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terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

COMO É QUE CHAMA O NOME DISSO?

Foi uma coincidência muito bacana. Estávamos conversando sobre literatura e uma amiga disse que tinha vontade de ler o romance Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios, do brasileiro Marçal Aquino, simplesmente porque gostava do título. Eu também. Desde que me deparei com ele na prateleira da livraria, fiquei tentado a levá-lo para casa. É um título com tamanho poder de persuasão que me seduziu de imediato.

Como é que chama o nome disso?, quis saber o filhinho de Arnaldo Antunes. Uma questão tão pertinente que acabou virando título de um dos livros do pai. Tudo tem um nome. Acho incrível essa necessidade de batizar para identificar. Não que seja um problema, claro que não. É apenas curioso.

Algumas vezes, os nomes são pivôs de polêmicas. O artista francês Marcel Duchamp foi mestre em criar títulos assim, que chegaram a gerar mais discussão do que as próprias obras. Por exemplo: nos primórdios do modernismo, ele pintou uma figura robótica multifacetada e a chamou de Nu descendo uma escada. Os organizadores do Salão onde ela seria exibida, em Paris, ficaram horrorizados: o nu era um gênero clássico da arte pictórica. Consideravam aceitável aquela aparência caleidoscópica, que mal permitia uma apreensão lógica da figura – até porque o cubismo já ditara a moda e não convinha se manifestar contra. Pregar um retorno à tradição era batalha perdida. Mas a pintura de Duchamp estava mais para sacrilégio. Porque o nu se reclinava sobre o divã, deixava os raios de sol o acariciarem na relva, purificava-se nas fontes de água cristalina – mas jamais se sujeitaria a algo tão profano quando descer uma escada.

Parece frescura, mas fazia parte das reviravoltas da época. Propuseram então ao jovem artista que "apenas" mudasse o nome da obra. Atiçaram o demônio. Contrariado, ele pôs o quadro debaixo do braço e saiu do Salão dizendo poucas e boas. Em breve, seu Nu descendo uma escada seria aclamado no Armory Show de Nova York. E a arte moderna invadiria de uma vez por todas a América. Sim, Duchamp sabia dar nome aos bois. Começava também a identificar os melhores pastos para criá-los.

Os títulos das pinturas modernistas foram a última coisa que se rendeu ao abstracionismo. Chegávamos ao cúmulo de ver borrões coloridos chamados flores na janela – ou qualquer coisa do tipo – apenas para serem aceitos como arte legítima – e não como produto de insanidade. Dilema que também ficou no passado, para nossa sorte. Pois Kandinsky e Mondrian, entre outros, passaram a batizar seus experimentos, por exemplo, como Composição com branco, amarelo e vermelho ou Improvisação XI. Abstratos em todos os sentidos. Finalmente, tinham vencido a barreira da figuração, que dominara o pensamento ocidental durante milênios.

Dar nome à cria não é tarefa fácil. Os textos desta coluna, muitas vezes, ficam dias aguardando o título adequado. Precisa ser curto, interessante, instigar a leitura sem resolver o assunto numa só tacada, etc. Ser conciso é um problema amplo demais – sim, um verdadeiro paradoxo.

E vai além: tenho um romance em processo de confecção, por assim dizer, cujo primeiro risco já foi concluído e, agora, espera acabamento. Ele recebeu dois títulos por enquanto. Um foi descartado logo, o outro permanece sob avaliação. Parece que serve, este remanescente; entretanto, preciso criar muitos mais para comprová-lo.

Em uma das visitas que fez ao suíço Alberto Giacometti, o crítico James Lord descobriu uma escultura maravilhosa largada com displicência sob a escada, no canto do ateliê, e quis saber como o artista podia fazer aquilo com tamanha obra-prima. "Se for boa mesmo, se tiver essa força expressiva que você diz, ela aparecerá por si própria", respondeu Giacometti. Suponho que o mesmo vale para o título do livro. Se for bom o bastante, sobreviverá. Caso contrário, da mesma maneira como alguns casais grávidos trocam o nome planejado assim que a criança nasce – só porque bateram os olhos na Maria e ela tinha cara de Beatriz –, eu também escreverei um novo título quando a gestação da narrativa estiver concluída. Quem sabe?

Sobre o romance de Marçal Aquino, que iniciou essa divagação toda, confesso que demorei anos até o comprar e ler. Sou facilmente seduzido, só que custo a ceder, não tem jeito. Tais como o título estampado na capa, as páginas subsequentes são poéticas, intrigantes e escritas com muito talento. O nome, no entanto, surgiu de uma passagem breve – meio esdrúxula até –, que nem tem essa relevância toda. Só que ela combina perfeitamente com a história, sugere sentimentos ao invés de explicitá-los, instiga, contém um lirismo tão marcante quanto a sensibilidade do autor ao tratar desse assunto inexplicável chamado amor. Vou repetir porque vale a pena: Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios. Um título único, que cumpre o papel com louvor. Uma beleza rara. Faz jus ao romance, justifica a paixão à primeira lida que acometeu a mim e à minha amiga. Dá vontade de ler. Ou seja, é bom como todo título deveria ser. Não à toa, ocupa lugar de destaque. No caso, mais do que merecido.

Imagens, na ordem:
1. Nu descendo uma escada (1912), de Marcel Duchamp
2. Improvisação XI (1910), de Wassily Kandinsky
3. Composição com branco, amarelo e vermelho (1936), de Piet Mondrian

domingo, 5 de fevereiro de 2012

MELHOR QUE A ENCOMENDA


O livro é melhor que o filme, o filme é melhor que a peça, a peça é melhor que o livro. Como é? Sim, sempre que ouço esses comentários, ouso perguntar por quê. Quero entender o que faz uma pessoa esculhambar e a outra elogiar. Muitas vezes, ambos citam os mesmo motivos, positiva e negativamente. É incrível. Por isso, o gosto se discute sim, foi o que Daniel Piza me ensinou. Todo mundo pode – e deve – criticar. Mas exige-se algum conhecimento para o comentário ser produtivo. "Porque sim" e "porque não" não são respostas, como já esclarecia o personagem de Marcelo Tas às crianças do Castelo Rá-Tim-Bum. Tudo tem explicação. Achismo é bom, mas argumentação é melhor ainda. Quem "gosta porque gosta", na verdade, não conhece a si próprio, enquanto quem "gosta e ponto final" nem merece entrar na conversa. Em matéria de gosto, a discussão não acaba nunca.

Agradar a todos é uma tarefa impossível. Muitos leitores já deixaram esta crônica no primeiro parágrafo. Faz parte. O importante é perceber que sempre é possível aprender com o que nos propomos a experimentar, gostando ou não. "A peça é melhor do que o filme". Por quê? Talvez porque a dinâmica dos atores, ao vivo, acrescenta significado ao texto, ou porque o ambiente do teatro acolhe melhor a proposta. "Mas o livro... é melhor ainda!" Por quê? Pode ser que, na adaptação, o roteirista foi obrigado a cortar passagens complexas ou subjetivas demais. Ou porque o espectador imaginava um personagem assim e o diretor o fez assado. Ou simplesmente porque essa pessoa prefere degustar a história no conforto do seu sofá a engoli-la de uma só vez, no cinema, sentada perto de um grupo de aborrescentes que não para de falar. E sem direito a pausa para xixi.

Adaptar obras de uma linguagem para outra, sejam quais forem, é sempre um trabalho arriscado. Exige cuidado para selecionar o material, entender como ele se comporta no novo formato, excluir cenas ou inventar diálogos para complementar.

No meio do ano, deve estrear um filme nacional chamado E aí, comeu? Um filme de grande circulação, feito com celebridades e boa produção. Foi adaptado de uma peça bastante popular, escrita pelo veterano Marcelo Rubens Paiva. Já deu para perceber o tamanho da encrenca, né? Imagine lidar com a expectativa desse público!

Conversei sobre isso com o roteirista responsável pelo projeto, Lusa Silvestre, que tem no currículo o premiado Estômago. Para o roteiro original render na telona, ele teve que criar novos pontos na trama, aproveitando que o cinema permite saltar entre os cenários com rapidez e, de certo modo, até exige esse vai e vem para evitar a monotonia. Lusa também precisou cortar passagens que o público do teatro aceita numa boa, mas que deixaria constrangido quem busca entretenimento durante a semana, na sessão da tarde. Estamos falando de um blockbuster, então essas escolhas são feitas com critérios bem definidos.

Vale lembrar que a adaptação é sempre uma leitura particular da obra em questão. O filme V de Vingança, por exemplo, foi feito a partir da história em quadrinhos de Alan Moore. Pois este não apenas detestou o filme como saiu falando mal na imprensa. Tudo bem, ele tem o direito. Admito que o filme não alcança a profundidade psicológica da HQ, mas transmite a ideia e é muito mais deslumbrante. Cada linguagem tem seus prós e contras.

O clássico Jules e Jim, de François Truffaut, é também adaptação do romance modernista de Henri-Pierre Roché. O filme começa mais ou menos na página 50 do livro. Por quê? Opção do diretor. Para ele, aquele pedaço renderia um bom filme. Não precisava contar a história toda, ficaria cansativo. Chamamos isso de recorte – a tal leitura particular que privilegia determinado aspecto da obra, podendo agradar o espectador ou não. Isso não significa, por si só, que a escolha está certa ou errada, ou que foi bem ou mal feita. Trata-se de uma adaptação, e toda obra assim lida também com a expectativa de quem conhece a original.

