sábado, 19 de dezembro de 2009
AMOR, FALSO AMOR
“É possível que você esteja se preocupando demais com várias coisas. Desse jeito, acabam parecendo reais até coisas que não o são. Em outras palavras, é a dicotomia entre a ilusão e os fatos. Quando uma coisa existe, ela naturalmente reflete sua sombra. Dependendo, porém, do movimento e das circunstâncias, o oposto pode acontecer e a sombra criar os fatos.”
No fatídico 8 de dezembro, dia em que a cidade de São Paulo submergiu graças ao enorme volume de chuvas e ao seu estúpido processo de ocupação – incluem-se aí governo e população –, comecei a ler a Crônica da estação das chuvas, do japonês Nagai Kafu (1879-1959). Foi por pura ironia mesmo. Tinha comprado o livro poucas semanas antes, na feira da FFLCH/USP, com os tradicionais 50% de desconto (quem me segue no Twitter ficou sabendo: @almeida_edu) e a ocasião pareceu excelente, pois, assim como muitos outros paulistanos, permaneci ilhado em casa, tentando me comunicar com o escritório via telefone e internet. Enquanto isso, passei os olhos pelo primeiro capítulo e não consegui mais parar de ler.
Kafu descreve a vida noturna de Tóquio no início do século XX, com seus bares, gueixas, táxis, bondes, policiais, cigarros, casas de chá – que funcionavam como os motéis de hoje, acredita? – e álcool, muito álcool. No entanto, poucas imoralidades aparecem de maneira explícita; a maioria é apenas sugerida, e o leitor assume a função de construir cada cena utilizando a própria imaginação. Assim, nem mesmo o sexo comprado fica vulgar, nem mesmo as bebedeiras.
Trata-se de um Japão meio decadente, é verdade, meio deprimente, que tenta preservar uns poucos valores do passado em meio ao avanço da cultura ocidental. Suas prostitutas, por exemplo, não são retratadas de maneira muito marginal; misturam-se às gueixas, às garçonetes e, no final, ninguém sabe realmente quem é o que.
Tudo bem que é uma realidade muito diferente da nossa, cronológica e culturalmente falando. Para saber o que este texto significou quando foi publicado em 1931, precisaríamos ser especialistas em história da literatura oriental. Não vem ao caso. O melhor mesmo é deixar as diferenças de lado e nos atermos às semelhanças, pois são elas que mantêm o romance atual. Os personagens masculinos, por exemplo, são vítimas de um machismo bem típico: traem suas esposas, mas se sentem ofendidos quando as amantes se relacionam com outros. Já viu isso em algum lugar? Para piorar, estas são geralmente prostitutas, então já dá para imaginar a confusão. Só que não importa, traição é traição e, às vezes, merece vingança. Sendo assim, para manter os clientes, as moças escondem uns dos outros, e vão exercendo sua profissão contando que eles não fiquem sabendo. Surreal.
Com objetivo de situar melhor o leitor, tudo no livro é muito detalhado. A moda, os costumes e, principalmente, o entorno – há o nome das ruas, do bairro, dos estabelecimentos, das famílias; há as cores, a sujeira, os cheiros, as árvores etc. O excesso às vezes confunde, talvez porque não tenhamos familiaridade com aqueles nomes estranhos, e fica difícil relembrar algumas passagens. Nesse sentido, a pequena espessura do livro ajuda. Talvez os leitores de lá se sintam mais à vontade.
Trata-se também de uma história de mistérios – quando menos se espera, algum se revela, ainda que sequer suspeitássemos dele. Uma das personagens, por exemplo, chama-se Kyoko, mas só depois de lermos um terço do livro é que o nome se mostra fictício, mudando de acordo com o grupo de pessoas em que se encontra.
As chuvas do título estão sempre presentes, embora nem sempre conseguimos vê-las. Ficam apenas resquícios, tais como o ar úmido e pesado, a lama, o calçamento escorregadio, as barras dos quimonos levantadas... Bem diferente do que vi no telejornal, onde as famílias paulistanas apareciam literalmente mergulhadas na imundície da enchente.
Um fato interessante: o romance “não acaba”, ou seja, seu final fica em aberto, misturando-se à vida real e nos deixando a sensação de termos lido apenas uma parte, de termos interagido por apenas um breve instante. Isso não é incomum na literatura japonesa daquela época, vide a obra de Yasunari Kawabata. Nas primeiras vezes, é meio estranho, mas depois se torna reconfortante saber que jamais os extinguiremos. Pois, na ficção e na vida real, sempre restará muita história para contar, e as coisas mais surpreendentes se revelam quando as águas baixam. Veremos isso ao vivo e a cores, pois a nossa estação das chuvas começa agora. Prepare as galochas.
quinta-feira, 17 de dezembro de 2009
Depois da aula, fora de bicicleta até um parquinho à beira do lago. De uma bolsa presa à bicicleta tirou o Manual do amador de rádio e Um ianque na corte do rei Artur. Depois de um instante de reflexão, decidiu-se pelo segundo. O herói de Mark Twain levara uma pancada na cabeça, acordando na Inglaterra arturiana. Talvez fosse tudo um sonho ou um delírio. Mas talvez fosse verdadeiro. Seria impossível retroceder no tempo? Com a cabeça enfiada nos joelhos, Ellie procurou uma de suas passagens favoritas; aquela em que o herói é, pela primeira vez, capturado por um homem de armadura, que o toma por doido que fugiu do hospício do lugar. Ao chegarem ao topo da colina, vêem uma cidade deles:
"Bridgeport?, perguntei...
"Camelot", disse ele.
Ela olhou para o lago azul, tentando visualizar uma cidade que poderia passar tanto pela Bridgeport do século XIX como pela Camelot do século VI, quando a mãe correu até ela.
"Procurei você por toda parte. Por que nunca está num lugar em que posso encontrá-la? Ah, Ellie", murmurou a mãe, "aconteceu uma coisa terrível."
Contato, de Carl Sagan
terça-feira, 15 de dezembro de 2009
segunda-feira, 14 de dezembro de 2009
L.H.O.O.Q. (1919), de Marcel Duchamp
"Quando nos dispomos a fazer a apreciação de uma obra, seja ela qual for, independentemente da leitura que dela fizermos, é preciso, a cada encontro, olhá-la e ouvi-la pacientemente, esperando que ela nos fale. Para isso, temos de abandonar qualquer pretensão a um sentido preestabelecido ou a uma compreensão imediata. Essa postura disponível do espectador é a exigida pela própria singularidade das obras, porque é uma característica intrínseca a toda obra apresentar uma coesão, uma unidade estrutural tão poderosa que ela remeta mais a si mesma e sua história do que a qualquer outra situação no mundo."
"É preciso respeitar uma obra em seu ser específico, (...) tratá-la como um corpo autorreferenciado, (...) uma organização sensível com duplo aspecto: o de mostrar-se a si mesma, como corpo, como espaço-tempo próprio, em sua imanência, e de suscitar, ao mesmo tempo, um sentido transcendente, um mundo, ou seja, um conjunto mais ou menos vasto de possibilidades de existência e tonalidades afetivas, abstratas ou concretas."
