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quarta-feira, 11 de agosto de 2010

OS "PENGUINS" APORTARAM EM PARATY



A FLIP deste ano não trouxe muitas novidades, como já disse em texto anterior. Debateram o futuro do livro de papel, comentaram a obra de alguns autores das antigas e homenagearam – com razão – o grande Gilberto Freyre. Só que isso tudo já tinha sido feito antes. Agora, o que me deixou realmente feliz foi ver o estande da editora Penguin, famosa por publicar clássicos da literatura com preços acessíveis. O melhor: os livros estavam em português!

Trata-se de uma parceria com a Companhia das Letras e, por enquanto, apenas quatro títulos foram publicados. Mas é emocionante ver aquelas capas tão características da Penguin com títulos escritos em minha língua natal.

Acesse o site da editora e fique feliz comigo!

FICÇÕES_GABRIEL BÁ NA FLIP

Essa história foi escrita e desenhada por Gabriel Bá com exclusividade para a FLIP, com objetivo de divulgar o selo Quadrinhos na Companhia, da editora Companhia das Letras. Ela foi distribuída lá gratuitamente e resolvi reproduzi-la aqui para dividir com você, porque achei muito bacana. Clique nas imagens abaixo para ampliá-las e descobrir como a ficção e a realidade se misturam nessa dádiva chamada literatura.


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terça-feira, 10 de agosto de 2010

INTELECTUAIS TAMBÉM FAZEM XIXI FORA DO VASO



Em sua oitava edição, a FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty) continua batendo recordes, seja de visitantes, velocidade de venda de ingressos ou reconhecimento internacional. Estive lá no último sábado para respirar aqueles ares e assistir ao debate entre Robert Crumb e Gilbert Shealton, dois quadrinistas da dita contracultura americana. Foi minha segunda FLIP – já tinha participado em 2008 – e foi diferente, claro, as coisas mudam bastante e em pouco tempo. Sabe o que mais chamou minha atenção? O lugar que a literatura perdeu para as outras atrações.

Sim, na primeira vez, Paraty cheirava a livros, via-se papel pólen por toda parte, jornais e revistas abertas, leitores ávidos por exercerem sua função e exibir os títulos favoritos pelas ruas. Lia-se até manual de instruções e direito autoral de cardápios. Havia também escritores inéditos em busca de editoras, outros vendendo livros publicados do próprio bolso, gente de todo o país divulgando trabalhos como verdadeiros mascates. Só que agora não. A cidade estava abarrotada, é verdade, mas de seguranças, artesãos, camelôs, violeiros, índios, estátuas vivas, fotógrafos, jornalistas, celebridades e curiosos tarados por muvuca. A FLIP agora é pop, sabe, todo mundo quer dizer que esteve lá pagando de intelectual, mesmo que o último livro lido tenha sido da Coleção Vagalume, no ensino fundamental.

Nada contra, claro, a participação é direito incontestável. Só que os números preocupam e, como disse, a FLIP não para de bater recordes. Os restaurantes, por exemplo, não davam conta dos clientes – meu almoço demorou uma hora e meia para chegar. Folhear um romance entre bebericadas de café também era um prazer impraticável, porque as mesas estavam sempre ocupadas e a espera era longa. E os banheiros... esse foi o capítulo verdadeiramente tenso da história, pois toda a água, cerveja e refrigerantes consumidos pelos milhares de visitantes terminavam num reduzidíssimo número de banheiros químicos – falha grave da organização que vai marcar minha biografia para sempre.

De resto, posso dizer que as lojas de cachaça, miçangas e bugigangas estavam bastante concorridas – talvez até mais do que os banheirinhos de plástico –, assim como as festas dos patrocinadores. A única livraria do centro histórico, no entanto, fechou. Livro mesmo, só na unidade temporária da Livraria da Vila, com sede em São Paulo, que montam lá durante esses dias. E depois? Os autores se vão, os volumes se vão e os leitores que sobram ficam órfãos. Muito triste.

Agora, se as exposições de fotografia, artes plásticas e manifestações literárias passavam despercebidas nas instituições culturais, a programação da Flipinha e da FlipZona (para crianças e jovens) arrasou, positivamente falando. Tinha música, pintura e quadrinhos, além de contação de histórias e discussões na língua da moçada. Tenho certeza de que eles se divertiram à beça. Assisti à apresentação de dois jovens músicos da região, que tocaram canções criadas ali mesmo, pelas gerações passadas, e à palestra de Sérgio Martinelli, sobre produção de textos para cinema e TV. Ambas com gente em pé, de tão cheias.

O debate entre Crumb e Shealton foi morno, quase frio, com perguntas genéricas a respeito da época de ouro deles e respostas prontas que se encontra em qualquer entrevista concedida nos últimos quarenta e cinco anos. Eu queria saber a opinião deles sobre as produções contemporâneas, próprias e alheias, e os fãs estavam tão ansiosos quanto eu; porém, exceto por breves comentários acerca das obras recém-publicadas e pela participação inesperada da esposa – também quadrinista – Alice Crumb, pouco se salvou. Dava para perceber a decepção geral pelos murmurinhos na saída.

Mas, como o nome diz, a FLIP é uma festa, não uma feira, e foi divertida como toda festa deve ser. Não quero você pensando que odiei, muito pelo contrário, não tem como odiar Paraty, a não ser que se esteja em cadeira de rodas. A comida estava boa, as pessoas pareciam felizes e a movimentação era, de alguma maneira, cultural. Talvez a falta de estrutura tenha se mostrado apenas no sábado, quando aparece mais gente. Não pude ficar no domingo para averiguar, já que escolheram bem o Dia dos Pais para finalizar o evento – sabe como é, não dava para trocar o almoço com o meu por um Breakfast at Tiffany´s.