Se você gosta do assunto e quer pesquisar mais a respeito, eu indico o filme A liberdade é azul, do polonês Kieslowski. Nele, a personagem vivida pela atriz Juliette Binoche perde o marido num acidente de carro. Compositor renomado, ele escrevia uma sinfonia para a comemoração do aniversário da Revolução Francesa. Faltava apenas um pouquinho para terminar e o cara bateu as botas. A esposa, junto com o assistente, tentará finalizar a composição em seu lugar. Resta a ela superar os seguintes conflitos: como se modifica a criação alheia? Até que ponto ela lhe pertence? É possível adaptar sem interferir ou desrespeitar a original?

É um filme lindo, sensitivo e delicado. Porém, se ele não agradar, nem pense em me culpar. Pergunte-se o motivo. Como disse antes, o gosto se discute sim, e tudo deve ser questionado se o propósito é aprender. Melhor do que gostar de uma obra é ter disposição para experimentá-la.

A crítica está aí para ajudar, mostrando outros pontos de vista – apesar de muita gente achar que criticar é sinônimo de falar mal, inclusive profissionais da área. Esse tipo de crítica sim é perda de tempo.

Seja como for, assista ao filme que sugeri. Depois, me diga se gostou ou não. E por que, claro.


(imagens, na ordem: ANT73, ANT 64, ANT54 e ANT13, todas de 1960, por Yves Klein)

domingo, 8 de janeiro de 2012

FELIZ ANO NOVO (COM MARGEM DE ERRO DE 10 ANOS PARA MAIS OU PARA MENOS)


"Quando o mundo estiver acabando, venha para o Uruguai. Aqui ele ainda dura uns dez anos mais". Foi o que me disse o gerente de uma excelente vinícola de lá, localizada nos arredores de Montevidéu. Estávamos passeando pela propriedade. Ele me contava a história da empresa, do sistema de viticultura e de elaboração do vinho. Nas últimas três ou quatro décadas, uma grande quantia de capital estrangeiro chegou às vinícolas do Chile e da Argentina, resultando no salto de qualidade que colocou esses países na elite do circuito internacional, a ponto de competirem com nomes consagrados da Europa. No Uruguai, a tecnologia, os estudos científicos e os especialistas chegaram apenas no começo da década de 1990, e o país ainda está se profissionalizando. A promessa é grande, já que ali se produz vinho em dezesseis das dezenove províncias, ou seja, praticamente no território todo. Eles possuem ainda uma vantagem: a uva Tannat encontrou no Uruguai seu solo e clima favoritos, rendendo os melhores vinhos dessa variedade, que é bastante difícil de produzir.

Tudo isso para dizer que os nossos vizinhos não compartilham da mesma ansiedade política e econômica que sentimos por aqui, em especial nas metrópoles do Estado de São Paulo, de onde falo com maior conhecimento de causa. Aqui, trabalha-se praticamente o tempo todo, a correria diária resulta num trânsito caótico, tudo é lotado, a cultura do excesso impera e, num ciclo infinito de causa e consequência, o estresse, a falta de educação e o canibalismo corporativo se tornaram comportamento padrão. Não, lá eles leem jornais em cafés charmosos no trajeto para o escritório, caminham pela orla, voltam para casa antes de escurecer e saem à noite para papear com os amigos.

A senhora gorda e sorridente que me recebeu nos campos de outra vinícola, no interior do país, olhou para toda aquela tranquilidade natural ao seu redor, entre parreiras e oliveiras carregadas de frutos, e confirmou: não trocaria sua vida por nada. Os tais dez anos de atraso de que o gerente da primeira vinícola falou, de repente, me pareceram dez anos de avanço – uma década a mais de vida muito bem aproveitada.

Foi essa aparente incompatibilidade que me chamou a atenção em Joaquín Torres García, o artista plástico mais influente da história do Uruguai. Nascido em 1874, mudou-se para a Espanha dezesseis anos depois, viveu em diversos países-chave durante a efervescência do modernismo (França, Itália e Estados Unidos) e retornou à então provinciana Montevidéu em 1934, aos sessenta anos de idade, "com a ideia de fundar um importante movimento de arte construtiva que, enraizado numa profunda tradição universal, fosse, também, a expressão de uma arte própria, não apenas para o Uruguai, mas para toda a América". Palavras do catálogo da ótima retrospectiva de sua obra, que se encontra em cartaz na Pinacoteca do Estado de São Paulo.

De volta à origem, Torres García fez exposições, publicou livros, ministrou palestras, editou revistas especializadas e até mesmo criou uma associação de artistas modernistas, a AAC (Associação de Arte Construtiva); em outros termos, tentou sacudir o lugar para colocá-lo no circuito internacional de arte, polinizando conhecimento e incentivando a produção de seus conterrâneos.

Digo "tentou" sacudir porque, uma década mais tarde, em fins de 1940, o artista profere sua conferência de número 500 desde o retorno a Montevidéu. Nela, "expressa seu desânimo diante da impossibilidade de concretizar as ambições com que havia chegado ao Uruguai e decide que a AAC vai ser transformada, simplesmente, num espaço de estudo da Arte Construtiva".

Torres García falece em 1949. Seu legado, no entanto, alcança o sucesso que ele tanto almejara: suas ideias foram o estopim para tudo aquilo que o país vem produzindo desde então, mais ou menos como aconteceu no Brasil com Tarsila do Amaral, Mario e Oswald de Andrade, entre outros dos nossos modernistas.

Torres García apresentou o futuro àquele país que "vive com uma década de atraso". Ele queria estar à frente de seu tempo e levar o Uruguai inteiro consigo, fazendo "do sul o seu norte", como defendia. Talvez, na ocasião de sua morte, ele tenha achado que o projeto fracassara. Hoje, porém, podemos afirmar que a arte contemporânea uruguaia é fruto do seu ímpeto idealista – uma conquista digna das maiores honrarias.

É bobagem afirmar que um país está atrasado em relação a outro assim, de maneira tão generalista; pior ainda é sinalizar a diferença no calendário. A afirmação que ouvi na vinícola era apenas uma piada, ironizando o estilo de vida praticado pelos uruguaios. Afinal, por mais visionários que sejamos, demoramos a nos adaptar às novidades – boa parte das crises existenciais que hoje em dia afetam a humanidade provém desse processo.

Sinceramente, acredito que a obra de Torres García nos ensina muito, não apenas sobre arte, mas também sobre a relação dela com a vida: buscar sempre inovar, crescer, desenvolver... mas também curtir ao máximo o momento presente. São meus planos para 2012.

*As imagens que ilustram esta crônica são do manuscrito New York (1921), de Joaquín Torres García. Clique para ampliá-las.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

A SACOLINHA VERMELHA DO PAPAI NOEL

  
Fico imaginando a reação da criança ao abrir cada um dos pacotes e explorar o conteúdo, sorrindo com os amigos, colocando as roupas sobre o corpinho para ver se servem, procurando o brinquedo que deve estar ali, no meio daquela algazarra. Sempre há um brinquedo, uma caixa de bombons, um conjunto de roupas e um par de sapatos. É o que a instituição responsável pela tutela dessas crianças carentes pede a quem se dispõe a "adotá-las" no Natal.

As tais sacolinhas se popularizaram na agência onde trabalho. Este ano, foram mais de cinquenta, o que significa mais de cinquenta tentativas de proporcionar um Natal minimamente digno a alguém com condições menos – ou nada – favorecidas.

Entre os presentes, eu sempre acrescento dois, que considero imprescindíveis: um livro e uma cartinha. A presença de livros foi determinante em minha vida, e acredito que eles também podem ajudar essas crianças a superar as dificuldades que hoje se colocam para elas, seja por adquirirem o gosto pela leitura (sempre uma experiência positiva), seja pelo conteúdo (aprendizado e visão crítica), seja pelo convívio social que advém dali (emprestando o livro, lendo em conjunto com amigos ou ouvindo um adulto contar a história).


Em uma resenha de 1924, o filósofo alemão Walter Benjamin comenta que as crianças têm um apreço peculiar por todo tipo de detritos, onde quer que eles surjam – na construção de casas, na jardinagem, na carpintaria, na confecção de roupas. Com esses detritos, elas constroem o mundo como lhes aprouver. Os elementos dos livros infantis também seriam exemplos dessa matéria-prima tão rica, que dá sentido à vida e nos impele a estabelecer parcerias com ela, contornando criativamente as reviravoltas, admirando suas ilustrações e inventando finais felizes.

Meus brinquedos mais interessantes foram a folha de papel em branco e as caixas de papelão. Com tinta, tesoura, cola e lápis de cor, tudo era possível, desde orbitar a Lua até desenterrar tesouros do fundo do mar. O papelão se transformava em carro, armadura, cabana ou rio. Lembro-me de como era gostoso brincar sem que outras preocupações interrompessem a fantasia, e suponho que, quanto tiver filhos, conseguirei recuperar um pouco da minha própria infância.

Por enquanto, fico com as crianças carentes. E com Walter Benjamin, que, em outros dois textos, agora de 1928, analisa a história cultural do brinquedo. Ele conta que a casa de bonecas, o cavalinho de pau e os soldadinhos de chumbo – entre muitos outros "papais" dos robôs articulados, sonorizados e iluminados de hoje, do videogame e dos bebês de plástico que mamam, choram e fazem cocô – surgiram em oficinas de entalhadores de madeira ou de fundição de metal e demoraram séculos para se popularizarem, assim como para serem produzidos por indústrias específicas.

O filósofo chama nossa atenção para algo que, em sua época, já era preocupante: os sonhos de consumo que os adultos projetam nas crianças direta ou indiretamente, pela publicidade ou pelas visitas ao shopping, e que as transformam em consumidores mirins cheios de decisão. Para ele, a bola, o bambolê e a pipa são tanto mais verdadeiros quanto menos dizem aos pais, ou seja, quanto mais atraentes, no sentido usual, mais se afastam dos instrumentos de brincar.