João A. Frayze-Pereira, em A psicanálise implicada
domingo, 13 de dezembro de 2009
A ELEGÂNCIA DO OURIÇO - PALOMA
Sabe, depois de apresentar a concierge Renée, senti uma necessidade imensa de escrever também sobre Paloma, a outra personagem central do romance A elegância do ouriço, da filósofa francesa Muriel Barbery. Trata-se de uma menina de apenas doze anos, filha de um dos oito proprietários do rico edifício da Rue de Grenelle, onde Renée trabalha. Mais inteligente do que as crianças de sua idade e mais consciente das suas obrigações com o mundo do que a maioria dos adultos, Paloma está em crise. Planeja colocar fogo no apartamento e se matar em seguida ingerindo calmantes roubados da mãe, não por pura rebeldia, mas com o bonito intuito de trazer sua família alienada de volta à realidade. “Sem apartamento e sem filha, talvez eles pensem em todos os africanos mortos, não?” Ela deseja que o pai covarde, a mãe hipocondríaca e a irmã pseudointelectual redescubram a vida e o sentimento humano que deveria movê-la.
“Aparentemente, de vez em quando os adultos têm tempo de sentar e contemplar o desastre que é a vida deles. (...) ‘Que fim levaram nossos sonhos de juventude?’, perguntam com ar desiludido e satisfeito.”
A crítica de Paloma é ácida e irônica. Tanto na escola quanto em casa, ela se esforça para parecer mais idiota do que é. Suas preocupações são profundas e inquietantes, dizem respeito à natureza humana e a seus conflitos mais essenciais, tais como a morte, o sentido da existência, a arte, o conhecimento, o belo, o trabalho e o prazer. Não quer morrer à toa, tanto que se propõe a escrever em dois cadernos o que chama de “Pensamentos profundos” e “Diário do movimento do mundo”. Como os adultos tendem biologicamente ao absurdo, Paloma quer produzir o máximo de reflexões que puder, de modo que sua mente se conforte com a situação. No entanto, isso não basta. Ela quer também registrar um diário “dedicado ao movimento das pessoas, dos corpos, e até, se realmente não houver nada para dizer, das coisas, e a descobrir aí algo que seja estético o suficiente para dar um valor à vida”. Pois, fora o amor, a amizade e a beleza da arte, Paloma não vê muitas outras coisas capazes de alimentar a alma humana. Os diários têm o propósito de preencher os seus vazios interiores antes do suicídio; são movimento para o corpo e ideia para o espírito.
Os escritos são maravilhosos. Não apenas pelos assuntos abordados, mas porque na maioria das vezes Muriel acerta o ponto e a argumentação de Paloma parece realmente a de uma criança. Assim, ela trata de fundamentos filosóficos com simplicidade, utilizando metáforas corriqueiras, tal como os debates com a professora na sala de aula e a reprovação dos colegas. Ela analisa os animais do prédio de acordo com o comportamento de seus donos, esconde-se para fugir do barulho provocativo da irmã, tem medo da própria avó, pois descobre que as pessoas más não se tornam boas com a idade. Compara literatura e televisão. Observa Renée atentamente, até que se tornam amigas. Elas têm muito em comum; assim como a concierge, Paloma finge ser o que não é: uma criança débil, passiva e banal. Troca de opinião a todo instante, uma vez que está em processo de descoberta do mundo, e não tem medo disso. Ainda bem. Paloma aproveita seu tempo construindo, refletindo, preocupada com a irracionalidade dos outros e com a impossibilidade de promover grandes mudanças. Não quer desperdiçar seus últimos instantes, pois a vida já é curta o suficiente mesmo quando não planejamos morrer precocemente.
sábado, 12 de dezembro de 2009
UM PASSADO EM COMUM. UM FUTURO, TALVEZ
Guernica (1937), de Pablo Picasso
É reconfortante saber que tudo à nossa volta não passa da continuação de algo muito maior. É bonito também, somos parte de um processo. Diferentes dos outros animais, jamais começamos do zero; somos agraciados com a herança dos antepassados logo que nascemos. Nossa função, ao longo da vida, é contribuir com a história, continuar a escrevê-la. Há quem proponha novos capítulos, quem acrescente tragédias e comédias; há quem prefira atuar como figurante para assistir ao desenrolar do espetáculo à distância; há quem sequer aparece nele. Ainda assim, cada um tem seu papel. E, seja ele qual for, está em constante diálogo com o passado, pois é nele que encontramos sentido para todo o resto. Somo o que somos apenas porque alguém já foi alguém um dia. E tudo o que virá, virá por nossa causa. Essa é a beleza da vida. É também o peso de nossa responsabilidade.
Assista a esta interessantíssima viagem 3D pela Guernica, criada pela artista nova-iorquina Lena Gieseke:
segunda-feira, 7 de dezembro de 2009
MÁRIO BORTOLOTTO
Na madrugada de sábado, o dramaturgo foi baleado ao reagir a um assalto em São Paulo. Ontem à noite, o Espaço Parlapatões promoveu um ato público em homenagem a ele, quando foram lidos poemas e trechos de peças de sua autoria. O amigo Marcelo Rubens Paiva escreveu uma mensagem de boa sorte aqui: http://blog.estadao.com.br/blog/marcelorubenspaiva. Bortolotto passou por duas cirurgias e reage bem. Ironicamente, ele mantém desde 2004 o blog http://atirenodramaturgo.zip.net/. Abaixo, uma lista de espetáculos que produziu, incluindo Nossa vida não vale um Chevrolet, que recebeu o Prêmio Shell de Teatro em 2008:
• Transas Mil
• Brasilians Boys
• A Meia Noite um Solo de Sax na Minha Cabeça
• Feliz Natal Charles Bukowski
• Será que a Gente Influencia o Caetano
• A Louca Balada de Lou Reed
• Singapura Slings
• Leila Baby
• Fica Frio
• Fuck You Baby
• Para Alguns a Noite É Azul
• O Cara que Dançou Comigo
• Nossa Vida Não Vale um Chevrolet
• Cocooning
• Uma Fábula Podre
• Felizes para Sempre
• Vamos Sair da Chuva quando a Bomba Cair
• Medusa de Ray Ban
• Postcards de Atacama
• Getsêmani
• Deve Ser do Caralho o Carnaval em Bonifácio
• Brutal
• Gravidade Zero
• Tempo de Trégua
• A Frente Fria que Traz a Chuva
• O que Restou do Sagrado
• O Natimorto
• Nossa vida não vale um Chevrolet
sábado, 5 de dezembro de 2009
A ELEGÂNCIA DO OURIÇO - RENÉE
“Podemos ser tão semelhantes e viver em universos tão distantes? É possível que partilhemos o mesmo frenesi, nós que não somos do mesmo solo nem do mesmo sangue e da mesma ambição?”
Acho que todo mundo tem um pouco de Renée, co-protagonista do romance A elegância do ouriço, de Muriel Barbery. Trata-se da concierge (espécie de zeladora) de um pequeno edifício de alto padrão em Paris, que, diferentemente do que se imagina de seus semelhantes, é inteligente, educada e intelectual. Só que Renée não quer decepcionar seus preconceituosos contratantes e, por conta disso, se faz de ignorante na presença deles, fingindo ser a concierge que eles esperam ter.
“Como raramente sou simpática, embora sempre bem-educada, não gostam de mim, mas me toleram porque correspondo tão bem ao que a crença social associou ao paradigma da concierge, que sou uma das múltiplas engrenagens que fazem girar a grande ilusão universal de que a vida tem um sentido que pode ser facilmente decifrado”.
