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segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

GAME OVER, MARTA SUPLICY

Parece que a ministra Marta Suplicy confunde cultura com boa vontade. Ou videogame com tranquilizante, porque "deixa a criança quieta". Ou parece que entretenimento e cultura não podem coincidir. Difícil saber. É mais provável que ela apenas tenha dito outra porção de bobagens, o que não surpreende.

O videogame chegou ao MoMA, em Nova York, onde está fomentado debates. Curiosamente, lá ele é um fenômeno cultural.

Eu diria que aprendi muito jogando, quando podia dedicar mais tempo a isso. Sinto saudade. Mas é lógico que minha experiência pessoal não conta. O que vale a pena notar é o fenômeno cultural promovido pelo videogame, que transformou comportamentos e até mesmo a maneira como os jovens lidam com informação, entretenimento, design, arte, história... Tem muita gente talentosa trabalhando com isso, produzindo não apenas "joguinhos", mas ficção de alto nível.

No Brasil, os games permanecem banidos do programa Vale Cultura, a não ser que alguém explique para nossa ministra o que eles têm de culturais – ou que haja "boa vontade" dos desenvolvedores, seja lá o que isso signifique.

O trecho do debate (abaixo) foi originalmente publicado aqui:

Francisco Tupy – “O que o ecossistema que trabalha com jogos digitais, pesquisadores, desenvolvedores, professores etc. pode esperar do Vale Cultura?”

Marta Suplicy – “No caso dos jogos digitais, o assunto ainda não foi aprofundado o suficiente, mas eu acho que eu seria contra. Eu não acho que jogos digitais sejam cultura […]. Mas a portaria é flexível. Na hora em que vocês conseguirem apresentar alguma coisa que seja considerada arte ou cultura, eu acho que pode ser revisto. No momento o que eu vejo é outro tipo de jogo. Encaminhem para o ministério as sugestões que vocês estão fazendo. Eu tenho certeza que talvez vocês consigam fazer alguma coisa cultural. Mas, por enquanto, o que nós temos acesso, não credencia o jogo como cultura. O que tem hoje na praça, que a gente conhece (eu posso também não conhecer tanto!) não é cultura; é entretenimento, pode desenvolver raciocínio, pode deixar a criança quieta, pode trazer lazer para o adulto, mas cultura não é! Boa vontade não existe, então, vocês vão ter que apresentar alguma coisa muito boa”.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

POR CUBA, COM CUBA, EM CUBA

Sempre achei incrível, desde que li Pedro Juan Gutiérrez, como os ditos "dissidentes" de Cuba não querem sair do país para jamais voltar. Pelo contrário, eles querem sair justamente para voltarem sempre a um país melhor, do jeito que sempre sonharam, do jeito que lutam tanto para realizar. Se viajam, é para trazer o mundo ao seu local de origem, para transformá-lo.

A blogueira Yoani Sanchéz finalmente obteve permissão de viajar para fora de Cuba, e chegou agora ao Brasil, onde dará palestras e entrevistas. Quero que ela seja muito bem-vinda, recebida como heroína, não como simples agitadora.

Eu acho uma pena que, em pleno século XXI, ainda sejam necessárias resistências do tipo. Mas, se é necessário resistir, vamos fazer juntos.

"Um cubano sabe muito bem o que não pode fazer, mas infelizmente desconhece seus direitos – que foram negados, mascarados e encobertos por um governo que é reticente em reconhecer seu fracasso."

"Sou e somos tão valentes como aqueles que lutaram por uma verdadeira Cuba, em que a democracia e os direitos foram nossos estandartes. Somos como aqueles que não se dobraram diante de tanto tirano e carrasco."

Yoani Sánchez, em entrevista à Revista da Cultura


Conheça o blog da jornalista: Generación Y

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

"Não é preciso perguntar-se se nós percebemos verdadeiramente um mundo, é preciso dizer, ao contrário: o mundo é aquilo que percebemos."

Maurice Merleau-Ponty, em Fenomenologia da Percepção

sábado, 2 de fevereiro de 2013

É CULTURAL

A gente assiste na tv, ouve no rádio, lê por aí e por aqui. São absurdos que sujam a imagem do país, fazem sentir vergonha de nós mesmos e, pior ainda, não permitem vislumbrar qualquer esperança de melhora. Corrupção correndo solta, impunidade, burocracia, ineficiência do Estado, falta de ética e de educação, falta de estrutura moral, social, urbana... São os atrasos com as obras da Copa, dinheiro desviado, mensalão, Ficha Limpa, Cachoeira, Tiririca, SUS, planos de saúde, telefonia, pirataria, metrô, inundação, desmoronamento, descaso, greve, PIB, passaporte diplomático, seca, coronelismo, pedofilia, tráfico, analfabetismo, displicência, superfaturamento, indulto de Natal, violência no trânsito, IPVA, IPTU, IR e assim vamos. Listando, parece o fim do mundo – o qual, diga-se de passagem, também falhou. Eu poderia citar muito mais, basta olhar ao redor e apontar (ah, se apontar resolvesse!). Vamos tomar jeito? Alguns acham que não. Outros acham que, um dia, sabe-se quando ou por que, baseados numa fé ingênua, o Brasil será um país de primeira linha, mesmo se ninguém mover um dedo para isso. Certo, certo, claro. Como num conto de fadas. Só que nós somos a cigarra, e não a formiga. Enfim, por que o país não vai para frente? A gente fecha o jornal, desliga a tv, dá de ombros e tem a resposta na ponta da língua, a palavra que resume tudo: “É cultural”.

Coisíssima nenhuma! Não venha justificar assim o comportamento apático de quem se contenta com tocar a vida, reclamar com a própria sombra e empurrar a sujeira para debaixo do tapete. Não venha justificar com essa palavra o que é contrário a ela. Porque é fácil sustentar o errado, basta fechar os olhos, abaixar a cabeça e deixar tudo como está, fingindo que não dá para mudar, que ninguém é forte o bastante. Entretanto, produzir cultura é dificílimo.

Registro de perfomance realizada por Paulo Bruscky em Recife, 1978

É um movimento intencionado, embate constante contra resistências e obstáculos, invenção de novos modos de existência e novas formas de interação, explica o médico pesquisador Benilton Bezerra Jr. Cultura é o único meio para a autorrealização. Para o psicanalista inglês Donald Winnicott, a cultura é uma formação posterior a do organismo que a produz. Trata-se da estruturação da vida psíquica, um movimento do ser em direção à vida, uma abertura em direção ao mundo.

Não sou revolucionário ou agitador de massas; nem autoajuda nem panfletário. Minha questão é o conhecimento da causa. Portanto, vamos colocar as críticas em seu devido lugar. O que me incomoda, de verdade, é ouvir que os problemas que nos assolam são culturais. O termo gera um entendimento errado, percebe? Porque cultura significa justamente o oposto. Cultura é aquilo que se cultiva, que se produz com talento, esforço, boas ideias e boa vontade. A cultura não brota em qualquer canto nem brota de um dia para o outro. Ela exige condições apropriadas do solo, da semente e do agricultor. Refiro-me à MPB, à literatura, à dramaturgia, ao futebol, ao Carnaval, às artes plásticas, ao design, à arquitetura, às pesquisas científicas, à política séria, à educação, à moda e à gastronomia, entre tantos outros espetáculos maravilhosos que o brasileiro é capaz de desenvolver.

Não se trata de hábito, porque a gente não se habitua a ela, não se pode banalizar. A cultura provoca. Ela vai nos provocar e emocionar e fazer reagir criativamente. Pode ser tradição ou não, afinal, novidade também é cultural. Por maior tradição que seja, a cultura veste uma roupa nova a cada evento e sempre nos surpreende com outra forma de beleza.

Temos o péssimo costume de dizer que “é cultural” para justificar as pobrezas ao invés de exaltar as nossas riquezas. Como se cultura fosse uma estrutura rígida à qual estamos sujeitos. Como se fôssemos determinados por ela e não o contrário. Ora, somos nós que fazemos a nossa cultura, seja no Brasil ou no mundo. Ela é movente, mutante, constrói-se e se modifica a todo instante por meio de nossas atitudes. Nada é pré-determinado, exceto o fato de que é com cultura que melhoramos a vida, a situação posta e o convívio. Mudamos a burca, o estupro coletivo, a recusa de transfusão de sangue, o uso de preservativos, a lei seca, a doação de órgãos, o preconceito, a célula-tronco, o casamento gay, a escravidão, o desrespeito, a falta de bom senso, a imoralidade, as medidas autoritárias, a injustiça, o paternalismo, a guerra e todos os outros abusos de poder. É por meio da cultura que desenvolvemos conhecimento e olhar crítico, que compreendemos melhor o mundo, que adquirimos bagagem para comprar brigas e debater as soluções possíveis.

Limpos e desinfetados (1987), de Paulo Bruscky

Talvez eu esteja me referindo não à cultura geral do mundo, mas a um ponto específico dela. Pois bem, é a minha maneira de encará-la. Seja como for, a cultura não é aquilo que se encontra estabelecido e, portanto, nos subjuga. Cultura é tudo o que podemos criar, transformar, melhorar. É uma história das formações sociais que ganha novas possibilidades a cada capítulo acrescentado.