O filho de uma amiga adora os tupperwares da mãe, mais do que qualquer um dos brinquedos caros que não lhe faltam. Eu o vejo pular, manobrar os potinhos, fazer sons com a boca e se divertir num incrível mundo interior, e percebo que é disso que Benjamin fala – esses seriam os brinquedos de verdade, que instigam a curiosidade e a criatividade.

Os videogames também pertencem a essa categoria, ainda que os pais tradicionalistas não concordem. Porque, no meu modo de ver, os grandes vilões de hoje são: 1) os brinquedos que brincam sozinhos, deixando a criança apenas a acompanhar com os olhos suas estripulias pré-programadas; e 2) a precocidade, que faz meninos e meninas sentirem vergonha de brincar. Agora, se o futebol eletrônico parece mais interessante do que o pebolim ou o botão, é apenas porque essa é a realidade em que vivemos. Isso não significa que a atividade lúdica na frente da TV é pior do que aquela realizada em torno da mesa, do tabuleiro, na rua... O mundo mudou e, às vezes, a brincadeira só precisa de uma compensação. E de compreensão.

Até porque os próprios adultos estão sempre na frente da tela da televisão, do computador e do celular. Então, como vamos exigir que as crianças ajam diferente? Se algo nessa história permanece intacto é o fato de que continuamos a ser o maior exemplo para elas.

Uma observação bacana de Walter Benjamin é que "a ideia determina o brinquedo", não o contrário. Quer dizer, a imaginação da criança transforma o brinquedo a seu bel-prazer, fazendo um carrinho de plástico correr no deserto ou no autódromo, falar e fazer amigos. Por isso, quando um adulto briga com a criança porque ela está brincando "errado", o errado ali é ele próprio, cortando as asinhas daquela imaginação de um jeito tão mesquinho. Brincadeiras saudáveis devem sempre ser incentivadas, não importa o que diz o manual de instruções.

Com livro e brinquedo, eu tento avivar a magia do Natal em uma criança. Para mim, esse é o verdadeiro significado da data, independentemente de religião – sua origem cristã se diluiu na cultura comum e, hoje, qualquer pessoa pode aproveitar a oportunidade para melhorar o mundo, nem que seja um pouquinho só, presenteando alguém com esperança, carinho e alegria.

Ora, pensando friamente, isso é o mínimo que devemos fazer para devolver à sociedade um pouco do que ela nos permitiu conquistar. Mais do que bondade ou moralismo, contribuir para a felicidade de todos é uma obrigação social. Afinal, estamos nessa juntos.

Sim, eu acredito em Papai Noel. Pois os livros infantis, os brinquedos e a filosofia estão aí para comprovar: basta imaginar – e se dedicar – que toda fantasia se realiza.

*Ilustrações: 1) Ponte de Charing Cross (1906), de André Derain; 2) Ponte de Charing Cross (1906), de André Derain; 3) Catedral de São Paulo vista do Tâmisa (1906), de André Derain.

domingo, 30 de outubro de 2011

VIAJAR É O MELHOR REMÉDIO

Já ouvi estrangeiros perguntarem se o Brasil é um país doente, dada a quantidade de drogarias à disposição. Em alguns bairros, temos uma a cada dois ou três quarteirões, às vezes mais. Se nossas doenças não extrapolam o normal, ao menos hipocondria e ansiedade, essas sim, temos que admitir. Por quê? Onde estão o samba, o futebol e as mulatas? Será que, com a melhora econômica, esses prazeres banais deram lugar ao estresse do mundo contemporâneo? Ou, ainda, será que as crises político-sociais foram substituídas por crises existenciais?

Estive recentemente no Uruguai, e o que mais me fascina num país estrangeiro é o cotidiano dos nativos, muito mais do que os pontos turísticos. Gosto de caminhar pelas ruas, entrar nas lojas, estar no meio da multidão, pegar seus ônibus e metrôs, experimentar seus cafés no meio da tarde e folhear seus jornais nos bancos da praça. Inserir-se na realidade alheia abre os horizontes de nossos próprios universos.

Foi durante essa viagem que reparei como farmácias são escassas por lá, principalmente quando comparado com São Paulo. E, já que a procura por remédios é pequena, elas vendem outros produtos não convencionais, tais como vinhos, perfumes, cosméticos, livros e brinquedos. Achei o fato curioso. Meio estranho, inicialmente, mas faz sentido. Afinal, esses também são produtos com propriedades curativas: compartilhar uma garrafa de vinho com amigos e familiares faz um bem social danado; cuidar da própria beleza melhora a autoestima e cura a depressão de si e dos outros; ler um bom romance na frente da lareira, ou na poltrona da varanda, ou debaixo dos cobertores, ou na grama do parque, naquela tarde de domingo ensolarada, ou na praia, ou em qualquer outro lugar propício ao relaxamento pode até causar dependência, mas uma dependência boa que não pede moderação. E brincar... é remédio para todas as idades, quem não sabe se divertir não pode dizer que vive de verdade.

O comércio de um país reflete a cultura dos habitantes. Os indícios são fáceis de perceber. Em Montevidéu, há praticamente uma livraria por quarteirão. Não são megastores como as nossas, pelo contrário, são pequenas e entulhadas, mas devem vender muito mais literatura, porque têm livros nas prateleiras ao invés de televisores, computadores, câmeras fotográficas, papelaria, jogos de videogame e iPods.

Cafés também se encontram aos montes, sempre movimentados. Ali, folheia-se revistas, reúne-se amigos e até se trabalha, enquanto a correria permanece do lado de fora. Não vi um só hipermercado – frutas e verduras são compradas frescas diariamente, durante o retorno para casa, em quitandas amistosas. O pão é comprado na padaria. O queijo, no laticínio. A massa, na mercearia. E, em cada um desses lugares, o produto vem acompanhado de uma conversa gostosa com os donos, que prometem reservar alcachofras firmes ou uma penca de bananas maduras para quando voltarmos no dia seguinte.

Parece provinciano e retrógrado quando, na verdade, é um estilo de vida inteligente. Em vez de perderem duas, três ou mais horas por dia no trânsito, as pessoas caminham pela orla depois do trabalho. Não vi nenhuma academia, embora, no geral, os uruguaios sejam magros e cordiais. Museus, em compensação, tem um monte, e por mais esquisito que pareça eles também são frequentados pelo povo, que conhece e respeita a cultura local, e não somente por turistas. Basta ver os prédios antigos espalhados pela cidade, nem sempre bem cuidados, mas preservados como marcos de uma história que convém não esquecer. Existem edifícios modernos no Uruguai? Sim, claro, shopping centers bonitos também, com moda atual e alta tecnologia, só que eles não são construídos em cima do passado.

Se você ainda acha que prédios velhos, lojas familiares e andar a pé são coisa de terceiro mundo, vou dizer que me deparei com o mesmo na Itália, por exemplo, desde as cidadezinhas do interior até Roma. E eles não precisam convencer ninguém da riqueza material e cultural do país. Para mim, está claro que esse estilo de vida é uma opção consciente.

Agora, sabe o que eu mais encontrei no Uruguai? Brasileiros. Sim, nós estamos em todos os cantos, nas ruas, nas empresas, nos noticiários, nos restaurantes e nos pontos turísticos, basta prestar atenção que você ouve alguém falando português. Inclusive, conheci diversas pessoas que estudam nossa língua para nos atender melhor. Se os visitamos com essa frequência é porque gostamos do que eles têm a oferecer. Pois bem, será que não poderíamos trazer um pouco daquela cultura na bagagem, no lugar de jaquetas de couro e doce de leite?

É claro que a realidade do Brasil é muito distinta, incomparavelmente maior e complexa, e que não se pode tirar os costumes de um país e aplicá-los, ipsis litteris, a outro. Mas, para mim, viajar significa observar, aprender e mudar. Se você permitir, a experiência transforma sua maneira de lidar com o mundo.

O Brasil não se resume a samba, futebol e mulatas, não queremos ser conhecidos apenas por isso. Mas, então, o que mais somos? Será que essa dúvida não indica a origem de uma crise existencial? Talvez, se derrubássemos menos prédios históricos, se acompanhássemos a política de perto, se perdêssemos menos horas no trânsito, se caminhássemos mais pelas ruas, se tomássemos mais vinho com quem gostamos, se conversássemos mais sobre assuntos relevantes, se comprar pão fresco para o café de domingo rendesse o mesmo prazer do que sapatos caros no shopping, se ler um livro ou visitar um museu não fosse tão importuno, se fizéssemos piquenique no parque ao invés de ver Faustão na TV, talvez tivéssemos uma noção melhor da nossa própria identidade, aprenderíamos a encarar os perigos de se expor à tendência globalizante e superaríamos o paradoxo de pertencer ao grupo sem perder a singularidade. Não teríamos, assim, que remediar com calmantes, analgésicos e antidepressivos as angústias desse futuro tão promissor.

 
 
 
 
 

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

ÁGUA MOLE, PEDRA DURA

Era para ser uma pintura rápida, um esboço a óleo sobre tela que, nas palavras do retratado, levaria uma ou duas horas para ser concluído. Alberto Giacometti e James Lord eram amigos, e aquilo tinha como propósito apenas a diversão de ambos. Um disse que queria, o outro respondeu que faria e pronto, estavam combinados. Só que a persistência do artista para obter um resultado satisfatório – entre suas tormentas existenciais e ameaças de abandono do projeto – levou o modelo a posar durante catorze dias não-consecutivos. Isso mesmo, catorze sessões de duas a quatro horas cada! Esse processo criativo foi registrado pelo escritor num divertido diário, que, além de revelar detalhes sobre a obra de Giacometti e sobre sua concepção de arte, também nos leva a pensar em nossas próprias vidas, em como reagimos às adversidades, na relevância de nossos planos e no que, afinal, nos faz felizes.

