte do catálogo com até 50% de desconto. Outras, em compensação, estavam mais caras do que nas livrarias e, no geral, não vi vantagem. Nesse quesito, sou mais a Feira da USP, em que se vende tudo pela metade do preço usual.


Os grandes destaques da feira ficaram mesmo para os e-readers, que podiam ser experimentados no estande da Imprensa Oficial. O site de compras Submarino também compareceu – levou computadores ao invés de livros e as compras eram feitas pela internet, com descontos exclusivos.

Também tive a oportunidade de conhecer projetos sociais de incentivo à leitura, como o Ler é bom, experimente!, idealizado por Laé de Souza. Ele trabalha com estudantes de todo o país e os resultados são formidáveis, como o livro Melhores crônicas, volume 1, coletânea com cinquenta textos produzidos pelos participantes. O próprio Laé me contou, cheio de orgulho, que esses autores-mirins compareceram à Bienal para autografar os livros, alguns vindos de lugares tão distantes quanto o interior da Bahia. Vide a importância que a literatura tem para eles.


O cartunista João Montanaro em seu estúdio

Se fiz questão de comprar um livro, foi o Cócegas no raciocínio, de João Montanaro. O menino-prodígio de catorze anos, que já publicou no jornal Folha de São Paulo e na revista MAD, tem um trabalho maduro, inteligente e criativo, que acaba de ser lançado pela Garimpo Editorial. Trata-se de um apanhado de cartuns, complementado com material inédito. Dá uma inveja danada, queria ter eu esse talento desde cedo! Por isso, não pude deixar de prestigiar.

Terminei a visita junto com os expositores. Já era tarde, começaram a isolar os estandes e eu corri aos que ainda não tinha visto. Saí satisfeito, porém, com a sensação de que os livros ali são o que menos importa. Pois, com lançamentos que antes já se encontravam nas lojas, poucos descontos e ingresso e estacionamento caros, bacana mesmo é aquilo que não cabe nas prateleiras, como os debates, o contato direto com os autores e os projetos sociais. Isso sim torna a Bienal do Livro imperdível.



Site oficial da Bienal do Livro de São Paulo
Laé de Souza: Projetos de Leitura
Blog de João Montanaro: Por João

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

APROXIMAÇÕES E DESAFETOS ARTÍSTICOS


J. Miguel e Fabricio Lopez no ateliê de Bezerros, interior de Pernambuco (2010)

Às vezes a gente força uma aproximação entre obras pouco semelhantes e dá certo, veja só, porém muitas outras vezes não dá. Deste último caso, tenho dois exemplos recentes: a exposição Guignard e o oriente, no Instituto Tomie Ohtake, e Aproximações, xilogravuras de Fabricio Lopez e J. Miguel, na Galeria Estação, ambas em São Paulo.

Na primeira, a influência oriental sobre o pintor brasileiro aparece nas obras de maneira muito sutil, talvez na estilização das figuras, na relação pouco realista dos planos e na construção de amplas paisagens montanhosas. A arte e a cultura orientais, em especial chinesa e japonesa, atiçavam a curiosidade de Guignard e o levaram a colecionar uma porção de livros, utensílios domésticos e pôsteres. Só que sua pesquisa artística estava muito ligada à brasilidade mineira, às nossas festas míticas e à nossa natureza. Se existe ali algo de oriental, não passa de detalhes técnicos ou formais, de pouca relevância quando consideramos o lugar que sua produção ocupa na história da arte.


Paysage (1946), de Zhang Daqian e Noite de São João (1961), de Guignard

Quanto à mostra na Galeria Estação, podemos dizer que tudo começou com a vontade de experimentar. A ideia de unir dois gravuristas com estilos bem diferentes numa só exposição, um “regional” e outro “contemporâneo”, ditos “popular” e “erudito”, evoluiu para uni-los no ateliê. Assim, o jovem Fabricio Lopez tomou um avião rumo à pequena Bezerros, no interior de Pernambuco. Na bagagem, levou papéis de todo tipo, entre importados e raros. Além de trabalhar em conjunto, Fabricio tinha esperança de impressionar J. Miguel e transformar sua produção apresentando as novidades do mercado. A ilusão foi tão grande quanto o tombo. “J. Miguel não ficou exatamente empolgado com a possibilidade de produzir xilogravuras a quatro mãos”, escreveu o jornalista Humberto Werneck, que acompanhou a empreitada. Os papéis especiais de Fabricio tampouco tiveram utilidade naquele ambiente precário, onde ainda se empregam técnicas e maquinários antiquíssimos.

Em conferência na galeria, Fabricio confessou alguma arrogância não-intencional nessa sua atitude, pois queria levar a Bezerros a experiência adquirida na metrópole como se ela significasse um passo à frente na evolução da xilografia. “Fui com a ideia de que poderíamos produzir juntos e utilizar novos materiais. Foi ingenuidade de minha parte”.

Naquele duelo com a tradição, o artista residente em Santos, no litoral paulista, percebeu que tal evolução não existe. Com quatro décadas de prática e herdeiro de um hábito familiar que já dura muitas gerações, J. Miguel comprovou a excelência de sua arte, mesmo que jamais tenha pensado em arriscar o inusitado – como sobrepor imagens e cores, ou utilizar outros formatos ou papéis – ou negociar sua gravuras diretamente, ao invés de aplicá-las em subprodutos (cordéis, panos e artigos de decoração).