Em resumo: não consegui nenhum autógrafo, não adquiri nenhum livro e praticamente não escrevi. Confesso que dei minhas escorregadas não-literárias e comprei lembrancinhas para a família, tudo por culpa daquelas lojinhas charmosas. Tampouco descobri grandes novidades do universo das letrinhas, embora tenha constatado nos banheiros químicos que intelectuais também fazem xixi fora do vaso e, quanto a isso, só posso agradecer por ter nascido menino.

Ao mesmo tempo em que o excesso de celebridades e assuntos aleatórios me incomodou, eles significam que a FLIP têm obtido sucesso e nos resta apenas engoli-los. Afinal, realizações desse porte os atraem, invariavelmente. O ciclo continua, pois os hotéis já estão sendo reservados para a próxima edição. Quem devora livros e não aguenta esperar, pode matar a fome na Bienal de São Paulo, que está começando. Por sua vez, quem adora aquela cidade, encontra em setembro o Paraty em Foco, importante evento de fotografia. Eu, por minha própria vez, vou tirar uma folga e ler a montanha de panfletos, revistas e jornais que acumulei pelo caminho. Haja literatura!


[Também publicado (com algumas modificações) em Colherada Cultural]

LE CAFE

Estresse, correria e pausa(?) para o café. Tudo nessa ótima animação francesa.
(é curtinha, não se preocupe, dá para assistir agora)


Stephanie Marguerite & Emilie Tarascou / music Oldelaf & Mr D / France / 2007

domingo, 8 de agosto de 2010

LAPSUS

Por Juan Pablo Zaramella

Um curta-metragem bem legal desse animador argentino. Vale a pena!