“A cultura está situada no coração do ser”, escreveu a psicanalista Jan Abram. Sim, ela é parte de nós. Cuidado ao maldizê-la. É tentador colocar a culpa em quem, aparentemente, não pode se defender – só que ela se volta contra. Porque o mal, o desrespeito, a abstenção, a apatia e os excessos que se justifica com a desculpa fácil do “é cultural” revela, na realidade, uma grave falta de cultura.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

fazer é o que me faz

escrever é o que me resume
cantar é o que me toca
cozinhar é o que me alimenta
inventar é o que me cria
pintar é o que me ilustra
dizer é o que me explica
amar é o que me expande

viver é o que me mata.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Um homem triste
sem dúvida
Um homem triste
na dúvida

Da tristeza que não se sabe,
que se conhece bem.

A dúvida de sentir
sem saber explicar
A tristeza de não saber

Será?

A tristeza de não saber
Saber-se triste
porque

...

Um homem que sabe,
sabe-se triste
só.
“Essa busca da identidade é um grande assunto para todos nós. Não é uma coisa literária, não é um assunto filosófico. Temos sempre de explicar quem somos, e é uma miragem, é sempre uma coisa equivocada. Nunca somos uma coisa, não temos uma identidade, temos várias, e elas vão mudando com o tempo, vão mudando com a idade, vão mudando com a relação que a gente tem. Eu vejo que isso foi uma coisa que no início surgiu dramática em mim próprio. Tenho que saber quem sou, e eu era um cruzamento de tanta coisa, era um ser de fronteira, sou um filho de portugueses que nasceu em África e se converteu num africano. Vivo entre o mundo católico, o mundo dessas outras religiões que não têm nome, vivo entre o ocidente e o oriente, entre esse mundo de crenças e o cientista que também sou. Então, de repente, disse para mim: “O que é que eu sou?”. Parecia que eu tinha que saber, e é um drama não saber. Às vezes, o que disse a mim próprio e gostaria de dizer aos meus filhos e amigos é que não sofram, pois, ao contrário, quando souberem, aí sim vocês terão razão para sofrer. Porque essa área do não saber, essa ignorância, é extremamente fértil, portanto convivamos bem com isso.”

Mia Couto em entrevista ao jornal Rascunho número 153 (janeiro de 201).

domingo, 6 de janeiro de 2013

A BUSCA DO SER INTEIRO



Chego em casa à noite, cansado ao extremo, e desabo no sofá. Termina mais um dia caótico, uma semana alucinante, um ano de trabalho intenso. Tudo está para começar outra vez, penso. Tento me conformar. Desabei no sofá sentindo-me moído, "em cacos", a ponto de desmontar. As almofadas confortam os pedaços num forte abraço. Como pode, um móvel banal assim, ser tão acolhedor? Meu corpo se percebe envolvido por inteiro, sinto o toque leve em cada ponta de sua superfície. Um corpo pesado e esparramado como se jamais fosse se recompor. Passam imagens rápidas em minha cabeça, uma profusão aleatória: mãos, massagem, o divã de Freud, um casaco de pele, uma colcha de retalhos costurados com linha grossa, um colchão recheado de bolinhas de isopor... então, tudo faz sentido.

Por causa de uma pesquisa sobre a artista Lygia Clark, acabei me aventurando numa série de conceitos psicanalíticos até então estranhos para mim. Essa é uma das características que mais me agradam no ato de pesquisar: o inesperado sempre pronto para surpreender. Pois bem, eu estava lendo Donald W. Winnicott com o propósito de entender alguns possíveis princípios da Estruturação do Self, obra que se encontra numa fronteira pouco discernível entre a prática artística e a terapêutica. Existem indícios de que Lygia apreciava as teorias winnicottianas, então alguma coisa ali poderia me ajudar a amarrar pontas soltas da investigação. Foi assim que me deparei com uma passagem sobre a integridade do ser.

Integridade é aquilo que nos mantém sãos. Talvez seja ela própria sinônimo de sanidade. Penso isso num sentido amplo, que não diz respeito somente à saúde mental, mas ao equilíbrio geral do universo. Integridade moral, física, psíquica, social etc. O ser humano em harmonia com o seu mundo interno e com a realidade compartilhada. Não é isso que buscamos, afinal? Sentir-nos plenos, completos, sem faltas, falhas ou frustrações, sem lacunas a preencher? Manter o conjunto estável para "o que der e vier", para encarar toda a crise que perturbe nosso equilíbrio emocional?



Lygia Clark trabalhou, artisticamente, com essas ideias. Sua Estruturação do Self consistia em sessões "terapêuticas" com uma hora de duração cada, três vezes por semana, num processo ao longo de meses ou anos. Os "clientes", como ela chamava os amigos que se submetiam à experiência, eram atendidos individualmente. Eles se deitavam sobre uma almofada enorme, feita com bolinhas de isopor, na qual afundavam. A artista massageava seus corpos com as mãos e aplicava neles uma série de objetos ditos "relacionais", cujo objetivo era provocar sensações diversas e ativar, por meio do toque, partes inertes, fragmentadas. Ao tomar conhecimento de cada centímetro de si, o cliente sentia-se estruturado, completo, íntegro. A fragmentação, vivida como um desmembramento angustiante, recompunha-se na forma de "um só corpo e um só espírito". A unidade do ser.

Vejo isso tudo como uma proposta artística das mais belas e instigantes – por mais que Winnicott, entre outros psicanalistas, forneça conceitos teóricos, eu continuo a entender a Estruturação do Self como ato poético-estético. Isso de maneira alguma diminui sua relevância, pelo contrário; faz jus ao campo de conhecimento que a originou.

A pele é um elemento importante. Segundo Winnicott, o toque envolvente e sustentador, sentido na pele pelo bebê, permitirá a ele compreender os limites de seu corpo e também a existência do mundo externo. A pele é a fronteira entre o nosso interior e a realidade compartilhada, por isso o toque que a sensibiliza é estruturante. Como a mulher que, no Conto Azul de Marguerite Yourcenar, apalpa-se o tempo todo para se certificar de que existe, de que reconhece todos os pedaços do corpo como sendo seus.

Durante a entrevista que o artista e psiquiatra Lula Wanderley me concedeu no Rio de Janeiro, ele explicou que a pele possui também a função de membrana, ou seja, uma superfície que regula trocas entre o dentro e o fora. Lula foi amigo de Lygia Clark e, com o apoio dela, levou a Estruturação do Self para a instituição psiquiátrica, sistematizando-a como terapia propriamente dita, onde obteve resultados excelentes (apesar das dificuldades enfrentadas em meio a seus pares para incluir um pouco de arte entre os medicamentos receitados).

Enfim, o assunto é complexo para este curto espaço. O que resta, por ora, é saber que a expressão "sentir-se um caco", dita por alguém exausto física ou mentalmente, tem razão de ser. Não sei identificar sua origem, o que não me impede de, no caso, recomendar um bom sofá, desses em que a gente afunda por completo. Uma almofada macia que acolha e conforte. A solução parece óbvia, mas os motivos não são. Porque a proposta vai além do relaxamento. Ao tomarmos conhecimento de nossos corpos e de nossos limites, de todos os pedaços que nos compõem, adquirimos também a sensação de integridade física, moral e psíquica, entre tantas outras que permitirão enfrentar o novo dia, a nova semana, o novo ano. Desafios de uma vida inteira que sempre tentam nos fazer desmoronar.

*Os dois vídeos que compõem este post foram gravados pelo Itaú Cultural na ocasião da retrospectiva de Lygia Clark realizada ali no segundo semestre de 2012. Você pode assistir a diversos outros vídeos no canal de Youtube deles.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Vale-cultura, para mim, é escola decente. Havendo isso, não precisamos de nenhum "incentivo" paliativo.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

“Mesmo pais que em outros níveis tendem a ser satisfatórios, podem facilmente falhar na criação de seus filhos por não serem capazes de distinguir claramente entre os sonhos da criança e os fatos. Pode ocorrer de eles apresentarem uma ideia como se fosse um fato, ou reagir impulsivamente a uma ideia como se esta fosse um ato. Na verdade, é possível que eles temam mais as ideias que os atos. A maturidade implica, entre outras coisas, na capacidade de tolerar ideias.”

Donald W. Winnicott, Natureza Humana.

EXTRA–VAZAR

O tempo me escapa. Mais ou menos como se eu pusesse as mãos sob uma torneira e o tempo escorresse por ela. Escapa por entre os dedos, corre pelas frestas, não importa como eu tente contê-lo. Desajeitadamente. O tempo corre, escorre, escoa sem penetrar. Sem deixar vestígio.

Sinto-me ausente. Como se não pertencesse, como se não estivesse a par do aqui e agora. Inconsciente.

Passou, eu não vi. Foi pelo ralo, foi pelos ares. A ansiedade do início desembocou num desencontro. Sozinho. Na fossa. Suspiro. O último. Quando me dei conta, já tinha ido. Tinha acontecido. Pelas minhas costas, um golpe de vento, um arrepio, um piscar de olhos. A corrente levou. Onde eu estava?

Onde eu estava com a cabeça?
Lá se foi, uma vez mais, como sempre.
Ser sem estar, estar sem ser, não sei dizer.
Sinto. Muito.
É mesmo uma coisa sem sentido.
Por enquanto.