Xilogravuras realizadas em conjunto por Fabricio Lopez e J. Miguel (2010)

“O que estes dois estão fazendo juntos aqui?”, pergunta Humberto Werneck no catálogo da mostra. “A não ser pela arte a que se dedicam, pouca coisa têm em comum”. É fato que essa disparidade de mundos, incluindo aí localização, idade e cultura, revelou-se uma barreira muito mais desafiadora do que se imaginava. No entanto, nesse e também no caso de Guignard, a tentativa é válida, claro. Comparar trabalhos com objetivo de descobrir aspectos comuns, gerar conhecimento e possibilitar novas leituras é, em parte, o que mantém viva a arte do passado e o que cativa a do presente. Pois é a disparidade que nos permite perceber o novo, assim como é o desafio que nos permite criá-lo. Sendo o resultado positivo ou negativo, ele não invalida o resto do processo, e muitas vezes é a isso que precisamos nos atentar.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

INTELECTUAIS TAMBÉM FAZEM XIXI FORA DO VASO



Em sua oitava edição, a FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty) continua batendo recordes, seja de visitantes, velocidade de venda de ingressos ou reconhecimento internacional. Estive lá no último sábado para respirar aqueles ares e assistir ao debate entre Robert Crumb e Gilbert Shealton, dois quadrinistas da dita contracultura americana. Foi minha segunda FLIP – já tinha participado em 2008 – e foi diferente, claro, as coisas mudam bastante e em pouco tempo. Sabe o que mais chamou minha atenção? O lugar que a literatura perdeu para as outras atrações.

Sim, na primeira vez, Paraty cheirava a livros, via-se papel pólen por toda parte, jornais e revistas abertas, leitores ávidos por exercerem sua função e exibir os títulos favoritos pelas ruas. Lia-se até manual de instruções e direito autoral de cardápios. Havia também escritores inéditos em busca de editoras, outros vendendo livros publicados do próprio bolso, gente de todo o país divulgando trabalhos como verdadeiros mascates. Só que agora não. A cidade estava abarrotada, é verdade, mas de seguranças, artesãos, camelôs, violeiros, índios, estátuas vivas, fotógrafos, jornalistas, celebridades e curiosos tarados por muvuca. A FLIP agora é pop, sabe, todo mundo quer dizer que esteve lá pagando de intelectual, mesmo que o último livro lido tenha sido da Coleção Vagalume, no ensino fundamental.

Nada contra, claro, a participação é direito incontestável. Só que os números preocupam e, como disse, a FLIP não para de bater recordes. Os restaurantes, por exemplo, não davam conta dos clientes – meu almoço demorou uma hora e meia para chegar. Folhear um romance entre bebericadas de café também era um prazer impraticável, porque as mesas estavam sempre ocupadas e a espera era longa. E os banheiros... esse foi o capítulo verdadeiramente tenso da história, pois toda a água, cerveja e refrigerantes consumidos pelos milhares de visitantes terminavam num reduzidíssimo número de banheiros químicos – falha grave da organização que vai marcar minha biografia para sempre.

De resto, posso dizer que as lojas de cachaça, miçangas e bugigangas estavam bastante concorridas – talvez até mais do que os banheirinhos de plástico –, assim como as festas dos patrocinadores. A única livraria do centro histórico, no entanto, fechou. Livro mesmo, só na unidade temporária da Livraria da Vila, com sede em São Paulo, que montam lá durante esses dias. E depois? Os autores se vão, os volumes se vão e os leitores que sobram ficam órfãos. Muito triste.

Agora, se as exposições de fotografia, artes plásticas e manifestações literárias passavam despercebidas nas instituições culturais, a programação da Flipinha e da FlipZona (para crianças e jovens) arrasou, positivamente falando. Tinha música, pintura e quadrinhos, além de contação de histórias e discussões na língua da moçada. Tenho certeza de que eles se divertiram à beça. Assisti à apresentação de dois jovens músicos da região, que tocaram canções criadas ali mesmo, pelas gerações passadas, e à palestra de Sérgio Martinelli, sobre produção de textos para cinema e TV. Ambas com gente em pé, de tão cheias.

O debate entre Crumb e Shealton foi morno, quase frio, com perguntas genéricas a respeito da época de ouro deles e respostas prontas que se encontra em qualquer entrevista concedida nos últimos quarenta e cinco anos. Eu queria saber a opinião deles sobre as produções contemporâneas, próprias e alheias, e os fãs estavam tão ansiosos quanto eu; porém, exceto por breves comentários acerca das obras recém-publicadas e pela participação inesperada da esposa – também quadrinista – Alice Crumb, pouco se salvou. Dava para perceber a decepção geral pelos murmurinhos na saída.

Mas, como o nome diz, a FLIP é uma festa, não uma feira, e foi divertida como toda festa deve ser. Não quero você pensando que odiei, muito pelo contrário, não tem como odiar Paraty, a não ser que se esteja em cadeira de rodas. A comida estava boa, as pessoas pareciam felizes e a movimentação era, de alguma maneira, cultural. Talvez a falta de estrutura tenha se mostrado apenas no sábado, quando aparece mais gente. Não pude ficar no domingo para averiguar, já que escolheram bem o Dia dos Pais para finalizar o evento – sabe como é, não dava para trocar o almoço com o meu por um Breakfast at Tiffany´s.