quinta-feira, 5 de agosto de 2010

JOSÉ, O CÃO, A ÁRVORE


Menino sentado (1945), de Cândido Portinari

Havia um homem que, também neste como em muitos outros contos, se chamava José, José Maria, irmão de Maria José, irmão de Jesus José-Maria, que não tinha sobrenome porque nada se sabia de seu pai ou dos pais de seus irmãos. Pois é, ao que parece, cada cria tinha o seu, já que iam do branquinho ao moreninho como cocada e pão francês, mas a mãe jurava de pés juntos que todos eram filhos de Deus e de ninguém mais, assim como juravam as mães da maior parte das crianças do morro. Em algum momento passou pela cabeça do menino que Deus deveria ter muito tempo livre para fazer filho daquele jeito, mas o pensamento se perdeu nos terrenos ermos da sua humildade. E assim ele cresceu, sem graça maior que coubesse nessas linhas. Espichou, esticou, ficou grande e só. Viveu no mesmo barracão sem número a vida toda, no mesmo morro, assim, sem mais nem menos. Um dia, morreu Jesus num tiroteio e José enterrou. Noutro, morreu a mãe de dor forte e José enterrou também. Então, quando a irmã casou com um outro José do morro vizinho e se levou com ele para lá, sobrou o barracão e sobrou este José, sozinho em seu canto, com os mesmos olhos vazios de sempre, a ver o nada acontecer. E, de nada em nada, foi indo. Não falava, não rezava, não trabalhava, não comia, não bebia, não ria ou se divertia, não amava, não xingava, não participava, nada, uma vida livre de excessos. José apenas existia. Caminhava de manhã cedinho pelas oscilações do morro e voltava a casa para restar a ver o nada. A vida ia e o José ficava. Mas, lá pelas tantas, quem diria, um cachorro apareceu no barracão, saído sabe-se lá de onde. Foi chegando, achou um pano velho na soleira da porta de entrada e ali ficou deitado, caído, largado, sei lá; também fazendo nada e fazendo tudo para que José desviasse dele todas as manhãs antes do seu passear. A criatura achara um irmão exatamente como ele. Será? José pulava e slap, slap, chinela de dedo, sola grossa, artigo bom que herdara de Jesus e que levava para cima e para baixo, sobe e desce morro, escada, vala, pinguela, indo e voltando, sem rumo maior que isso, ir e voltar, slap, slap, e o bichano, quem diria, vinha atrás, pata ante pata, orelha alerta, focinho fungando morro acima e morro abaixo. Slap, slap. O homem reaprendeu a falar, coisa que não fazia desde quando? desde sempre? Au, au, slap, slap, arf, arf, a conversa engatava e não parava mais, nem para pegar um fôlego aqui e outro ali, olhe lá, era fraternidade, José sentia, fraternidade, rabinho balançando, língua para fora, chinelas em ritmo de alegria. Os dois saíam cedinho e voltavam só de tardinha, todo dia o mesmo caminho, sem mudar para não embananar a cabeça. José ia de vara na mão para educar, quisera ele, mas o bicho era mais manso que o galho e o homem não precisava fazer cantar não, não se faz isso com família. Slap, slap, arf, arf, inham e vinham os dois. E foram indo, foram indo. Um dia, mais pra frente, tinha uma coisa nova no caminho, uma muda de folha larga que plantaram sabe-se lá quem e de que José queria fruta e de que o cão queria privada e lá já foi mijar. Foi essa então a primeira vez que a vara zap, slap, slap, au, au, slap, slap, arf, arf. Mijaí não, bicho. Deixa a planta em paz. É presente de Deus-Pai. E todo dia os dois chegavam na planta, José para imaginar fruta, o cachorro para mijar, slap, slap, au, au, zap, slap, slap, arf, arf, e a planta crescia e as chinelas gastavam e o homem curvava e o bicho mijava e a vara cantava e a planta crescia meio torta de tanto mijo fedido que o bicho dava. José esperava e esperava. Uns tempos depois, demorados, José já ia devagar, slap...slap, e o cachorro deu de cavar a muda, que já era arvorezinha, raquítica, sofrida, torta, e o velho tapava os buracos que ele fazia e que da planta judiavam ainda mais. Do jeito que ia, não ia dar fruta. Cava, cava, o bicho corria na frente, slap...slap, mija, zap, au, au, slap...slap, arf, arf. A planta cresceu fraca de tanto o bicho chafurdar a terra de seus pés. José tinha dó, e dó do bicho, e dó da planta. Zap. As chinelas afinavam. Árvore grande, Deus-Pai. Cadê as fruta? As caminhadas continuavam, dia a dia, até os dois serem surpreendidos por um chuvão que doía de tanta força e tanto vento, cada gota que lavava tudo que vinha embaixo!, e eles, banhados, corriam na rapidez das chinelas gastas de José, com cuidado aqui e ali para não escorregarem na lama dos degraus. O cachorro ia, sumia no desespero, voltava, latia, sumia de novo, apressava o velho, maldito, volta aqui, o santo é de barro e o barro é mole. A chuva não parava não, quem dera, a água não acabava mais. José precisava se proteger, slap...slap, para baixo da árvore que é mais seguro, dá de molhar menos, e ninguém bem fedia naquele dia, nem árvore nem cachorro, tamanho era o dilúvio. O velho enrrugava ainda mais. Berrava com o cão. Fica quieto, porquera. Aqui debaixo é melhor. Dá-lhe água, vento, folha, galho, telha. Era telha, bicho? Os dois nos pés da planta, que balançava e pelava, magra que era de mijo e de buraco. E não é que no meio da rinha, num sopro mais forte, ela resolveu partir e veio abaixo na cabeça de José, no meio do coco, que não agüentou o tombo e foi ao chão para não levantar mais. Pois ali ficou o velho, caído, com o cão a gemer e a lamber a água e o sangue ralo de seu rosto, sem nunca ter comido fruta daquele pé, caído e lambido do jeito que o acharam no dia seguinte, todo molhado por fora e seco por dentro. A irmã ficou sabendo. Foram lá perguntar o que fazer. Enterra, ué. Deixa ele encontrar o pai, vai saber, era bom o coitado, nunca fez mal a ninguém. Tava sempre batendo perna pelo morro e só fazia disso. Até mesmo enterraram o velho com as chinelas! E o cachorro voltou para casa, na soleira do barracão. No final das contas sobraram só os dois, o bicho e o barracão, sem José e sem árvore, e ainda ele caminhava pelo morro, pois é, mas fazia outro caminho para esquecer o slap, slap de José. O bicho dava dó e tinha dó também. Dó do velho que existia mas não vivia, como árvore, crescendo parado, só esperando as frutas surgirem. E dó da árvore, naquele lugar árido, que mal crescia e já estavam de olho no que tinha para dar. Dos zinhos do morro, os mais abusados se perguntaram se o cachorro sabia, se fez aquilo de propósito. Se derrubou os dois do sofrimento do morro, mijada mais mijada, buraco mais buraco. Se foi a causa. Se fez para ajudar. Porque achava melhor assim. Vai saber. O velho José não ligaria não, acabar com o nada da sua vida, não ficaria mais triste. Era bom. Deixa o cachorro em paz. Ele é esperto, o bichano. Sabe o que faz. Deixa ele caminhar e mijar num lugar melhor. José viveu ali tempo demais.

Agosto de 2007

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

TEATRO ABSTRATO



É realmente difícil descrever o espetáculo Shi-Zen, 7 cuias, encenado domingo passado pelo grupo Lume no Tuca (PUC/SP). Foi o último evento da chamada Casa Lume, que celebrou os 25 anos do grupo com uma intensa programação cultural. E não poderia ter sido melhor.

Assistir àquela peça é mais ou menos como contemplar um quadro abstrato. Não há narrativa, não há começo, meio ou fim. Não há diálogos – exceto por um, realizado com gritos musicais e gemidos inconformados, todos em claro japonês inventado. São apenas sensações, metáforas e muitas sugestões.

E tema? Tem? Tem. Fala de arquétipos, mitologia, nascimento e morte, ascensão e queda, comportamento social, desamparo, esperança, natureza e daí por diante. Deve falar de muitas outras coisas também, sabe por quê? É uma peça difícil de definir, como já disse. Não tem certo ou errado, tem apenas metáforas sobre a vida, cada um as entende como quiser.

São metáforas ricamente interpretadas. A sutileza dos movimentos nos carrega para outros planos, assim como a intensidade das músicas. Os sete atores do grupo se completam e se superam a cada cena. E elas demoram, nossa, como demoram! Muitas vezes levam minutos inteiros para realizar atos praticamente imperceptíveis, porém essenciais: é essa demora que nos permite deixar a ansiedade de lado e adentrar o novo mundo.

A coreografia foi desenvolvida em parceria com japonês Tadashi Endo e tem base em seu elegante e minimalista Butoh-Ma. A inspiração oriental aparece aí e em muitos outros cantos, a começar pelo nome: Shi (indivíduo), Zen (como exemplo) e Shi-Zen (natureza).