Agora e sempre. Aqui e afora.

O que aconteceria se eu fechasse a torneira? Se voltasse pelo cano, se explorasse a rede oculta nas paredes? Sumir também. Estar contido. Contente. Existe um submundo que percorre o edifício todo, a cidade inteira em conexão. Tudo corre, escorre, escoa.

Sem ver ou ser visto.

Desenhar um mapa no papel. Em branco. Fazendo. Criando. Existindo.

E eu incomodado com as gotas de água que me tocam sem molhar. A água que não me pertence. Que passa à toa. Que trans–borda.

Para além da fronteira do bem e do mal.

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

O CORPO DA LITERATURA

Aqui vão dois recortes de um texto ótimo que li no jornal Rascunho deste mês. A autora fala sobre as transformações proporcionadas pela escrita e pela leitura, experiências reservadas aos apaixonados por livros. Se você se empolgar, leia o texto completo aqui (edição 152).

“Só é escritor quem foi antes (e continua a ser) um apaixonado leitor, porque nos parágrafos que compõem a obra não há originalidade nem genialidade milagrosa, mas antes memória de tudo aquilo que se leu, e que, misturados às experiências e percepções do mundo também retidas na mesma memória, se remontam em uma obra nova, mesmo que se no momento do devaneio criativo essa memória não seja consciente. Mas de todo modo, a memória estará no corpo e a escrita, dizia Gonçalo Tavares, é uma atividade física. Não há dons inatos, nenhuma sorte genética ou espiritual. Há o narrador de Benjamin, o homem que viveu e se espantou com o mundo e que volta para contar suas histórias.”

“Não são só os olhos, doentes ou não, que se movem acompanhando as linhas de um livro. Move-se a vida toda e a que ainda virá. Porque depois de um grande romance, depois de ler Cem anos de solidão, por exemplo, já não será aquele que seria sem tê-lo lido. E essa descoberta é libertadora. Em potência temos tantas vidas quanto os volumes de uma biblioteca. Quanto mais se lê, mais é possível enredar e reorganizar todas as vidas (a que foi, a que está sendo e a que virá). E quando se estiver em outra vigília, diante do mundo, prático ou não, também ele será outro. E o mesmo mundo será vários, mesmo que a área em que circula não passe de dois ou três quarteirões. Porque tudo é movimento, tudo é duração e descontinuidades, sempre haverá algo a mais que se veja. E, insisto, esse ponto novo percebido só agora impactará toda a vida que foi (mas que se mantém na memória do corpo), a que está sendo e a que virá.”

Vanessa Carneiro Rodrigues
Memória e Movimento
Jornal Rascunho nº 152
(dezembro de 2012)

sábado, 8 de dezembro de 2012

O INFINITO EM CADA UM

"Escrevi um livro" é uma afirmação mentirosa. A gente publica livros, pois eles jamais terminam de ser escritos. As publicações são fases do texto. Digo isso porque, até algumas semanas atrás, eu achei que tinha escrito um. Um romance. Fresquinho, ainda sem previsão de lançamento, mas estava "finalizado", por assim dizer. Só que, então, comecei a ler Como viver junto, de Roland Barthes. Ele fala desse meu livro, parece até uma crítica direta. Ou uma devolutiva criativa. Eu não quero ser pretensioso e me comparar ao grande filósofo, não me entenda mal, por favor. É mais como se ele me desse conselhos, como se tivesse escrito especialmente para mim. Rolou uma sintonia: eu compartilho das suas afetações. Por consequência, vou reabrir meu livro "terminado" e recomeçá-lo (pela quarta vez). E assim ele não termina nunca. Pois "escrever é reescrever", disse certo autor um dia desses. Não me lembro quem foi nem onde li, mas não consigo esquecer a frase, tão bem escrita, tão pulsante, tão infinita.

"Na sociedade contemporânea, está em jogo a afirmação da transitoriedade como contingência ética de habitar o mundo. Ao escrever, não se busca edificar nem eternizar nada, pois a força deste gesto está no instante em que ele acontece e em sua eventual capacidade de produzir em seu entorno apenas deslocamentos, nenhuma fundação. Logo depois que se diz, aquilo já não é mais". Recortei este trecho de um lindo artigo chamado A pesquisa como prática estética, da amiga Renata M. Buelau, publicado no livro do VIII Congresso Internacional de Estética e História da Arte promovido pelo MAC/USP.

Espelho de teto criado pelo artista Olafur Eliasson na Pinacoteca de São Paulo

Eu queria saber por que as pessoas escrevem. Não acredito que haja uma resposta suficiente; ainda assim, a indagação em si parece promissora. Eu acho que escrevi o tal romance por dois motivos principais. O primeiro é "para colocar as ideias para fora", disponibilizá-las ao encontro, para que façam conexões e tentem sobreviver por si mesmas. O segundo motivo apresenta certa afinidade com o primeiro: "escrevi para me livrar dele". Nesse sentido, trata-se de uma espécie de psicanálise. Afinal, o método desenvolvido por Sigmund Freud baseia-se na verbalização como processo de investigação, ou seja, fala-se para trazer à tona (palavras de um leigo, meus amigos psicanalistas que não se ofendam). Não é necessário escrever tanto, claro. Pode ser uma página de diário, uma carta nunca enviada, uma nota no guardanapo, qualquer coisa. Por via das dúvidas, acho saudável ter sempre um caderno por perto para acolher pensamentos ou sentimentos que desejem se livrar de você. Porque o texto também precisa se livrar do autor, a rejeição é recíproca. Criador e criatura encontram no silêncio do papel um excelente psicanalista (sem ofensas novamente). É por isso que se publicam diários de grandes artistas. Eles costumam ser intrigantes.

Naquele mesmo artigo já citado, Renata Buelau explica que "os atos de pesquisar e escrever envolvem – ou deveriam envolver – uma disponibilidade para deixar algo de si para trás". Isso acontece quando se produz uma tese, uma obra literária, um e-mail sincero a um amigo, um cartão de Natal ou um parágrafo no diário. Algo de nós se vai com o texto, por isso se diz "criação". E que "nada se cria, tudo se transforma". Porque o texto é uma fração de nós mesmos que ganha vida própria e passa a se locomover por aí. Pelo mesmo motivo, não se deve confundir o texto com o seu autor. Ele já é outro. E a gente se livra dessa fração para conseguir cuidar das remanescentes. Senão, corre-se o risco de transbordar. Ou pior: de afundar devido ao excesso de si mesmo.

É bobagem escrever com intuito de produzir verdades sólidas, inéditas e que subjuguem, assim como acreditar que irá "fundar uma nova escola". Isso é coisa do passado, quando o tempo do mundo era outro, quando os interlocutores eram uns poucos ousados e/ou privilegiados. No contemporâneo, o dinamismo se estabelece como fundamento, e o potencial de uma obra está em produzir deslocamentos no entorno, como apontou Renata. "Transitório" é a palavra da vez. Entre tantas outras.

Os textos têm um caráter de infinitude, seja porque nos levam a um universo de significados, seja porque jamais encontram uma forma final, porque não sabemos por quanto tempo existirão ou porque não conseguimos enxergar além de seu horizonte, mesmo sabendo que existe algo ali. Às vezes, eu tenho a sensação de que passamos a vida a reescrever o mesmo texto, a pintar as mesmas pinturas, a fotografar os mesmos assuntos, a buscar uma nova perspectiva, a pensar e repensar "igual, só que diferente". Porque as inquietações não se esgotam com facilidade – se é que se esgotam.

Este texto que você lê agora surgiu de um post no Facebook, o qual se resumia mais ou menos ao primeiro parágrafo. A ele, o poeta Davi Araújo respondeu, citando Jorge Luis Borges: "publicamos para não passar a vida a corrigir rascunhos". Portanto, o que temos são pontos de virada, passagens que marcam o final de uma fase e o início da outra. Vivemos, em etapas, uma única longa vida. E só concebemos o infinito porque estamos sujeitos àquilo que termina, porém não nos conformamos. O fim não bastará.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012


Oscar Niemeyer faleceu aos 104 anos de idade, quase 105. Saber de sua morte é muito triste. Não o conheci pessoalmente, o que é uma pena, pois ele parecia ser um grande homem, talvez maior do que a própria obra. Jamais encontrei a “pessoa Niemeyer”, mas tive muito prazer ao descobrir as profundezas ocultas da OCA, a visão privilegiada do MAC de Niterói, as curvas insinuantes do Copan e o maravilhoso auditório do Ibirapuera, que se abre para fora e para dentro com uma tocante consciência social. Portanto, tínhamos alguma intimidade, e eu o admirava. Trata-se da perda lastimável de quem poderia ser herói do Brasil no lugar de muita gente que é sem merecer. De alguém que não apenas contribuiu para nossa formação cultural, mas que a construiu. Que inventou a arquitetura moderna brasileira e a tornou respeitada mundo afora. E, mais importante ainda, ao meu ver, Oscar Niemeyer foi um homem que possibilitou que pessoas comuns como eu, na banalidade do dia a dia, experimentassem uma nova relação com o espaço. O espaço como lugar que habitamos física e intelectualmente, pois sua arquitetura era ao mesmo tempo estrutura de concreto e de pensamento. Gente como eu, que poderia viver uma vida inteira sem perceber seu lugar na realidade compartilhada. Niemeyer abriu nossa percepção às potências do entorno. Por isso, dizem que desenhava o futuro. Mas ele desenhava, apenas, com olhar de menino curioso, sem medo de riscar no papel linhas tortas, livres de régua e de regras.

sábado, 1 de dezembro de 2012

QUESTÕES CRUCIAIS PARA O CAMPO DA PESQUISA NAS CIÊNCIAS HUMANAS*

1) A impossibilidade da transparência do olhar do pesquisador e a afirmação do perspectivismo. Em outras palavras, não existe ciência “pura”, e toda construção objetiva sofre interferência de uma cadeia de subjetividades. Afinal, os dados não significam nada sem alguém que os produza e interprete.