Nascida em um lugarejo do interior da França, fruto de uma família embrutecida pelo isolamento e pela falta de estudo, Renée se desviou do rumo que o destino lhe reservava; mudou-se para Paris, passou a frequentar bibliotecas, a se interessar por cultura e, mais do que isso, a apurar sua visão crítica. Com o passar dos anos, tornou-se sócia fiel do bom gosto (principalmente estético), autodidata e praticante da filosofia por puro prazer – ideal ainda longe de acontecer a todos. Às escondidas, Renée lê Husserl, divaga sobre o belo, saltita entre referências pop e clássicas, assiste aos mestres do cinema oriental, exalta a gramática, visita museus e se deixa emocionar tanto por Mozart quanto por Eminem. Admira a pintura acadêmica, em especial a da escola holandesa. Deu a seu gato o nome de Leon por causa de Tolstoi, seu escritor favorito entre os expoentes da literatura russa. Valoriza a alta gastronomia e, se compra “comida de pobre”, é só para disfarçar, seu gato gordo que o diga. Em outras palavras, Renée é uma personagem fantástica, cheia de mistérios e reflexões inusitadas, dona de seus pensamentos, consciente de que não pode mudar o mundo, embora possa aproveitar o melhor dele quando ninguém está olhando, basta que aprofunde seu conhecimento. Ela dispensa o clichê da intelectual marxista revolucionária: seu único propósito é ser feliz (de preferência, sem ser perturbada pelo desprezo alheio).
Quando digo que todos nós temos um pouco de Renée, não é porque somos inteligentes e críticos do gosto, muito pelo contrário – é porque estamos sempre tentando ser aquilo que os outros esperam de nós. A concierge deve ter QI limitado, vestir-se mal e falar errado?, então é assim que Renée agirá frente aos ricaços esnobes de seu condomínio. No entanto, ela é muito mais do que isso: possui a elegância do ouriço: é crivada de espinhos por fora, mas por dentro é solitária, falsamente indolente e requintada, tal como a autora a define.
A crítica recai justamente sobre essa estranha atitude de tentarmos apreender aquilo que está preconcebido para nós. Ora, quem nunca sentiu vergonha de exibir suas vontades? De dizer suas preferências, principalmente quando elas vão contra a ordem corrente? Ou, pior ainda, discuti-las com os outros? Mas... por quê? Talvez porque nosso lugar na sociedade seja o mesmo de um ator no “espetáculo da vida”, como dizem. Tentamos desempenhar um papel que nem sempre está de acordo com o que somos fora do palco. Quem você quer ser quando crescer? O mocinho, a perversa, o chefe mal-humorado, o boa-praça, a mãe dedicada, o adolescente rebelde, a esposa submissa? Às vezes, é difícil quebrar paradigmas e ser político sem ser corrupto, ser negro sem ser menosprezado, ser pobre sem ser ignorante; o meio faz suas exigências. Duras exigências. Se bater de frente é missão para raros, há determinados que ao menos tentam contornar a situação. É o que Renée faz, criando um alter ego de defesa, uma espécie de anti-herói que também presta socorro. Uma fuga. Afinal, o que as pessoas ao redor poderiam pensar? “Danem-se eles”, dá vontade de responder. De certo modo, esta é a atitude de Renée. Só que ninguém ouve sua refutação. Ao invés de mandar todo mundo às favas e assumir publicamente seu “eu interior”, Renée os ignora e vive a felicidade à triste luz da solidão. Para ela, as outras pessoas podem continuar com suas concepções pré-fabricadas, mesquinhas e estúpidas, contanto que lhe deixem em paz durante as horas de folga. É uma conclusão pouco otimista, mas que vai mudando ao longo da história. Vale a pena ler.
Com sua proposta ao mesmo tempo filosófica e divertida, o livro de Muriel Barbery detém muitas qualidades, com destaque para esta que nos induz a pensar sobre a maneira como agimos em sociedade. “É preciso que alguma coisa acabe, é preciso que alguma coisa comece”, escreve ela em determinado momento. Pois, do começo ao fim, trata-se de uma leitura elucidativa.
domingo, 29 de novembro de 2009
JOSÉ ANTONIO DA SILVA, “DITO” PRIMITIVO
Sem título, 1971
“Não admito que me chamem de primitivo, caipira ou ingênuo. Tem que me chamar de gênio. Já provei que sou.” J. A. Silva
É bobagem dizer que José Antonio da Silva (1909-1996) fez carreira como artista bruto, primitivo ou mesmo naïve. Ele apenas começou assim, espontaneamente, em São José do Rio Preto, 1946 – ex-lavrador e atual empregado de hotel, tinha 37 anos quando resolvera contrariar a família, comprar tintas, uns metros de flanela e enviar o resultado de suas experiências pictóricas ao Salão da Casa de Cultura da cidade, que seria inaugurado na ocasião. Para sua sorte, o crítico Paulo Mendes de Almeida havia sido convidado a compor o júri e o descobriu em meio às muitas telas de “um academismo rançoso” ali inscritas. Mantendo a tradição da história da arte, o bruto precisa ser revelado por alguém do circuito oficial; precisa ser escavado do limbo, do submundo da cultura, e lançado às bestas ferozes do mercado. Se isso acontece com o artista ainda vivo, sua barbárie falece invariavelmente, mais ou menos como acontece com os indígenas “não-civilizados” que de repente se veem visitados por uma tribo de brancos. Em outras palavras, o artista primitivo só permanece primitivo de verdade até ser trazido à civilização. Depois disso, passa a agir de acordo com o mercado e a pertencer, de uma maneira ou de outra, à história da arte.
Podemos dizer então que o primitivismo de José Antonio da Silva durou apenas esses poucos dias entre a realização de suas primeiras pinturas sobre flanela e a descoberta delas por Paulo Mendes de Almeida. Naquela circunstância, a comissão organizadora do salão anulou o veredicto do júri e concedeu a Silva somente o quarto lugar, desprezando a originalidade de sua obra. Dali para frente, ele jamais seria ingênuo novamente; viria para São Paulo, passaria a ter plena consciência das atitudes que tomava e, se aparentemente suas pinturas permaneciam primitivas, era porque ele assim as desejava. O público queria um artista bruto? Silva magistralmente lhe concedia.
Sem título, 1980
Natureza-morta com magnólias (1941), de Henri Matisse
Isso não desmerece sua arte. É apenas um fator irreversível e ao qual todos os artistas espontâneos estão sujeitos. Mas as pinturas de José Antonio tinham outras qualidades que permaneceram, além de muitas mais que foram sendo adquiridas com o tempo. Elas eram essencialmente críticas. Seus retratos da vida no campo, por exemplo, mostram árvores remanescentes de queimadas, pretas por fora, carne por dentro, violentadas, esquartejadas e abandonadas ao léu. Parece que, para o artista, homem e mundo são feitos do mesmo estofo, tal como escreveu Merleau-Ponty em O olho e o espírito. Suas pinturas detêm um incrível poder de síntese, principalmente as flores de folhas verdes, miolos coloridos e perspectiva reinventada ou simplesmente ignorada. Silva também parece ouvir as orientações de Matisse, que buscava pintar apenas o que era essencial à pintura; esquematizar sem pôr nem tirar, realizar uma pintura exata, fiel às ideias e aos sentimentos do pintor.