E tem mais: durante esse tempo todo, o artista pintou apenas a cabeça do amigo. Pintou e repintou, pintou e repintou, concentrando-se somente nela. Considerava a tarefa impossível, mas continuava tentando. Ao fim de cada sessão, os dois olhavam a tela e notavam certo avanço, mas no dia seguinte o pintor apagava tudo e recomeçava do zero. “Estou destruindo você”, dizia. James Lord se angustiava. Com o tempo, porém, aprendeu a dar de ombros e assentir: “É você quem manda”. Seu respeito pelas escolhas do mestre beirava à devoção. Em troca, Alberto lhe ensinou que cada passo adiante é sempre uma luta contra as próprias crenças, e que a superação depende também de muita cessão, além da tradicional força de vontade.

Em setembro de 1964, dinheiro e fama já não eram problemas para ele. Suas obras podiam ser vistas mundo afora e agradavam tanto o público quanto a crítica. O artista já tinha até mesmo conquistado o Grande Prêmio de Escultura da Bienal de Veneza, o mais importante de sua carreira. Ainda assim, persistia na empreitada, blasfemava que não entendia nada daquilo, que deveria desistir de uma vez por todas, pois jamais conseguiria fazer alguma coisa bem feita. As glórias do passado não iludiam seus olhos nem transbordavam sua autoconfiança. Todo dia era um novo dia, e isso ficou evidente durante a pintura do retrato. Seu temperamento exagerado pedia toda a paciência de James Lord. No entanto, ao ler o diário, publicado propositadamente sob o ambíguo título de Um retrato de Giacometti, ele chega a ser hilariante.

Pois bem, qual é a relação disso tudo com a nossa busca por felicidade? No livro A arte da vida, o filósofo Zygmunt Bauman afirma que a vida é uma obra de arte e que “devemos, tal como qualquer outro tipo de artista, estabelecer desafios que são difíceis de confrontar diretamente; devemos escolher alvos que estão muito além de nosso alcance, e padrões de excelência que, de modo perturbador, parecem permanecer teimosamente muito acima de nossa capacidade de harmonizar com o que quer que estejamos ou possamos estar fazendo. Precisamos tentar o impossível”.

Alberto Giacometti parece ter sido a encarnação perfeita dessa proposta. Em um momento de desânimo, chegou a prometer os milhões de sua poupança a alguém que pintasse “aquela maldita cabeça” por ele.

“Tenho certeza de que, por essa quantia, muitos o fariam”, comentou o modelo na ocasião, ao que o artista prontamente retrucou: “Não fariam à minha maneira”. Não se tratava apenas de uma saída irônica. Ele realmente assumia a tarefa como um desafio pessoal e precisava cumpri-la a qualquer preço. A razão da sua arte consistia em representar o mundo da maneira como ele se mostrava a seus olhos, e só com muito suor conseguia executá-la – o dinheiro não lhe valia de nada.

No citado livro, Bauman faz uma comparação interessante entre renda e felicidade, mostrando que, após serem atendidas as exigências básicas para se viver com dignidade, o nível de felicidade continua estagnado, mesmo que a renda se multiplique exponencialmente. Em outras palavras, o crescimento econômico só influencia a felicidade das pessoas até certo ponto.

No geral, continuamos acreditando que comprar nos deixa mais felizes. Bauman alerta para o perigo de se cair no conto do publicitário, que sempre apresenta uma nova etapa nessa busca. Prolongando o caminho, nunca atingimos o fim. E, durante a jornada, acabamos nos esquecendo de coisas mais importantes, que o dinheiro não compra.

Uma delas é o desafio que se impõe a cada dia e nos obriga a superar obstáculos para realizarmos um bom trabalho, digno de orgulho próprio, exatamente como fazia Giacometti. Trata-se de uma satisfação cada vez mais rara. Confrontando-se com problemas que pareciam insolúveis, ele reinventava a si e a sua arte. Possivelmente foi essa incessante busca que o fez, além de um talento mundialmente reconhecido, um homem feliz. A persistência, como sugere o ditado, leva à realização. O diário de James Lord é testemunha disso e, por que não?, serve de manual para uma vida melhor, em que tanto a arte quanto a felicidade estão ao alcance de todos.

sábado, 3 de setembro de 2011

BEM DIANTE DOS OLHOS

Perto do meu trabalho havia uma casa antiga, daquelas com hall de entrada envidraçado que dava para a rua – uma das poucas construções do tipo que conseguira sobreviver aos prédios espelhados e às franquias de estacionamento. Um casal de velhinhos passava as tardes ali, cada um em sua cadeira de balanço, fizesse chuva ou sol. Eles observavam, simplesmente. Sempre que eu cruzava o local, virava o rosto para conferir e lá estavam os dois, observando o movimento. A cena continha um lirismo particular. Agora, ao terminar a leitura do conto A janela de esquina do meu primo, ela me voltou à lembrança. Já explico por quê.

Trata-se da narrativa derradeira do alemão E. T. A. Hoffmann, publicada entre abril e maio de 1822, dois meses antes de seu falecimento, aos 46 anos, vitimado por uma doença degenerativa muito semelhante a do protagonista, que o impedia de andar e escrever.

Sem dúvida, o teor autobiográfico do texto é irrefutável. Merece destaque, entretanto, o relato que faz da vida social metropolitana daquela Berlim em plena transformação.

O personagem que dá título ao conto, escritor de certo renome, então condenado a passar os dias observando a vida acontecer através da janela de seu apartamento, tenta ensinar ao primo como enxergar a modernidade que se apresenta logo adiante, na feira livre do outro lado da rua.

O frenesi, o efêmero, o senso de civilidade, o comércio, os tipos urbanos, a burguesia em ascensão, as relações sociais e a nítida diferença entre classes – tudo isso aparece no conto de Hoffmann. Talvez o autor tenha sido o primeiro a explorar tais temas com tamanho afinco, embora a façanha ficasse mais conhecida com Edgar Allan Poe (O homem da multidão, 1840) e Charles Baudelaire (O pintor da vida moderna, 1863).

"Falta-lhe a disposição mais elementar para poder seguir os passos de seu primo digno e paralítico, ou seja, um olho! Um olho que realmente enxergue! Aquela feira do mercado não lhe oferece senão a visão de um colorido e alucinante amontoado de gente se movendo num afã insignificante. Há, há! Ao contrário de você, meu amigo, vejo desenrolar-se um cenário variado da vida burguesa e meu espírito (...) inventa um esboço após o outro, cujos contornos mostram-se com frequência impregnados de malícia." 
 
Ilustração de Daniel Bueno para edição da Cosac&Naify

Com uma luneta em mãos, o escritor paralítico consegue se aproximar da multidão que se acotovela na praça, caminhar entre as pessoas e as observar uma a uma, em detalhes. Munido de olhos atentos e muita imaginação, passa a preencher as lacunas proporcionadas por esses breves encontros, inventando premissas e desenlaces, modificando a realidade por meio da ficção, recriando o mundo como lhe parece mais conveniente.

É um artifício que permite ao autor desenvolver os mais diversos assuntos, incluindo alguns bastante proféticos. Hoffmann denuncia, por exemplo, o preconceito com estrangeiros e a repulsa que a miscigenação de culturas provoca nos mais ingênuos, que desejam manter a identidade local intacta. Antecede, portanto, em quase dois séculos os anseios da globalização e as diferentes fobias sociais que, infelizmente, ainda constatamos nas cidades de hoje.

Há também o anonimato e o conflito paradoxal de se misturar à massa sem perder a individualidade, questões-chave do modernismo europeu. Observando pela janela o mundo em transformação, os atores do conto nos introduzem uma problemática que renderia reflexões por, no mínimo, mais cem anos.

"Essa janela é meu consolo, aqui a vida alegre ressurgiu para mim e eu me sinto reconciliado com o movimento incessante que me proporciona. Venha, primo, dê uma olhada para fora!"

O apartamento ocupado por Hoffmann ficava acima da taverna Lutter & Wegner, que ele tanto frequentou

Terminada a leitura, lembrei imediatamente do casal de velhinhos lá de perto do trabalho, que ficava a observar a vida acontecendo através do vidro do alpendre. Não sei o que houve com eles. Passei um dia e não estavam lá, nem no outro, nem no seguinte. A casa acumulou poeira, a janela embaçou, as cadeiras de balanço desapareceram. Então, numa tarde como outra qualquer, um trator colocou tudo abaixo. No lugar, montaram um fast food especializado em yakisoba.

Há diversos prédios comerciais nas proximidades, o restaurante vive lotado. Eu mesmo almoço lá de vez em quando, naqueles dias de pressa em que tenho muito a escrever e prazo curto para terminar. O conto de Hoffmann me fez perceber que, mergulhado nessa realidade alucinante, fico impedido de ver – e de compreender – o que acontece ao meu redor. Na maior parte do tempo, minha vida é uma reação instintiva aos constantes estímulos externos. E só.

Lembrei do simpático casal de velhinhos que ficava a observar o frenesi cotidiano através da janela e, inspirado pelo conto recém-lido, passei a me perguntar que tipo de futuro eles enxergavam ali.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

QUEM SOU EU, AFINAL?

Quando Rodrigo de Moraes, editor assistente do Caderno C, perguntou se eu não teria uma foto minha para estampar esta coluna, desencadeou, sem querer, uma série de pensamentos existencialistas que culminaram na batidíssima questão: quem sou eu, afinal?