O espetáculo é uma verdadeira experiência de vida. Nos leva ao riso, às lágrimas, à raiva, à tensão e à apatia. Tudo está presente em sua forma mais pura: aquela que não tem forma de nada, exceto de sentimento. É a essência daquilo que gera todas as outras histórias, uma versão primordial do homem e do mundo. Difícil de definir, eu sei, mas é isso aí. Melhor é ver com os próprios olhos. E com a cabeça aberta.



Mais informações: Lume Teatro

AS GAROTAS DO CALENDÁRIO

Essas fotografias foram feitas por alunos da Brother ad School, de Buenos Aires, para uma campanha de Match Box (carrinhos em miniatura). Vistas como propaganda, são coisa boba, mas como arte... dão o que falar.

domingo, 1 de agosto de 2010

PÁGINAS AMARELAS

Eu estava lendo uma coletânea de contos do Hemingway e faltava pouco mais de trinta páginas para terminar o primeiro volume. Fui almoçar sozinho num café perto do escritório, comi um sanduíche de qualquer coisa, pedi uma bebida gelada e meti os olhos no livro. Fazia, calor, muito calor para o inverno paulistano, e o sol brilhava forte lá fora. Dei sorte de conseguir a melhor poltrona do lugar, que fazia par com uma pequena mesa redonda de madeira, ao lado da porta. As pessoas entravam e saíam o tempo todo, lembro de ter me surpreendido com aquele movimento e imaginei alguma relação com o dia de sexta-feira. As sextas-feiras têm uma atmosfera diferente, a gente se permite o luxo de aproveitar um pouco mais a vida, estender a hora do almoço, caminhar lentamente pelas ruas ou bater papo no café.

Eram pensamentos de segundo plano, desses automáticos que se formam sem a gente perceber e sem entender os porquês. A leitura provoca isso em mim, me faz desviar o foco e perceber a realidade como se a estivesse ouvindo na sala ao lado, ou vendo-a refletida num espelho, estando ali sem estar de verdade, entende? Meu senso crítico abaixa a guarda e já não importa mais quem sou, o que sou ou como devo agir. Faço-me finalmente personagem da história alheia.

Só me dei conta do horário quando a garçonete tropeçou numa ponta solta do carpete, perdeu o equilíbrio e deixou um copo cair da bandeja. Era um daqueles copos altos em que servem soda italiana, todo chanfrado, meio retrô. Gosto desses copos. Ele se espatifou em milhares de pedacinhos brilhantes, provocando um silêncio súbito que só foi interrompido pelo ralhar histérico da gerente. "Vamos, não fique olhando com essa cara de tonta, pega a vassoura e limpa essa bagunça. Vai, vai, vai!"

A garçonete pareceu desconcertada por alguns instantes, até que abaixou a cabeça e sumiu cozinha adentro. A patroa não parecia contagiada pela síndrome das sextas-feiras. Fez questão de deixar à mostra todas as suas linhas de expressão enquanto a empregada retornava com um esfregão e enxugava o terrível desastre.

Isso tudo aconteceu exatamente quando eu terminava de ler o penúltimo conto, "Vinho do Wyoming". O copo quebrado cortou a suspensão de meus pensamentos, olhei o relógio e resolvi voltar ao escritório. A bebida tinha esquentado e, de qualquer maneira, não daria tempo de terminar o livro.

Devolvi o marcador de páginas ao seu lugar, recoloquei os óculos de sol no rosto e caminhei de volta sentindo o doce aroma do fim de semana se aproximando. Apenas mais algumas horas e eu estaria livre, com a batalha ganha. Tentei repassar mentalmente os contos recém-lidos, só que eles já estavam ocultos pela névoa espessa do mundo banal.

Foi então que deparei com uma cena lírica, que veio caminhando lentamente pela calçada até mim, a despeito do tráfego esquizofrênico da rua. Um bairro movimentado, entenda, cheio de prédios que não combinam nada com aquela casinha antiga de paredes vermelhas e rococós brancos, térrea, com um gramado ralo na frente e uma roseira seca no centro. Vidro texturizado na janela da sala, treliça de ferro descascada, alpendre. Provavelmente havia um poço cimentado no quintal dos fundos, escondido sob uma série de varais de arame. Quase na calçada, no lugar onde caberia um carro, sentada numa cadeira de balanço a apenas alguns metros do mundo contemporâneo, estava uma senhora de idade avançada, magrinha, de agasalho e com os cabelos escassos e amarelados presos para trás num coque, a cabeça baixa e o rosto todo dobradinho sobre si mesmo. Em seu colo, envolvido por longos dedos deformados pela artrose, havia um livro, provavelmente tão velho quanto a dona, as páginas amarelas e cheias de manchas. Em sua inércia, compartilhando sozinhos uma unidade de tempo particular, ambos pareciam se completar.

Fiquei pensando no que a velhinha estaria lendo. Após tantos anos de vida, o que o livro teria de interessante para contar? Será que ele permitia à dona sair por aí, caminhando livremente, fora do trilho que as calçadas altas lhe impunham? Ou seria aquele livro seu último elo com o passado, as páginas amarelas que ocultavam a realidade atualizada do entorno e mantinham as memórias vivas, o poço do quintal aberto, a roseira florida?