2) A crítica da separação entre o sujeito e o seu objeto. Porque nós e o mundo somos feitos da mesma matéria, e um está contido no outro assim como o outro está contido no um**.

3) A articulação do conhecimento com o desejo (vontade do pesquisador e/ou da coletividade) e a implicação (entender “implicação” como conhecimento intrínseco às coisas, portanto o movimento da pesquisa acontece tanto do observador para o assunto quanto – e talvez mais relevante – do assunto em direção ao observador).

4) A recusa da atitude demonstrativa em nome do construtivismo tido como experimentação de conceitos e novos dispositivos de intervenção. Afinal, como Adorno explicou***, a ciência não dá conta de todos os conhecimentos possíveis no mundo.

* Este post foi inspirado em um texto sobre Cartografia e Pesquisa-intervenção, se eu não me engano. Encontrei essas anotações num caderno antigo, mas não a fonte.
** Maurice Merleau-Ponty, O olho e o espírito, (1964).
*** O ensaio como método, de 1958 (?).

terça-feira, 27 de novembro de 2012

domingo, 25 de novembro de 2012


Palavrinha rápida sobre o show de Marcelo Jeneci no Auditório Ibirapuera, do qual eu acabo de voltar. Porque os caras merecem. Confesso que não me empolguei tanto com o disco, talvez por não ter prestado a devida atenção, talvez por achar que a "onda fofa" da atual MPB quisesse sobressair, a qual eu considero ingênua e, por vezes, entediante. Mesmo assim, achei que valia a pena ver ao vivo. Pois então o show começou e na mesma hora deu para perceber que só tinha talento grande no palco, e que esse talento sobressaía a qualquer modinha paz & amor. Arranjos bem construídos, tocada emocionante nem um pouco cafona, carisma, boa vontade, postura de palco madura, letras interessantes e show de bom gosto. 

Fiquei impressionado com a qualidade técnica da banda e com a aparente - só aparência mesmo - facilidade com que encantavam a plateia. Porque fazer aquilo não é para qualquer um. Teve também uma nota de sorte (ou talvez de boa providência): garoava em São Paulo, e o clima fora do auditório combinava perfeitamente com o de dentro - confirmamos isso quando o portão se abriu para o parque e o Wurlitzer soou bonito, melancólico, harmonioso. Som de alma lavada. Havia um sorriso em cada canto dos meus lábios. Meus e de todos ao meu redor. Foi um ótimo show de um ótimo disco. "Feito pra acabar". 

Uma pena, pois acabou mesmo. E eu queria mais.

O público sobe no palco a convite dos músicos

Merece palmas também o Auditório Ibirapuera, uma das raras casas de show que oferece programação de qualidade a preços justos.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

FAZER(-SE) E DESFAZER(-SE)

O homem empurra um grande bloco de gelo pelas ruas da cidade, fazendo-o deslizar com algum esforço. Deve pesar cinquenta quilos, talvez mais. Empurra com as costas arqueadas e deixa para trás um rastro de água que lembra o muco dos caracóis. Algumas pessoas olham sem interesse, uma criança aponta mas logo se distrai com outra curiosidade qualquer, ninguém vê nada de errado. Afinal, ele está fazendo alguma coisa, e manter uma atividade é socialmente bem aceito, seja ela tão estranha quanto levar um bloco de gelo para passear. Deve ser o seu trabalho, coitado. E, se trabalha, é um homem de bem, melhor deixá-lo em paz.

A lógica engana. "Às vezes, fazer algo não leva a nada". Este é o título que Francis Alÿs, artista belga radicado no México, escolhe para a experiência descrita acima. Trata-se de um ensaio visual sobre os meios de produção dominantes, que se apoiam na ideia de estar sempre fazendo alguma coisa na esperança de ter o esforço recompensado, seja financeira ou reconhecidamente. Homens e mulheres na "idade ativa", não é assim que se diz?

A proposta é clara: o trabalho de empurrar o gelo pelas ruas se desfaz com ele próprio, até que não reste mais nada, nem gelo nem trabalho nem produto, com exceção do vídeo em si. É uma afronta a todo regime de produção que opera nos dias atuais, seja orientado por princípios capitalistas ou socialistas. No primeiro caso, tem-se a necessidade de produzir e consumir em larga escala como maneira de impulsionar a economia; no segundo, a mão de obra e o produto gerado por ela entendidos como ferramentas construtoras do coletivo. São regimes aos quais a própria arte está sujeita – e que às vezes provocam reações críticas como aquela.

Francis Alÿs chama a atenção para certos elementos constitutivos das nossas atividades cotidianas que acabam ignorados, mas que de alguma maneira são importantes no processo e se deixam entrever no produto final. Quer dizer, quando estamos implementando um projeto no escritório, quando queremos reformar a loja, oferecer um serviço diferente, acrescentar um curso de aperfeiçoamento ao currículo ou pesquisar uma nova oportunidade – qualquer atividade se enquadra –, estamos sujeitos a uma série de frustrações, becos sem saída e "desperdícios" de tempo. São aqueles modos de "fazer algo" que aparentemente não levam a nada, mas que estarão contidos no resultado da empreitada, mesmo que não sejam tão fáceis de identificar.

Talvez a arte os evidencie. Eu me lembro de uma conversa que tive com o pintor Felipe Góes a respeito de um dos seus trabalhos. Ele apontou o centro da tela e comentou que, dali para baixo, era tudo uma porção de arrependimentos. Achei curiosa essa sua maneira de encarar a própria produção e assumir que as frustrações fazem parte do processo criativo, que são intrínsecas a ele. Porque ignorá-las – ou mesmo negá-las – pode ser uma maneira de lidar com elas, porém não impedirá que continuem a nos assombrar.

Observei a pintura durante um longo tempo. A metade de baixo era composta de pinceladas desordenadas; tentativas de dar forma a uma vontade que talvez não tenha se manifestado com clareza, ou que não conseguira solucionar o problema em questão. Ficaram fixadas ali como registro do processo.

Talvez aquelas frustrações signifiquem algo positivo para outra pessoa. O que me faz voltar à proposta de Francis Alÿs, para quem fazer algo pode levar a nada. Agora tenho dúvidas. Ainda que seja meio paradoxal, para mim o "nada" não existe, é somente algo que ainda não conseguimos definir ou compreender devidamente, uma espécie de vácuo conceitual ou ausência de significado.

A propósito, acabei me esquecendo de contar o final do filme. Pois bem, o bloco de gelo se reduz até ficar do tamanho de um sabonete, que o artista chuta despreocupadamente. Sua postura de trabalhador dedicado também se transforma, agora ele parece um vagabundo que caminha sem rumo pela cidade. Por fim, o gelo é abandonado, desfaz-se numa pequena poça e logo não é mais nada, desparecendo por completo. Sumiu, embora a gente saiba que permanece ali, evaporado no ar, habitando a memória de quem o viu, descrito na proposta do artista ou sugerido na mancha que restou no pavimento. Mesmo que não haja nada para ver, o gelo e o esforço de quem o deslocou estão presentes de alguma maneira. Sempre resta uma evidência, sempre existe a possibilidade de um significado que contrarie a aridez do "nada".

Nós fazemos coisas o tempo todo. Trata-se do bem e do mal-estar da civilização. "Não fazer" é uma promessa que tanto se deseja quanto se condena. Veja a integridade, esse valor social tão benquisto, que também está associado ao fazer: pois moral íntegra é aquela bem constituída, que não se desfaz. Porque trabalhar tornou-se sinônimo de existir, é o ato que tenta nos definir. Ao ponto de, quando conhecemos alguém, perguntarmos "O que você faz?" ao invés de "Quem é você?"

Não que seja um jeito "errado" de viver (se por acaso existem certos e errados). Tampouco é o único jeito. Enquanto fazer algo pode levar a nada, fazer nada também poder ser um caminho ou uma maneira de ser. Não?