Sem título, 1968
Há também na obra de Silva um simbolismo incutido, talvez até mesmo inconsciente. Seu horizonte, por exemplo, é sempre alto, quase não deixa ver o céu, privilegiando a terra e a forte relação que o artista tinha com ela. As lavouras, os trilhos do trem e as procissões, por sua vez, são infinitos, traçam curvas pela tela e se perdem em algum ponto longínquo, como se o mundo fosse tão grande que não se pudesse medir – um mundo que vai para além do que os olhos de José Antonio podiam ver.
Sem título, 1969
Mas nem só o campo foi objeto de suas pesquisas pictóricas. Quando a crítica o acusou de imitar Van Gogh e o deixou de fora da IV Bienal de São Paulo, apareceu imediatamente enforcada em uma pintura. Quando não compreenderam suas ações ou não as valorizaram como ele gostaria, Silva também se vingava artisticamente; na negação do prêmio principal em São José do Rio Preto, por exemplo, o povo foi vendado e os jurados transformados em jumentos. Neste caso, a pintura cumpriu um papel místico, semelhante ao dos bonecos de vodu. Quando incendiaram a floresta, Silva pintou “A burice dos homens” (1987).
Sua personalidade forte não o impediu de conhecer os grandes mestres. Teve contato a obra de modernistas, inclusive europeus. Chegou a dizer que só existiam três grandes artistas no mundo: Van Gogh, Picasso e ele mesmo. Ou melhor: ele, em primeiro lugar, seguido por Van Gogh e Picasso. Seu primitivismo era um rótulo, utilizado apenas quando lhe interessava. Por trás da simplicidade que suas pinturas apresentam à primeira vista, encontra-se uma complexidade louvável, seja na escolha do tema, seja na relação deste com o artista, seja no discurso que produzem. Algumas de suas soluções estéticas são também interessantes, fruto de um olhar apurado em contraste com uma técnica medíocre. Sendo assim, podemos afirmar que José Antonio da Silva extravasou a ligação estrita que tinha com as tradições do campo e passou a pertencer também à tradição da pintura, bastou ser revelado pela crítica. Ele hoje ocupa um lugar na história; um lugar que escolheu e batalhou para conquistar. Justamente por conta disso, é muito difícil considerá-lo primitivo, mesmo esteticamente falando, tendo em vista que suas atitudes foram propositadas, voltadas ao circuito oficial, conscientes e, muitas vezes, assistidas. Como escreveu Paulo Pasta, artista plástico e curador da exposição realizada recentemente na Galeria Estação (SP), “Silva apoiou-se muito nessa noção de pintor primitivo, não só nos primeiros anos de sua carreira. Inteligente, aceitou-se como o artista que o meio queria ver”. Assim, podemos chamá-lo de pintor, músico e escritor espontâneo, muitas vezes esperto e outras tantas ingênuo, cheio de vontades e exageros, brasileiro típico da roça, embora mudado para a metrópole; explorador crítico tanto do universo ao seu redor quanto de seu universo interior. Um artista de fato, dito e assumido primitivo apenas porque o título lhe convinha.
domingo, 22 de novembro de 2009
AMAR NÃO É...
Amar não é... (pág. 24), de Rodrigo de Faria e Silva (texto) e Julianna Prosdocimi (ilustrações)
Se você não foi ao lançamento do livro, aqui vai um trechinho para dar vontade.
Atrás da aparente simplicidade dos textos e das imagens, estão escondidas verdadeiras reflexões sobre o amor (ou falta dele). São experiências vividas na pele e também no coração, que, de algum modo, nos levam a pensar onde acaba a ficção e começa a difícil realidade de amar.
São também apontamentos obtidos no particular e compartilhados com quem se mostrar interessado. Depois de lidos, resta a cada casal escolher o próximo passo a seguir.
Não são verdades e tampouco são mentiras. É apenas a vida, como ela é e como pode vir a ser.
sábado, 14 de novembro de 2009
LANÇAMENTO: AMAR NÃO É...
quinta-feira, 12 de novembro de 2009
PUXE UMA CADEIRA, SIM?
A cadeira de Van Gogh (1888), de Vincent Van Gogh
Eu estava com uma amiga no Parque da Luz, em São Paulo, caminhando por entre as esculturas e jogando conversa fora. Não entendi, ela me disse. Não entendeu o quê? O que o artista quis dizer. E isso importa? Ela fechou a cara, deve ter me achado um grande mal educado, todo metido a saber de arte e ignorando a ignorância alheia. Quem eu penso que sou, hein? Vixe, deixa pra lá, esqueça. Vamos entrar na Pinacoteca e dar uma olhada na exposição do Matisse? Ok. Minha amiga botou os olhos na primeira tela e exclamou: é linda! E o que Matisse quis dizer?, perguntei. Sei lá. Ah, vai falar que agora não importa?! Enfim, era para refletir sobre o que acabávamos de viver, mas a verdade é que quem quase acabou de viver ali mesmo fui eu – a amiga ficou P. da vida com o comentário. Difícil, né? Às vezes, é mais fácil entender de arte do que entender de gente.
Aí eu pego um livro do Merleau-Ponty e as palavras me saltam à cara; ele me diz que só existe arte através da gente. O que eu faço, Mer? Vá entender de gente!
Fui me consultar com Matisse. O cara é mesmo danado de bom, até minha mãe aprova essa amizade. Ah, se ela soubesse o quanto o coitado foi mal dito na juventude, quando se meteu a sonhar com uma arte que acalmasse a mente bem no instante em que todo mundo queria ver o museu pegar fogo e a revolução tomar conta das galerias. O taxaram de bundão. E agora o bundão estava aí, com uma individual vinda diretamente do resto do mundo, com obras que custam os dois olhos da cara e sendo visitado por milhares. Tem pior: caindo na graça da mulherada.
Um tempo atrás, num papo com Duchamp, descobri que nenhum artista tem plena consciência do que cria. E que o bonito da arte é isso mesmo, interpretá-la à sua maneira, mergulhar com profundidade e desvendar segredos que muitas vezes nem estão nela, mas em você mesmo. Se o artista conseguiu ou não dizer o que queria, isso é problema dele, a gente não precisa se deixar influenciar. Pôxa, é com isso que Matisse sonhava: com pinturas que levassem a outros mundos. Para que complicar se podemos simplificar? Faça simples, faça de um modo que agrade ao coração e não intimide um pensamento ou dois. Ele não pintava para assustar, mas para atrair as pessoas, puxar uma conversa mais longa e menos superficial. Oi, você vem sempre aqui?, etc.