A velhinha parecia abandonada ao sol. Morava sozinha? Fiquei pensando em seu pai, mãe e irmãos comendo mexericas na mesa da cozinha, cuspindo as sementes numa tigela coletiva. Pensando nos passeios pelos antigos descampados da cidade, ali mesmo, naquele bairro. No dia em que conheceu o marido numa quermesse de São João, brincando ao redor da fogueira. O casamento, a casa simples, térrea, com as paredes vermelhas e rococós brancos, tijolos levantados um a um. A fome ocasional e as brincadeiras inocentes. Fiquei pensando no primeiro filho, homem para agradar ao marido; no segundo, homem também; e na caçula, menininha excessivamente protegida por todos os outros. Fiquei pensando no dia em que percebeu que não teria mais filhos, no dia em que os nascidos saíram de casa, em que perdeu a vontade de cozinhar sempre a mesma comida, dia em que a quitanda virou supermercado e o dono, seu Manuel, sumiu. Quando derrubaram a casa do vizinho, tão agradável que era, e fizeram uma loja no lugar. No dia em que se deu conta de que não conhecia mais ninguém do bairro, que milhares de transeuntes passavam pela calçada de sua casinha, ela os observando por trás do vidro da janela. Estranhos. Pensei no dia em que enterrou o marido, os filhos ficaram um pouquinho e foram chamados de volta às suas próprias vidas. No dia em que percebeu que não sabia usar nada do que via por aí, celular, computador, carros flex. Não sabia nem mesmo para que serviam. No dia em que as frutas e os legumes e as verduras perderam o gosto, e ela não sabia se era culpa deles ou de sua língua gasta.

Então um dia ela despertou às cinco da manhã ouvindo o galo que já não existia há décadas, passou café no coador de pano e comeu torradas com manteiga. Chacoalhou a toalha no quintal e olhou para o céu procurando pardais. Vieram pombos, só que ela já tinha entrado de volta e não os viu. Varreu a casa até sentir as costas doerem, coisa que não demorou muito, então repousou na frente da TV até perceber que era melhor preparar o almoço. Comeu antes do meio-dia, lavou a louça, colocou-a de lado para escorrer o excesso de água, enxugou-a com um pano, devolveu tudo aos armários de origem e pendurou o pano num dos varais de arame do quintal. Ela ainda teria uma longa tarde para enfrentar e precisava de algo que distraísse o tempo. Escolheu um livro entre os poucos que ficavam na prateleira da sala, logo acima do rádio e abaixo dos portarretratos, um livro de páginas amarelas que já tinha sido lido milhares de vezes, e com muito esforço o arrastou até o sol que batia na frente da casa. Colocou os óculos, a cordinha oscilando nos cantos, e se acolheu ao lado da roseira seca, apenas aguardando que a natureza as consumisse de vez. A história era tudo que lhe restava. Fiquei pensando nela e numa porção de coisas assim, e me esqueci do fim de semana que se aproximava. Também me esqueci dos contos do Hemingway que precisava terminar de ler.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

ONDE VIVEM OS MONSTROS?



Comprei esse livro porque assisti ao filme e me apaixonei.
Antes, não conhecia a história, não sabia nem mesmo da existência dela, embora tenha ganhado importantes prêmios desde que foi escrita, em 1963.
O livro também me surpreendeu. Muito.
Primeiro, pela concisão do texto. (como foi que fizeram um longa-metragem a partir desse "parágrafo?")
Depois, pelas ilustrações, riquíssimas. São aquarelas e nanquins realizadas pelo autor, Maurice Sendak, que soube onde colocar os detalhes e onde suprimi-los para a criançada poder sonhar.
Por último, porque encontrei aqui a mesma essência selvagem do filme – ainda que seja essa a original –, a mistura da realidade com a ficção, o universo das fábulas infantis.



Fui assistir ao filme simplesmente porque o pôster atiçou minha curiosidade. E porque a música do Arcade Fire ("Wake Up") escolhida para compôr a trilha me pareceu perfeita.
Ele prometia um visual bonito e algo selvagem. Saí do cinema extasiado.
Dirigido por Spike Jonze (o mesmo de "Quero ser John Malkovich"), a história nos oferece uma série de perguntas cruciais:
1. Até onde temos que ir para entender o mundo em que vivemos?
2. Quem são os monstros de verdade?
3. Será que eles não vivem dentro de nós mesmos?
O filme pareceu forte demais para as crianças, queria ver como elas reagiriam. Mas sessão era legendada, então não deu para saber.
O termo "selvagem" do título original (Where the wild things are) me parece traduzir melhor o sentimento proposto, aquele pulso primitivo do livro, instintivo e natural.
As emoções descontroladas e imprevisíveis dos monstros são muitas vezes assustadoras. Será que já vimos algo parecido por aí?
Com certeza.
O que nos difere dos monstros, afinal?
Nossa capacidade de nos relacionar uns com os outros, talvez.
Nossa capacidade de nos organizar.
Nossa capacidade de amar.
Será?


Clique e assista ao trailer de Onde vivem os monstros

quarta-feira, 28 de julho de 2010

AOS 25 ANOS, COM AFETO



Texto e fotos por Carlota Cafiero
Assessora de comunicação do LUME Teatro


Um clarinetista maluco desafiava os carros que desciam a Rua Monte Alegre, em Perdizes, enquanto uma moradora de rua puxava um trenzinho de madeira atrás de si, falando impropérios aos passantes. Jogado na calçada, um homem de short e camiseta ignorava o frio, visivelmente embriagado. Próximo dele, uma mulher com os cabelos desgrenhados tomava cachaça e contava piadas aos curiosos. Tudo isso aconteceu na noite de segunda-feira, em um mesmo momento e quarteirão, na frente do Teatro da Universidade Católica (TUCA), o que chamou atenção de pedestres e motoristas que, por alguns momentos, viram suas rotinas alteradas pela ocupação CASA LUME, que o LUME Teatro está promovendo em todos os espaços do TUCA, em comemoração aos seus 25 anos de fundação.