Para mim, parece errado apenas não pensar a respeito. Trabalhar a vida inteira sem saber aonde vai chegar, sem consciência das escolhas. A arte incentiva essa reflexão. Temos o quadro na parede, o gelo que escorre por entre nossos dedos e desaparece no chão. Temos todas as nossas realizações e arrependimentos que ainda buscam sentido. O esforço valeu a pena? Se a resposta é "sim", já me parece um ótimo motivo para se fazer.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

ALGUMAS VEZES, FAZER ALGO NÃO LEVA A NADA


A proposta do artista belga Francis Alÿs (assista ao vídeo acima) é chamar atenção para os regimes e processos de produção (inclusive de arte) que operam nas sociedades, sejam elas orientadas por ideias capitalistas ou socialistas. Em um caso, a necessidade de produzir e consumir em larga escala como maneira de impulsionar a economia; no outro, a mão de obra e o produto gerado por ela entendidos como construção de um coletivo. Mas não é apenas desse tipo de política que o artista trata. Seu "fazer algo" leva também:

- A uma provocação.
- Ao nada (que, diferente do simples "nada", é um lugar ou alguma coisa).
- Ao trabalho não objetivo. Afinal, por que tudo precisa de uma razão?
- A uma crítica dos valores que direcionam nosso dia a dia.
- A um vídeo/registro que é comercializado por uma galeria de arte e também exibido gratuitamente no Youtube.
- A uma reflexão, o que me parece ser o resultado mais importante.
- E assim por diante.

E você, aonde - ou a quê - o vídeo leva?

Saiba mais sobre o artista em seu site oficial.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012


Estar é um ponto de vista. 
Ser idem.

(Encontrei esta anotação em minha agenda, depois vi o desenho de Bruno Saggese no blog Imposturas e achei que ambos combinavam. Enfim, é apenas um pensamento perdido que parece ter encontrado alguma conexão.)

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

UM LIVRO SOBRE A INFINITUDE

"Escrevi um livro" é uma afirmação mentirosa. A gente publica livros, mas eles jamais terminam de ser escritos. As publicações são fases do texto. Digo isso porque, até ontem à noite, eu achei que tinha escrito um livro. Fresquinho, ainda sem previsão de publicação, mas estava "finalizado", por assim dizer. Só que hoje de manhã eu comecei a ler "Como viver junto", do Roland Barthes. Ele fala desse meu livro ali, parece até uma crítica direta. Ou uma devolutiva criativa. Sim, Barthes me deu bons conselhos, acho que rolou uma sintonia. Compartilha comigo das mesmas afetações. Em alguns trechos, claro, não quero parecer pretensioso e me comparar ao grande Barthes.

Enfim, como resultado, vou reabrir meu livro "terminado" e recomeçá-lo (pela quarta vez). E assim ele não termina nunca. Pois "escrever é reescrever", disse certo autor um dia. Não me lembro quem foi nem quando li, mas não consigo esquecer a frase, tão bem escrita, tão pulsante, tão infinita!

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

A PINTURA COMO DISCURSO, PENSAMENTO E PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO

Quando Felipe Góes disse que eu poderia escolher uma ou mais pinturas e levar para casa, eu achei que ele estava ficando maluco. "Pode levar todas se preferir, assim vocês terão um tempo juntos para se conhecerem melhor". Imagine a responsabilidade de andar por aí com obras de arte! E se me roubam o carro? Ou se derrubam água sanitária em cima? Sabe-se lá que tipo de tragédia pode acontecer, é melhor não dar sopa para o azar. Por isso, quando aceitei a proposta e cheguei em casa com uma tela sua debaixo do braço, percebi que aquilo já havia me contagiado também.

Foi mais ou menos assim que iniciamos o trabalho deste ano, que rendeu três exposições individuais em museus e centros de cultura de Porto Alegre, Goiânia e Castro. Eu queria colaborar com Felipe desde que o conheci, portanto fiquei bastante entusiasmado quando surgiu a oportunidade e ele fez o convite.

Estávamos sentados num café no bairro de Pinheiros, São Paulo. Passamos a nos encontrar durante o almoço ou no fim de tarde para ver as pinturas, trocar ideias, estruturar um pensamento que servisse de proposta curatorial para cada exposição e também para entender melhor nossas próprias convicções estéticas, as quais se transformavam no decorrer do processo. Foram diversos encontros, páginas e páginas de anotações, finais de semana inteiros pesquisando, dezenas de e-mails e muita vontade de ambas as partes para colocar os projetos de pé.

O que significa pintar no contemporâneo? Essa era a questão-chave. Cada seleção de trabalhos parecia oferecer uma resposta apropriada, complementares ou divergentes entre si, o que já se mostrava bastante sugestivo. A nossa missão era fazer com que elas ficassem evidentes para os visitantes. Na Usina do Gasômetro, em Porto Alegre, as pinturas chamavam atenção para os estímulos visuais por meio dos quais inventamos o mundo ao nosso redor e que despertam emoções ocultas na memória; o limiar entre o figurativo e o abstrato, a racionalidade do dia e o vago sentimento dos sonhos. No Museu de Arte de Goiânia, tratamos do processo criativo do artista, levando a público experimentos que nunca haviam deixado o ateliê, além de apontar para o espaço expositivo e para a ocupação que tanto a arte quanto as pessoas fazem dele. Por último, na Galeria Ondas do Yapó, em Castro, Paraná, tratamos da experiência sensível dos visitantes, da construção de discurso e pensamento, da transição entre as maneiras de compreender o mundo, que muitas vezes se assemelha ao transitar entre as camadas de tinta de um quadro. Queríamos ver além da superfície, avançando no subjetivo.

Essas três possibilidades, entre tantas outras que gostaríamos de explorar, deixam claro que não há uma resposta exata para a questão que as provocou. Pintar, no contemporâneo, significa muitas coisas. Se podemos afirmar algo, talvez seja apenas que não se trata de um formalismo alienado e tampouco de uma afirmação de verdade com pretensão de ser única. Pintar é um método de produzir conhecimento, de lidar com o múltiplo, criar diferentes conexões e apreensões de tempo, espaço e sociedade.

Quando se aplica o primeiro borrão de tinta sobre a tela, ativa-se uma porção de problemáticas, que não é função do artista resolver. Não se espera da arte uma solução, mas sim o questionamento em si. O artista percebe e reúne problemas, apropria-se deles e os transforma, transgride, refaz, de modo que sejam apreendidos sob outro ponto de vista. Às vezes, a construção se dá pela própria desconstrução. O objetivo, entretanto, permanece inalterado: provocar reações e, se possível, reflexões.

Como escreveu o pintor, professor e pesquisador Marco Giannotti no livro Breve História da Pintura Contemporânea, "a pintura cria um campo de experiência, um espaço existencial; não cabe mais ao artista descrever um mundo dado, mas transformá-lo a cada instante".

Eu e Felipe desejamos que o trabalho deste ano tenha contribuído, de alguma maneira, para dar novo fôlego aos problemas do homem com os quais a pintura tenta lidar. Porque uma pincelada, por menor que seja, carrega consigo o potencial para resignificar a composição inteira.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

“Aprendi que, quando falam de mim, fãs e desafetos estão falando de si mesmos, do modo como encaram as relações, os problemas, os sonhos. Sirvo apenas de pretexto.”

Marisa Monte em entrevista à revista Bravo! nº 181 (setembro de 2012).

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

CENSURAR A PRÓPRIA BOCA JÁ É UM BOM COMEÇO

Clique na imagem para ampliá-la. Fonte: Metro São Paulo nº 1396 (27/9/2012).

Algumas curiosidades sobre a classificação indicativa de filmes no Brasil:

• Se há usuário de drogas, você só pode assistir se tiver mais de 10 anos. Se o usuário de drogas se dá bem, você precisa ter 14 anos.

• Se tem estupro no filme, você precisa ter 16 anos para assistir. Mas se o estupro é consequência de uma paixão, só entra no cinema com 18 anos ou mais.

• Com 12 anos, você pode ver alguém pelado, mas só de perfil. Se o pelado ficar de frente para a câmera, você precisa ser 2 anos mais velho.

Apesar de todas essas peculiaridades, é prudente avisar – em especial o senhor deputado Protógenes Queiroz – que a censura às artes quem faz é o próprio público, que assiste àquilo que quiser. Se você não quiser ver determinado filme, simplesmente não vá ao cinema e deixe o assento livre para quem se interessar. Se você não quer que seu filho de 11 anos veja prostituição e uso de drogas, não o leve para ver um filme "não recomendado para menores de 16 anos", como foi o caso. E também não o deixe assistir TV, sair de casa com os amigos, ler jornais e acessar a internet. Ao invés disso, compre uma casa com masmorra.

Ou, se você tiver um mínimo de consideração pelas outras pessoas, faça valer seu cargo público e tente construir um Brasil mais decente ao invés de ficar falando bobagens no Congresso e na imprensa.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

VOLÚVEL

Pintura 63 (2009)
Eu tento ler as histórias contidas naquelas finas camadas de tinta, que se escondem umas sob as outras, tímidas. A narrativa potencial que hiberna enquanto aguarda a presença do observador para, só então, se revelar. Uma nova relação a cada olhar, um novo espetáculo de sensações. As pinturas de Felipe Góes se fazem e desfazem diante de nós, paisagens emocionais vêm à tona e depois mergulham de volta no desconhecido. As manchas se desmancham. Solidez tornada translucidez. Os devaneios são livres para caminhar por grandes campos de cor, desbravando matas virgens, territórios em formação constante. Vemos a força da cor se sobressair à fragilidade do assunto. A cor como grande potência criadora, disposta na tela em pinceladas sugestivas.