Exagero? Ora, um pouco de exagero nunca é demais, e a verdade é que eu não sou muito afeito a exibir o rosto por aí, preferindo sempre me ocultar atrás do codinome Edu Almeida. Por quê? Para ser sincero, não sei. "O que sou e o que escrevo são uma coisa só. Todas as minhas ideias e todos os meus esforços, eis o que sou.", disse C. G. Jung certa vez, e eu sempre levei a sério os pensamentos daquele simpático velhinho suíço, tanto que essa sua frase consta em meu blog desde que o criei. Além do mais, acho que nunca confiei no modo como a imagem lida com o conteúdo, principalmente quando ela precisa sustentar o enorme peso de uma identidade. Não basta, percebe? A imagem reduz tudo a um instante, um ponto de vista, uma gama de cores. Não precisa nem se tratar de uma pessoa, pode ser uma paisagem mesmo, daquelas que você fotografou na sua última viagem de férias – a imagem, no máximo, sugere a sensação do lugar; jamais será o lugar propriamente dito, visto e experimentado.

Convenhamos, nosso comportamento está intimamente atrelado à visão, então é natural que a imagem fale mais alto. Veja só o grau de confiança que uma testemunha ocular recebe, no caso de um crime, por exemplo, enquanto uma testemunha olfativa viraria motivo de piada. Só que os olhos também se enganam. O mesmo vale para os nossos preconceitos. De repente, alguém não vai com a minha cara e deixa de ler a coluna só por causa da foto. Uma imagem, mil palavras, sabe como é... Acontece direto comigo. Se não gosto de um sujeito à primeira vista, ele precisará de muita lábia para me convencer do contrário, ainda mais porque acredito cegamente em meu sexto sentido.

No caso do jornal, havia também uma questão prática: que foto usar? Essa é muito antiga, naquela estou despenteado, naquela estou acompanhado, esta outra tem fundo difícil de recortar, tem sorriso torto, olho fechado... que lástima! Sem contar que eu adoro tirar fotografias e, na maioria das vezes munido de câmera, acabo não aparecendo em nenhuma. Enquanto isso, milhões de anônimos entulham seus perfis de redes sociais com todo o tipo de retrato, sem vergonha de serem felizes. É mesmo um desprendimento admirável.

Vão dizer que é frescura, mas sou publicitário, sei que o poder da imagem é comprometedor. Ele resume você a uma falsa realidade: um instante específico, um olhar perdido, um estilo de roupa, uma luz, um peso e uma altura que, como tudo na vida, estão sempre em mutação. Quer dizer, a imagem é necessariamente uma ilusão. Não se pode confiar nela.

Já fui vítima desse poder e tentei ludibriá-lo. Comecei a escrever cedo, jovem o bastante para que não me atribuíssem o devido crédito. Então, eu deixava a barba crescer, para disfarçar, vestia roupas sóbrias, tentava parecer mais velho manipulando a imagem que faziam de mim. Funcionava – ou, pelo menos, eu achava que sim. No escritório, era a mesma coisa: eu tinha subordinados com mais tempo de carreira e, na época, acreditava que hierarquia era determinada pela data de nascimento. Não revelava a idade de jeito nenhum, deixava o povo confabular. Coisas da juventude, não há como ocultá-las.

Não se trata de mania pessoal. Em regra, as pessoas não gostam de aparentar, digamos assim, o "grau de experiência". Tenho amigos e amigas lindos que se acham decrépitos só porque já passaram dos trinta. Ou dos quarenta. Ou dos cinquenta, que seja. Uma pena.

Outro dia, uma dessas amigas fez um ensaio fotográfico para guardar como recordação – ou "para a posteridade", como gosto de pensar. Teve direito a cabelo, maquiagem, figurino e photoshop. Me diverti à beça com os elogios decorrentes: "Nossa, as fotos ficaram lindas. Nem parece você!" Ela estava entusiasmadíssima, preferi não polemizar. Mas achei um paradoxo absurdo alguém ficar linda na foto justamente porque deixou de parecer consigo mesma. É assim que a história da humanidade vai sendo escrita.

Eu ri, na ocasião, e depois sofri do mesmo mal. Na falta de alternativas, resolvi improvisar um retrato novo para esta coluna e, devido ao resultado pouco animador, pedi a um amigo que fizesse leves retoques. Apagar uma espinha, corrigir olheiras, ajeitar uns fios de cabelo que saíram do lugar bem na hora do clique. Coisinhas assim, fugazes. Ele foi lá e, pelo bem da amizade, me recompôs. Portanto, se você quiser saber como sou, de verdade, direi que pareço com o cara aí do alto, só que mais real.

Meu próprio pai, que nunca foi disso, teve que renovar o RG e, quando viu a foto tirada lá, na hora H, ficou desconsolado. Aquele senhor grisalho, de óculos, era velho demais para ele. Calúnia! Cancelou o RG, fez a foto em outro lugar e voltou no dia seguinte rejuvenescido.

Isso me lembrou mais um caso, que conto agora para terminar de vez com o papo furado. Está mais para uma lenda do rock, não sei até que ponto é verdade, mas dizem que Neil Young, depois de gravar um primeiro disco muito bom e assinar contrato para outro, acabou processado pela gravadora porque, no segundo, já não se parecia mais com o Neil Young original. É mole? Sei lá quem ganhou o páreo... Como é que se comprova a própria autenticidade?

Pois bem, eu continuo mesmo acreditando no bom e velho Jung. Sou o que escrevo, muito mais do que aparento, e vou ser um novo eu a cada frase, a cada pensamento, a cada inspiração, mesmo que a foto da coluna permaneça a mesma. Se ela não agradar, peço que coloque o polegar em cima e ignore. Para saber de verdade quem eu sou, continue a me acompanhar aqui, mensalmente. Aos pouquinhos, vou revelando interesses, trocando ideias, puxando papo. Entre o ser e o nada, vamos, juntos, descobrindo nossas verdades mais profundas.

sábado, 9 de julho de 2011

EDITOR DA NOSSA HISTÓRIA


Não faz muito tempo, a Edusp e a Com-Arte lançaram um livro com o título de Paula Brito – Editor, Poeta e Artífice das Letras. Trata-se de uma coletânea de ensaios a respeito da produção desse que é considerado o primeiro editor do Brasil – ou, como o definiu Machado de Assis, "o primeiro editor digno deste nome que houve entre nós". Uma publicação importante, já que a história da nossa literatura é tão conhecida quanto o final de um livro inacabado. Pois bem, eu lia uma reportagem a respeito e alguma coisa parecia desconexa ali, só não sabia dizer o quê. Caminhando distraidamente pela página, demorei a perceber que era a foto, estampada bem no centro, que me inquietava: o tal editor era negro.

Estamos falando de outro Brasil, acontecido praticamente duzentos anos atrás. Francisco de Paula Brito nasceu em 1809, num Rio de Janeiro escravocrata e precário, dependente de Portugal em quase todos os sentidos. Nossas primeiras tipografias tinham sido inauguradas apenas um ano antes, com a vinda da família real, e publicar qualquer coisa por aqui era difícil, perigoso e praticamente inútil, já que a maior parte da população não sabia ler.

Toda história promissora começa mesmo com um drama. De origem humilde, descendente de escravos e autodidata, esse negro conseguiu um feito incrível para sua época e condição: levou uma vida dedicada às letras, tornou conhecida nossa produção literária de meados do século XIX e fez de A marmota um dos principais periódicos da primeira fase da imprensa nacional.

Apelidado de "artífice das letras", Francisco também era poeta, ainda que tenha se destacado não por conta de seus escritos, mas de seus escritores: Machado de Assis, Casimiro de Abreu, José de Alencar e Basílio da Gama, entre outros – nomes que, ao contrário do seu, vivem pipocando por aí.

Editar obras desse porte não é tarefa para qualquer um. Quando me dei conta do significado, a façanha me pareceu inacreditável. E mais inacreditável ainda é um herói do nosso povo ficar esquecido durante tanto tempo.

O Brasil é mesmo um país que não se cansa de me surpreender. Toda vez que a gente se desentende, ele saca um punhado de flores e me conquista de novo. Temos uma imensa desigualdade social, o maior leão do mundo se alimenta do nosso suor sem dar nada em troca, somos maltratados aqui dentro e lá fora, ninguém acredita muito em nosso potencial, nem a gente mesmo. Por aqui, rola uma corrupção tão escancarada que faz parecer errado agir certo, como se ética fosse coisa de ingênuo sonhador. Certo mesmo é agir errado, dizem, porque o mundo é dos espertos. Alguém contradiz?

Pois é, são absurdos que, de tão repetidos, já nem surpreendem mais. Logo vem alguém tentar me convencer de que o problema é cultural, mas cultura, para mim, é outra coisa. Cultura é coisa boa, enriquecedora, dessas que transformam bichos em seres humanos civilizados, solidários e justos. É a cultura que me faz manter intacta a esperança de que, um dia, quem sabe...

O Brasil tem jeito sim. O que me confirma isso são homens e mulheres como Francisco de Paula Brito, que acreditam num bem maior e lutam para concretizá-lo. Um filho do povo que, certa vez, escreveu: "a eternidade depende das obras úteis: se ele as fez, quaisquer que elas sejam, mas de que se aproveitem os presentes e os vindouros, esse homem vive na glória".