As cenas descritas acima foram apresentadas pelos atores Ricardo Puccetti, Ana Cristina Colla, Jesser de Souza e Raquel Scotti Hirson, respectivamente, e fizeram parte da abertura da programação da CASA LUME, que segue até 1 de agosto, domingo, com palestras, demonstrações técnicas, workshops e espetáculos no TUCA - que também está comemorando aniversário, mas de 45 anos.

As cenas não pararam por aí: dentro do foyer do TUCA, mais dois atores do LUME surpreendiam o público com suas figuras: Carlos Simioni vestia o figurino do espetáculo solo "Sopro", dirigido por Tadashi Endo, e se movimentava lentamente ao lado da exposição de fotos "Fluxolume", montada por Juliana Pfeifer. No alto de uma das escadarias do foyer, Naomi Silman apresentava a trágica figura de Lady Macbeth, em um exercício cênico que faz parte da demonstração técnica Não Tem Flor Quadrada. Em outra escadaria, Puccetti fazia um trecho do solo "Cnossos", espetáculo que está há 15 anos em cartaz.



No foyer superior do teatro, mais figuras: Renato Ferracini como o Seu Mata-Onça, de "Café com Queijo", provocava risos nos público espalhado pelas almofadas e sofás do Cantinho da Leitura da CASA LUME - com livros e revistas publicadas pelo grupo junto da editora da Unicamp e Hucitec -, enquanto Jesser de Souza, de chapéu e bengala, subia lentamente a escada como Seu Geraldinho, do espetáculo fora de cartaz "Contadores de Estórias.

Quem conduzia o público entre uma figura e outra era a atriz Silvia Leblon, como a palhaça esfarrapada do espetáculo "Sonho de Ícaro", do LUME. Dessa, forma - e com um guia ilustrado nas mãos - os cerca de 100 espectadores que compareceram à abertura da CASA LUME no TUCA foram apresentados a algumas figuras-chaves que marcaram a trajetória dos 25 anos do grupo.

Para finalizar o evento de abertura, os sete atores retomaram figuras do espetáculo cênico-musical "Parada de Rua", preenchendo todos os espaços do TUCA com canções, sopros e percussão, levando o público para o Tucarena - onde está montada a exposição de fotos "Singularidades Plurais", de Adalberto Lima. Lá, Carlos Simioni (que também é coordenador e cofundador do LUME), ainda vestindo o figurino feito de papel-arroz de "Sopro", falou à plateia sobre o desafio de manter um grupo de teatro durante 25 anos, seguido da fala da musicista Denise Garcia, viúva de Luís Otávio Burnier (idealizador e fundador do LUME) e também cofundadora do grupo.

Após a exibição de um trecho da rara gravação do espetáculo "Duo para Piano e Mímica", com Burnier e Denise, os atores rasgaram a tela de papel e entraram em cena como as exageradas e bem-humoradas figuras dos Bem Intencionados, para apresentar o número musical "Caleidoscópio de Emoções", que faz parte do novo espetáculo do LUME, ainda em processo. Foi dessa maneira afetiva, e rindo de si mesmos, que os atores inauguraram a semana que comemora as Bodas de Prata deste importante núcleo de pesquisa teatral.



Se você ainda não leu, aqui estão meus comentários sobre a abertura do evento.

terça-feira, 27 de julho de 2010

COMO SE DISSESSE ÁGUA

por Eco Moliterno

Fico imaginando como foi o recente encontro entre dois antigos desafetos: Saramago e Deus.