Em resumo: não consegui nenhum autógrafo, não adquiri nenhum livro e praticamente não escrevi. Confesso que dei minhas escorregadas não-literárias e comprei lembrancinhas para a família, tudo por culpa daquelas lojinhas charmosas. Tampouco descobri grandes novidades do universo das letrinhas, embora tenha constatado nos banheiros químicos que intelectuais também fazem xixi fora do vaso e, quanto a isso, só posso agradecer por ter nascido menino.

Ao mesmo tempo em que o excesso de celebridades e assuntos aleatórios me incomodou, eles significam que a FLIP têm obtido sucesso e nos resta apenas engoli-los. Afinal, realizações desse porte os atraem, invariavelmente. O ciclo continua, pois os hotéis já estão sendo reservados para a próxima edição. Quem devora livros e não aguenta esperar, pode matar a fome na Bienal de São Paulo, que está começando. Por sua vez, quem adora aquela cidade, encontra em setembro o Paraty em Foco, importante evento de fotografia. Eu, por minha própria vez, vou tirar uma folga e ler a montanha de panfletos, revistas e jornais que acumulei pelo caminho. Haja literatura!


[Também publicado (com algumas modificações) em Colherada Cultural]

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

TEATRO ABSTRATO



É realmente difícil descrever o espetáculo Shi-Zen, 7 cuias, encenado domingo passado pelo grupo Lume no Tuca (PUC/SP). Foi o último evento da chamada Casa Lume, que celebrou os 25 anos do grupo com uma intensa programação cultural. E não poderia ter sido melhor.

Assistir àquela peça é mais ou menos como contemplar um quadro abstrato. Não há narrativa, não há começo, meio ou fim. Não há diálogos – exceto por um, realizado com gritos musicais e gemidos inconformados, todos em claro japonês inventado. São apenas sensações, metáforas e muitas sugestões.

E tema? Tem? Tem. Fala de arquétipos, mitologia, nascimento e morte, ascensão e queda, comportamento social, desamparo, esperança, natureza e daí por diante. Deve falar de muitas outras coisas também, sabe por quê? É uma peça difícil de definir, como já disse. Não tem certo ou errado, tem apenas metáforas sobre a vida, cada um as entende como quiser.

São metáforas ricamente interpretadas. A sutileza dos movimentos nos carrega para outros planos, assim como a intensidade das músicas. Os sete atores do grupo se completam e se superam a cada cena. E elas demoram, nossa, como demoram! Muitas vezes levam minutos inteiros para realizar atos praticamente imperceptíveis, porém essenciais: é essa demora que nos permite deixar a ansiedade de lado e adentrar o novo mundo.

A coreografia foi desenvolvida em parceria com japonês Tadashi Endo e tem base em seu elegante e minimalista Butoh-Ma. A inspiração oriental aparece aí e em muitos outros cantos, a começar pelo nome: Shi (indivíduo), Zen (como exemplo) e Shi-Zen (natureza).

O espetáculo é uma verdadeira experiência de vida. Nos leva ao riso, às lágrimas, à raiva, à tensão e à apatia. Tudo está presente em sua forma mais pura: aquela que não tem forma de nada, exceto de sentimento. É a essência daquilo que gera todas as outras histórias, uma versão primordial do homem e do mundo. Difícil de definir, eu sei, mas é isso aí. Melhor é ver com os próprios olhos. E com a cabeça aberta.



Mais informações: Lume Teatro

quinta-feira, 29 de julho de 2010

ONDE VIVEM OS MONSTROS?



Comprei esse livro porque assisti ao filme e me apaixonei.
Antes, não conhecia a história, não sabia nem mesmo da existência dela, embora tenha ganhado importantes prêmios desde que foi escrita, em 1963.
O livro também me surpreendeu. Muito.
Primeiro, pela concisão do texto. (como foi que fizeram um longa-metragem a partir desse "parágrafo?")
Depois, pelas ilustrações, riquíssimas. São aquarelas e nanquins realizadas pelo autor, Maurice Sendak, que soube onde colocar os detalhes e onde suprimi-los para a criançada poder sonhar.
Por último, porque encontrei aqui a mesma essência selvagem do filme – ainda que seja essa a original –, a mistura da realidade com a ficção, o universo das fábulas infantis.



Fui assistir ao filme simplesmente porque o pôster atiçou minha curiosidade. E porque a música do Arcade Fire ("Wake Up") escolhida para compôr a trilha me pareceu perfeita.
Ele prometia um visual bonito e algo selvagem. Saí do cinema extasiado.
Dirigido por Spike Jonze (o mesmo de "Quero ser John Malkovich"), a história nos oferece uma série de perguntas cruciais:
1. Até onde temos que ir para entender o mundo em que vivemos?
2. Quem são os monstros de verdade?
3. Será que eles não vivem dentro de nós mesmos?
O filme pareceu forte demais para as crianças, queria ver como elas reagiriam. Mas sessão era legendada, então não deu para saber.
O termo "selvagem" do título original (Where the wild things are) me parece traduzir melhor o sentimento proposto, aquele pulso primitivo do livro, instintivo e natural.
As emoções descontroladas e imprevisíveis dos monstros são muitas vezes assustadoras. Será que já vimos algo parecido por aí?
Com certeza.
O que nos difere dos monstros, afinal?
Nossa capacidade de nos relacionar uns com os outros, talvez.
Nossa capacidade de nos organizar.
Nossa capacidade de amar.
Será?