Para nossa sorte, conheço um monte de franciscos assim, compartilhando conosco o agora, trabalhando quase sempre no anonimato, mas fazendo acontecer, criando, melhorando, ensinando etc.; ou seja, produzindo essa nossa cultura que é uma obra sempre em processo de formação e transformação. Tal como acreditava o primeiro editor da nossa história, esses homens vivem na glória, ainda que o país demore para reconhecê-los. Ele próprio apareceu só agora para comprovar.

sábado, 18 de junho de 2011

QUANDO A PINTURA REVELA O PINTOR

Autorretrato (1971), de Francis Bacon

Li todos os contos do livro Gran Cabaret Demenzial nos dois ou três dias que sucederam o lançamento. Depois o emprestei à minha namorada, mesmo sabendo que ela o acharia constrangedor. Foi o que aconteceu: suas expectativas puritanas acabaram violentadas pelo linguajar sujo da autora, a amiga Veronica Stigger. Quando nós três nos reencontramos, minha namorada, meio sem jeito, comentou que jamais imaginaria aquilo. Como uma pessoa tão elegante pode escrever tanto palavrão? Veronica riu. Para ela, obra e autor jamais deveriam ser confundidos. Essa é uma tendência que, inclusive, ela parece querer derrubar, pois suas histórias são desconstruções muito bem arquitetadas da ideia de "literatura de entretenimento". Elas incomodam o leitor, deixando-o realmente constrangido. Agora, por mais que Veronica não as queira ver confundidas com sua pessoa, Gran Cabaret Demenzial ainda é resultado de sua pesquisa artística, mesmo que isso não signifique – e nem poderia significar – que livro e autora são uma coisa só. Senão daria medo de chegar perto dela.

Quanto do autor está contido na obra? Essa pergunta alimenta discussões ao redor do mundo e jamais terá uma resposta definitiva. Trata-se de uma daquelas questões primordiais que aceitam diversos resultados, questões do tipo "o que é arte?" e "somos todos um pouco artistas?". Como diz o crítico Frederico Morais, "as questões da arte serão as questões de sempre", e as respostas, sejam elas quais forem, estarão ao mesmo tempo certas e erradas, pois não existe verdade absoluta quando se fala de recepção estética e produção artística. No entanto, existem argumentos que nos levam a acreditar mais em um ponto de vista do que em outro. Isso depende da maneira como cada pessoa aborda o assunto, dos conceitos utilizados e do embate interior entre razão e sensibilidade.

Um belo exemplo disso se encontra no relato O homem que confundiu sua mulher com um chapéu, escrito pelo neurologista Oliver Sacks e publicado em livro homônimo. Ele examina a vida de um músico excelente, professor de universidade, que teve um problema nas regiões do cérebro responsáveis pela visão. Só que, ao invés da cegueira comum, a doença fazia com que o doutor P., como o autor se refere a ele, desenvolvesse uma espécie de cegueira cognitiva, que impedia a compreensão daquilo que era visto, ao ponto de ele afagar hidrantes na rua pensando que fossem crianças e de não ser capaz de distinguir o sapato do próprio pé.

Numa visita à casa do paciente, Oliver Sacks descobriu algo curioso: além de cantar e lecionar, o doutor P. também pintava. Seus quadros, na sala de estar, estavam dispostos em ordem cronológica. Um exame minucioso revelou que as obras iniciais eram naturalistas e realistas; depois, foram se tornando mais abstratas, mais geométricas, até se resumirem a caóticas manchas de tinta.

A esposa do doutor P. entendia aquilo como prova do talento do marido, que renunciara à figuração da juventude e avançara para a arte não-representativa. Para o médico, entretanto, não se tratava de um avanço do artista, mas da sua doença: "Aquela parede de quadros era uma trágica exposição patológica, que pertencia à neurologia e não à arte".

Achei o caso do doutor P. interessantíssimo, pois se tratava de um exemplo claro em que a pintura revelava algo de que nem mesmo o artista tinha consciência. Isso não significa que todo pintor abstrato sofre de agnosia visual, seria um absurdo afirmar coisa assim, basta ver a intensa pesquisa intelectual que impulsionou o modernismo. Só que os quadros do doutor P. poderiam ter sido interpretados dessa maneira pela História da Arte, como a própria esposa o fazia, se não fosse o diagnóstico de Oliver Sacks. É uma questão de ponto de vista que somente se esclarece quando se conhece mais profundamente o autor.

Então, as boas e velhas perguntas retornam: quanto do artista está contido na obra? O que é arte? Somos todos um pouco artistas? Um escritor pode publicar palavrões sem que eles lhe pertençam? O que há por trás das vontades artísticas?

Para alimentar debates desse tipo, Frederico Morais reuniu 801 definições de arte no livro Arte é o que eu e você chamamos arte. Talvez algumas delas nos ajudem a decifrar aqueles mistérios, assim como a suscitar outros. Aos pouquinhos, porém, reflexões sobre a prática artística acabarão por revelar algum muito mais inesperado: nós mesmos.

Ps.: Eu adorei os relatos de Oliver Sacks assim que os conheci. Não apenas por seu talento literário, capaz de levar o conhecimento científico a todo tipo de curioso, inclusive aos mais leigos no assunto – esse neurologista de Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, conquistou meu apreço pela sensibilidade com que cuida de cada caso e pela preocupação com tratar o doente e não apenas a doença. Não à toa, o doutor Oliver Sacks assumiu também o posto recém-criado de artista naquela mesma universidade. Seja pela literatura ou pela medicina, ele deixa claro seu objetivo: promover uma ciência mais emotiva.

terça-feira, 31 de maio de 2011

A PALAVRA A SERVIÇO DE UM RIO


Era manhã de domingo, mal passava das oito horas, íamos nos reunir no terraço de um prédio – aproximadamente quinze expedicionários às margens do rio. A previsão do tempo era pouco encorajadora: frio e chuva forte, com possibilidade de vendaval. Chegamos todos encapotados, preparados para apelar ao plano B caso fosse necessário. Estávamos armados até os dentes, como se diz por aí, embora eu nunca tenha visto um dente armado para entender o verdadeiro significado dessa expressão. Em resumo, portávamos cadernos, canetas e laptops, entre outros apetrechos do tipo, pois aquela seria uma missão especial: uma oficina literária com objetivo de salvar o rio Pinheiros da degradação e do descaso.

A oficina era apenas um dos trinta grupos que a Associação Águas Claras do Rio Pinheiros conseguiu reunir em prol da recuperação deste que é um dos principais afluentes do Tietê e um dos mais importantes canais com potencial hidroviário do país, hoje em lastimável estado de conservação. Ao todo, éramos em torno de mil pessoas, participando das mais variadas atividades, tais como caminhadas, pedaladas, expedições fotográficas por terra e pelo topo dos prédios ao redor, caçada fonográfica a canais subterrâneos – isso mesmo, com microfones! –, incursões na mata em busca de nascentes, visitas guiadas a represas, a hidrelétricas e também a estações de tratamento de esgoto. Teve até acrobacia aérea sobre o rio, realizada por um comandante da aeronáutica, com direito a piruetas e rastro de fumaça branca. O princípio de tudo, no entanto, era o mesmo: reconciliar os cidadãos e o Pinheiros, chamando a atenção para um problema que, na maior parte do tempo, permanece confortavelmente ignorado. Pois se acredita que o contato com o rio e o reconhecimento de sua importância gera valorização, e quem valoriza cuida.

Entre as aventuras propostas, a nossa era, de longe, a mais imaginativa. Sob coordenação do escritor Marcelino Freire e minha monitoria, o grupo aderiu à causa, empunhou as palavras e comprovou que a manifestação literária pode obter um resultado tão revolucionário quanto o de uma luta armada.

A ideia era bastante simples: deveríamos pensar no que encontraríamos no lugar do rio Pinheiros se, de repente, num dia qualquer, ele secasse. A partir desse estímulo, cada participante desenvolveu seu texto com total liberdade de forma e conteúdo. Havia uma base conceitual, claro: queríamos retomar a posse do rio, transformá-lo em território comunitário e assumir a responsabilidade por sua conservação. Como? Incentivando a consciência das pessoas a respeito do mesmo, ou seja, mostrando que ele está vivo e que faz parte da cidade. Foi assim que brotaram contos maravilhosos, crônicas e até uma letra de música.

Para nossa sorte, a previsão dos meteorologistas falhou e o domingo permaneceu ensolarado durante toda a manhã, permitindo que observássemos a rotina do Pinheiros e encontrássemos nela a inspiração adequada. Foi uma missão bem sucedida, e parte do resultado dela pode ser conferida no site da associação, basta procurar por "Expedição Rio Pinheiros Vivo". Além do mais, posso afirmar que foi uma experiência bastante divertida.

Isso porque realizamos um encontro entre desconhecidos que, em comum, tinham basicamente a vontade de escrever e de transformar o mundo ao redor, nem que fosse só um pouquinho. Parece ingenuidade, afinal, éramos quinze pessoas refletindo sobre a relação de pelo menos outras vinte milhões com um rio do qual ninguém sabe nada, nem onde nasce, nem para onde corre, nem qual é a profundidade. Só que as grandes mudanças começam assim mesmo, com uma ideia ou uma vontade que, colocada em prática, começa a contagiar. Pode ser um poema, uma música, uma fotografia ou até mesmo um sorriso. Toda manifestação vale, pois as maiores revoluções partem sempre das menores atitudes.

No caso de nossa breve expedição literária, estou certo de que algumas palavras ficaram marcadas, como uma sutil nota de rodapé que provoca o leitor-cidadão da seguinte maneira: o rio Pinheiros existe mesmo, vimos ele lá do alto do prédio, uma longa linha de história já começada. Como vamos escrever o restante, antes que ele seque de verdade?


Ps.: A foto que ilustra esse texto foi tirada na represa Billings durante uma das expedições do evento Rio Pinheiros Vivo, só não sei o nome do autor. Se por acaso alguém souber, deixe um comentário que eu atualizo o post.