Quando comecei a me cansar daquele blá, blá, blá – história de artista é mais fantasiosa do que as de pescador –, veio Paul Klee com as cadeiras do Feuerbach. Sei lá de onde ele as tirou, mas a verdade é que minhas pernas estavam mesmo doendo. Aquela amiga do começo da crônica já reclamava há duas salas e umas tantas telas. Tinha medo de jogar a toalha bem em cima de uma obra-prima e a dois passos da lojinha! Klee explicou: não deixem o cansaço perturbar o espírito. O artista demora um tempão para criar as obras. Faz parte por parte, junta conceito e desenho, problema com solução, como se estivesse construindo uma casa. Tá achando que é fácil fazer simples? Que nada, dá o maior trabalhão, queima um neurônio atrás do outro. Aí vocês vêm visitá-lo, passam os olhos pela tela e querem esgotá-la assim, de relance? Vocês têm sorte é de ele não esfregar seus narizes nela! Portanto, acomodem as nádegas e valorizem um pouco nosso trabalho, ok? Arte não é publicidade, não tenta vender uma ideia quando vocês menos esperam. Tem que pedir com carinho, sugerir um relacionamento. É muito fácil andar pelo museu como quem passeia no parque e sair dizendo que não entenderam nada. Se vocês têm o moral de dizer que pinto igual criança, aposto que são adultos inteligentes o bastante para me compreenderem. E não precisam ficar sem graça, vou aceitar o comentário como elogio. Só me façam um favor, não se esqueçam mais disso: para entender um quadro, é necessário uma cadeira. Com essa correria diária atrás de sabe-se lá o quê, só é fácil dizer aonde não vamos chegar: a um conhecimento mais profundo das coisas. Então puxem uma cadeira. Vamos prosear.
quinta-feira, 5 de novembro de 2009
SARTRE, O ÚLTIMO TURISTA
Hoje, às 18h30, será lançado o livro A Rainha Albemarle ou o último turista, de Jean-Paul Sartre. O volume recolhe os diários da temporada do autor na Itália.
Local: Teatro Eva Hertz (Livraria Cultura do Conjunto Nacional), às 18h30.
quarta-feira, 4 de novembro de 2009
PEÇONHAS
quinta-feira, 29 de outubro de 2009
ALEIJÃO, DE EDUARDO STERZI
domingo, 25 de outubro de 2009
PARADOXOS EM DOBRO
O universo onírico dos dois irmãos grafiteiros conhecidos como OSGEMEOS acaba de chegar ao Museu de Arte Brasileira da FAAP, em São Paulo. Trata-se da mostra Vertigem, que reúne obras antigas e inéditas, entre pinturas, esculturas e instalações. Mas a verdade é que nenhum destes termos se aplica com precisão àquelas criações. As pinturas têm um quê de muralistas, às vezes feitas sobre portas e janelas; não são telas propriamente ditas, como nos acostumamos a ver. O mesmo vale para as instalações, que lembram um estúdio cinematográfico, e para as esculturas, meio robóticas, tais como bonecos gigantes de um parque de diversões.
Sonho e imaginação são a matéria-prima destes artistas que misturam tão bem os contos de fadas com a roupagem popular do Brasil. A pobreza dos personagens trava um intenso conflito com a riqueza das cores e dos detalhes. É tudo muito bonito de se ver, ao mesmo tempo triste e belo. É agradável viajar por seus mundos tão distantes e, ao mesmo tempo, tão próximos de nós, da nossa realidade paradoxal.
Também fica no ar a seguinte pergunta: o que acontece com a arte de rua quando adentra o museu? O que será que ganha e o que perde com isso? Algumas poucas fotografias de grafites da cidade de São Paulo são deixadas como pistas para quem quiser arriscar um palpite.
O que percebemos de bate-pronto é que a interação com o público se transforma completamente. A arte de OSGEMEOS se distancia, faz-se “um outro” pendurada nas paredes do museu. Nem mesmo o aparato cênico desenvolvido pela FAAP consegue disfarçar essa distância. Ali, o grafite não pertence mais à cidade, aos moradores e aos passantes. Parece esquecer sua origem. Acaba sendo “elevado ao status de arte”, o que é muito bom por um lado e uma grande pena por outro. Ora, não deveria ser a mesma coisa, sendo assim ou sendo assada? Na prática, isso não procede. Mais um paradoxo entre tantos outros que OSGEMEOS nos propõem. Pura vertigem.
OSGEMEOS – VERTIGEM
De 25 de outubro a 13 de dezembro
MAB – FAAP/SP
terça-feira, 20 de outubro de 2009
ACERTE O TERRORISTA!
Sir Ian Blair
Em sua biografia, intitulada Policing Controversy, o ex-chefe da Scotland Yard elogia os dois policiais que assassinaram o brasileiro Jean Charles no metrô londrino, em 2005. Segundo ele, os dois deveriam ter recebido uma medalha cada, pois, se Jean fosse mesmo um homem-bomba, o trem teria explodido e milhares de pessoas estariam mortas.
Minha sugestão é que todos saiam atirando por aí. Quem sabe você não acerta um terrorista e ganha uma medalha?
A porta-voz da família do brasileiro, Yasmin Khan, acusou Blair de tentar reescrever a história.
Realmente, após um comentário infeliz como esse, podemos supor que sua biografia não passará de mera ficção. E de muito mal gosto, por sinal.
RECOMENDO:
O filme Jean Charles conta a tragédia ocorrida em 2005, com Selton Mello no papel principal.
segunda-feira, 19 de outubro de 2009
HOMENAGEM A HÉLIO OITICICA (1937-1980)
sábado, 17 de outubro de 2009
segunda-feira, 12 de outubro de 2009
quarta-feira, 7 de outubro de 2009
JOÃO E OS PÉS DE FEIJÃO
Ao propor uma leitura psicanalítica das obras de arte, o professor João Augusto Frayze-Pereira diz que “pensar psicanaliticamente implica escutar”, ou seja, abrir-se para o mundo e prestar atenção no que ele nos diz. O mesmo pode ser visto no romance Sidarta, de Hermann Hesse, em que o barqueiro Vasudeva sugere ao ex-monge que escute os ensinamentos do rio. “Sem cessar, Sidarta aprendia dele. Antes de mais nada, aperfeiçoava-se na arte de escutar, de prestar atenção, com o coração quieto, com a alma receptiva, aberta, sem paixão, sem desejo, sem preconceito, sem opinião”.
Nesse sentido, meu experimento com os feijões revelou coisas interessantíssimas, entre as quais gostaria de destacar a dificuldade de separar o lado humano do científico. Ou, em outras palavras, a emoção da razão. Pois, no começo, tentei ser o mais técnico possível, registrando a incidência da luz, o formato dos utensílios etc. Com o tempo, no entanto, meu vínculo com a plantinha se fortaleceu, e os relatos foram ficando cada vez mais emotivos. Vê-la se desenvolver, criar raízes, abrir-se em duas metades e revelar folhinhas verde-escuras foi um pouco como criar um filho, guardadas as proporções. Fiquei angustiado com a demora do primeiro broto, que levou dias para aparecer; depois, me realizei ao ver o caule se elevando acima da borda do copo. No final, não apenas a replantei em um vaso maior, como acabei comprando outras para lhe fazerem companhia.
Sabe quem foi o responsável por essa mudança em minha percepção? O tempo.
Isso não é novidade. O grande escritor Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), ícone do Romantismo alemão e autor dos famosos O sofrimento do jovem Werther e Fausto, era também cientista, embora pouca gente conheça – e reconheça – essa sua faceta. Ao longo da vida, Goethe estudou diversos assuntos, tais como a luz e os fenômenos óticos, chegando a propor uma nova teoria das cores, em oposição à de Newton. Mas, veja só, foi estudando plantas que ele chegou a uma das suas conclusões mais importantes: a de que o tempo é um elemento primordial na busca do conhecimento. Segundo Goethe, só é possível chegar à verdade científica por meio de uma profunda observação da natureza, livre de preconceitos e ao longo do tempo. Isso porque, para compreender a essência do ser, precisamos analisar seu processo de formação.