Clique e assista ao trailer de Onde vivem os monstros

terça-feira, 27 de julho de 2010

CONSTRUIR ALGO, CHEGAR A ALGUM LUGAR


Foto de Carlota Cafiero

Fomos recebidos por uma mendiga louca que nos ofereceu a cachaça de sua canequinha. O segurança percebeu nossa apreensão, aproximou-se e disse que poderíamos ficar à vontade para perambular pelo lugar. A mendiga veio atrás e sumiu pouco depois, provavelmente porque encontrou outro casal para compartilhar seu vício. Nos dirigimos à escadaria da direita e, ao fim do primeiro lance, encontramos Lady Macbeth prostrada, contorcendo-se de dor e culpa. Foi só então que percebemos como a noite ia ser legal.

Estávamos no TUCA, teatro da PUC-SP, para a abertura do evento que marcaria duas importantes comemorações: os 45 anos do teatro e os 25 anos do grupo Lume, da Universidade de Campinas. De 26 de julho até o próximo domingo, 1º de agosto, haverá espetáculos, workshops, demonstrações técnicas, exposição de fotos, palestras e exibição de vídeos para todos os interessados – confira a programação aqui.

No fim dos degraus, passados a Sra. Laranjeiras (moradora de rua que a atriz Ana Cristina observou para a montagem do espetáculo “Um dia…”, de 2000) e de Lady Macbeth (figura clássica desenvolvida pela atriz Naomi Silman a partir da técnica de Dança Pessoal), encontramos Seu Mata-Onça (Renato Ferraccini) e Cnossos (Ricardo Puccetti), entre outros personagens-chave dessas duas décadas e meia de história. Eram apenas amostras de espetáculos passados, mas a gente se envolvia de maneira tão profunda que se esquecia do contexto e queria participar. Eu mesmo quase fui ajudar o velho Geraldinho (Jesser de Souza) a subir as escadas com sua bengala de pau. Que aflição que dava aquele esforço!

Aos pouquinhos, a sensação de caminhar por um hospital psiquiátrico foi cedendo lugar a uma curiosidade contagiante, uma vontade de tocar e dançar com os sete atores do grupo, de deixar a razão de lado e mergulhar de vez na ficção. Com aquelas encenações acontecendo ao redor, nos sentíamos de fato num enorme palco.

Em seguida, fomos conduzidos à arena do TUCA, onde ouvimos os depoimentos dos dois fundadores restantes do Lume, Carlos Simioni e Denise Garcia (Luís Otávio Burnier faleceu uns anos atrás). Foi espontâneo e bonito. Deve ser difícil resumir uma história tão rica, ainda mais quando se trata de um dos mais importantes centros de pesquisa teatral do mundo. Como núcleo artístico e pedagógico vinculado à Unicamp, o Lume elabora novas possibilidades expressivas e reinventa o teatro a cada novo espetáculo, difundindo esse trabalho também por meio de oficinas e projetos de intercâmbio.

Praticamente sem alteração de integrantes durante todo esse tempo, víamos ali uma grande família. Como confessou o ator Carlos Simioni, depois de vinte e cinco anos de trabalho em conjunto, como é que se deixa o Lume? Não se deixa. Mantém-se criando, ensinando e pesquisando, sem muita certeza de aonde vai chegar. Carlota Cafiero, assessora de comunicação do grupo, comentou deslumbrada a cena em que os atores incorporavam uma banda brega e meio decadente: são os primeiros minutos de um novo espetáculo, e quem diria que eles, conhecidos por encenações sérias e dramáticas, agora fariam uma banda cômica? É mesmo um processo contínuo de construir algo e chegar a algum lugar, como disse Simioni, mesmo que não se saiba muito bem o que e aonde.

É impossível calcular a abrangência do Lume – tanta gente que já passou pelas salas de aula e pela plateia! Só que um dado relevante mostra a influência deles: em 1985, eram o primeiro grupo de pesquisa teatral da região; hoje, são catorze, muitos formados por ex-alunos.

Seja qual for esse “algum lugar” para onde eles rumam, posso dizer que, depois de muita construção e descontrução, o Lume já protagonizou uma conquista especial: vinte e cinco velinhas no bolo. Foi muita honra para mim presenciar essa festa.