Até os títulos são abstratos, porque determinar uma palavra oprimiria outras conexões, narrativas que jamais germinariam. É algo que o artista não quer. "A paisagem, em sua infinidade de possibilidades, aceita proposições pictóricas das mais implausíveis e abstratas", diz ele. Suas pinturas são assim, abertas à reflexão, prontas para realizar desejos, prontas para ouvir. Basta se colocar diante delas e deixar o pensamento flanar; mergulhar, deixar-se contagiar, permitir que a experiência se realize num afluxo de sensações. Ida e volta.

Pintura 70 (2010)
São imagens lentas, que não se sujeitam à imposição do relógio ou à impaciência do público. Elas têm o seu próprio tempo e, para que possamos nos relacionar, precisamos sintonizá-lo, estar em sincronia. O tempo da pintura de Felipe Góes é aquele da percepção e da apreensão: singular, individual, livre. Inicia-se quando o raciocínio lógico cede espaço à imaginação. As cores são plácidas, quase meditativas, exatamente o oposto da saturação publicitária, cujas imagens se pautam na sedução imediata e na decodificação fácil. O conceito está impregnado naquelas pinturas, porém não se revela a troco de nada. Exige concentração. O pensamento demora a se formar e jamais se completa, está sempre se fazendo e refazendo. Para ser aberta, a obra precisa se manter viva, pulsante. Não pode se deixar reduzir.

Pintura 86 (2010)
Eu tento ler suas histórias, mas elas são volúveis; logo se misturam sem conclusão, não resultam numa moral. Recriam-se. Assim como seus campos de cor se apresentam sem limites discerníveis, suas verdades têm algo de imprevisível. Pois, quando uma ideia se solidifica, quando não pode mais ser permeada por conexões, ser contestada ou se transformar, ela já não serve mais, virou matéria inanimada. Morreu. O pensamento é um organismo em mutação. Tem vida própria, não se sujeita apenas às nossas vontades. Está contido no mundo. Pintar é também uma maneira de pensar. Sempre há espaço para uma nova pincelada, um retoque aqui, outro ali. Se existe uma certeza, uma só, é a de que toda certeza é efêmera. Quando voltamos a ela, já virou outra coisa, já ganhou uma nova cor.



Leia também Translucidez, texto que consta no folder e que dá nome à exposição de Felipe Góes na Galeria Ondas do Yapó (Castro/PR).

TRANSLUCIDEZ

Convite da exposição. Clique para ampliar.
Nas pinturas de Felipe Góes, a palavra translucidez apresenta dois significados. O primeiro é imediato: refere-se às finas camadas de tinta acrílica que, de tão diluída, ganha semelhanças visuais com aquarela. A técnica permite ver além da superfície do quadro. No entanto, não se trata de um retorno àquele campo de representação tradicional que os concretistas brasileiros tentaram superar. Esse "ver além" se direciona à subjetividade, à experiência sensível do observador, que percebe nas obras um mundo particular, contido dentro de si mesmo, do seu "eu" interior. Trata-se de uma realidade paralela, posta em relação com aquela da superfície pictórica. Ela vem à tona porque as pinturas de Felipe propõem sugestões ao invés de afirmações; outro registro de verdade, sem pretensão de ser absoluta. Muitas verdades permeiam a obra, mancham e se desmancham num rápido passar de olhos, vêm "desafiar sua existência em meio a grandes campos de cor", como disse o artista certa vez.

Isso nos leva ao segundo significado possível da palavra translucidez, que se refere à transição ou à transposição de uma lucidez para outra. Aquele sentido ambíguo que não se encontra estagnado numa porção de tinta, mas que é efêmero, que dura o tempo da percepção e nem um segundo a mais. A lucidez que não se encerra em contornos ou fronteiras, pois os territórios são tão profusos que é quase impossível determinar onde termina uma cor e começa outra. As pinturas habitam uma zona de indiscernibilidade muito própria da experiência criativa, onde estão potencializadas infinitas narrativas, aguardando que alguém se ponha diante das telas e permita ao oculto vir à superfície. É possível fazer uma série de conexões a partir daquilo que o artista deixa sugerido; uma crítica à nossa rigidez de pensamento. Metáfora apropriada para mostrar que nossas crenças são baseadas em registros imprecisos e interpretações subjetivas. Toda solidez é permeável. Basta querer ver.

Leia também o texto Volúvel, escrito especialmente para a internet por ocasião da mostra Translucidez.

sábado, 15 de setembro de 2012

SEMPRE EM FRENTE

Pode parecer meio tolo se eu simplesmente contar, tentando descrever a obra. Vão devolver aquela típica questão de quem acabou de chegar: isso é arte? Como se a arte precisasse de justificativa para existir. A descrição pode parecer meio tola porque não basta ler, é preciso experimentar. Caminhando (1964), de Lygia Clark, é uma obra de arte que se realiza no ato. Você pega uma tira de papel e junta as pontas para formar um círculo. Antes, porém, gira uma delas e a cola do lado contrário, de modo que esse círculo se transforme numa fita de Moebius, da qual não se pode dizer onde é o dentro e onde é o fora. Vamos, você já deve ter feito isso na escola, acho que sabe do que estou falando.

Caminhando (1964), de Lygia Clark

Pois bem, agora você pega uma tesoura, faz um furo no papel e começa a cortar no sentido do comprimento, circulando por toda a extensão da tira, fazendo uma volta completa. Só não pode dividi-la em duas, ok? Portanto, quando estiver próximo do início, você deverá decidir se continua pela direita ou pela esquerda do corte que acabou de fazer. “Esta noção de escolha é decisiva, o único sentido dessa experiência reside no ato de fazê-la. A obra é o seu ato”, explica o filósofo Ricardo Fabbrini no ótimo livro chamado O espaço de Lygia Clark.

Aos poucos, vamos entendendo a proposta, os sentidos emergem. Percebemos o significado na própria ação de percorrer a tira de papel com a tesoura, esse gesto efêmero com o qual você constrói seu próprio caminho. Diga-me se não é uma metáfora útil para a vida! Sim, vamos caminhando sempre em frente, tudo o que experimentamos é único e não se repete, não se pode voltar atrás. As marcas das nossas atitudes, as consequências das nossas escolhas ficam registradas ali para sempre, transformam o papel de um jeito que ele jamais será o mesmo novamente. Caminhamos sempre em frente, é a única possibilidade. Mesmo que se queira reverter uma escolha mal feita, talvez colando as tiras de papel com fita adesiva, restará uma marca aparente, a cicatriz do gesto, algo que jamais nos deixará esquecer o que passou.

Caminhando (detalhe)
A importância das escolhas que fazemos ao longo da vida fica evidente em Caminhando. Ao cortar uma tira de papel com a tesoura, o pensamento flui, passamos então a compreender melhor nossos passos. Tomar conhecimento dos próprios atos é uma maneira de escapar da banalidade do dia a dia, de não sucumbir à rotina. Trata-se de um ato criador em que o participante se encontra tão envolvido consigo mesmo que sequer nota a presença da artista e do objeto de arte. Sujeito e obra estão integrados, são uma coisa só. A participação não se resume a uma atitude comportamental, ela é condição da experiência. Nesse sentido, Caminhando é também uma tentativa de negação do objeto artístico. Uma tentativa de transformar o produto num gesto para livrá-lo dos fetiches e das vaidades do mercado. Uma proposição estética e política. Sim, isso é arte, sem dúvida. Mas a arte não é só isso.

Lygia Clark criou Caminhando há quase meio século, e ainda hoje as pessoas em geral têm dificuldade de lidar com esse tipo de produção que não se pendura na parede ou apoia em pedestais. Como sugeriu o crítico Ronaldo Brito nos seminários que inauguraram a retrospectiva da artista no Itaú Cultural, em São Paulo, ela projetou uma sombra para frente – quer dizer, tentou vencer os limites da arte com obras que superam a própria ideia de obra.

Lygia nos incentiva a seguir em frente, abrindo novos caminhos, buscando descobrir possibilidades. Não é fácil. Afinal, estabelecer-se num ponto qualquer e permanecer ali é cômodo; ficar estagnado naquele ponto final que não leva mais a lugar algum é uma grande bobagem que a gente tende a cometer o tempo todo. A vida é um processo, a criação é um ato, tudo o que produzimos nasce de um gesto. Quando a materialidade se esgota – e um dia ela há de se esgotar, você verá –, apenas o gesto sobrevive. São as nossas ações que permanecerão no mundo quando nós não estivermos mais. Tudo o que fazemos, é isso que ficará, é a marca que deixaremos.

Enfim, não basta ler a respeito de Caminhando, é preciso experimentar. Com essa proposta tão simples de ser realizada, Lygia Clark permite que tomemos conhecimento de nossas ações. Mais do que isso, ela nos dá um belo empurrão para enfrentarmos com sabedoria o caminho tortuoso que precisamos percorrer.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

PARA CONTAR ARTISTICAMENTE ATÉ TRÊS:

1. Caminhar,
2. Relacionar,
3. Produzir.

Fórmula proposta pelo artista mexicano Moris em entrevista concedida ao núcleo educativo da 30ª Bienal de Artes de São Paulo (talvez não exatamente desta forma). Veja só:


Para saber mais sobre ele, acesse Moris na 30ª Bienal

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

O ESTILO ANTI-ÉDIPO DE SER

O filósofo Michel Foucault escreveu um prefácio bastante breve para o livro O Anti-Édipo, de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Tão breve quanto preciso. Digo preciso no sentido de exatidão, uma vez que o texto pontua qualidades reconhecidas do livro. Digo preciso também no sentido de necessário, pois Foucault não apenas introduz o assunto como faz com que o leitor sinta fome de conhecimento e devore todas as páginas subsequentes.