O pintor modernista Henri Matisse (1869-1954) chegou a conclusões semelhantes ao refletir sobre a arte. Segundo ele, para superar a simples imitação da natureza e chegar a uma linguagem pessoal, o pintor deveria desenvolver uma relação profunda com os objetos que pretende representar, observando-os atentamente, fazendo com que lhe revelem sua essência. Essa percepção jamais seria imediata. Tal como pensava Goethe, ela seria obtida apenas através do tempo. Só assim Matisse conseguia incutir seu sentimento na pintura, o que acreditava ser indispensável.
Matisse também disse outra coisa interessante, dessa vez a respeito das composições pictóricas. Para ele, um simples ponto de tinta, quando acrescentado a uma tela, modifica todo o resto que já estava lá, pois eles passam a se relacionar imediatamente. Por isso, apenas o essencial deveria constar numa pintura – todo o excesso é desprezível.
Se traçarmos um paralelo entre essas ideias e o nosso cotidiano, perceberemos que todos os objetos ao redor nos influenciam, relacionando-se conosco e modificando nossas vidas à sua maneira. Quais deles são realmente essenciais? Quais são excesso e atrapalham a percepção da realidade?
O professor João Frayze afirma que a junção da psicologia com a arte ajuda a compreender melhor o ser humano, “num certo momento de sua história e em determinado círculo de civilização”. Ambas nos propõem reflexões, colaboram para tornar nossas ações mais conscientes e rendem um conhecimento mais profundo. O outro João, dos contos de fadas, me lembrou que coisas simples como pés de feijão podem nos levar às alturas, permitindo observar a vida por outro ponto-de-vista. Tudo através dos nossos sentidos e das relações com o mundo que eles nos proporcionam. Com o tempo, nossa sensibilidade cresce e passamos a nos sentir parte de algo muito maior: a natureza. Pois é, como pude verificar, os feijões são mesmo mágicos. Basta a gente olhar bem de perto, com o cérebro e o coração.
* * *
Apenas por curiosidade, selecionei algumas das anotações que fiz ao observar os feijões e as publiquei abaixo. Como não pude digitalizar os desenhos, talvez alguns trechos fiquem meio obscuros, mas dá para ter noção do que estou falando.
DOMINGO, 9H21
Só pude iniciar o exercício hoje. Escolhi os materiais pensando sempre em como eles melhor se adequariam aos meus objetivos. O copo, por exemplo, precisava ser baixo e largo, oferecendo bastante superfície para o algodão e facilitando os desenhos. (...) Fiquei curioso para saber como a umidade faz brotar os feijões. Deixei tudo no chão, bem próximo da janela, de modo que o experimento tenha claridade durante o dia. (...) Considero este um lugar estratégico, pois basta eu posicionar a cadeira nas proximidades para obter sempre o mesmo ângulo de visão.
SEGUNDA-FEIRA, 9H
O algodão continua úmido, o que me surpreendeu; achei que teria que regar meus feijões diariamente. (...) Acredito que os feijões devem receber claridade, mas não luz direta, então fechei as persianas. (...) De ontem para hoje, dá-me a impressão de que tudo mudou, exceto as sementes. Imagino que algo muito maravilhoso esteja acontecendo dentro delas, e que seja tão maravilhoso que elas não podem me mostrar.
TERÇA-FEIRA, 22H25
Nenhuma mudança. Estou achando que meus feijões vão me deixar na mão. O algodão continua bastante úmido. Será que preciso colocá-lo por cima dos grãos? Vou esperar mais um dia. Se nada acontecer, tentarei um plano B.
QUARTA-FEIRA, 22H25
Nada aconteceu, mais uma vez. Se é que “nada” pode acontecer mais de uma vez, assim, consecutivamente. (...) Será que devo enterrar meus feijões no algodão? (...) Até mesmo me cansei de desenhá-los nesta posição. Será que, se eu escolhesse outro ângulo, alguma coisa mudaria?
QUINTA-FEIRA, 22H15
Surgiu um pequeno broto, finalmente. (...) Trata-se apenas de uma pequena ponta amarela que rompeu a casquinha e começa a descer na direção do algodão molhado. Também notei uma lista branca no feijão de cima. (...) Fico feliz que o experimento tenha tomado este rumo.
SEXTA-FEIRA, 22H54
(...) Desconfio que um outro ramo tenha brotado por baixo, fazendo o papel da raiz. Seria uma surpresa interessante. E significaria que eu estava errado: os brotos teriam começado a surgir antes que eu pudesse vê-los. (...) Agora, estou ansioso para ver as folhinhas verdes surgirem no copo.
SÁBADO, 8H46
(...) Percebi que observar o crescimento destes brotos me faz pensar em muitas outras coisas, e fica difícil manter a concentração somente no experimento. Quer dizer, é difícil ser cientista sem deixar de ser humano. Tratar a ciência como algo artificial é esquecer a sua origem e os seus objetivos. Por isso, olho para meus feijões e vejo em seu desenvolvimento as fases da minha própria vida.
DOMINGO, 11H
(...) Estou começando a ter pena destes grãos, brotando no algodão. (...) Ontem, fui mexer nos vasos que tenho na sacada do apartamento e passei bons momentos com a mão na terra. (...) Meus olhos têm visto mais do que feijões brotando num copo. Sinto que, de algum modo, estou começando a enxergar melhor.
SEGUNDA-FEIRA, 21H39
O feijão 3 me surpreendeu enormemente. Em aproximadamente 36 horas, ele criou raízes e se suspendeu no ar. Fiquei maravilhado. É muito bom poder acompanhar o crescimento deles. (...) Ontem à tarde, fui a uma loja de plantas e comprei um pequeno musgo. (...) Suas folhas são minúsculas.
segunda-feira, 5 de outubro de 2009
CÉU, TEMPO BOM
A Céu de hoje está mais madura. Aperfeiçoou o domínio sobre a voz – que considera seu verdadeiro instrumento – e conseguiu que a banda a complementasse em perfeita sintonia, fazendo uma mistura quase sempre inusitada de acordeão, samplers e tamborim. Suas letras, que já eram ótimas, mativeram a qualidade. Estão cheias de poesia, imagens oníricas, cultura brasileira e temas tão complexos quanto fluxos do tempo e do pensamento, tratados de modo a ficarem sempre a salvo do lugar-comum. É incrível como Céu apanha expressões do cotidiano e as transforma em algo interessante. Vide a frase “embrulhar para viagem”, da música Espaçonave (Pode mandar embrulhar / que eu quero te levar pra viagem / voltar pra nave mãe pra despressurizar / deixar o sol me beijar, me beijar). Pôxa, quem faz música de verdade com isso?