O Lume está de site novo. Confira aqui.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

FILHOS DO BRASIL, NOTAS RÁPIDAS



• Musical criado e dirigido por Oswaldo Montenegro
• Não possui narrativa linear. Parece mais um apanhado de cenas com um tema em comum – o perfil do brasileiro
• É uma tentativa de compreender a essência do brasileiro, esse pressuposto filho da nação
• Encontrar uma única definição não é um reducionismo perigoso?
• É difícil conhecer os filhos se não sabemos nem quem é o Brasil
• Os esteriótipos do nordestino, do político corrupto, da loira burra, do povo sofrido, do mineirinho da terra, do homem do morro, do hip hop, entre outros, rendem uma leitura ingênua, patética e banal
• O trabalho dos atores e músicos é muito competente
• Música e dramatização se complementam bem
• Em muitos momentos a peça lembra a antiga "Noturno": aparecimentos repentinos em diferentes lugares do teatro, lanternas no rosto, pontos de luz para direcionar a atenção do espectador
• A cena de Léo e Bia é o melhor momento, embora pertença originalmente a outra peça – a lógica fraca e sem graça de Oswaldo dá lugar à lírica
• A defesa do Brasil como território e cultura faz Oswaldo parecer o Policarpo Quaresma da nova era
• Não creio que o nacionalismo seja o caminho para o brasileiro se encontrar. Isso parece retrógrado, principalmente em tempos de universalização, internet, redes sociais internacionalizadas etc. Gosto mais do conceito de "cidadão do mundo", que Alanis Morrissete inseriu em seu último disco
• Desde quando se deve gostar de MPB só porque nascemos aqui?
• "No Brasil não há preconceito, a natureza faz parte do povo, judeus e muçulmanos convivem decentemente, todos se amam e se abraçam nas ruas" são mentiras em que fingimos acreditar
• Discordo conceitualmente de Oswaldo em diversos pontos, principalmente quanto a querer encontrar a essência do brasileiro e a amar incontestavelmente a nação. Tirando isso, a peça é divertida

Ps.: Alguma ligação com o filme "Lula, o filho do Brasil"?
Ps. 2: Lula seria mesmo o único?

terça-feira, 20 de julho de 2010

SUPERESTREIA EM CD



Fiquei muito feliz ao ver o show de lançamento do CD Supertrunfo, da banda que leva o mesmo nome. Feliz e também aliviado, pois descobri que não se trata de mais uma dessas bandas que apontam e logo desaparecem, vitimadas pela falta de caráter do rock brasileiro. Não, Jorge Neri (vocais), Duda Becker (guitarra), Fell Vieira (baixo) e Thiago Sansão (bateria) são diferentes e vou tentar explicar por que em poucas linhas.

A começar pela qualidade técnica dos músicos, coisa rara nesses tempos de samplers repetitivos, playback e rostinhos bonitos se chacoalhando freneticamente de um lado para outro do palco. Pôxa, dava para ver na segurança de cada compasso que eles sabiam o que estavam fazendo. E faziam por pura paixão, porque acreditavam na própria música e não apenas nas promessas do produtor.

Depois, pela obra propriamente dita, as harmonias criativas e bem resolvidas, a cadência do show, as letras que mais parecem diferentes versões da mesma história, falando de curtir o presente a dois e deixar o resto para depois. Tudo muito redondinho, bonito de se ver e de se ouvir. Mas o melhor mesmo são os riffs de guitarra, as distorções e os refrãos decentemente gritados – que saudade! Afinal, rock brasileiro também é rock, diacho, tem muita banda por aí que se esqueceu disso. Quer saber mais? É maravilhoso assistir a shows como esse, em que os músicos se preocupam mais com o que sai dos amplificadores do que com figurinos e penteados. Dá mais credibilidade, sabe? Dá vontade de comprar o CD e prestigiar.

Isso é outra coisa que me deixou feliz: o Vale do Paraíba compareceu em massa ao SESC São José dos Campos, cidade de origem da banda e lugar onde eles já construíram certa fama. Pois bem, foram três edições do Unifest, além da abertura de shows do Rappa, Charlie Brown Jr. e Detonautas. E, enquanto muitos desses aí já caíram na rotina minimamente produtiva do sucesso, a Supertrunfo está começando com o pé direito.

Pena que o tempo era curto e só pudemos ouvir dois covers além das canções do disco. Foram: Dream on, do Aerosmith e Bohemian Rapshody, do Queen, ambos executados como se deve. Bom, nem preciso falar que tipo de som você pode esperar de uma banda com essas referências. Se bateu aquela curiosidade boa, acesse o site e o myspace dos caras.

Deixo assim meus parabéns. Com o primeiro degrau alcançado com reconhecimento da crítica e do público, já dá para pensar no que está por vir. Fazendo uma gracinha ridícula para terminar, a estreia dessa foi realmente um supertrunfo. Há!

sexta-feira, 16 de julho de 2010



Eu queria muito escrever alguns contos como Hemingway, pois ele pinça pequenos acontecimentos do dia-a-dia e faz daquilo histórias repletas de lirismo.

Vejo a solidão, a cultura dos povos, os espíritos do tempo e do lugar. Vejo a vida que acontece dentro e fora dos personagens. Mas, se me perguntam de que se trata o texto, só poderia responder: "Não sei".

quarta-feira, 14 de julho de 2010

O SUGESTIVO BALANÇO DAS ÁGUAS



A sensação imediata é de se perder naqueles mares em fúria que se debatem em movimentos frenéticos pelas paredes do salão. Só que não há água de verdade ali, nada se movimenta, há apenas uma sugestão, uma imitação. E o gostoso mesmo é se deixar perder na solidão das ondas, na profundidade do azul, nos grafismos quase orientais que a artista Sandra Cinto realizou especialmente para o piso térreo do Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo.

Seu trabalho manual é tão complexo quanto poético. São pinturas de grandes dimensões feitas com tinta acrílica, caneta permanente prata (também conhecida como "caneta spray"), telas de algodão, placas de MDF e muita sensibilidade. Têm a imitação como princípio e deixam claro que se trata de criações inspiradas nas águas. Mas... em que águas? As chuvas, os mares, os rios, a natureza; tudo está ali, imitado, recriado, traduzido em arte.