É uma pena que seu prefácio conste apenas em poucas edições. Abaixo, destaquei os tópicos do final, que considero o trecho mais intenso. Fica claro que, como diz o próprio filósofo, o anti-édipo tornou-se um estilo de vida, um modo de pensar e de viver. Estou torcendo para que as pessoas adotem ao menos alguns dos seus princípios.

• Libere a ação política de toda forma de paranóia unitária e totalizante; 

• Faça crescer a ação, o pensamento e os desejos por proliferação, justaposição e disjunção, mais do que por subdivisão e hierarquização piramidal; 

• Libere-se das velhas categorias do Negativo (a lei, o limite, a castração, a falta, a lacuna), que o pensamento ocidental, por um longo tempo, sacralizou como forma do poder e modo de acesso à realidade. Prefira o que é positivo e múltiplo; a diferença à uniformidade; o fluxo às unidades; os agenciamentos móveis aos sistemas. Considere que o que é produtivo não é sedentário, mas nômade; 

• Não imagine que seja preciso ser triste para ser militante, mesmo que a coisa que se combata seja abominável. É a ligação do desejo com a realidade (e não sua fuga, nas formas da representação) que possui uma força revolucionária; 

• Não utilize o pensamento para dar a uma prática política um valor de verdade; nem a ação política, para desacreditar um pensamento, como se ele fosse apenas pura especulação. Utilize a prática política como um intensificador do pensamento, e a análise como um multiplicador das formas e dos domínios de intervenção da ação política; 

• Não exija da ação política que ela restabeleça os "direitos" do indivíduo, tal como a filosofia os definiu. O indivíduo é o produto do poder. O que é preciso é "desindividualizar" pela multiplicação, o deslocamento e os diversos agenciamentos. O grupo não deve ser o laço orgânico que une os indivíduos hierarquizados, mas um constante gerador de "desindividualização"; 

• Não se apaixone pelo poder. 

FOUCAULT, Michel. Preface. In: Gilles Deleuze e Félix Guattari. Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia. New York: Viking Press, 1977, pp. XI-XIV. Traduzido por Wanderson Flor do Nascimento.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

A DANÇA DE CRUZ-DIEZ



Já tinha passado por um terço da exposição de Carlos Cruz-Diez quando percebi como aquilo era engraçado. Acontecia uma espécie de dança dos visitantes, tentando não esbarrarem uns nos outros, caminhando para cá e para lá sem tirar os olhos das obras. Não acontecia por acaso, o artista transmite essa inquietação contagiante. Para ele, o simples olhar já é uma experiência interativa. A cor, mais do que um pigmento sobre a tela, é entendida como um elemento de natureza instável que provoca impactos emocionais. "Eu queria comunicar", diz Cruz-Diez em um dos trechos da entrevista adesivada nas paredes da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Essa comunicação se realiza com uma linguagem própria, uma mistura de luz, cor e movimento. É difícil mesmo desviar os olhos, a gente não quer perder nada, nem um compasso.

Cor aditiva 105, 1956 (clique na imagem para ampliá-la). 
Abaixo, detalhe da mesma obra.

Boa parte dessas obras pertence ao grupo intitulado Fisiocromia, algo como "o corpo da cor", que o artista desenvolve desde 1959. Os visitantes caminham de um lado para o outro porque, de acordo com o ponto de vista, a obra revela novas estruturas. Lembra um pouco a brincadeira de "ola" que se faz em estádios. Ou aquelas figurinhas holográficas que contêm diversas imagens num única face. Enfim, é tão difícil de explicar quanto de fotografar, e essa era a segunda coisa engraçada que acontecia na Pinacoteca: as pessoas queriam levar, como recordação, uma fotografia daquela experiência maravilhosa. Só que é impossível fixar numa imagem o fenômeno ótico e a sensação física subsequente. Os fotógrafos saíam frustrados.

Confesso que eu também queria uma foto bonita para colocar no blog, mas não me arriscava. Estava na cara que era impossível. Até eu me dar contar de que, se a questão era o movimento, a solução seria filmar. Fiz isso com o telefone, o que explica a precariedade dos vídeos disponíveis aqui. Seja como for, acho que passam uma ideia do que está exposto no museu.


Tem muitas obras lá, desde pinturas a óleo do início da carreira de Cruz-Diez até instalações com projeção de cores. No geral, todas compartilham da mesma curiosidade: colocar a superfície ou os expectadores em movimento, provocá-los com sensações cromáticas que se multiplicam em diversas outras, modulações óticas com um pé no ilusionismo e outro na ciência. Transitam por persistência retiniana, somatória visual, gestalt, relevo, sombras e arquitetura. Seu trabalho é intenso e consistente. Faz mais de meio século que estuda possibilidades emotivas do uso da cor, seja no quadro, no espaço, na cidade (com intervenções urbanas) ou em veículos. Existe até navio e avião "à lá Cruz-Diez". Em resumo, é uma experiência estética bastante divertida. Vale a pena entrar na dança.


Leia mais no site da Pinacoteca do Estado de São Paulo: Carlos Cruz-Diez

domingo, 26 de agosto de 2012

IMAGEM LENTA, MUNDO VELOZ



Na primeira conversa que tivemos sobre a exposição individual no Museu de Arte de Goiânia, Felipe Góes estava indeciso. Porque sua intenção era levar para lá as pequenas pinturas que produz desde o início da carreira, nas quais o caráter experimental da pesquisa fica mais evidente. "Só que a administração local me concedeu um espaço enorme", disse ele. "Acho que vai ficar vazio demais só com essas telinhas".

A ideia do vazio me pareceu interessante. Na mesma hora, tive certeza de que aquele deveria ser o conceito da mostra: propor uma relação com o espaço expositivo e com o tempo de apreensão das obras. As pequenas telas de Felipe, naquele generoso salão, poderiam surpreender, criar conflitos e retirar o visitante da zona de conforto que se construiu ao longo de séculos de exibição de pinturas em museus. Melhor ainda se estivessem deslocadas da habitual linha do horizonte que costuma orientar a colocação das peças na parede. Assim, poderíamos sugerir uma reflexão sobre o corpo presente – uma vez que o visitante movimentaria mais do que apenas os olhos para observá-las, abaixando-se, aproximando-se, reclinando-se, torcendo o pescoço etc.

A mostra também chamaria atenção para outro aspecto relevante: o tempo da arte. Digo isso não somente em relação à tradição da pintura, mas ao contexto contemporâneo, em que o volume de informação aumentou tão bruscamente quanto se reduziu nossa dedicação para absorvê-la – como se o pensamento humano se desenvolvesse na mesma velocidade dos processadores artificiais.

Sabe-se que, na ansiedade de ver o máximo no menor tempo possível, se gasta, em média, quinze segundos em cada obra de arte de uma exposição. Esse tempo ainda diminui consideravelmente em museus visitados por massas de turistas, tais como o MoMA (Nova York) e o Louvre (Paris). Gasta-se tempo, investe-se tempo, perde-se tempo, ganha-se tempo. O tempo virou moeda de troca na veloz sociedade capitalista, em especial a metropolitana.

Só que há coisas que esse tempo não compra. Sim, numa mostra de arte, muito passa despercebido. Cá entre nós, quinze segundos não bastam nem mesmo para obra e visitante se apresentarem, quanto mais para se conhecerem profundamente e trocarem experiências.

Quando adentramos o Museu de Arte de Goiânia e nos deparamos com telas pequenas dispostas em paredes extensas, percebemos de imediato que elas exigirão outro tempo de experimentação, descoberta, reflexão e criação. Elas querem que as pessoas se aproximem, perguntem, espiem, inventem e ouçam tudo aquilo que sussurram ao pé do ouvido, que se despe aos pouquinhos, numa relação de perfeita intimidade. 

São imagens lentas, que não carregam significado instantâneo. Contrariando o mundo apressado em que estão, pedem silêncio, calma e disposição para se revelarem. Pedem a dedicação de quem cativa. Será assim ou não será nada.

*O vídeo acima é uma maquete digital que simula a disposição das pinturas nas paredes do Museu de Arte de Goiânia. Leia mais sobre a exposição aqui: Álbum e Grandiosidade não se mede com régua

GRANDIOSIDADE NÃO SE MEDE COM RÉGUA

O que mais me surpreendeu quando vi as pinturas de Felipe Góes ao vivo e a cores foram as dimensões reduzidas. Não que todas sejam pequenas, pelo contrário, algumas são razoavelmente grandes. Mas foram as menores que me chamaram atenção. Porque muitas delas eu conhecia por meio de fotografias divulgadas na internet, e as imaginava como gigantescas manchas de cor. Na galeria, entretanto, elas eram pouco maiores do que um cartão postal.

A visita ao espaço expositivo tem esse poder de transformar nossa relação com as obras. Tive que rearranjar uma série de pensamento já constituídos, então tirados do lugar por aquela descoberta.

Foi ótimo perceber o mundo em mutação, excedendo os paradigmáticos movimentos de rotação e translação, num tipo de abertura perceptiva muito própria da arte.