Ps. 2: Leia o conto que eu escrevi durante essa experiência com Marcelino Freire: O ACHADO DO SUMIÇO DO RIO

sexta-feira, 25 de março de 2011

ENCONTROS COM O PERSONAGEM

Quando assisti ao filme Cisne Negro, fiquei muito impressionado com a maneira pela qual a protagonista se perde em conflitos interiores para incorporar duas personagens essencialmente opostas, simbolizadas pelos tradicionais "bem" e "mal". Maneira esta que não apenas beira a insanidade, mas que a adentra e leva até uma grave neurose. Se você ainda não viu, não se preocupe, não pretendo estragar a experiência revelando detalhes da trama. Acontece que o filme me lembrou de casos anteriores, alguns reais e outros imaginados, em que pessoas se deixaram envolver perigosamente com o universo ficcional – pude constatar, assim, que isso é mais comum do que parece.

Minha namorada, por exemplo, quando conheceu os livros da série Crepúsculo, ficou tão alucinada que não conseguia pensar em outra coisa além de voltar logo para casa e continuar a leitura. Eu diria que até hoje ela continua meio afetadinha pela promessa de amor eterno do vampiro Edward.

Você mesmo deve ter vivido situação semelhante, ainda que não com tamanha intensidade. Pense no romance O código Da Vinci, que gerou uma curiosa crise com a Igreja Católica e seus devotos mais radicais. Na ocasião, discutiu-se o que nele seria verdade, o que seria perjúrio e o que seria excesso de ousadia do autor. Rolou até mesmo uma tentativa de proibição da leitura, disfarçada de conselho episcopal, como uma sombra do abominável Índex do Santo Ofício. Blasfêmia!, gritavam daqui; Liberdade de expressão!, bradavam dali. Muita gente tomou o romance como fato incontestável e levantou armas contra ou a favor. Outros tiraram os olhos do livro e passaram a encarar o dia-a-dia com desconfiança. Cheguei inclusive a presenciar uma discussão sobre o pecado de ler. Agora, o que a maioria jamais considerou é que O código Da Vinci é um romance, uma obra ficcional sem pretensões de promover uma revelação histórica. Uma narrativa inventada para entreter, ainda que baseada numa hipotética realidade passada.



Algumas dessas narrativas, ou mesmo personagens delas, exercem um fascínio tão grande sobre o público que chegam a afetar suas vidas profundamente, levando inclusive à morte. Um caso clássico é o de Os sofrimentos do jovem Werther. Escrito por Johann Wolfgang von Goethe e publicado pela primeira vez em 1774, o romance se tornou símbolo do Sturm und Drang alemão, embora hoje pareça mais um melodrama um tanto quanto fora de moda. Na época, todavia, muitos jovens passaram a se vestir como o protagonista, enquanto outros, contagiados pela melancolia exacerbada, seguiram seu exemplo e deram cabo à própria vida.

Um século mais tarde, quando Arthur Conan Doyle decidiu se livrar de seu personagem mais famoso para conseguir escrever sobre novos assuntos, Londres viveu tempos de pesar e revolta: leitores indignados enviaram reclamações aos editores e saíram às ruas usando braçadeiras de luto. Oito anos depois, Doyle cedeu à pressão – e às generosas ofertas financeiras –, inventou uma lorota bastante discutível e fez reviver o detetive Sherlock Holmes, para alegria geral da nação leitora.

Uma situação bem mais recente é relatada por Stephen King no primeiro dos sete livros de A torre negra. A série demorou três décadas para ficar pronta. Nesse meio-tempo, em uma das longas pausas criativas do autor – em que os fãs chegaram a lastimar que ela jamais fosse concluída –, uma senhora de oitenta e dois anos lhe escreveu: tenho um ano de vida, catorze meses no máximo. O câncer tomou conta de mim. Antes de partir, queria saber o final da trama, prometo não contar a ninguém. Por favor.

De minha parte, só tenho a dizer que, após muita dedicação, terminei de ler todos os volumes da saga Harry Potter. É impossível não se afeiçoar àquele menino que cresceu junto com seus leitores-alvo, mesmo não sendo o meu caso – talvez algo semelhante tenha acontecido comigo durante o seriado televisivo Anos incríveis. Enfim, quando li a última linha do último livro, imediatamente pensei: que coisa sem graça será minha vida sem a bruxaria!

Não muito diferente do que nos casos supracitados, meu encontro com esse personagem se dera de maneira entusiasmante, o que costuma caracterizar uma boa fonte de entretenimento. Passadas algumas semanas, digo sem titubear que retomei a rotina em sã consciência e que agora tudo transcorre normalmente; embora, de vez em quando, eu pense em como seria bom fazer meu carro levitar para fugir de um congestionamento, ou mesmo deseje estuporar alguém que venha encher a paciência no trabalho. Ah, doce ficção!


Notas sobre as ilustrações:
1. Mão com esfera reflectora (1935), de M. C. Escher (autorretrato)
2. Répteis (1943), de M. C. Escher
3. Encontro (1944), de M. C. Escher

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

OS SIGNIFICADOS DAS COISAS


Na companhia de objetos, de Flávia Junqueira

Que coisas? Sei lá, qualquer coisa. Mas como vou explicar o significado de uma coisa que não sei qual é? Ela pode significar uma coisa para mim e outra para você. Esse é o ponto, percebe? Não. Pois é.

Estive pensando nos significados que damos para as coisas ao nosso redor, desde um objeto banal ao acontecimento mais místico. Porque essas coisas não significam nada por si próprias, somos nós que inventamos encargos para elas.

Tive essa revelação pouco extraordinária lendo uma biografia da Dra. Nise da Silveira – possivelmente a psiquiatra mais importante que o Brasil já produziu e de quem a vida é tão interessante quanto a obra. É um livro que o autor preferiu chamar de "conjunto de biografemas" – coisa que, no final das contas, dá praticamente no mesmo, exceto que deixa a história mais repetitiva. O jornalista Bernardo Carneiro Horta complicou a narrativa para agradar à doutora, de quem era amigo e que considerava o formato biográfico tradicional uma maneira pouco justa de se definir um sujeito.

Enfim, minha revelação se deu porque a Dra. Nise tinha na parede de sua biblioteca um brasão criado por ela mesma, constituído de uma peneira no centro e dois abanadores dispostos um de cada lado. Esquisitíssimo, eu sei. Só que, para ela, aquilo lembrava o doce de laranja preparado por sua tia, que era peneirado sete vezes em fogo brando, controlado com abanadas meticulosas. Ficava delicioso, e o sabor provinha da minúcia e da paixão da cozinheira. Nise empregava essa fórmula em suas pesquisas e o tal brasão ficava pendurado lá para lembrá-la de como agir. Quem nunca teve um amuleto assim?

Como historiador da arte, eu vivo decifrando esquisitices dos outros, principalmente do passado mais distante, também mais difícil de entender. Artistas têm uma grave propensão à esquisitice, o que não deixa de ser divertido e, em alguns casos, engrandecedor.

Lembro sempre de um presente que Marcel Duchamp enviou dos Estados Unidos à França no aniversário de casamento de sua irmã. Na verdade, ele enviou as instruções para que a irmã o realizasse: ela deveria pendurar um livro de geometria do lado de fora da casa e deixar que o vento fosse virando as páginas, escolhendo os problemas que o tempo se encarregaria de destruir. Acho lindo, simbolicamente falando, embora quem passasse na rua possivelmente concluiria que o casal tinha uns parafusos a menos.

Nós todos temos uma percepção específica do que acontece ao nosso redor. Vivemos em um mundo particular. Não tem jeito, cada um pensa à sua maneira, com sua própria bagagem cultural, suas conexões e seu grau de abstração pessoal. Por mais que eu explique a beleza da proposta de Duchamp, muita gente jamais vai compreendê-la como eu a compreendo.

Não faz muito tempo, li um artigo na revista Vida Simples em que a autora resolveu se desfazer de cinquenta dos seus pertences como tentativa de averiguar a relação que estabelecera com eles. Mas não bastava sumir com cinquenta CDs, por exemplo. Tinham que ser coisas diferentes. Foi assim que ela percebeu a imensa carga emocional contida em cada uma delas.

Nós emprestamos significados às coisas e, de alguma maneira, são também as coisas ao nosso redor que dão significado à vida. Juntando aquela reprodução do Abaporu emoldurada na sala de estar, esta caneta tinteiro e uma pilha de livros, dá para ter ideia de quem eu sou, caso um dia desperte sem me lembrar de nada.

Isso é coisa antiga, não tem nada a ver com sociedade de consumo. Os faraós do antigo Egito, por exemplo, eram sepultados com diversos "tesouros", hoje dignos de suspeita. Eram objetos pessoais, às vezes ordinários, mas que podiam fazer falta no outro mundo. Quem visita o Museu do Cairo observa aquele monte de potinhos, colares e besouros dourados sem saber ao certo o que significavam para seus donos originais.

Pensei nesse monte de coisas a partir de um diálogo comigo mesmo. Uma conversa estranha entre a metade que acredita no desapego material e a outra que não consegue viver longe de objetos imbuídos em memória e valor afetivo. Uma conversa em busca de um equilíbrio ideal, que seria perfeitamente representado por uma balança em miniatura. Assim como fez a Dra. Nise da Silveira, essa balança seria o meu brasão, ficaria ótima em cima da escrivaninha. Uma coisa para me lembrar do significado de outras coisas. Gostei. Não parece má ideia comprar uma dessas, né? Tenho certeza de que não.

domingo, 23 de janeiro de 2011

CULTURA, PATRIMÔNIO HISTÓRICO NACIONAL



A polêmica sobre o fim do Belas Artes, cinema tradicional de São Paulo e muito querido entre os cinéfilos por causa de sua programação bem selecionada, me faz pensar na situação cultural do país. Você deve ter lido alguma notícia sobre o caso: o dono do imóvel o pediu de volta, o cinema já andava sem dinheiro desde que perdeu o patrocínio do HSBC, alguém quer abrir uma loja no lugar, os fãs fizeram manifestação, a entidade Viva Cultura e a Associação Paulista de Cineastas entraram com pedido de tombamento do edifício e, resumindo, quem perde com tudo isso somos nós, mais uma vez.