Em alguns momentos, as pinturas lembram grafitti, talvez pelo aspecto metálico da tinta, talvez porque o MDF se confunde com as paredes do lugar. Aliás, paredes que também estão pintadas de azul e, junto com a imagem das águas, envolvem o espectador num mergulho profundo. Mérito do cuidado que a artista teve não apenas com os objetos, mas também com a arquitetura ao redor.

Há volume, imensidão, movimento. Eles evocam o sublime, aquele receio primordial que impele e repele, que dá vontade de explorar porém exige cautela, tudo aos pouquinhos, como nas fábulas, nas aventuras infantis.

Para completar a mostra, há também uma instalação feita com barquinhos de papel, todos eles espalhados voluptuosamente pelo chão, modificando a dureza do piso, transformando-o numa superfície líquida e móvel. Ela deixa-nos a navegar, navegar e navegar pelo oceano da imaginação.

Imitação da água é uma apologia a esse elemento ao mesmo tempo banal e místico, uma poesia transformada em traços e cor. Se você deixar, o trabalho de Sandra Cinto vai lhe carregar para um novo mundo.


IMITAÇÃO DA ÁGUA, de Sandra Cinto
Instituto Tomie Ohtake
De 6 de julho a 1 de agosto
Curadoria de Jacopo Crivelli Visconti

terça-feira, 13 de julho de 2010

A ORIGEM DO UNIVERSO, SEGUNDO CRUMB



(a morte de Harvey Pekar me fez lembrar disso aqui)

Robert Crumb virá para a FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty) deste ano e eu consegui comprar meu ingresso para vê-lo (sim, fui um dos muitos desesperados que comprou nos primeiros minutos, pois eles se esgotaram rapidamente).

Como ainda não tinha lido sua última obra, resolvi tirar o atraso antes do grande dia (trata-se do Gênesis, sim, esse mesmo, um dos livros que compõem o Velho Testamento). Até porque o artista veio para falar sobre a origem do universo e, creio, isso será impagável.



Crumb realizou uma extensa pesquisa entre as diversas versões da história e em seguida a ilustrou, respeitando aquilo que considerou mais fiel ao original.

Pois muito me surpreendeu tudo que o Gênesis tem de crumbiano. Os personagens para lá de peculiares, as reviravoltas no enredo, os costumes praticamente inexplicáveis e o cotidiano sofrido dos homens. Se ele não avisa, poderia achar que o texto também é seu.

O objetivo não era satirizar e, realmente, os desenhos são muito pertinentes à história, duvido que possam ofender alguém. Seja qual for sua crença, essa versão ilustrada do Gênesis é uma interessante maneira de ler um texto considerado sagrado há anos por grande parte da humanidade. Vale a experiência.

E que venha a FLIP!


sábado, 26 de junho de 2010

FOTOGRAFIA, UMA QUESTÃO PICTÓRICA



Explorar com fotografia temas de que a pintura se cansou. Num primeiro momento, essa parece ser a premissa da mostra Pittoresco, de Antonio Saggese. Só que, aos pouquinhos, as cerca de setenta imagens exibidas ali vão revelando preocupações mais profundas, que abrangem aspectos formais e conceituais das artes visuais (não exclusivamente fotográficas).



A relação com a pintura é evidente, o próprio título da mostra já propõe um diálogo com o que Giorgio Vasari, lá na Itália renascentista, chamava de "a là pittoresca", e que desaguaria no inglês "picturesque" do século XVIII. Um modo de pintar e de escolher os assuntos, que busca qualidade pictórica além do objeto próprio da pintura, como lembra Saggese.



Essa relação entre foto e quadro fica mais clara quando ultrapassamos o referente – nuvens, árvores, cachoeiras – e notamos o sistema de impressão "jato de tinta" que Saggese escolheu para fixar suas imagens no papel. Pois, se a maneira tradicional de trazer ao mundo as cenas capturadas pela câmera se modifica – filme, revelação e ampliação –, talvez a palavra "fotografia" também adquira novos sentidos. Na era digital, não se trata mais de "criar com luz", mas de criar a partir daquilo que a luz nos permite ver, aproximando a fotografia de outras linguagens visuais, como a própria pintura. Assim, as águas correntes de Saggese, tal como suas nuvens, transformam-se em manchas de cor e provam que algo tão impensável quanto fotografar abstratamente pode ser possível. E a tinta de impressora sobre papel algodão rende mesmo uma textura diferente, faz com que algumas obras se assemelhem a aquarelas ou guaches, adquirindo transparências que dificilmente seriam alcançadas com o papel fotográfico comum.



O debate não acaba aí – há também outros suportes na mostra, além do papel de gravura, como por exemplo chapas de metal, vídeos e panos, cada qual com suas peculiaridades. Todos, no entanto, parecem concordar com a decomposição da imagem em camadas. Se a tinta sobre papel obtém isso com a sugestão de transparência, os vídeos o fazem com os tecidos em que são projetados, que vão se apropriando da luz na medida em que ela os atravessa; os metais, com os diferentes brilhos que proporcionam e uma outra peça, em particular, o faz separando literalmente o primeiro plano (árvores) do segundo (céu), obrigando o visitante a observá-la por determinado ângulo para reunir a imagem. Esse processo chama nossa atenção não apenas para a ilusão que cria, mas também para as diversas dimensões que uma imagem pode adquirir nas mãos de um artista. De alguma maneira, ele nos faz pensar no que estaria oculto atrás daquilo que se revela a nós em primeira mão, como na superfície de um espelho.