Seu show muitas vezes adquire tom de rito, em que os músicos levam o público ao transe; as horas passam e ninguém percebe. Às vezes, acontece de você se perder na levada e abandonar a letra. Mas o sentimento nunca se perde, está sempre ali, claro como a voz que a entoa. Céu tem também um jeito esquisito de dançar, meio tribal, meio duro, que aumenta ainda mais essa sensação. Ah, se todas as crenças contivessem a energia e a sensibilidade dessa artista… O mundo estaria girando em ritmo bem mais harmonioso, sem pausas ou contratempos.
quarta-feira, 30 de setembro de 2009
A DAMA NA ÁGUA
As fotos de Elena Kalis são simplesmente fantásticas. Luzes, cores, harmonia, movimento. Tudo que se espera de uma boa fotógrafa. Com um detalhe: as imagens são captadas embaixo d’água. Nem todas, é verdade, mas a relação que travam com este elemento acaba por transformar nossa percepção. O que é essencial à vida também se torna essencial à sua arte. Assim, deixamos de ver meninas seminuas. Vemos ninfas envoltas por uma aura fantástica. Deixamos de ver piscinas. Vemos o universo dos contos de fadas. Deixamos de ver fantasias e bexigas. Vemos apenas rastros luminosos e pontos de cor. As fotos de Elena têm mesmo algo místico. Com água, ela consegue nos proporcionar um maravilhoso silêncio contemplativo, onde podemos mergulhar e sonhar. Com modelos imersas em magia, Elena nos deixa sem fôlego.
Veja alguns dos trabalhos de Elena Kalis aqui: http://elenakalis.carbonmade.com/.
Recomendo, em especial, o ensaio chamado Alice in Waterland.
terça-feira, 29 de setembro de 2009
III SEMINÁRIO DE PESQUISA EM HISTÓRIA DA ARTE
Durante os dias 17 e 23 de outubro, vai se realizar na FAAP (Fundação Armando Álvares Penteado) o III Seminário de Pesquisa em História da Arte. Todas as pesquisas são interessantes e representam a oportunidade de entrar em contato com o trabalho de muita gente. Eu participarei da mesa do dia 21, mediada pela profa. Dra. Veronia Stigger e composta também por Andrea Rocco e Taís Barreto. Quem puder, apareça!
Obs.: É necessário se inscrever para assistir aos seminários. Para fazer isso, clique aqui:
http://academico.faap.br/faap_pos/palestras/455.html
segunda-feira, 28 de setembro de 2009
A persistência da memória (1931), de Salvador Dali.
"A narrativa é sempre uma escavação original do indivíduo, em tensão constante contra o tempo organizado pelo sistema. Esse tempo original e interior é a maior riqueza de que dispomos."
Ecléa Bosi, em Sugestões para um jovem pesquisador (ensaio que compõe o livro O tempo vivo da memória).
quinta-feira, 24 de setembro de 2009
domingo, 20 de setembro de 2009
A PAZ FICA BEM MAIS PERTO DO QUE VOCÊ IMAGINA
Duas postagens atrás (dia 11 de setembro), fiz um breve comentário a respeito das ideias do mestre Hsing Yün, fundador da ordem budista que administra o Templo Zu Lai, em Cotia, Grande São Paulo. Eu tinha acabado de visitar o lugar e estava empolgado para saber tudo que acontece por lá. Agora, para quem ainda não conhece – e não sabe o que está perdendo –, gostaria de registrar a dica.
Com acesso fácil pela Rodovia Raposo Tavares, o Templo Zu Lai fica bem perto do caos urbano que caracteriza São Paulo, coisa de quinze minutos a partir da Cidade Universitária. No entanto, parece se tratar de outra dimensão.
Resumindo, o passeio é ótimo para toda a família, para quem busca um programa fora do eixo shopping-cinema-restaurante e para todo mundo que gosta de conhecer lugares diferentes. Se bateu uma vontade, acesse o seguinte link e inclua o Templo Zu Lai na programação do próximo fim de semana: www.templozulai.org.br.
segunda-feira, 14 de setembro de 2009
A ALMA BOA DE SETSUAN
Denise Fraga em A alma boa de Setsuan
Em A alma boa de Setsuan, de Bertolt Brecht, a protagonista Chen Tê pergunta a Deus como é possível alguém ser bom numa terra em que todos passam fome. Deus permanece calado. Ele deixa a resposta a nosso cargo.
Quem ainda não viu a montagem de Marco Antônio Braz, estrelada por Denise Fraga, sugiro que corra e compre os ingressos assim que possível. Com muita criatividade, eles conseguiram deixar o texto mais atual do que já é. E divertido também. Resumindo, a peça é imperdível.
Mais informações: www.teatrotuca.com.br
sexta-feira, 11 de setembro de 2009
O MUNDO DENTRO DE NOSSAS MENTES
Em uma conferência realizada no ano de 1990, sob o nome de Conceitos Fundamentais do Budismo Humanista, o venerável mestre Hsing Yün disse que somente atingimos o verdadeiro estado de consciência quando alcançamos o mundo dentro de nossas mentes. Achei essa passagem, no mínimo, surpreendente. Pois, ao contrário do que a maioria pensa, nossa consciência – ou seja, o conhecimento que levaria à sabedoria plena – não viria do descobrimento do entorno. Não se basearia em apreender o maior número de informações, em saber lidar com estatísticas, em decorar livros ou fundamentar teorias. Ser consciente não seria saber tudo sobre o mundo exterior. A consciência se encontraria dentro de nós mesmos. Ali estariam os maiores mistérios da existência. Seria possível desvendá-los? Segundo o mestre, por meio dessa consciência, poderíamos integrar a unidade da vida e ser felizes. Faríamos isso libertando nossos pensamentos: “Quando a mente está sobrecarregada, o mundo todo parece limitante. Quando a mente está livre de preocupações, até mesmo uma cama estreita se alarga”. Então, se você quiser iluminar um pouco seus pensamentos, o mestre budista dá a dica: “Apenas feche seus olhos e todo o universo estará lá, dentro de você”.
quinta-feira, 10 de setembro de 2009
CARTIER-BRESSON NO SESC
“O ‘momento decisivo’, porém, é certamente uma ideia menos precisa de seu trabalho. Isso porque o termo sugere a existência de um instante único, tão sublime quanto fugaz, quando todos os elementos de uma cena se combinariam para uma foto. Cartier-Bresson flanava pelas ruas sempre em busca de arranjos assim. Mas não acreditava que eles acontecessem uma vez só durante uma situação, por exemplo. Para o fotógrafo, encontros sublimes ocorriam na vida com frequência. Seu segredo era saber captá-los.”
Gisele Kato, em O pescador de flagras
Revista Bravo!, número 145 (setembro de 2009)
HENRI CARTIER-BRESSON: FOTÓGRAFO
Exposição de 133 trabalhos do fotógrafo.
Sesc Pinheiros, de 17 de setembro a 20 de dezembro.
Mais informações: www.sescsp.org.br/sesc/
segunda-feira, 7 de setembro de 2009
HENRI MATISSE E A COR DO SENTIMENTO
Retrato com risca verde (senhora Matisse), de Henri Matisse
Rosas são vermelhas e violetas são azuis? Não necessariamente, diria o pintor francês Henri Matisse (1869-1954). A escolha das cores está sujeita à expressividade que se pretende obter delas. Tudo contribui para a composição de um quadro. Tudo está interligado. O desenho se relaciona com o formato do papel, um ponto fortalece ou enfraquece o outro, as cores somam-se ou se subtraem umas às outras. Portanto, “tudo o que não tem utilidade no quadro é, por isso mesmo, prejudicial. Uma obra comporta uma harmonia de conjunto: qualquer detalhe supérfluo ocuparia, no espírito do espectador, o lugar de outro detalhe essencial”, como escreveu o artista em Notas de um pintor (1908).