- Seja bem-vindo, José. Surpreso em Me ver?
- Pois estou mais surpreso em ter sido aceito aqui no céu.
- E por que Eu não te aceitaria?
- Porque sempre desdenhei do Senhor e desse lugar aqui, ora.
- Mas é exatamente por isso que você está aqui.
- Para uma vingança póstuma Sua, imagino.
- Não, pelo contrário: para Eu te recompensar.
- Me recompensar? Por ter blasfemado o Senhor e Seu filho?
- Você também é meu filho, José.
- Só acredito vendo o teste de DNA.
- E de todos os Meus filhos, é um dos poucos que nunca Me pediu nada.
- Decepcionei-te?
- Não, nem um pouco. Tanto que até te ajudei a ganhar o Prêmio Nobel.
- Votastes em mim? Não sabia que eras membro da Academia...
- Não votei, mas fiz Meus votos.
- Fizestes votos? Então fraudastes a eleição dos suecos, Gajo!
- Não se faça de tolo, José. Agora não há mais motivos para zombar de Mim.
- Pois bem, então já que o Senhor existe, exijo algumas explicações.
- Chegou a sua hora de perguntar.
- Por que deixastes o mundo do jeito em que está?
- Eu o criei para ser de outro jeito.
- Então o criastes para depois o abandonares?
- Não o abandonei. Eu o deixei para vocês tomarem conta.
- O Senhor o deixou para os banqueiros, para os políticos... não para nós.
- Deixei-o para todos, José.
- Mas por que nem todos têm acesso igual às mesmas coisas?
- No início, tinham. E deveriam ter até hoje.
- Então por que o Senhor não intervém?
- Eu já fiz Minha parte. Agora está na mão dos homens.
- Dos homens milionários norte-americanos, suponho.
- Não, esses ficarão com pouco.
- Bom, se esses ficarão com pouco, então quem ficará com muito?
- Você.
- Eu?
- Sim. Não disse que iria te recompensar?
- Mas por que não recompensas as crianças que morrem de fome na África?
- Porque não estou falando de recompensa material.
- E que tipo de recompensa eu mereço, ora pois?
- A eternidade.
- Como assim?
- A partir de agora, José, você é eterno.
- E o que fiz para merecer isso?
- Você se imortalizou. Simples assim.
- Curioso: precisei morrer para ficar imortal.
- Na verdade, você já era eterno antes de vir pra cá.
- Bom, se o Senhor está falando, quem sou eu pra discordar.
- Engraçado... antes de morrer você discordava bastante de Mim.
- Não me leves a mal, mas agora usarei minha eternidade de outra forma.
- "Não tenhamos pressa. Mas não percamos tempo."
- Conheço essa frase...
- Sim, foi você que escreveu.
- E como a sabes?
- Você deveria saber que Eu sei de tudo.
- Bom, até onde eu sei, acabamos de nos conhecer.
- Pois Eu te conheço desde quando você era serralheiro mecânico.
- E nunca me falou nada?
- Falei sim. Você que não ouviu.
- Se tivesse Te escutado, teria ouvido.
- Se acreditasse em Mim, teria escutado.
- Bom, não vamos transformar isso em uma discussão eterna, vamos?
- De acordo.
- Então o Senhor leu todos os meus livros?
- Todos.
- Ainda bem que não és um crítico literário...
- Pois saiba que gostei bastante do que li.
- Pois não deves entender bem o português, só pode ser.
- Entendo sim. Sou brasileiro, se esqueceu?
- Nunca soube disso.
- É porque você não deve gostar muito de futebol.
- Não mesmo. Mas voltando aos livros, algo que escrevi Te irritou?
- Nada.
- Nem o meu descrédito no Senhor?
- José, Eu nunca fui esse tal Deus em que você não acreditava.
- "Todos os dias tento encontrar um sinal de Deus, mas não encontro."
- Sim, Eu li essa sua frase também.
- E mesmo assim não mandastes um sinal?
- Se você estivesse falando comigo, teria mandado.
- Se soubesse que o Senhor existia, teria falado.
- "Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara."
- O Senhor realmente conhece minhas frases... estou surpreso, confesso.
- De todas que você escreveu, só existe uma que não entendi até hoje.
- Então chegou a Sua hora de perguntar.
- É a dedicatória em seu último livro para sua esposa Pilar.
- "À Pilar, como se dissese água". Essa?
- Exato. O que quer dizer?
- Esquece. O Senhor jamais entenderia.
- Mas agora temos a eternidade inteira para você me explicar.
- Mesmo assim. A eternidade é pouco tempo para o Senhor entender isso.
- Por que?
- Porque o Senhor nunca amou uma mulher.
- José, José... Você não existe...

Post original: CCSP

A QUEM SE INTERESSAR, COM CARINHO

Olha só a carta que Van Gogh enviou a seu irmão Theo em 1882. E não foi só essa não, são milhares, que depois foram reunidas em livros e ganharam fama mundo afora.

Enquanto isso, a gente envia e repassa um monte de e-mails sem graça.


CONSTRUIR ALGO, CHEGAR A ALGUM LUGAR


Foto de Carlota Cafiero

Fomos recebidos por uma mendiga louca que nos ofereceu a cachaça de sua canequinha. O segurança percebeu nossa apreensão, aproximou-se e disse que poderíamos ficar à vontade para perambular pelo lugar. A mendiga veio atrás e sumiu pouco depois, provavelmente porque encontrou outro casal para compartilhar seu vício. Nos dirigimos à escadaria da direita e, ao fim do primeiro lance, encontramos Lady Macbeth prostrada, contorcendo-se de dor e culpa. Foi só então que percebemos como a noite ia ser legal.

Estávamos no TUCA, teatro da PUC-SP, para a abertura do evento que marcaria duas importantes comemorações: os 45 anos do teatro e os 25 anos do grupo Lume, da Universidade de Campinas. De 26 de julho até o próximo domingo, 1º de agosto, haverá espetáculos, workshops, demonstrações técnicas, exposição de fotos, palestras e exibição de vídeos para todos os interessados – confira a programação aqui.

No fim dos degraus, passados a Sra. Laranjeiras (moradora de rua que a atriz Ana Cristina observou para a montagem do espetáculo “Um dia…”, de 2000) e de Lady Macbeth (figura clássica desenvolvida pela atriz Naomi Silman a partir da técnica de Dança Pessoal), encontramos Seu Mata-Onça (Renato Ferraccini) e Cnossos (Ricardo Puccetti), entre outros personagens-chave dessas duas décadas e meia de história. Eram apenas amostras de espetáculos passados, mas a gente se envolvia de maneira tão profunda que se esquecia do contexto e queria participar. Eu mesmo quase fui ajudar o velho Geraldinho (Jesser de Souza) a subir as escadas com sua bengala de pau. Que aflição que dava aquele esforço!

Aos pouquinhos, a sensação de caminhar por um hospital psiquiátrico foi cedendo lugar a uma curiosidade contagiante, uma vontade de tocar e dançar com os sete atores do grupo, de deixar a razão de lado e mergulhar de vez na ficção. Com aquelas encenações acontecendo ao redor, nos sentíamos de fato num enorme palco.