Saggese capturou muitas imagens de nuvens, que exemplificam perfeitamente essa mistura ilusionista de planos. Pois, ao mesmo tempo em que parecem se fundir com o céu, as nuvens estão se movimentando, se transfigurando sobre aquele palco de aparência estática. Em outras palavras, as nuvens e o céu, que teoricamente pertencem ao mesmo plano, na verdade se encontram nele apenas durante um breve instante – o instante da foto –, pois pertencem a unidades de tempo diferentes. O céu é constante, nuvens são volúveis. Enquanto juntos apresentam seu maravilhoso espetáculo natural, mexem com nossa imaginação, ficamos a observá-las numa brincadeira de criança, procurando reconhecer ali personagens, ações e, talvez, a nós mesmos. É o efeito da nossa vivência sobre aquela massa plástica pendurada entre molduras. É também o convite de Saggese à nossa participação. Novamente, fotografia e pintura se encontram, uma comunhão de presente e passado, tendo a natureza como princípio de criação artística.


São as viagens atentas de Saggese por diversas localidades do país que nos permitem viajar também por mundos distantes, interiores e exteriores; é a busca do artista que nos proporciona tantas descobertas novas. Tudo isso tendo como tema... o quê? Nuvens? Árvores? Cachoeiras? Não, suspeito de algo maior, que extravasa esses limites meramente figurativos. Talvez tudo se resuma a uma conversa com o branco, a cor da modernidade, das múltiplas possibilidades, da alvura do papel que fixa e também expande infinitos significados através da atitude pictórica do artista. A atitude criadora, luz do princípio de tudo, oposta à caixa preta e à câmara escura. Há uma foto praticamente toda branca na exposição que contém essa ideia. Ela sugere uma possível paisagem, um pedaço de existência deixado ao nosso critério. A totalidade da luz e a ausência de pigmento. E vice-versa.

PITTORESCO
De Antonio Saggese
Instituto Tomie Ohtake
De 15 de junho a 25 de julho

segunda-feira, 21 de junho de 2010

A NECESSIDADE DA CRÍTICA



"O meio de arte é bastante democrático do ponto de vista das múltiplas possibilidades de ser das obras. A pluralidade é a regra. Há de tudo em um museu. Isto é extremamente fértil e razão maior para a necessidade da crítica e do juízo. Por outro lado, é também um meio atravessado por hierarquias, no qual o artista e sua criatividade indiscutível podem tudo, mas limitam constantemente a presença do outro, do público não-especializado. Limitam no sentido de evitarem muitas vezes romper com procedimentos poéticos já aceitos pelo mercado e instituições. Seja no Brasil, seja no exterior, há uma repetição de nomes e processos criativos um tanto redutores. Não há fórmula para enfrentar esses vícios do circuito. Evidentemente, muitos desses artistas são de qualidade indiscutível. O problema é a criação de modelos poéticos que se propagam e padronizam a criação, e isto pede mais crítica, não menos. O papel da crítica não é criar polêmica, mas procurar espaço para o confronto de ideias e a disseminação de sentidos para as obras de arte."

Luiz Camillo Osorio, em Razões da Crítica

terça-feira, 18 de maio de 2010

COR: RAZÃO E SENSIBILIDADE


Pintura nº 78 (2010), de Felipe Góes

Meus olhos tateiam as diversas camadas e texturas. O caminho do pincel dita o meu caminho, as linhas que não aparecem mas que estão lá, ocultas pelas dimensões de cor. Busco algo que ainda não sei definir, algo além do pigmento, um significado emergente na pintura. Talvez um lapso de memória, uma referência ao amor, uma apologia à vida. Entre coisa e outra, encontro na pintura de Felipe Góes minha própria vontade de sentir.

Experimentar com cores é experimentar o olhar. Transformar a superfície por meio de ranhuras, manchas, transparências, massas uniformes ou difusas. Os planos se sobrepõem e constroem uma nova espacialidade. Em outro canto, eles impõem limites, fronteiras, numa dialética sensível e sensual. O amarelo toca o azul mas eles não se misturam; o verde permanece como potência, na iminência de existir. O mesmo acontece com a figura, a perspectiva, a profundidade. Por quê? O que há por trás de tudo aquilo?

Não sei dizer. Não sei explicar o encanto, embora ele se mostre claramente. Acho curioso o fato de que, mesmo depois das tantas mutações que a arte sofreu no último século, Felipe ainda se deixe intrigar pelas cores.

ORA, EXISTE MISTÉRIO MAIS ESSENCIAL À PINTURA?

Ainda bem que ele o faz. Sua pesquisa é interessante e enigmática, viva e loquaz. Enquanto sintonizo tranquilamente suas ondas cromáticas, sinto o poder persuasivo da arte reativar os sensores mais abandonados do meu ser.