Matisse viveu em busca da essência de sua arte. E, para isso, sabia que não poderia pintar as coisas como elas são, mas como gostaria que o espectador as visse. Em suas palavras: “não me é possível copiar servilmente a natureza, a qual sou forçado a interpretar e submeter ao espírito do quadro”.
O que seria esse espírito? Aparentemente, para Matisse, trata-se daquilo que mantém o quadro vivo no coração do espectador e, consequentemente, na história da arte. É a tal expressividade, que continua falando conosco mesmo depois que deixamos o museu. É também o sentimento do artista, que se manifesta por meio de traços, formas e, principalmente, cores.
Mesa posta (harmonia em vermelho), de Henri Matisse
Sim, rosas podem ser pretas. Violetas podem ser amarelas. Quando o objetivo é comunicar um sentimento exato, o pintor tem total liberdade para modificar a realidade como bem entender. “A própria teoria das cores complementares não é absoluta. (...) poderíamos definir melhor alguns pontos das leis da cor, ampliar os limites da teoria das cores tal como ela é atualmente aceita”, diria Matisse.
As cores conversam conosco de maneira quase instintiva. Podemos nos sentir bem vestindo roupas brancas num dia e, no seguinte, preferir outras vermelhas. Por quê? Não é algo fácil de explicar, mas, no momento da decisão, faz todo o sentido. As cores expressam sentimentos às vezes tão subjetivos que sequer podemos compreendê-los. Matisse, no entanto, fazia isso maravilhosamente bem. Ele dominava a expressividade das cores e dizia que as sensações podem mesmo variar, o que importa é a intenção do pintor ao aplicá-las sobre a tela: “o outono pode ser suave e tépido como um prolongamento do verão ou, pelo contrário, fresco com um céu frio e árvores amarelo-limão que dão uma sensação frígida e já anunciam o inverno”.
A obra, para ele, deveria transmitir a emoção do pintor com muita precisão. Os gênios fazem isso sem que o espectador note seus meios. “Trata-se apenas de canalizar o espírito do espectador, de maneira que ele se apóie no quadro, mas possa pensar em outra coisa diferente do objeto particular que quisemos pintar: retê-lo sem prendê-lo, fazê-lo sentir a qualidade do sentimento expresso. (...) O ideal é que o espectador se deixe tomar, sem consciência disso, pela mecânica do quadro. Pode-se recear que ele tenha um movimento de surpresa e, por isso mesmo, escape: deve-se esconder o artifício ao máximo”.
Não existem regras para tanto, apenas estudos rigorosos e a difícil tarefa de manter as portas abertas para o sentimento do mundo. Com um sarcasmo peculiar, Matisse completaria: “Eu bem que gostaria que elas [as regras] existissem, mas se fosse possível aprendê-las, quantos sublimes artistas teríamos!”
Nu azul (IV), de Henri Matisse
A pintura de Matisse, como bem definiu Teresa Camps, professora titular de História da Arte na Universidade Autônoma de Barcelona, “é um presente para quem sabe perceber a inteligência e a sensibilidade além da pureza e da clareza das cores”. É cem por cento sentimento. Um presente do artista para nós, seus humildes espectadores.
Tudo isso pode ser visto na primeira individual do artista no país. “Matisse Hoje”, em cartaz na Pinacoteca do Estado de São Paulo até o dia 1º de novembro, traz cerca de 80 obras do pintor, o que a caracteriza como um dos eventos mais importantes das comemorações do Ano da França no Brasil.
MATISSE HOJE
De 5 de setembro a 1 de novembro, na Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Mais informações: www.pinacoteca.org.br
quarta-feira, 2 de setembro de 2009
CADERNO DE NOTAS
Desenhando-se (1948), de M. C. Escher
Num velho caderno de notas que tinha ao colo, um jovem escritor, sentado num banco de praça, escrevia sobre um jovem escritor que, sentado num banco de praça, tinha ao colo um velho caderno de notas em que escrevia sobre um banco de praça em que, sentado, um jovem escritor escrevia, num velho caderno de notas que tinha ao colo, sobre o quê escrevia um jovem escritor que, sentado num banco de praça, tinha ao colo um velho caderno de notas em que um jovem escritor, sentado num banco de praça, escrevia, ao colo, sobre um velho caderno de notas de um jovem escritor que, sentado num banco de praça, não mais escrevia notas em seu velho caderno. (EA / fevereiro de 2005)
terça-feira, 1 de setembro de 2009
WELCOME TO THE JUNGLE
Welcome to the jungle
It gets worse here everyday
Ya learn ta live like an animal
In the jungle where we play
Trecho da música Welcome to the jungle, de Guns ‘n Roses
Yes, nós vivemos na selva. Uma selva de concreto, é verdade, em que os homens têm o rei na barriga e menosprezam seus súditos. Vivemos uma ilusão. Um teatro, onde são encenadas as tragédias e comédias do espetáculo que denominamos “vida”. Todo o cenário foi construído por nós. Máscaras e fantasias idem. Abrem-se as cortinas e o que vemos ali? Atores prontos para a batalha das ruas, para a mesmice do dia-a-dia. Preste atenção no mordomo. Nesta peça, os amigos se tornam inimigos com um simples desentendimento, atacando pelas costas sem pensar duas vezes.
Há quem se revolte com tudo isso, como o jovem americano Christopher McCandless (Emile Hirsch). Cansado do artificialismo da sociedade, ele se lançou na natureza selvagem a fim de reencontrar a essência da vida. Sua história virou livro e o livro virou filme. No Brasil, recebeu o título Na natureza selvagem (Into the wild, no original). Após uma discreta aparição nos cinemas, foi lançado em DVD em meados de 2008 e esgotou rapidamente. Eu mesmo tive que esperar a reposição, que demorou um pouquinho para acontecer. Mas a espera valeu a pena.
O filme trata do desafio de sobreviver em um mundo que já não nos pertence mais. Christopher assume o pseudônimo Alex Supertramp (Superandarilho) e cai na estrada com o objetivo de viver um tempo no Alasca. Ele quer se livrar da selva de concreto e conhecer a selva real. É o superlativo da casa de campo; a hipérbole da excursão pelo deserto do Atacama. Christopher quer ir a fundo naquilo que acredita ser a realidade. O resultado é uma overdose de natureza. Infelizmente, assim como numa overdose de drogas, seu corpo não aguenta e desfalece.
Fica claro que não estamos mais preparados para enfrentar o mundo selvagem. Fomos condenados a viver eternamente dentro de nossa colônia – o formigueiro conhecido como “sociedade”.
O filme é lindo em muitos sentidos: na proposta de um novo estilo de vida (ou seria “novo sentido para a vida”?); nas imagens, repletas de belas paisagens; na ótima direção de Sean Penn, que transmite muito bem os diversos momentos da narrativa, tais como a angústia dos pais e o êxtase do filho; e na trilha sonora, assinada por Eddie Vedder (sim, ele mesmo, líder do Pearl Jam), que acrescenta o espírito perfeito ao corpo do filme. Em outras palavras, não faltam motivos para explorar essa obra. Garanta suas passagens!