Digo mais uma vez porque, no ano passado, outro cinema tradicionalíssimo fechou as portas e, infelizmente, naquele caso, a comoção foi bem menor. Depois de trinta e cinco anos operando numa galeria da Avenida Paulista, o Gemini se despediu timidamente do público. Foi assim mesmo, exibiu seus filmes no fim de semana e, na segunda-feira, já não existia mais.

Lembro-me da primeira vez que vi um filme lá, sentado naquelas poltronas largas de madeira, o cheiro de ambiente pouco ventilado, a pipoqueira no estilo anos 1960 – talvez fosse mesmo daquela época –, o carpete vermelho na entrada, os cartazes de filmes antigos, o som fraquinho, chiado, pouca luz, a porta localizada bem no meio da sala. Era antigo, meio caidinho, mas tinha seu charme. Assistir a um filme nas suas duas únicas salas era como voltar no tempo e, me parece, ele sim justificava um tombamento. Podia também ter virado museu do cinema nacional, ficaria perfeito. Nós precisamos de espaços assim.

Já no caso do Belas Artes, mesmo que se consiga tombar o prédio – o que vai ser difícil, diga-se de passagem, uma vez que ele não tem valor histórico algum –, isso não vai garantir sua sobrevida, renderá apenas uma forte dor de cabeça para o proprietário. Pode até ser que este reconsidere e deixe o cinema funcionar mais um pouco, até falir definitivamente por falta de dinheiro. Não há um culpado na história, percebe? Não adianta soltar os cachorros sobre o locador. A culpa é da própria situação a que a cultura do país chegou, situação que nós mesmos criamos. Apesar da enorme bilheteria, não existe uma tradição de cinema por aqui. Não existe educação para o público e os filmes, para a grande maioria, são mero entretenimento. É uma história dramática.

Eu queria muito que o Belas Artes continuasse firme e forte, oferecendo sua programação selecionada a dedo – sempre ótima alternativa às grandes redes, que homogeneizaram o mercado e transformaram o cinema num passatempo mecânico, repetitivo e sem graça. Eu queria que filmes autorais, do segundo ao último escalão, filmes de orçamento apertado e experimentais, europeus, asiáticos e especialmente nacionais continuassem a ter ao menos um lugar que os exibissem. Pois nada adianta produzir filmes se eles não conseguem ser vistos.

Nossa falta de salas é um problema crônico, muitas produções brasileiras vão direto para as locadoras porque ninguém quer exibi-las. E não estou falando de filmes amadores. Budapeste, por exemplo, que foi baseado num best-seller de Chico Buarque e conta com elenco poderoso, eu só consegui ver no Gemini. Era só lá. Eclipse, por sua vez, estreou em setecentos e oitenta salas. Nada contra blockbusters, não me entenda mal. Só acho que as grandes redes deveriam ceder um espacinho para produções alternativas, pelo bem da cultura. Vão dizer que cinema é um negócio como qualquer outro e que é o público que decide. Mas, se o público não tem opção, fica difícil, né?

Enfim, eu queria que o Belas Artes sobrevivesse, de verdade. E que muitos outros como ele surgissem por aí. Só que, para isso, não basta tombar os edifícios, não basta uma manifestação isolada e surgida no desespero. É preciso tombar a cultura do Brasil. É preciso envolver todo mundo e mostrar que a nossa maior riqueza corre perigo. Talvez isso fizesse com que ela recebesse o merecido respeito ou, no mínimo, a merecida atenção. Porque senão alguém logo a põe abaixo sem que a gente perceba e constrói um shopping no lugar.

domingo, 9 de janeiro de 2011

HISTÓRIAS DE LITERATURA

Redescobri o romance. Adoro fazer isso de tempos em tempos. Leio, leio e leio, até cansar; então os coloco de lado e retorno à crítica de arte, teorias, filosofia, biografias e não-ficção em geral. Até que bate aquela saudade forte e mergulho nos romances mais uma vez. Vou comprando esses livros compulsivamente e estocando para degustar no rigor do inverno. Faço isso desde pequeno. Herdei o costume de uma tia, que possuía centenas de volumes e que, na minha meninice, pareciam milhares, talvez milhões. Eu achava aquilo lindo, uma parede repleta de histórias dentro do próprio quarto. Tanto que, na adolescência, eu já tinha minha muretinha. Junto comigo, ela cresceu e se espalhou pela casa. Foi sobre a solidez dessa estrutura que eu me ergui. E aqui estou.

Ninguém discorda de que ler é um hábito saudável, embora poucos o pratiquem. Difícil explicar por quê. Talvez seja trauma da literatura imposta goela abaixo pelo colégio, que ainda não aprendeu a ensinar. Aqueles professores se esquecem do prazer da leitura e se preocupam apenas com suas aplicações práticas, tais como as avaliações semestrais e o vestibular. Isso não é educação.

Em meu tempo de colégio, minha professora de português não falava comigo. Ignorou-me o quanto pôde, das aulas até a formatura, pois eu questionava seu método de ensino. Tudo bem que eu era um verdadeiro pentelho, não arredava o pé das minhas convicções pouco fundamentadas. Porém, ao invés de me conquistar, aquela professora preferiu me ignorar. Lembro-me de que, nas aulas de literatura, entre um Augusto dos Anjos e um José de Alencar, eu levantava a mão e perguntava: quando vamos estudar Luís Fernando Veríssimo? E Stephen King? Ela então respondia qualquer coisa que me fizesse parecer estúpido. Era uma afronta falar desses dois na frente daqueles.

Eu entendia que os clássicos tinham o seu valor, só não me considerava preparado para eles. Se até hoje me considero despreparado para dialogar com alguns, imagine naquela época! Mas eu adorava ler e estava disposto a discutir autores mais populares e acessíveis. Afronta, para mim, era exigir a leitura, a compreensão e o prazer da experiência literária de um José de Alencar, considerando um leitor que, até então, só conhecia os gibis da Turma da Mônica. Achava importante saber o lugar dos clássicos na história e respeitar suas virtudes, mas os ler na íntegra era demais. Não atingiríamos o topo da escada sem avançar o primeiro degrau, depois o segundo, depois o terceiro. Foi assim que a maioria dos meus colegas permaneceu no térreo, enquanto a professora gritava lá de cima para se fazer ouvir. No final da história, quem acabou ignorada foi ela. Os alunos, infelizmente, acabaram ignorantes.

Ainda bem que literatura não tem idade, quer dizer, pode-se descobri-la a qualquer momento. Fui aprender isso apenas na pós-graduação. Quem me ensinou, por ironia do destino, foi uma professora de História da Literatura, Thais Rodegheri Manzano – nome que divulgo com orgulho e carinho. Seu entusiasmo pelos livros era contagiante e me fez perceber que, se uma pessoa ainda não se apaixonou por eles, é porque ainda não encontrou o livro certo. Pois basta deixar o coração aberto e estar disposto a experimentar o novo que uma hora isso acontece.

No livro Artimanhas da ficção, Thais menciona a aula de leitura que o escritor argentino Jorge Luis Borges dava na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires. Ela declamava isso quase toda semana, como se fosse um hino:

"Se um livro os aborrece, larguem-no; não o leiam porque é famoso, não leiam um livro porque é moderno, não leiam um livro porque é antigo. Se for maçante, larguem-no, esse livro não foi escrito para vocês. A leitura deve ser uma forma de felicidade."

Há quem diga que o desinteresse por livros é cultural, que os brasileiros jamais lerão tanto quanto os franceses e os americanos, mas eu acredito em mudanças.

Meu pai, que viveu cinquenta e cinco anos sem ter lido praticamente um único livro, veio me contar outro dia, cheio de satisfação, ter terminado seu terceiro. Eu, minha mãe e minha irmã sempre estivemos com o nariz metido em algum. Demorou, mas ele resolveu pôr o preconceito de lado e, depois de meia dúzia de tentativas, descobriu um estilo que lhe agradava. Uma porta assim se abriu e ele está adorando explorar esse novo mundo.

Outra coisa que digo por experiência própria: se você quiser que seus filhos leiam, não basta contar historinhas ao pé da cama. Eles precisam ver você lendo. Senão, vai parecer que literatura é coisa de criança.

Um senhor que trabalhava comigo e que também era aficionado por livros certa vez me revelou que a lembrança mais marcante de sua infância era a figura da mãe, sentada na cadeira de balanço, com um livro no colo. Ela passava horas ali e o menino, fascinado, ficava admirando seu semblante pleno.

Já eu me lembro de meu avô, depois do almoço, sentado no sofá da sala a folhear uma das enciclopédias de fauna e flora que tanto lhe agradavam. Eu sentava ao seu lado e ele me revelava o significado daquelas letrinhas, que ainda eram mistério para mim.

Entre os diversos fatores que prejudicam o hábito de ler está o cultural, é verdade. Porém, já disse antes, eu acredito em mudanças. Como o próprio termo sugere, cultura é algo que se cultiva, e ela renderá os frutos que a gente plantar. Deixo aqui uma sementinha. Pois ler é uma paixão que se ensina, que se incentiva e que se compartilha. Como toda paixão, depois que nos conquista, é impossível de largar.