Coisíssima nenhuma! Não venha justificar assim o comportamento apático de quem se contenta com tocar a vida, reclamar com a própria sombra e empurrar a sujeira para debaixo do tapete. Não venha justificar com essa palavra o que é contrário a ela. Porque é fácil sustentar o errado, basta fechar os olhos, abaixar a cabeça e deixar tudo como está, fingindo que não dá para mudar, que ninguém é forte o bastante. Entretanto, produzir cultura é dificílimo.
Registro de perfomance realizada por Paulo Bruscky em Recife, 1978 |
É um movimento intencionado, embate constante contra resistências e obstáculos, invenção de novos modos de existência e novas formas de interação, explica o médico pesquisador Benilton Bezerra Jr. Cultura é o único meio para a autorrealização. Para o psicanalista inglês Donald Winnicott, a cultura é uma formação posterior a do organismo que a produz. Trata-se da estruturação da vida psíquica, um movimento do ser em direção à vida, uma abertura em direção ao mundo.
Não sou revolucionário ou agitador de massas; nem autoajuda nem panfletário. Minha questão é o conhecimento da causa. Portanto, vamos colocar as críticas em seu devido lugar. O que me incomoda, de verdade, é ouvir que os problemas que nos assolam são culturais. O termo gera um entendimento errado, percebe? Porque cultura significa justamente o oposto. Cultura é aquilo que se cultiva, que se produz com talento, esforço, boas ideias e boa vontade. A cultura não brota em qualquer canto nem brota de um dia para o outro. Ela exige condições apropriadas do solo, da semente e do agricultor. Refiro-me à MPB, à literatura, à dramaturgia, ao futebol, ao Carnaval, às artes plásticas, ao design, à arquitetura, às pesquisas científicas, à política séria, à educação, à moda e à gastronomia, entre tantos outros espetáculos maravilhosos que o brasileiro é capaz de desenvolver.
Não se trata de hábito, porque a gente não se habitua a ela, não se pode banalizar. A cultura provoca. Ela vai nos provocar e emocionar e fazer reagir criativamente. Pode ser tradição ou não, afinal, novidade também é cultural. Por maior tradição que seja, a cultura veste uma roupa nova a cada evento e sempre nos surpreende com outra forma de beleza.
Temos o péssimo costume de dizer que “é cultural” para justificar as pobrezas ao invés de exaltar as nossas riquezas. Como se cultura fosse uma estrutura rígida à qual estamos sujeitos. Como se fôssemos determinados por ela e não o contrário. Ora, somos nós que fazemos a nossa cultura, seja no Brasil ou no mundo. Ela é movente, mutante, constrói-se e se modifica a todo instante por meio de nossas atitudes. Nada é pré-determinado, exceto o fato de que é com cultura que melhoramos a vida, a situação posta e o convívio. Mudamos a burca, o estupro coletivo, a recusa de transfusão de sangue, o uso de preservativos, a lei seca, a doação de órgãos, o preconceito, a célula-tronco, o casamento gay, a escravidão, o desrespeito, a falta de bom senso, a imoralidade, as medidas autoritárias, a injustiça, o paternalismo, a guerra e todos os outros abusos de poder. É por meio da cultura que desenvolvemos conhecimento e olhar crítico, que compreendemos melhor o mundo, que adquirimos bagagem para comprar brigas e debater as soluções possíveis.
Limpos e desinfetados (1987), de Paulo Bruscky |
Talvez eu esteja me referindo não à cultura geral do mundo, mas a um ponto específico dela. Pois bem, é a minha maneira de encará-la. Seja como for, a cultura não é aquilo que se encontra estabelecido e, portanto, nos subjuga. Cultura é tudo o que podemos criar, transformar, melhorar. É uma história das formações sociais que ganha novas possibilidades a cada capítulo acrescentado.
“A cultura está situada no coração do ser”, escreveu a psicanalista Jan Abram. Sim, ela é parte de nós. Cuidado ao maldizê-la. É tentador colocar a culpa em quem, aparentemente, não pode se defender – só que ela se volta contra. Porque o mal, o desrespeito, a abstenção, a apatia e os excessos que se justifica com a desculpa fácil do “é cultural” revela, na realidade, uma grave falta de cultura.