Talvez o excesso de conceitualismos dos últimos tempos tenha enrijecido minha alma. Por isso, é muito bom deixar a pintura me levar sem explicar por quê, por onde ou por quanto tempo. As cores, que falam a língua do sentimento mais puro. As cores que surgem e que se vão, deixando em minha alma uma marca inconfundível. Doce sedução.

Observar atentamente aquelas pinturas traz um risco gostoso de assumir: você se sente parte delas e quer ir sempre mais a fundo. Será possível? Felipe Góes nos prova que sim.


SOBRE A EXPOSIÇÃO
Corpo da Cor, individual de Felipe Góes na Casa Galeria
De 17 de maio a 19 de junho
www.casagaleriacafe.com.br





Na sequência: Pintura nº 72, Pintura nº 70 e Pintura nº 63

Veja mais obras em: Felipe Góes_Portifólio de Pinturas

terça-feira, 4 de maio de 2010

"(...) que a cultura seja um estímulo à vida atual, e não um culto aos mortos."

Marshall Berman, em Tudo que é sólido desmancha no ar

segunda-feira, 3 de maio de 2010

DILEMA E REALIDADE



Quando você finalmente relaciona as imagens com o título e compreende a poesia de Heitor Dahlia, sobra aquela sensação gostosa de que o cinema pode ser mesmo uma grande arte. Pois estar à deriva é flutuar ao sabor das ondas, como um barco que já consumiu todo o combustível de que dispunha, e entre se desesperar e aceitar que é mesmo impossível controlar os entraves da vida, o melhor talvez seja simplesmente se deixar levar.

A história é contada a partir de Filipa, uma adolescente de catorze anos que se encontra entre os dilemas típicos da idade. Tudo ao seu redor está se transformando, suas ilusões infantis começam a dar lugar à fria racionalidade da vida adulta, as férias não têm mais sabor de sorvete, os irmãos mais novos parecem distantes e as pessoas mais velhas ainda se mostram inacessíveis.



A solidez das relações familiares desmorona à sua frente sem que ela possa fazer nada para mantê-la no lugar. Pode apenas observá-la e tentar manter a própria solidez. O ato de olhar guarda um grande poder, mais um dualismo que Filipa precisa enfrentar. Pois ver é descobrir, encontrar, vislumbrar; porém, ver também é destruir, desfazer o encanto, revelar o truque. No filme, temos esses dois olhares muito bem definidos. O primeiro mostrado pelas tomadas amplas, que exploram a maravilhosa geografia de Búzios (RJ), onde o terreno pedregoso separa a mata virgem das águas traiçoeiras do mar. O segundo está nas câmeras voyeristas, bisbilhoteiras, sempre escondidas atrás de uma cerca ou persiana. Elas espiam o que não deveria ser visto, profana o que até então permanecia sagrado.

Há ainda uma terceira câmera, bastante intimista, que se mantém próxima dos personagens e esquenta o filme, leva o espectador para dentro da crise familiar que se encena, fazendo com que ele participe com o coração e sinta mais intensamente o conflito.

O figurino muito bem escolhido por Alexandre Herchcovitch colabora com essa relação, situando-nos no tempo e no espaço do filme, enquanto a maravilhosa fotografia de Ricardo della Rosa acrescenta sentimento ao visual retro. O granulado sépia e azul desbotados sugere a presença da memória, como se estivéssemos regredindo e revivendo um momento então incompreensível. As contraluzes, o brilho do sol, a magia da lua, os reflexos e as transparências – tudo ofusca e preenche a tela de encanto.



Entre o dia e a noite, as férias de Filipa vão chegando ao fim, assim como sua inocência. O livro que seu pai escreve – e do qual pouco revela – traça um paralelo com a realidade, recontando a história que acaba de acontecer e acentuando ainda mais a divergência entre as verdades e mentiras do casal. Pode ser uma espécie de reflexão meditativa, só que também é necessariamente uma ficção, a ser reinventada segundo o ponto de vista de uma única pessoa: o autor.

É dentro do livro que Filipa encontra pela primeira vez os fatos de que a vida é frágil e suscetível a erros. É levantando a cabeça e olhando ao redor que descobre a possibilidade da morte. E é assim, encarando sua antagonista, que ela compreende as regras da existência.

O pai de Filipa então deixa de ser um herói infalível e se torna um homem como outro qualquer, sujeito às adversidades da convivência, e seus braços de aço já não conseguem mais afastar a filha das ameaças do entorno. A mãe deixa de ser a mulher mais bonita do mundo e perde o encanto para as rugas que lhe começam a tomar o rosto. Todos que foram adolescentes um dia passaram por isso, só que não está no roteiro de Dahlia a redescoberta do heroísmo e da beleza dos pais, coisa que só acontece muito mais tarde, quando amadurecemos de verdade. A Filipa da tela permanece jovem, sem entender muito bem o que se passa porque é apenas uma criança, embora seja obrigada a ajudar porque também é adulta. Assim, ela fica perdida entre os seus sentimentos e os dos outros, entre o amor ideal e as decepções reais, entre a idade adulta e os sonhos da infância.

Filipa flutua num mar revolto, encontra-se a uma profundidade em que não consegue mais tocar o chão e não sabe se está a centímetros ou a quilômetros dele. No decorrer da história, nós flutuamos com ela, compartilhamos suas dúvidas e nos emocionamos com seus sofrimentos. Mérito de Heitor Dahlia.