Em seguida, fomos conduzidos à arena do TUCA, onde ouvimos os depoimentos dos dois fundadores restantes do Lume, Carlos Simioni e Denise Garcia (Luís Otávio Burnier faleceu uns anos atrás). Foi espontâneo e bonito. Deve ser difícil resumir uma história tão rica, ainda mais quando se trata de um dos mais importantes centros de pesquisa teatral do mundo. Como núcleo artístico e pedagógico vinculado à Unicamp, o Lume elabora novas possibilidades expressivas e reinventa o teatro a cada novo espetáculo, difundindo esse trabalho também por meio de oficinas e projetos de intercâmbio.

Praticamente sem alteração de integrantes durante todo esse tempo, víamos ali uma grande família. Como confessou o ator Carlos Simioni, depois de vinte e cinco anos de trabalho em conjunto, como é que se deixa o Lume? Não se deixa. Mantém-se criando, ensinando e pesquisando, sem muita certeza de aonde vai chegar. Carlota Cafiero, assessora de comunicação do grupo, comentou deslumbrada a cena em que os atores incorporavam uma banda brega e meio decadente: são os primeiros minutos de um novo espetáculo, e quem diria que eles, conhecidos por encenações sérias e dramáticas, agora fariam uma banda cômica? É mesmo um processo contínuo de construir algo e chegar a algum lugar, como disse Simioni, mesmo que não se saiba muito bem o que e aonde.

É impossível calcular a abrangência do Lume – tanta gente que já passou pelas salas de aula e pela plateia! Só que um dado relevante mostra a influência deles: em 1985, eram o primeiro grupo de pesquisa teatral da região; hoje, são catorze, muitos formados por ex-alunos.

Seja qual for esse “algum lugar” para onde eles rumam, posso dizer que, depois de muita construção e descontrução, o Lume já protagonizou uma conquista especial: vinte e cinco velinhas no bolo. Foi muita honra para mim presenciar essa festa.


O Lume está de site novo. Confira aqui.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

BRINCADEIRA DE CRIANÇA

Ou tão efêmero quanto. Mas quem nunca quis desenhar assim na lousa da escola?









Site do artista: Philippe Baudelocque
WELCOME TO – oh, shit, what happened there!? – LIFE.

FILHOS DO BRASIL, NOTAS RÁPIDAS



• Musical criado e dirigido por Oswaldo Montenegro
• Não possui narrativa linear. Parece mais um apanhado de cenas com um tema em comum – o perfil do brasileiro
• É uma tentativa de compreender a essência do brasileiro, esse pressuposto filho da nação
• Encontrar uma única definição não é um reducionismo perigoso?
• É difícil conhecer os filhos se não sabemos nem quem é o Brasil
• Os esteriótipos do nordestino, do político corrupto, da loira burra, do povo sofrido, do mineirinho da terra, do homem do morro, do hip hop, entre outros, rendem uma leitura ingênua, patética e banal
• O trabalho dos atores e músicos é muito competente
• Música e dramatização se complementam bem
• Em muitos momentos a peça lembra a antiga "Noturno": aparecimentos repentinos em diferentes lugares do teatro, lanternas no rosto, pontos de luz para direcionar a atenção do espectador
• A cena de Léo e Bia é o melhor momento, embora pertença originalmente a outra peça – a lógica fraca e sem graça de Oswaldo dá lugar à lírica
• A defesa do Brasil como território e cultura faz Oswaldo parecer o Policarpo Quaresma da nova era
• Não creio que o nacionalismo seja o caminho para o brasileiro se encontrar. Isso parece retrógrado, principalmente em tempos de universalização, internet, redes sociais internacionalizadas etc. Gosto mais do conceito de "cidadão do mundo", que Alanis Morrissete inseriu em seu último disco
• Desde quando se deve gostar de MPB só porque nascemos aqui?
• "No Brasil não há preconceito, a natureza faz parte do povo, judeus e muçulmanos convivem decentemente, todos se amam e se abraçam nas ruas" são mentiras em que fingimos acreditar
• Discordo conceitualmente de Oswaldo em diversos pontos, principalmente quanto a querer encontrar a essência do brasileiro e a amar incontestavelmente a nação. Tirando isso, a peça é divertida

Ps.: Alguma ligação com o filme "Lula, o filho do Brasil"?
Ps. 2: Lula seria mesmo o único?

sexta-feira, 23 de julho de 2010

AS PEQUENAS COISAS DA VIDA

Encontro muitas pessoas curiosas nas aulas de arco e flecha. Até porque quem pratica arco e flecha no Brasil é índio ou, no mínimo, diferente. E o diferente é sempre curioso.

Por exemplo, descobri ontem que um dos colegas tem o braço torto porque, quando criança, ele o quebrou. Depois, devido a uma calcificação errada, o braço foi quebrado mais nove vezes, exatamente o número de tombos que o menino colecionou. O resultado é que a articulação do seu cotovelo emperrou, o bíceps atrofiou e, para compensar, o corpo desenvolveu uma estrutura diferente. A clavícula direita, por exemplo, ficou grossa, e os músculos das costas cresceram mais do que o normal. É por isso que ele consegue puxar a corda do arco.

Mas não era bem disso que eu queria falar. Acontece que fiquei pensando naquela história do anão sequestrado e, coincidentemente, um colega arqueiro – obstetra nas horas vagas – começou a falar do parto de uma anã. Disse que ocorreu um recentemente no hospital em que trabalha, que isso é raríssimo, talvez até mais raro que enterro de anão, e que o pai também é anão e que, mesmo assim, a criança pode nascer normal. Tem alguma coisa a ver com herança genética e cromossomo modificado. Perguntei se essa criança, especificamente, nasceu anã. Ele disse que não dava para saber. A criança ainda era muito pequena.


Mediations (towards a remake of Soundings), 1979-1986, de Gary Hill