Nossa ideia, para a individual no Museu de Arte de Goiânia, era induzir um choque similar. Queríamos que o visitante pusesse os pés no enorme salão concedido à mostra e se surpreendesse com aquelas pinturas reduzidas, dedicando-se ao pequeno num mundo que privilegia os grandes, como alertou o filósofo Walter Benjamin na primeira metade do século passado.

Já nesse primeiro encontro, a proposição estaria colocada. Tudo o que viria a seguir dependeria unicamente do diálogo entre o visitante e as pinturas. Nós desejávamos que logo encontrassem diversas coisas em comum.

Aqui estão algumas das pinturas exibidas no Museu de Arte de Goiânia. Clique nas fotos para ampliá-las:

 







Leia mais sobre a exposição de Felipe Góes no Museu de Arte de Goiânia aqui: Álbum e Imagem lenta, mundo veloz

ÁLBUM

As telas de pequena dimensão acompanham o trabalho de Felipe Góes desde sempre. São quase um projeto paralelo. Entretanto, talvez devido à expectativa do público e das galerias, elas raramente ganham espaço de exibição.

Reunimos aqui cerca de 10 dessas pinturas que, como explica o artista, não são esboços – quer dizer, o objetivo delas não é planejar para depois ampliar. São experimentos. Justamente por não enfrentarem a pretensão das pinturas monumentais, elas permitem que Felipe voe mais alto, arriscando-se sem medo de errar. Nelas, seus pensamentos ficam registrados durante a formação, enquanto ele ainda não sabe aonde pode chegar.

Por conta disso, as telas pequenas revelam um artista mais fresco, livre, instintivo; ocupam um papel importante em seu processo criativo, embora não ostentem qualquer título de nobreza. São segredos de bastidores.

São cartões postais: registros de experiências visuais, plásticas e estéticas, recortadas de um contexto complexo para destacarem um ponto de atenção.

Também são obras em si mesmas, ou seja, adquiriram autonomia na produção de Felipe e caminham com seus próprios pés. Por conta disso, possibilitam outras reflexões, em especial no que diz respeito ao espaço expositivo e ao tempo de olhar do visitante.

Nesse sentido, o Museu de Arte de Goiânia não poderia ser mais apropriado: seu amplo salão desmistifica o paradigma da proporção. Acrescentamos aí a questão do alinhamento feito com prumo e esquadro; pois, deslocando as telas do nível do horizonte – eixo de equilíbrio herdado de séculos de tradição museológica –, fazemos o visitante mover o corpo, e não apenas os olhos, para observá-las, ampliando a sensorialidade proporcionada pela tinta sobre tela.

As paisagens retratadas nesses cartões postais saltam da tela e acabam se revelando no ambiente, nas pessoas ao redor, na cidade e também dentro de nós mesmos. São excertos que carregamos conosco quando voltamos de uma viagem pictórica, que compõem nosso álbum de imagens, nosso diário de bordo. Experiência marcante.

Leia mais sobre a exposição de Felipe Góes no Museu de Arte de Goiânia aqui: Grandiosidade não se mede com réguaImagem lenta, mundo veloz

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

"Em algum momento da atual Bienal do Livro de São Paulo se falará da iminente morte do livro e as opiniões se dividirão. Alguns dirão que o livro nunca acabará, e aí estão as bienais, as feiras e as flips para provar isto, e outros dirão que o livro caminha para a obsolescência e logo estaremos lendo tudo em tabletes, ipodes, ipedes e E-tceteras. Não se chegará a nenhuma conclusão e a conversa será transferida para a próxima bienal."

 Luis Fernado Veríssimo no Correio Popular de hoje.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

LENHA NA FOGUEIRA

Estou inconformado com o incêndio que destruiu uma porção de obras de arte no Rio de Janeiro. Mais um! Devia ter algum tipo de lei para proteger o patrimônio público. Colecionadores podem comprar as obras, tudo bem, mas elas devem ficar sob cuidados de uma instituição competente. Nada de pendurar na parede da cozinha. Nada de tê-las somente para si. Patrimônio cultural brasileiro deveria ficar só no museu, ao alcance do povo.

E agora? Vamos ressuscitar Lygia Clark e pedir para ela fazer de novo? Pedir desculpas para Di Cavalcanti e dizer que, agora sim, vamos tomar conta do seu legado? 

Leia sobre o incêndio aqui: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/1136816-incendio-no-rio-destroi-apartamento-com-colecao-de-arte-valiosa.shtml

Outros incêndios que destruíram parte de nosso patrimônio artístico-cultural, só para lembrar que o desta semana não foi exceção:


segunda-feira, 13 de agosto de 2012

DRAMA SOBRE O PALCO

Eu jamais imaginaria que, na falta de médicos em hospitais, policiamento nas ruas e vagas em creches, os moradores de um bairro da capital paulista se manifestariam pela reconstrução de um palco. A prefeitura tampouco. Não que eu menospreze os palcos, claro. Apenas achei surpreendente a consciência da população diante do impasse – e também a exigência subsequente, entre outras urgências que o senso comum entende como prioritárias.

Deixe-me explicar melhor: ao longo dos últimos quatro meses, repórteres da rádio CBN visitaram os noventa e seis distritos que compõem a cidade de São Paulo, um a cada dia, ouvindo a opinião dos moradores acerca dos principais problemas locais. Os diagnósticos eram sempre os mesmos: saúde, educação e segurança; ameaças congênitas generalizadas no sistema sócio-político brasileiro. “Pouca saúde e muita saúva”, como dizia Policarpo Quaresma, personagem clássico criado por Lima Barreto em 1911. Males que nos levariam a um triste fim. Acontece que, em um dos distritos, pedia-se a reconstrução de um palco, demolido pela prefeitura pouco tempo antes.


Veja bem, não estou falando de um auditório com preparação acústica e capacidade para acomodar milhares de espectadores em confortáveis poltronas, mas de uma mera laje de concreto disposta na praça. Pena que não me lembro o local em questão. Não era nenhum dos nobres, cujas carências são menores e onde os moradores poderiam se “dar ao luxo” de exigir cultura. Era um dos humildes mesmo, da periferia, se não me engano.

O poder público agiu com displicência, para variar. Quando mendigos e usuários de drogas começaram a ocupar o tal palco, o povo pediu uma solução. A prefeitura respondeu com um trator e botou o problema abaixo. O problema dela, obviamente. Porque os cidadãos “indesejados” continuaram nos arredores, sem casa e viciados. Por sua vez, os moradores perderam um dos poucos recursos de lazer que possuíam.

Foi a reivindicação que me surpreendeu. A manifestação em prol da cultura, sinal de que sua importância é reconhecida. Exigiam a reconstrução do palco, mesmo diante de outras questões aparentemente mais graves.

Talvez você esteja se perguntando qual é a importância de uma estrutura rudimentar como aquela numa praça de periferia. Foi o que me instigou também. Que tanto faziam no palco?

A obra tinha um poder transformador. Era espaço de manifestação e expressão popular que, de uma hora para outra, foi vetada a cidadãos já bastante carentes. Músicos de bairro se apresentavam ali, voluntários ofereciam aulas de dança ou capoeira, escolas promoviam teatrinhos, havia festas organizadas espontaneamente. Tudo isso ruiu com a atitude irresponsável da prefeitura, que não estudou a situação com o devido cuidado.

Sabe-se que pólos de cultura possibilitam o desenvolvimento social onde estão instalados. Grandes complexos como as unidades do CEU e do SESC, por exemplo, oferecem alternativas à televisão e à vagabundagem. Crianças que passam meio período na escola encontram à disposição atividades esportivas, oficinas culturais, bibliotecas e entretenimento sadio. Adultos também têm opção de lazer para o fim de semana. Isso é ainda mais intenso entre aqueles que não têm condição financeira para viajar, fazer compras no shopping ou jantar em restaurantes sofisticados, ou seja, boa parte dos brasileiros. 

Por isso aquele palco era tão caro. Podia não ser um enorme complexo cultural, mas já era alguma coisa. Fiquei satisfeito ao descobrir que a população local está consciente disso e que se manifestou pela sua reconstrução. Quero só ver se a prefeitura receberá o pedido com o mesmo carinho. E se o realizará.

No palco, apresenta-se uma esperança de futuro. Aos poucos, fui me dando conta disso. Pode-se aprender uma profissão, ver uma porta se abrir, realizar encontros com o inusitado. Ele oferece possibilidades. Uma construção tão simples proporciona, em si mesma, alternativa potencial à dramática vida cotidiana. Pouca cultura também é um dos males do Brasil, foi o que faltou Policarpo dizer. Pouca cultura e muita saúva, há pelo menos 100 anos.
Sabe, vi muita gente criticando os oito minutos brasileiros no encerramento das Olimpíadas de Londres. Não sei, não assisti à cerimônia. Disseram que foi clichê, que o Rio de Janeiro não é apenas praia, Pelé, carnaval, samba, mulatas e índios, entre outras coisas. Ao mesmo tempo, não vi ninguém dizer o que o Rio de Janeiro e o Brasil são, afinal. Se não mostrarmos esses clichês – que fundamentam nossa cultura, querendo ou não – talvez pudéssemos apresentar outros. Como o mensalão, por exemplo. Que tal?